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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Melhores Filmes de 2021, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 29.12.21

Depois da tempestade vem a bonança, pelo menos seguindo os ditados populares poderemos considerar que 2021 foi o ano revitalizador do cinema. Contudo, os ecos da pandemia e as ameaças de novas variantes têm indicado um regresso tímido às salas, em oposição de um cinema-fénix que surge das cinzas da modernidade que conhecíamos e que muita tristeza nossa apelidamos de “normalidade”. São filmes que nasceram dessa decadência civilizacional e que debruçam na nossa "barbárie" como foi o caso de Radu Jude e o seu “Bad Luck in Banging or Loony Porn”, ou que remetem-se a paraíso longínquos da nossa memória [“O Movimento das Coisas”], ou questionam a nossa identidade nos confinamentos da existência [“Titane”]. No fim de contas, o Cinema sobreviveu, o que nos basta é procurá-lo nos meios das proclamadas ruínas! Segue a lista dos 10 filmes imperdíveis do ano de 2021, que (privilegiadamente) tiveram estreia portuguesa.

 

#10) Compartment Number 6

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"Nunca me canso de citar Fernando Lopes na sua breve aparição de "The Lovebirds" de Bruno De Almeida - “Existe uma beleza triste na derrota” - e tendo esse signo em vista, é de facto inegável a beleza nas ferrovias de “Compartment Nº6”. Resistindo à melancolia como uma falhada festa!" ler crítica

 

#09) Les choses qu'on dit, les choses qu'on fait

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"“As Coisas que Dizemos, As Coisas que Fazemos” percorre por vias de palavras essas dúvidas supostamente existenciais das personagens, que se vão cruzando e entrelaçando umas com as outras através de relato e discursos. Está feito aqui um universo a merecer ser explorado, de felizes e tristes acasos, e de conflitos discretos, de ênfases dramáticas subtilmente embutidas nos gestos, nas carícias ou nos beijos trocados antevendo despedidas. Sensibilidade é o que é aqui pedido, porque casos amorosos todos nós vivemos, nem que seja por um dia. Dentro dos tais ditos “filhos de Rohmer”, eis um filme que é, de facto, um pedaço de céu." Ler crítica 

 

#08) Bad Luck Banging or Loony Porn

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Em “Bad Luck Banging or Loony Porn”, a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o último Festival de Berlim (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel. Ler crítica

 

#07) The Human Voice

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A atriz britânica é das forças maiores deste projeto, que requer mais do que a sua capacidade de assimilar, a sua expressão em nos convencer de uma veracidade poética tida nas suas palavras, nas suas angústias, na sua linguagem corporal, enquanto emana um monólogo justificado. Esta é a história de uma mulher em jornadas existencialistas cuja ausência do seu "mais que tudo", o impulsor de toda a postura trágica, a leva a tomar medidas. Ler crítica

 

#06) Nomadland

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Inspirado no livro “Nomadland: Surviving America in the 21st Century”, de Jessica Bruder, Chloé Zhao marca a sua posição, quer na definição de realismo, separando qualquer simulacro "hollywoodesco" e submetendo McDormand, bem como outros atores, a um convívio de constante aprendizagem com não-atores, as tais pessoas de carne-e-osso que tanto procuramos nos filmes. Trata-se de um processo de criação que funde ficção em território documental e o híbrido daí gerado percorre os trilhos de um "império" deixado ao abandono. Império que aqui não é citado por acaso: remete para a ironia do destino, em que a cidade Empire onde vivia a protagonista, outrora industrializada e habitada, se tornou um endereço postal inexistente. Ler crítica 

 

#05) Titane

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Portanto, “Titane” opera consoante a interpretação e representação que lhe quisermos dar e visualizar, nunca prescrevendo em absolutismos ou propagandas. É terror, choque, sangue e bizarrias. E, ao mesmo tempo, política, identidade e sociedades espremidas numa só arte. Uma complexa panóplia disfarçada num gesto de repugnar o espectador, com uma atriz titânica como Agathe Rousselle a servir-nos de compaixão e incómodo e um dos mais excêntricos desempenhos de aclamado ator Vincent Lindon. Ambos em figuras presas às suas maldições, que ambicionam pelo aço o que os seus corpos invejam. Ler crítica

 

#04) O Movimento das Coisas

São poucos os que ainda preservam essa veia cinematográfica na ruralidade, ao invés de ceder ao facilitismo formal, diversas vezes elogiado por elites de pensamento crítico cinematográfico. E é por isto, e não só, que “O Movimento das Coisas” é um filme crucial na nossa História, um modelo ora acidentado, ora poetizado sem bucolismos latentes. Ler crítica

 

#03) Undine

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Undine torna-se Berlim, e Berlim torna-se Undine, uma cidade, um corpo, que não morre, simplesmente dá a vez a outro. Christian Petzold pode não ter aqui a essência bruta e já flexível da sua cooperação com Nina Hoss (saudades), mas sabemos que temos, não um desfecho, e sim, uma aurora. Um reinício do seu Cinema. Não querendo banalizar um termo, por si só, tão banalizado, eis um belo filme. Ler crítica

 

#02) Another Round

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Pelo que sabemos, a tragédia bateu à porta de Vinterberg a pouco tempo do início da rodagem, automaticamente virando uma possível comédia de “velhotes” que ousam sonhar com uma juventude embebida em martinis, numa superação ao seu luto, uma história pessoal e experiencial (não confundir com experimental) sobre o retomo da vida, à “normalidade” que foi configurando perante as mudanças. Nesta lufa-lufa de confinamentos e desconfinamentos, chegar a nós um filme assim, tão antiquado e igualmente vívido é um quasi-antidoto da melancolia contraída pelo nosso quotidiano. Aliás, Cinema é também isto – sentimento – até porque é Vida. Então brindemos à Vida … mais um shot!Ler crítica

 

#01) Gunda

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Kosakovskiy conseguiu mais uma experiência a merecer, de forma digna e obrigatória, o grande ecrã, porque no fundo o cinema transporta quem o vê para uma outra dimensão, realidade ou linguagem. “Gunda” fala-nos com exatidão de um mundo tão perto de nós, mas tão ignorado pelo nosso antropocentrismo. São animais a serem simplesmente animais e as imagens de crua beleza assumem exatamente aquilo que são e nada mais. Não existe engodo, tudo respeita a natureza e a sua autenticidade. Obrigatório. Ler crítica

 

Outras menções: Begining, The Father, Cry Macho, Colectiv, Prazer Camaradas

 

Mais uma rodada e quem paga é o caro Thomas …

Hugo Gomes, 28.04.21

Acontece surgir-nos filmes do qual ligamos emocionalmente, não permitindo-nos uma capacidade de exercer nele uma visão imparcialmente objetiva. Para esses casos, algo tem que ser dito e relembrado quanto ao papel da crítica e principalmente a da existência do crítico de cinema – não somos seres isentos de sentimentos, nem a expressão da crítica cinematográfica deve ser exclusivamente matemática, científica e puramente analista. Portanto, quando deparo com obras como este “Another Round”, o mais recente trabalho do dinamarquês Thomas Vinterberg (um dos fundadores do Dogma 95, ao lado de Lars Von Trier), torna-se umbilical a minha objetividade com o meu ser subjetivo (… agora, pauso, tomo o shot de whiskey que tinha meu lado e prossigo …).

Mais uma vez, Mads Mikkelsen (um fenómeno da natureza nórdica), o “parceiro do crime” de Vinterberg, é um professor … mas atenção, não é a “The Hunt” novamente replicada, mas antes o “caçado”, porque o nosso protagonista, Martin, é um “rascunho” tristonho de figura, aborrecida (como pergunta à sua mulher cada vez mais distante de si), e quanto à sua performance profissional, atrapalhada, sem rumo e gradualmente desesperada. O nosso professor não se orgulha da sua idade, o tempo não volta atrás como bem sabemos e os sonhos são concretizados ou simplesmente varridos das nossas projeções (… aqui tomava outro shot, mas julgo não ser a altura ideal). Contudo, é num jantar de anos, num convívio entre homens de meia-idade e amigos, seio familiar que suscita confissões anexadas a fragilidades, não apenas de Martin, e sim de todo o grupo. Desabafos que são motivados pelo sabor do álcool intercalado por petiscos e iguarias (… agora sim, pego no meu shot … mais um … estou pronto para continuar).

Tudo começa com uma ideia mirabolante que depressa se torna num possível escape. Segundo um filósofo dinamarquês o ser humano nasce com uma deficiência de 0,5 litros de álcool no sangue, o que seria crucial para uma vida mais confiante, divertida e mais apaixonada. Eis a receita para a felicidade, acreditam eles. Como qualquer experimento emborcado, os primeiros passos demonstram resultados favoráveis. Confiança que chegue para dar e vender, laços afetivos restaurados e uma nova perspetiva de vida. Nada mais que uma experiência científica … assim eles nos avisam de forma a afastarem da possível autodestruição.

A esta altura, enquanto vos escrevo, este filme consagrou-se com o (esperado) Óscar de Melhor Filme Internacional na 93.ª edição dos Prémios da Academia e segue em marcha para um eventual remake americano com produção de Leonardo DiCaprio (os americanos não podem ver nada, é um facto). Isto faz-me questionar quanto à preservação de algumas características do qual saliento nesta, negativamente conotada de, “história de bêbados”. Uma delas é a audácia de posicionar toda esta tragicomédia num universo puramente masculino, sem que isso o reduza à mera misoginia. Pois bem, a dita camaradagem e a própria dissecação dos contornos da masculinidade são enzimas que tornam esta história específica sem nunca perder os seus traços universais.

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É um “bromance” sim, como querem chamar, mas é antes disso tudo uma celebração à vida (designação atualmente convertida ao marketing do mesmo) com todas as suas dicotomias, ora cómica, ora dramática, o copo meio-cheio ou simplesmente meio-vazio, à escolha do freguês. Outro elemento que porventura dissipará na transladação yankee é a sua diversificada perspetiva quanto ao álcool, “Another Round” manifesta as suas diferentes influências desde a alegre alcoolémia até ao patológico alcoolismo. No final nada se julga, culpabilizar o álcool (que se banalizou na nossa sociedade) nunca foi o propósito Vinterberg, nem sequer comparar-se à enésima variação de “The Lost Weekend” (Billy Wilder, 1945).

Os moralismos hollywoodescos, que serão campos fáceis para a previsível nova versão, não tomam o seu devido “drink” na companhia destes veteranos aspirantes a “bon vivants”. Martin e comparsas vivem a sua boémia como causalidade da sua existência (bem, já me ia esquecendo com esta conversa toda, tenho que tomar o meu shot … cá vai). Assim, ouve-se nas beiras e estribeiras do porto, dos jovens na frescura e no otimismo dos seus respetivos percursos, embriagando através dos néctares de Baco, chafurdando nas suas tentações e sintomas salteados, os cânticos rompantes de que nada perdura mas que se deve ser aproveitado (desta maneira entra “What a Life” dos “Scarlet Pleasure”). Martin não é mais novo, porém, integra-se neste grupo festivo como um camaleão, encarando tal estado numa passagem, uma renúncia à sua mortalidade. Aliás, parafraseando Jean-Pierre Melville, em “À Bout de Souffle” (Jean-Luc Godard, 1960), como objetivo de vida – “ser imortal para depois morrer”.

Pelo que sabemos, a tragédia bateu à porta de Vinterberg a pouco tempo do início da rodagem, automaticamente virando uma possível comédia de “velhotes” que ousam sonhar com uma juventude embebida em martinis, numa superação ao seu luto, uma história pessoal e experiencial (não confundir com experimental) sobre o retomo da vida, à “normalidade” que foi configurando perante as mudanças. Nesta lufa-lufa de confinamentos e desconfinamentos, chegar a nós um filme assim, tão antiquado e igualmente vívido é um quasi-antídoto da melancolia contraída pelo nosso quotidiano.

Aliás, Cinema é também isto – sentimento – até porque é Vida. Então brindemos à Vida … mais um shot!

Celebramos a Vida como o Cinema e celebramos o Cinema como a Vida …

Hugo Gomes, 19.12.20

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Eis a maior das ironias, surgir entre nós um filme como “Druk” (“Another Round”), um fantasma da nossa boémia abandonada por um bem maior por entre constantes vai-e-vens de confinamentos e desconfinamentos. Ah, que tempos! Éramos tão felizes e nem sequer sabíamos! Contudo, Vinterberg traz-nos a dita celebração com todos os seus cinzentismos, é como a tal vibrante melodia de Scarlet Pleasure que toca como entrave dos créditos finais - “Que vida, que noite, que bela, bela viagem”. Rimos, choramos, bebemos, comemos e sobretudo vivemos, não haveria filme melhor para encantar o nosso suposto regresso à “normalidade”.

O sonho da esquerda em peso de ferramenta

Hugo Gomes, 30.08.16

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Qual é o valor da tua ferramenta?” foi com esta pergunta que uma das cenas mais memoráveis do documentário “Torre Bela”, de Thomas Harlan (o relato da transição ideológica de um Portugal pós-25 de Abril), se iniciou. Nesta mesma, os sonhos de uma política de esquerda, a vontade de uma comunidade, é afrontada pela necessidade e orgulho de um só indivíduo, aqui um agricultor nada disposto a ceder a sua enxada a uma cooperativa agrária.

Quarenta anos depois, Thomas Vinterberg, um dos fundadores do Dogma 95 ao lado de Lars Von Trier, dirige “The Commune”, um exorcizar de uma ingenuidade política que o realizador acolhera na sua juventude, porém, como o próprio parece demonstrar nesta sua nova obra, uma quebradiça ideia face às necessidades individuais. O casal preferido do cinema dinamarquês (Ulrich Thomsen e Trine Dyrholm), são novamente requisitados como volantes desta trama que arranca com uma herança imobiliária e um desejo de harmoniosa comunidade. Contudo, essa mesma fabricada coletividade, uma comuna entre amigos, é abalada com o aparecimento de um novo amor, uma terceira pessoa num relacionamento matrimonial de anos.

Thomas Vinterberg estende um prolongado confronto entre a comunidade e o indivíduo, salientando a “humanidade” de cada um face às ideologias políticas. Parece que este “sonho esquerdista” não é à prova de bala, neste caso de sentimentos vividos. Não com isto induzir-nos numa propaganda política e tendo em conta o calor de posições do género que afronta o nosso país (quarenta anos desde “Torre Bela” e essa reconstrução ideológica continuamos com dúvidas acerca da nossa governação e dos requisitos destas), “The Commune” é um filme que nos valida como seres específicos e personalizados e não como rebanho de uma só voz. É também o retrato de que uma correta política é uma fantasia sonhada por homens idealizados. Não existe nenhum maniqueísmo, até mesmo a democracia é aqui questionada, segundo a personagem de Ulrich Thomsen, “não é a maioria que ditará como viverei a minha vida“.

Longe da provocação fácil dos seus congéneres, Thomas Vinterberg segue o caminho mais sutil e difícil, porém, o faz com o auxílio de bons “tenores“. Neste caso, Trine Dyrholm é uma musa expressiva, uma “bomba” emocional que testa qualquer doutrina sociopolítica.