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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinéfilos, unir! Close-Up chega à 10ª edição com David Lynch, Margarida Cardoso e de olhos bem fechados

Hugo Gomes, 10.10.25

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Uma década de Close-Up!". Como celebrar? Talvez a resposta resida no seio desta edição, através de relações, matrimónios, o toque definitivo ou o romance para lá do ideal e da sua ideia. O Observatório do Cinema de Famalicão está pronto para o seu “Close-Up”, descendo escadaria abaixo como Norma Desmond em “Sunset Boulevard”, de Billy Wilder, rumo à sua triunfal entrada em cena. Neste caso, longe das ficções e dos sonhos molhados e febris de Hollywood, esta montra de cinema vive o seu próprio devaneio, deambulando pelos labirintos oníricos e surreais de David Lynch. Promete-se que o seu “fantasma” estará presente, nem que seja pela melodia trazida por Dean Hurley, o seu fiel colaborador musical, com concerto e masterclass já agendados para o município de Vila Nova de Famalicão.

Como todos os anos, a celebração faz-se com cinema, convidados e intervenções, filmes e categorias, e um público pronto a (re)descobrir os segredos bem guardados da Sétima Arte. Mas convém amplificar: como em qualquer casamento, cujos segredos é ‘coisa’ que abunda.

Mais uma vez, o Cinematograficamente Falando… conversou com o programador Vítor Ribeiro sobre o que nos espera neste novo “Close-Up” (de 11 a 18 de outurbo na Casa de Artes).

Da Infância passamos ao conforto e segurança da Família e atravessamos agora o Domicílio Conjugal com todas as harmonias e atribulações. Com isto pergunto se o Close-Up pretende ser uma família ou um casamento? Garantir segurança à comunidade cinéfila nestes tempos incertos ou casar as suas diferenças para gerar um lugar de familiaridades?

Os vários motes das edições anteriores procuraram uma relação entre os filmes e os autores que pretendíamos mostrar, enquanto procurávamos que o cinema, e a programação, participassem da atmosfera do nosso tempo. Daí o elogio anterior à comunidade e à família, que era também uma reunião alargada dos espectadores de cinema. Nesta edição, ao escolhermos como mote o Domicílio Conjugal, procurarmos dar a ver as tensões intrínsecas à dinâmica do casal, ao pedir emprestado o título a um dos filmes de Truffaut da série Antoine Doinel, mas também usar o palco do domicílio para explicitar as tensões do mundo exterior ao casal, como Ingmar Bergman, por exemplo, concretizou em muitos dos seus filmes.

David Lynch será um rosto familiar, ou melhor, um fantasma neste 10º Close-Up, seja a retrospectiva da sua obra de 70’ até ao final dos anos 90’, a exposição no foyer, ou a presença do músico e colaborador desse universo lynchiano, Dean Hurley, que garantirá um concerto e ministrará uma masterclass. Tendo em conta a temática do Close-Up, onde podemos enquadrar o cinema de David Lynch?

A obra de David Lynch, o seu importantíssimo legado para a história do cinema, teria de obter um destaque no programa deste ano. Trata-se de um realizador que boicotou a submissão do cinema às directrizes do romance do século XIX e das histórias bem resolvidas, para nos convidar a seguir outras estradas, a aproximar o cinema à pintura, e à interpretação de significações, quadro a quadro. 

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Blue Velvet (David Lynch, 1986)

Este programa também se desenhou na importância conferida por Lynch à música e ao som e por isso a importância da presença de Dean Hurley, que trabalhou com o cineasta durante 20 anos, desde “Inland Empire” (2006), até se tornar numa das figuras mais influentes no som e na música dos filmes (e dos discos) de Lynch, o que culminou na riqueza da banda sonora da terceira série de “Twin Peaks”, que ficou como o testamento do cineasta norte-americano. Este programa inclui a exibição das suas mais importantes longas-metragens, desde “Eraserhead” até “Uma História Simples” (“A Simple Story”), passando por “Veludo Azul” (“Blue Velvet”) ou “Um Coração Selvagem” (“Wild at Heart”), num ciclo que fechará no início de 2026, numa réplica do Close-up, com as duas últimas obras de Lynch: “Mulholland Drive” e “Inland Empire”.

Em Fantasia Lusitana, Margarida Cardoso é a destacada, e parte da sua obra (re)avaliada em Famalicão. O porquê da sua escolha para a secção deste ano, e, permita-me o reparo, num ano em que a realizadora é, coincidentemente, fruto de retrospectivas, masterclasses e outros olhares nos festivais de cinema nacionais?

Este programa dedicado a Margarida Cardoso começou a ser desenhado há mais de um ano, nas vésperas da estreia de “Banzo”. Com a secção Fantasia Lusitana procuramos destacar um cineasta ou um movimento do cinema português, incluindo por vezes realizadores emergentes. No caso de Margarida Cardoso trata-se de uma obra com mais de 25 anos, composta de ficção e documentário, que a torna uma das nossas mais importantes cineastas. Além das escala da sua filmografia, o conjunto dos seus filmes revelam uma coesão indiscutível, na entrega ao tema das heranças coloniais. Serão sete sessões, incluindo uma masterclasse, em que mostraremos pela primeira vez documentários como “Natal 71” ou “Kuxa Kanema – O Nascimento do Cinema”, que estão na génese do percurso de Margarida Cardoso, mas que mantêm o vigor, nesse permanente diálogo com a memória, com as relações com os territórios de Moçambique ou de São Tomé e Príncipe, na História que liga a Europa Colonial a África.  

Na secção Paisagens Temáticas somos convidados a espreitar Domicílios Conjugais em seis obras. Como foram selecionadas e com que parâmetros?

Tal como adiantamos na resposta à primeira questão, a dinâmica de casal permite explicitar tensões interiores e exteriores ao casal, como um reflexo do mundo. Procuramos selecionar um conjunto de filmes, a que se adicionarão outros nas réplicas do Close-up em 2026, que cruzam o cinema do presente com a história do cinema, dentro dessa temática. Por isso, encontramos por exemplo Jonas Trueba, em “Volvereis”, um cineasta que tem feito o seu cinema das convulsões entre as relações humanas e o cinema. Mas também voltaremos a “De Olhos Bem Fechados” (“Eyes Wide Shut”), o derradeiro Kubrick, que transportou para dentro do ecrã um dos casais mais significativos da Hollywood do final dos anos 1990: Nicole Kidman e Tom Cruise, numa secção em que também reencontremos “O Piano” (“The Piano”), de Jane Campion. Haverá filmes de Stephane Brizé – “A Vida Entre Nós” (“Hors-Saison”) - , numa ponte do melodrama entre França e Itália, com o casal Guillaume Canet e Alba Rohrwacher, mas também a revelação de um actor cineasta alemão, Fabian Stumm, em “Ossos e Nomes” (“Bones and Names”), e um dos títulos mais curiosos da produção norte-americana estreada este ano, “Amor em Sangue” (“Love Lies Bleeding”),  um casal de mulheres em fuga, da lei e do crime.

O que pode dizer sobre os convidados deste ano, e se a família Close-Up está de alguma forma montada?

A família de comentadores do Close-Up nunca está fechada. Se compararmos o elenco deste ano com o da edição passada, apenas dois nomes se repetem. Há uma procura permanente na identificação de vozes, de quem escreve sobre cinema, de investigadores, de outros artistas que se relacionam com o cinema, de novos e já reputados cineastas, de forma a alargar essa família de que falas, do círculo de pessoas que possam, pela sua participação, singularizar a experiência da sala de cinema. 

Nesta edição há nomes que já poderiam ter aparecido antes, como a investigadora Ana Isabel Soares ou o crítico (e psiquiatra) António Roma Torres, que abrirá a sessão de “O Homem Elefante” (“The Elephant Man), de Lynch. Destaque também para um núcleo de investigadores, nas áreas do som, da imagem e da literatura, designadamente Nuno Fonseca, José Alberto Pinheiro, Margarida Pereira e Márcia Oliveira. Há também novas vozes da crítica, como o radialista (e agora editor da página À Pala de Walsh) Rui Alves de Sousa, ou uma reputada pianista, Joana Gama, na introdução ao “The Piano” de Jane Campion e da música de Michael Nyman.

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The Piano (Jane Campion, 1993)

O Close-Up decorrerá lado a lado com as eleições autárquicas, e tendo apoio da Câmara Municipal de Famalicão, teme que o resultado das mesmas condicionará as futuras edições, ou este encontra-se assegurado?

O Close-Up integra a programação da Casa das Artes de Famalicão, um teatro municipal, que tem financiamento do Município de V. N. de Famalicão, mas também da Direcção Geral das Artes, através da Rede de Teatros e Cine-Teatros Portugueses, e ainda do nosso público que, com a sua participação, suporta o nosso trabalho. Este trabalho nunca está terminado, é um permanente recomeço, também na procura pela garantia de condições para continuar a promover o cinema e os seus autores, num diálogo continuado com o público, com o público do presente e na conquista do espectador do futuro.

O que nos pode dizer sobre a 11ª edição, quais os preparativos ou planos para trespassar a década de existência?

Já identificamos as directrizes para a edição 11, que se realizará a meados de Outubro de 2026. Como nesta e nas anteriores, procurará relacionar o cinema com o mundo, no entrelaçar dos autores do presente com as retrospectivas dedicadas à memória do cinema, com destaque também para os nomes emergentes do cinema produzido em Portugal. Também os cruzamentos entre o cinema e as outras artes estarão presentes, pelo que haverá cine-concertos, alguns deles apresentados pela primeira vez, resultado de encomendas da Casa das Artes de Famalicão.

Para mais informações sobre a programação, ver aqui

Os Palestinianos sonham com cafés berlinenses?

Hugo Gomes, 24.07.25

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De certo modo, o destino dos palestinianos passa por acabarem, não onde começaram, mas sim num qualquer lugar inesperado e longínquo

Edward Said (1935-2003)

Sobre a Palestina, muitos lutarão, muitos gritarão, muitos levarão a palma da mão ao peito e jurarão pela sua integridade. Outros agarrá-la-ão, como se impedissem o coração de fugir da caixa torácica, evasão à passividade com que se testemunha, em direto, 24 horas por dia, um genocídio. Outros, fazendo da “caixinha mágica” e do espaço do seu comentarismo palco, desconstruirão a palavra em voga: “Genocídio é exagerado!”, puxando os galões do privilégio de sofá, enquanto jornais referenciados lhes oferecem espaço para defenderem uma ideia de Estado, custe o que custar.

Em Shoah criou a sua palavra de extermínio. “Holocausto” foi a escolhida apropriação. Única, sem tradução, intransmissível. O restante, de arménios a ruandeses, da Bósnia-Herzogovina a outras paragens, ficou com “genocídio”, palavra partilhada. Mas que será da extinção de um povo? Os palestinianos, é certo, não terão mais o seu lugar, a sua identidade, porém, talvez seja esse o derradeiro tesouro: a possibilidade de um novo meio apátrida, que, junto dos curdos, represente a identidade sem Nação, sem cultura, sem vestígios. Muito se falou, fala-se e falar-se-á sobre a Palestina. Serão imensos os filmes que ressurgirão desses escombros: documentários, dramas denunciantes, artistas exaltados pelo seu histórico de miséria, alguns com mérito, outros oscarizados, outros ainda que, como um beijo traiçoeiro, nos sufocam, retiram-nos as palavras que deveriam ser dirigidas, deixam-nos mudos e reféns do nosso próprio choque.

Portanto, em todo este contexto com que lidamos (ou ignoramos), é difícil referir Elia Suleiman neste quadrante, até porque hoje, fora a sua identidade, é considerado um “palestiniano safo” e, novamente, a palavra nefasta: “privilegiado”. No entanto, no seu último trabalho, It Must Be Heaven, a sua persona tatinesca, de passo em passo, cidade após cidade neste canto continental, encarna uma montra identitária sem correspondência, uma espécie de unicórnio cuja única oração se dá para responder a um taxista nova-iorquino “abelhudo”, perante a desarmante pergunta: “De onde é?”. “Sou Palestiniano!”, responde, seguido da reacção mais surpreendida do seu motorista alugado. O extermínio não começou ontem. O encontro com este cineasta, em 2019 (éramos tão felizes nessa altura e não sabíamos), já pressentia essa perda materializada da Palestina. A convivência entre dois Estados é fantasia. Suleiman subscrevia, em pleno: a identidade ambulante era a única coisa que restava.

Mahdi Fleifel, por sua vez, é um Colosso de Rodes, tem um pé em cada margem, ora dinamarquês, ora palestiniano, mas é nesta última que se ancora o seu B.I., como forma de prolongar, ao máximo, essa existência. “To a Land Unknown” é esse testemunho ficcionado, e também desafio: falar da Palestina sem Palestina, na voz de dois refugiados (Mahmood Bakri e Aram Sabbah) que deambulam por Atenas com o sonho de chegar a uma Europa mais Europa possível, segundo a ideia projectada dessa União europeísta. É Berlim que ambicionam. Abrir um restaurante, delirar com uma vida aparentemente aceitável e aceite, mas … permanecem em Atenas, com esquemas, pequenos furtos, tudo o que possam fazer para angariar dinheiro para novas identidades. Identidades que não sejam palestinas, até porque ninguém quer realmente saber deles. 

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Filmado a frio, sem vitimização, nem maniqueismos “queridos”, na crueza de um realismo desencantado, o único encanto reside na fantasia trazida pelos protagonistas, para lá do lugar, para lá do tempo, na conquista de um estado estagnado que vivam conforme o enriquecido. “To a Land Unknown” foca-se nessa identidade líquida, nesse registo e no que dele resta. Enquanto isso, a movimentação, os indivíduos, os corpos alheios à empatia talvez apenas convoquem a do espectador, “capturado” e testado desse modo. Mais do que filmes no terreno, Fleifel aborda a Palestina sem nunca nela pisar. Filmicamente, evoca o neorrealismo face a um possível miserabilismo, pois em dois momentos, como em “Ladri di Biciclette” de Sica, surgem os devidos twists da situação degenerada dos protagonistas. O intermezzo (uma failsafe do sonho concretizado introduzido naquele plano lusco-fusco no alto de Atenas) e aquele final que entala o coração de uma só vez … aí, por via de certa perversidade do realizador, o encanto manifesta-se: uma viagem feita Caronte para o lado de lá.

E como a condição apátrida nos leva a esses caminhos melindrosos, do mal ao menos, do bom ao mais, vemo-nos reduzidos a esse estatuto, sem mais apegos, sem retorno. Obra dura, primeira longa até, de fazer corar quem julga ter o direito de abordar a literalidade como único dialecto. Falou-se do palestiniano, viu-se palestinianos, calaram-se privilégios, e aproximámo-nos, mais e mais, daquilo que nos detém, ou do lugar para onde a passividade nos arrasta. Como Elia Suleiman, é dizer sem medo: “Sou Palestiniano!

Quando a (nossa) vida tem o seu quê de performativo ...

Hugo Gomes, 20.05.25

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Desconfio de que o actor e revelado realizador Fabian Stumm tenha tido a intenção de polvilhar a sua primeira longa-metragem com uma crítica ácida, mas nunca expositiva, ao domínio da autoficção como bandeja criativa fundamental do século XXI. Assumo, como é claro, que o poder a meu alcance de inteiração com esta obra não sai do plano da igual autognose, até porque o subjetivo é crucial numa crítica de cinema, mas é nesses ossos de ofício que certos nomes são dados. Nem de propósito, "Bones and Names" coloca o realizador (e também protagonista) num conjunto de três histórias entrelaçadas, de nós feitos, que confirmam ainda mais essa tendenciosa engenhosidade que depois de James Joyce, perante o desencantamento de um mundo já sem mistérios por desvendar, beneficiou-se a introspecção — ao jogo do ‘eu’ — como recorrência e ocorrência criativa, e é daí que parte o novo material maleável para a produção de novas artes, movimentos e critérios.

Bendita seja. O filme alemão pouco se entrega a estéticas vigorosas ou a fidelidades taco-a-taco com as vanguardas. É, como se diz a certa altura, “nem Pagnol, nem Lubitsch, uma outra coisa”. Stumm dispõe desses três enredos: dois mais evidentes que o terceiro, com o propósito desse mesmo gesto de concepção. O primeiro, o de um “escritor-vampiro”, aproveitando-se de outras histórias viventes, como contaminação às suas ficções impressas. Por outro lado, o companheiro (interpretado pelo próprio Stumm), um actor numa rodagem intimista proveniente de uma realizadora francesa (Marie-Lou Sellem), cujo filme se revela baseado em factos verídicos, ou melhor, em episódios em que a cineasta deseja ver revividos, para poder julgá-los de longe, ou como um fetish sádico, tentar intervir no curso dessa inevitabilidade. A terceira história já não corresponde à criação, e sim à destruição: uma criança descobre o seu lado perverso, traquinas, se quisermos amenizar, para desafiar a Ordem em qualquer forma. O trio persiste numa demanda quasi-rohmeriana, de diálogos que conduzem a causas e consequências, onde o Verbo detém a sua imensidão e o seu gesto.

Curiosamente, ao colocar a autoficção no centro, não posso deixar de ver Stumm próximo dos provérbios e dilemas do agora bem consagrado norueguês Dag Johan Haugerud, da trilogia "Love" (2024), "Sex" (2024) e o Urso de Ouro "Dreams" (2025). A sua câmara, fixa, acompanha situações narradas que não apelam a consensos, nem à primeira pedra atirada, mas antes a um ouvinte do outro lado. Outro ponto curioso: a estaticidade brinca com o espectador, desde o wink wink de genitais no início, passando pelos ensaios, onde a presença da câmara, essa da ficção dentro da ficção, instala os primeiros movimentos. Quebra-se uma maldição, o verniz danifica-se, o argumento abocanha qualquer devaneio de forma, e a partir daí o filme vive em uma outra instância. Uma descoberta na nossa província de Zé Povinho.

Edgar Ferreira e o "Coro" da Gulbenkian: "Este filme é meu, mas não deixa de ser nosso."

Hugo Gomes, 03.04.25

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Depois da Orquestra da Gulbenkian, 60 anos em 60 minutos, regressamos à Fundação e ao realizador Edgar Ferreira, agora noutra vertente artística, ou melhor, noutra joia da coroa gulbenkiana: o Coro. Desta vez, sem a ditadura do tempo, seguimos as vozes consolidadas deste coletivo que brilha nos palcos e faz da sonoridade a sua mais mestra linguagem. Aqui, em “Coro” o tempo é uma força contestada, enquanto se parte individualmente pelos indivíduos, das suas resistências quotidianas em pertencerem a algo maior do que eles próprios. Serem peça imprescindível de uma partitura, de uma melodia, de uma música com História esmagadora nos seus ombros. Serem essa criatura coral, de mil e uma cabeças, ainda mais de vozes, em um harmónico e volátil uníssono. 

Novamente, 60 anos—com Edgar Ferreira a transformar essa efeméride num documentário coral e de coralidades. Música, maestro! As cordas vocais já estão aquecidas.

"Coro" encontra-se nas salas de cinema.

Já tínhamos conversado anteriormente sobre este projeto, mas agora que vi o filme, gostava de perguntar sobre a abordagem que escolheu. No seu documentário anterior, havia uma lógica mais formal e uma rigidez temporal, enquanto aqui a abordagem parece mais humanizada. Não se trata apenas da cronologia do coro, mas também da resiliência destas pessoas [coristas] em conciliar a sua paixão com a vida pessoal. Como pensou na abordagem para este filme?

Agora que estabeleceu essa relação entre os dois filmes, vejo que este começa exatamente onde o outro terminou, em termos emocionais. O documentário anterior, sobre a orquestra, tinha uma história que precisava de ser bem contada. Já no "Coro", senti menos essa ansiedade de narrar uma história específica e interessei-me mais pela particularidade, menos conhecida, de que estes músicos têm outras vidas, e, ao terem-nas, como é que isso se manifesta na sua criação artística coletiva?

Exatamente! O filme não se limita a documentar a história do coro de forma enciclopédica, ele mergulha nestas vivências e permite-nos ver o coro a partir do olhar dos coralistas, e não o contrário. Gostava de saber como selecionou as pessoas que entrevistou. Como foi o processo de decidir quem faria parte do documentário?

Posso dizer que foi um desafio. Defini que o documentário teria um olhar de dentro para fora. Tudo o que aprendemos sobre o Coro Gulbenkian ao longo dos 86 minutos vem diretamente dos coralistas. São eles que dão voz ao documentário. Para contar a história, precisava de encontrar as pessoas certas para representar os diferentes aspetos que queria abordar: a história do coro, as audições, a voz, o canto, a interpretação, o esforço diário...

A terapeuta da fala, Mariana Moldão, aparece quando falamos sobre o trabalho vocal. A Sara, atriz, reflete sobre a interpretação. O José Bruto da Costa, musicólogo, contextualiza historicamente o Coro Gulbenkian. Todos eles trouxeram algo muito particular para o documentário. Depois, há participantes que representam um coletivo maior. O Jaime, por exemplo, é atleta, e há muitos atletas no coro, portanto ele representa essa presença. O mesmo acontece com as mães, há muitas dentro do coro e uma delas representa essa realidade. O processo foi bastante orgânico. O coro tem entre 70 e 100 elementos e, para os conhecer melhor, fizemos questionários com perguntas focadas na perspetiva que queríamos para o documentário – uma abordagem mais pessoal e profissional, fora do coro.

Com base nesses questionários, realizámos entrevistas e, ao longo do tempo, desenvolvemos relações de proximidade. Como o filme é filmado de forma muito próxima – em ensaios, estamos praticamente em cima das pessoas –, era essencial criar um ambiente de confiança. Para evitar desconforto, foi preciso estabelecer uma relação de cumplicidade, algo que aconteceu naturalmente. O documentário não é apenas sobre receber histórias, mas também sobre partilhá-las.

Este foi um filme feito em conjunto. Os muitos meios só foram acessíveis graças aos coralistas: filmámos no Hospital de Cascais porque o Luís Miguel fez a ponte com a administração para que pudéssemos filmar a cena na piscina, o Jaime ajudou-nos a encontrar um local adequado, etc. Houve uma colaboração genuína de todos.

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Edgar Ferreira

Digamos, usando o trocadilho óbvio, este é um filme coral.

Sim, e isso reflete-se também na sua construção. Em determinado momento do documentário, alguém diz que, quando trabalhamos artisticamente em conjunto, tudo corre melhor e penso que isso se aplica ao próprio filme. O processo de realização espelha o funcionamento do Coro Gulbenkian: aproximação, contacto, trabalho coletivo. A meta do coro é que todos cheguem à mesma frequência – e a construção do documentário seguiu a mesma lógica.

Gostava de falar sobre esse lado coletivo, pois há dois momentos em que parece querer sair da estrutura do filme coral. Um deles é a inserção de um certo toque de cinéma vérité, quando a narrativa constantemente pontua presença de alguém nos bastidores, organizando cassetes e nomeando ficheiros de concertos, como fosse a própria a pesquisa a ser feita diante dos nossos olhos para este filme. Sente que esse momento reflete a sua presença dentro do filme?

Na verdade, essa pessoa não sou eu. É um ator [risos].

Mas há ali uma representação sua, do realizador.

É mais a representação de um investigador do que do realizador. Não sei se me revejo naquela personagem, mas a sua função era introduzir as imagens de arquivo de uma forma que fizesse sentido na narrativa. Ao longo do filme, estamos sempre à espera de ver o coro atuar, mas só o vemos através de imagens de arquivo. Nunca vemos a atuação filmada diretamente para o documentário.

E a inserção dessa personagem, de certa forma, representa um alter ego seu - o papel do investigador dentro do filme?

Sim, mas mais como um investigador do que como realizador. No final do filme, há um momento em que essa personagem desliga a luz da cabine, momentos antes do fim da narrativa. Isso simboliza o fim desta história e o começo de um novo filme – um ciclo contínuo.

Então há uma certa metalinguagem nesse... Vou chamá-lo andaime, porque é o documentário a ser realizado perante os nossos olhos.

Digamos que sim, mas acho que essa será mais... Ou seja, a ser meta, sim, concordo, mas é mais superficial. Acho que, para mim, o verdadeiro estado meta do filme é, efetivamente, a forma como ele é construído, que é de uma forma coletiva, como objeto do seu estudo. O coro que constrói o som é produzido coletivamente. Esta atenção à respiração do outro... Estamos aqui neste nível, e é aqui que temos que estar para que a coisa se funda, haja esta fusão de vozes e nesse sentido acho que o filme é meta. Também se constroi dessa forma coletiva.

O outro ponto que estava a referir acontece no início, em que vemos o nosso corista no corredor. E há aqui entra um trabalho conjunto de encenação e de sonoridade, e esta última está presente aqui num tom operático antes de entrarmos para o documentário em si. Gostava que também falássemos um pouco desta abordagem inicial. Por que começar o filme desta maneira? E o porquê de ser com esta personagem de todo o elenco de coristas?

Mais uma vez, o que me interessava destacar eram os indivíduos, ou seja, o coro tem este resultado de trazer o anonimato aos indivíduos que fazem o conjunto. Valem pelo conjunto, pelo todo e queria ter a atenção ao individual. Precisamente, a primeira metade do documentário é muito focada no individual e, gradualmente, vai-se fundindo nesse coletivo. Tanto que houve a preocupação também de que cada um tivesse quase um arco narrativo próprio, que depois, de alguma forma, são revelados no final, onde tudo flui para criar maior intensidade. 

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Fernando Eldoro

O início começa com uma coisa muito simples, que é a respiração. A respiração está na base do canto, é a base da voz. A primeira contração do diafragma resulta em respiração. Depois tem que haver a intervenção das cordas vocais para só ouvir a voz, e depois a voz-canto, e depois o canto-interpretação. O ponto de partida fez-me sentir que era a respiração por onde deveria focar. Também indicia logo uma luta. Não é uma luta contra o tempo, mas uma vontade de chegar ao fim, uma persistência, militância, resiliência, que depois, de alguma forma, está presente em vários momentos do documentário.

Acabou de me dizer uma coisa que agora tenho que perguntar. Tendo em conta também o filme anterior e este, sente que está sempre a lutar contra o tempo nos seus filmes?

Não, mas estou atento à questão do tempo. É algo que me interessa pessoalmente e não como um objeto ... Ou seja, no primeiro filme, isso é muito evidente. Ainda que esteja ao serviço da questão da música clássica, qual é a importância e porque é que ela se mantém até aos dias de hoje? Aqui, a questão do tempo é vista de uma forma muito mais emocional. Mas é um tema que me cruzo diversas vezes e que me qual seja a abordagem, sempre me suscita interesse.

Um dos pontos também centrais do seu documentário é a trindade dos maestros com os quais este ‘corpo’ trabalhou: Michel Corbeau, Fernando Eldoro [falecido em fevereiro de 2025] e Jorge Matta. Este também foi um dos principais focos seus no coro? Também trabalhou com base nestes maestros e nas suas idiossincrasias artísticas, porque cada um tinha um método diferente de trabalhar?

Nstes 60 anos, e daquilo que pude observar e ouvir, a qualidade do som do Coro Gulbenkian advém da interação dessas três pessoas. O Michel Corbeau foi o mestre titular do coro durante 50 anos. Visto estarmos a comemorar 60’, é inédito a nível mundial ter um mestre titular durante meio século no mesmo agrupamento artístico. O mestre Eldoro é uma personagem incrível, com uma dedicação extraordinária à música e ao canto. Já o mestre Jorge Matta, o seu papel na música portuguesa e contemporânea através do Coro Gulbenkian, não tem paralelo. E sim, a interação entre os três forma a identidade daquilo que é o som do Coro Gulbenkian.

Agora gostava de perguntar, tendo já dois documentários sobre a Gulbenkian, você deseja permanecer na Fundação e um terceiro documentário ou deseja aventurar-se por outras “águas”?

Tenho vários projetos que ambiciono fazer. Dito isto, a Fundação Calouste Gulbenkian tem a qualidade de me fazer convites a projetos irrecusáveis e cativantes. Tanto o documentário sobre a Orquestra como o do Coro, não há assim tantos objetos fílmicos feitos sobre esta temática a nível mundial. Numa base inicial, vou à procura de ver o que já foi feito, como é que foi feito, e quais são as abordagens. Sobre coro, não há um único documentário feito sobre o coro: há reportagens e há um filme francês pelo que sei.

Portanto, aventurei-me neste universo. Tem uma história que é uma história linear e de sucesso. Começa aqui, acaba ali, é sempre à direita e cada vez com mais sucessos, mais reputação, mais concertos, mais discos gravados, sempre melhor, mas não há contrariedades, não há obstáculos, não há momentos de adversidade que nos permitam contar uma história de superação, ou seja, em termos de narrativa, seria menos interessante. Por isso, quando o desafio me é colocado, penso: “como é que vou abordar isto? Como é que posso o fazer?”. E é estimulante tentar resolver um tema que se calhar não é assim tão explorado e ver se pode ou não dar um bom filme.

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Pertinentemente, segundo estas propostas que a Gulbenkian faz, e através destas mesmas propostas, você se descobre a si próprio enquanto documentarista ou redefine-se enquanto documentarista? Ou não gosta da palavra "documentarista"? [risos]

É difícil responder a isso [risos]. Inicialmente há um convite e com base nele não me é pedido nenhum tipo de limitação. "Nós queremos fazer isto para esta data com a Orquestra Gulbenkian." Por outras palavras, tenho total liberdade para o fazer e tenho sentido essa mesma liberdade. Tanto no caso da Orquestra como no caso do Coro, houve uma escolha muito deliberada de dar voz a quem efetivamente tem propriedade para falar sobre, mais do que a preocupação de ter um cunho autoral sobre o objeto que estou a fazer. Por isso, nessa medida, também não sei se estas experiências me tornam um melhor documentarista, ou um tipo de documentarista, porque como disse tenho outros projetos que ambiciono fazer e aí, possivelmente, contarão com uma voz mais minha. 

Só que também é contraditório o que disse, porque também não deixo de sentir uma voz minha nestes projetos, sobretudo na forma como tal é construído, tudo parte de uma escolha minha, a de incluir as pessoas e o trabalho com elas, e, por fim, chegarmos a este ponto de trabalho coletivo. Consigo dizer que há uma distinção gigante entre aquilo que foi fazer a Orquestra e aquilo que foi fazer o Coro, em que, para o bem e para o mal, cantando, cantando pessimamente convenhamos [risos], não deixei de fazer parte deste grupo .

Não me deixei de sentir pertença. É uma forma muito bonita de se trabalhar, de fazer qualquer coisa. E aí ... voltemos à questão da meta: se há qualquer coisa que ganhei neste processo, foi esta forma muito interessante de trabalhar, coletiva e não individual. Este filme é meu, mas não deixa de ser nosso.

"Mestres Japoneses Desconhecidos IV": rebeldias para com o passado em mais uma trilogia nipónica

Hugo Gomes, 30.01.25

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À quarta vira tradição! A The Stone and Plot avança na quadrilogia dos Mestres Japoneses Desconhecidos, hoje uma janela aberta para tesouros escondidos na História do cinema nipónico. No lugar do X, uma pequena "batotinha": um repetente. Hiroshi Shimizu, que encantou as audiências portuguesas com encontros e desencontros nas montanhas em “O Som do Nevoeiro” (“The Sound in the Mist”), retoma a batuta e contradiz o aforismo tão em voga: "Mãe há só uma!". Esplendoroso exercício dramatúrgico, tudo no sítio, exposição do classicismo japonês, brindado pela sensibilidade a que este realizador, que aos poucos descobrimos, nos habitua como gesto evidente.

“A Imagem da Mãe” (“Haha no omokage”) poderá ser esse diamante bruto nesta nova "caixinha de bombons" cinéfila – quem sabe, a porta de entrada para um futuro ciclo da sua fase tardia, essa que tanto deslumbra. As outras duas obras, experiências de sentidos e de sociedade, marcam um tempo em mudança. Juventudes inconstantes, ora rebeldes, ora oprimidas, ora inconsequentes, ora desprevenidas, a ver e a serem vistas.

Festejemos 2025 com mais um gole de saké, pois Mestres Japoneses Desconhecidos IV é prenúncio de uma nova temporada cinematográfica. Que venham esses três obras a (re)descobrir!

 

Image of a Mother / Haha no omokage  (Hiroshi Shimizu, 1956)

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O último filme de Hiroshi Shimizu é uma despedida emotiva, extraída da unificação de um novo seio familiar. Sadao (Jun Negami) e Sonoko (Chikage Awashima), ambos viúvos, são subjugados a arranjos matrimoniais. Conhecem-se finalmente e decidem, em bom português, "juntar os trapinhos", mas cada um traz consigo os seus "penduras": filhos menores, cuja respetiva aprovação se torna um passo crucial para a saúde da relação. A filha de Sonoko chama Sadao de "pai" com naturalidade, já o oposto revela resistência. Michio (Michihiro Môri), rapaz ainda comprometido com a memória da falecida mãe, dialoga diariamente com o seu retrato, posicionado carinhosamente na estante e cuida do seu pombo-correio, vindo da sua antiga progenitora como apreço pela sua presença fantasmagórica. Apesar da pressão familiar, a designação "mãe" transforma-se aqui numa verdadeira batalha, e o poder dessa palavra adquire a força de uma aceitação, uma cedência a um futuro por vir.

Shimizu, conhecido pelos seus filmes de crianças, revela mais uma vez a sua sensibilidade, aqui, sem nunca desviar-se da trama e dos dramas dos adultos, mas envolvido numa comovente compaixão pela causa deste menino que teima em não largar o passado. Há algo de subtextual nessa saudade em conflito – como se Michio espelhasse um Japão vencido, dividido entre novas jornadas e o peso da sua história, um saudosismo compreendido no olhar.

A câmara, suave, desliza em travellings deliciosos, fundamentais para mapear o quarteirão que envolve a narrativa central, e o rosto daquela mãe a converter-se no que nunca foi – a tão familiar ao universo de Ozu, Awashima - de olhos tristes, rosto ferido mesmo quando soa-nos glacial. As emoções estão acima da flor-da-pele, transpassam-se com bravura de uma universalidade mesmo que tudo aquilo nos pareça exotico perante o nosso ocidentalismo.

Um filme belo? Não. Belíssimo!

 

Nothing But Bone / Hone-made shaburu (Tai Katô, 1966)

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Kinu (Hiroko Sakuramachi), como tantas raparigas presas à pobreza, é vendida para um bordel aos 18 anos, no início do século XX. Lá, depara-se com uma fortaleza labiríntica e contrai uma dívida impossível de saldar. A liberdade torna-se ilusão, sussurrada pelos corredores ou nos recantos secretos dos quartos das colegas prostitutas. Um desejo que adquire forma – talvez, quem sabe, na promessa redentora do Exército de Salvação, com os seus valores cristãos e a sua puritanidade pregada como única fuga possível.

Mais um exemplar a juntar ao grande ciclo de filmes de bordel, aqui sob a sombra de Mizoguchi e o seu pleno “Rua da Vergonha” (“Street of Shame”, 1956), estandarte incontornável (recorde-se que a primeira edição dos Mestres Japoneses Desconhecidos já contava com um, bem arquitetado, “Ginza no onna”, de Kozaburo Yoshimura). “Roída até ao Osso” (“Nothing But Bone”) não ousa em amargurar aquele cenário como Mizoguchi o fizera, nem se rende ao fascínio do ambiente. A crítica move-se entre um verniz elegante e o feroz embate contra o tradicionalismo opressivo que essa sociedade ultra-masculina expõe.

Talvez pelos calos acumulados nos subgéneros de espadas e yakuzas, o realizador Tai Katô integra um caos latente, por vezes silenciado, que remata numa desconstrução irrequieta do seu espaço. Uma barafunda respondida, ou melhor, apaziguada num final assertivo – na fé cristã. Uma conversão que, talvez, moralize essa vicissitude amoral.

 

 Pretty Devil Yoko / Hikô shôjo Yôko (Yasuo Furuhata, 1966)

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Acredita-se que o argumento deste filme tenha sido inspirado num artigo da revista Life, embora os autores Fumio Kōnami (“Female Prisoner Scorpion: #701”) e Ryūnosuke Ono (“The Bullet Train”) surjam creditados como responsáveis de um guião original. O professor David Pinho Barros o havia salientado numa das ante-projeções comerciais, portanto, não percamos essa ligação.

Primeiro trabalho de Yasuo Furuhata, realizador que viria a construir uma carreira extensa no refúgio do meramente comercial, aventura-se aqui na febre e exaltação hippie, apontando uma lente crítica ao fenómeno da futen zoku (a tribo dos vagabundos), contracultura onde se insere a nossa Yoko (Mako Midori, “Blind Beast”), jovem que abandona o campo em busca de oportunidades na cidade, acabando por se perder no vício dos produtos ilícitos, do jazz, da errância e das festas tardias. Juventude sem causas, sem beiras sequer.

Apesar de irregular, a obra não deixa de ser esteticamente intrigante. Furuhata infunde, ocasionalmente, um impressionismo vincado nestas personagens, sobretudo sob o efeito daquelas drogas, da qual babam-se por mais. A estrutura narrativa é também uma delinquência, desfeita num sonho ferido e transcrito como fuga a uma realidade insuportável. Veja-se o desejo febril da protagonista de visitar as praias de Saint-Tropez, França, após vislumbrar as suas imagens num filme à francesa durante uma das suas fugas ao cinema. Assim, há aqui um sopro de nouvelle vague, uma vontade de a requisitar para desapegar-se de modelos classicistas, como também deparamos com um retrato de um Japão cada vez mais ocidentalizado, globalizado, desenraizado das suas tradições milenares. 

Recheado com algumas aparições reconhecidas do universo nipónico, como o ator Shūji Sano (visto em trabalhos de Ozu e de Tanaka), Eiji Okada (que o cinéfilo o reconhecerá de Hiroshima Mon Amour) e o poeta e realizador Shūji Terayama (“Throw Away Your Books, Rally in the Streets”, “Pastoral: To Die in the Country”).

Rebeldia com Yoko – e não sabem o bem que fazia.

Os Melhores Filmes de 2024, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 23.12.24

… era uma vez, um episódio verídico …

Cheguei ao trabalho e, durante o render do turno, notei que o meu colega manejava no computador da empresa um ficheiro Excel enquanto, na sua secretária, ecoava o som de diálogos em português do Brasil entrelaçados com motores enfurecidos de carros de Fórmula 1. "Isso é a nova série do Ayrton Senna?", perguntei. "É sim!", a naturalidade da resposta me levou à seguinte e precisa pergunta, "e porque é que não a vês?". "Hã, eu já conheço a história, não é preciso vê-la." A resposta fez-me barafustar sobre o sucedido. As imagens tornaram-se banais, sem significado, portanto para quê defender a democratização das mesmas, as tais plataformas de streaming a rodos, se depois não são vistas nem apreciadas devidamente?

Elaborar tops, convém, não é só juntar um dezena de filmes que nos “tocaram no coração”, é também atribuir a essa totalidade um statement, - e tendo em conta os tempos e a sua gradual aceleração (cada vez mais), esta ofensiva contra a vulgarização imagética, ao sacrilégio do gosto do espectador (merece ser subvertido, sair do seu próprio umbiguismo), contra as esquadrias e as mensagens / storytelling como unilateralidade das produções audiovisuais -, um ato político. Por isso, não vos vou mentir, existir algo politizado aqui, uma marcha contra a inevitabilidade de um lufa lufa social. 

 

#10) The Teachers’ Lounge

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Çatak constrói uma fábula sobre essa designação de Poder e de todas as suas consoantes [populismo, corrupção, panópticos, autoridade, repreensão, institucionalização], sem com isto sair da turma.” Ler crítica

 

#09) Bowling Saturne

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“Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.” Ler crítica

 

#08) Evil Does Not Exist

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Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.” Ler crítica

 

#07) Megalopolis

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Megalopolis” não estabelece qualquer arrojo na sua política forma de hablar — ou talvez sejamos nós demasiado cínicos ou comprometedores para compreendermos esta sua mensagem, ou que fazer com ela. O que mais irrequieta em “Megalopolis” é a sua tremenda ambição, um projeto idealizado anos e anos, embrionário desde os tempos em que Coppola invejava a sua ideia de “Cinema Ao Vivo” e do fracasso ruinoso que “One From the Heart” (1981) se tornaria. Aí era uma “semetezinha”, sobretudo conceptual.” Ler crítica

 

#06) La Chimera

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“Esse caminho, o qual descansamos a vista, é a persistência pela redenção, pela epifania, e pelo entendimento, Arthur é o ser exato para essas modalidades, um “Martin Eden” desengonçado (Pietro Marcello que havia trabalhado com a realizadora em “Futura” faz aqui uma perna no argumento), em busca do seu final de fábula. “La Chimera” é somente a sua Caverna de Platão!” Ler crítica

 

#05) Ryuichi Sakamoto / Opus

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“De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala.” Ler crítica

 

#04) Joker: Folie à Deux

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“(...) é de igual registo, chega-nos como um cinema infiltrado, resultar em outra pária, talvez no prolongado das alegorias do populismo viscoso e desesperante - alimentado pelo sensacionalismo do espectáculo que os medias se converteram - na busca de agentes de caos que possam conduzir-nos a um “Novo Mundo”. Joker de Phoenix continua como esse 'messias' fabricável, mas no fundo é um miserável que procura a empatia do qual sempre lhe fora negado.” Ler crítica

 

#03) All we Imagine as Light

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“Mas, sem falar abertamente sobre isso, “All We Imagine as Light” é, na verdade, um filme sobre cinema, porque a luz imaginária não poderia ser outra senão aquela libertada pelo projetor em direção à tela. A outra realidade, a única possível para aquela gente, Kapadia sabe disso e, generosamente, entregou-a. O tal segundo cenário, o campo delineado pelo mar, por sua vez, é o outro lado da tela.” Ler critica

 

#02) Fallen Leaves

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“Um solipsismo a ser abatido, até porque este romance aparentemente simples e pragmático é um convite kaurismakiano para que avancemos na nossa vida, agarrando esperanças, não vindas do outro lado (até porque o exodus solicitado é diferente da habitual geografia), mas da compaixão pelo outro, pelo próximo e pelo supostamente perdido, sem complexidades, direto e encaixado (que sonho seria que tudo fosse assim). De mãos dadas segue-se para o horizonte fora. Só as folhas de Outono nos contemplam. Como os melhores contos de Kaurismäki, é no avançar que a história encerra.” Ler crítica

 

#01) C'est pas moi

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““C'est pas moi” são 40 minutos de imagens, sejam retalhados, sejam de origem, em colisão com as imagens banais do nosso redor, prescreve-se como um antídoto mas não se assume totalmente essa responsabilidade supra. Carax, por mais identificável que seja essa ‘viagem’, ele não fala para nós, e notamos isso, porque ao longo destes 40 minutos, a sua voz dita cavernosa aborda uma espécie de auto-psicanálise, há nele o pairar de uma presença paternal, de um “pai ausente” porventura. “O cinema é o lugar dos pais mortos”, da autoria de Serge Daney, e para Carax, o seu fantasma … um pouco banal até. Mas quem não o é nos dias de hoje?” Ler crítica

 

Menções honrosas: Via Norte, Trap, Rapito, A Flor do Buriti, Le procès Goldman, Manga d´Terra

Bowling & Sexo & Twist

Hugo Gomes, 21.11.24

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Após ter sido vencido pelo seu instinto animalesco, Armand (Achille Reggiani), perante o corpo da sua ‘companheira’ de “one night stand” - uma trágica noite para dizer a verdade - planeia livrar-se das provas carnais do seu violento crime. Enrola-a em saco de plástico, limpa os vestígios de sangue espalhados pelo aposento e parte para o próximo e, mais complicado, passo: o de a “expulsar” do prédio sem ser-se notado. O método encontrado é o contentor de lixo situado abaixo da janela comum do corredor do seu piso, cuja ligação faz-se via por um longo duto de entulho. Armand despeja o corpo pelo funil, e enquanto este desliza, a câmara mantém-se estável no orifício, imprimindo a escuridão e os deslizes de luz que se movimentam no interior do túnel, criando uma sensação de movimento através dessas tonalidades. 

É um plano sem importância para a queda do storytelling, aquela economia que muitos desejam executar para o “bem do espectador”, contudo, é através deste mesmo plano, a sua fixação, fascínio e visão em encaixá-lo na narrativa, que confirma a cineasta que é Patricia Mazuy. Uma cineasta de ambientes, de sugestões, de belezas questionáveis, de uma violência que entende-se desconstrutiva, como eficazmente dolorosa. “Bowling Saturne” é essa confirmação … e que forte dose essa mesma confirmação se revelou! É preciso dizê-lo de forma clara: este é um thriller sombrio sobre a masculinidade tóxica e o patriarcado que a sustenta, mas acima de tudo, é um retrato da violência, que aqui se mostra como uma viscosidade penetrante, uma doença, não venérea, só que hereditária. 

Mazuy propõe esta visão ao representar uma pista de bowling, a herança de um caçador respeitado ao seu filho Guillaume (Arieh Worthalter, “Le Procès Goldman), um polícia em ascensão na sua carreira. Contudo, essa vida enquanto agente da autoridade o remete a uma constante solidão e, porventura, desgaste, apagando nele qualquer traço social, muito menos motivador em lidar com o público em geral. Portanto, a solução encontrada foi entregar o estabelecimento ao seu meio-irmão, o tal Armand, um ex-segurança consumido pela raiva e por uma frustração quase animalesca. É precisamente a partir dele que o filme arranca, e desde os primeiros instantes, com o seu comportamento errático, o espectador é prontamente alertado para o que está por vir.

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Voltando à pista, após alguma resistência inicial, Armand acaba por aceitar a tarefa de gerir o espaço de orgulho do pai falecido. Aqui, o bowling une-se como um misto de santuário para as angústias de homem falhado e de repositório de memórias viris, dos quais, por exemplo, um grupo de caçadores, no seu restrito clube de primitivismo sanguinário, alugam o local, exibindo vídeos das suas caçadas africanas e recordando, através de rituais que só entre eles reconhecidos, dos feitos másculos, e da fúria depravada de uma “espécie condenada e desconstruída”. 

Bowling Saturne” poderia ser, como tem sido abundante, mais um desses ensaios de textualidades e decomposição dos códigos entre géneros, nomeadamente a do homem outrora pintado: seres irracionais e sanguinários, acorrentados a essa maldição do cromossoma Y. Neste sentido, não é surpreendente que seja uma mulher a realizar o filme, mas o verdadeiro twist está na crueza com que Mazuy se debruça para captar este retrato. Construindo um quadro de serial killers e de detetives encarregados de os capturar, filmando a violência daí emanada, o tabu sobre as mulheres e contra as mulheres, com uma secura longe do espectáculo gore ou da glorificação do ódio, fazendo do próprio ato uma imagem a deslizar para a objetividade. A perspetiva, quem sabe, está naquele cão, herança e “roommate” de Armand, criatura prisioneira de um ambiente de sexualidade frustrada e ferida. O termómetro para essa loucura enraizada, e igualmente o separador entre o predador natural e o predador. A brutalidade é apresentada sem a tentativa de adotar a visão do predador ou da presa, mas sim de uma testemunha — e talvez seja por isso que estas imagens nos atormentam.

Se existe um filme próximo a “Bowling Saturne”, esse seria definitivamente “Henry: Portrait of a Killer”, de John McNaughton: destituído de empatia pelo vilão/protagonista, sem esperança de redenção, e aqui, com a fotografia de Simon Beaufils (“Un couteau dans le cœur”) a assaltar-nos a sensibilidade, convocando-nos de forma confortável para a violência que representa. Uma oposição aos nossos sentidos (e sem a necessidade de sádicos e gratuitos palhaços assassinos … fica a provocação). Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar nos nossos nervos.

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E talvez nos tempos que decorrem, filmes como este adquirem uma importância social dos que “felizes” ensaios de desconstrução, é que por vezes o Cinema é um espelho dirigido a gorgonas, a Medusa, confrontando os nossos horrores numa “pega de caras”, talvez como alternativa à nossa cobardia em lidar com as realidades em redor. Sim, peguei emprestado tal alegoria a Radu Jude no seu dicionário “de Anedotas, Signos e Maravilhas” no premiado “Bad Luck Banging or Loony Porn. Contudo, “Bowling Saturne” explicita esse choque de ideias com as imagens de uma masculinidade protecionista, não tão longínqua das milésimas variações variações do slasher movie ou de psicopatas 70’s e 80’s.

E antes do habitual revirar de olhos de uma cinefilia também conservadorista e cercada, não existem lições de moral no cinema de Mazuy, apenas perversidade didática e um sorriso sádico e deleite com a morte avistada. 

Até ao último golpe ...

Hugo Gomes, 21.08.24

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"Scorched Earth" (2024)

Há qualquer ‘coisa’ de antiquado nestas duas obras da prometida trilogia de Trojan. Uma antiguidade trazida até nós sob um rol de lágrimas de saudade, ou como os italianos proclamam, nostalgia. Já não existem thrillers com este ADN! Estão praticamente extintos, e até mesmo - com base na sua constante comparação - Michael Mann, parece ter esquecido de como os fazer. 

Chega a Portugal, através da The Stone and the Plot, uma estreia quase simultânea dos dois primeiros capítulos de Thomas Arslan, realizador alemão que no circuito da distribuição portuguesa o conhecemos nas paradas do false-western com Nina Ross incluída (“Gold”, 2013), em tempos que se prosseguia enquanto “musa” de Christian Petzold (o “colega” de Arslan, que juntamente com Angela Shellac, compõem uma imposta vaga cinematográfica alemã - “A Nova Escola de Berlim”).

Mas voltando a Trojan … Mas quem é esse “Cavalo de Troia”? Apenas basta contemplar os primeiros minutos de “In the Shadows” ("Nas Sombras", 2010), e refiro em contemplar, porque é isso mesmo que exercemos neste thriller. Deixamo-nos cercados pela ambiência daquela Berlim noturna, quase deserta e deixada ao “Deus-dará”, e apercebemos através de uma “infiltração”, que Trojan não é mais que um engenhoso artesão do crime, o indivíduo predileto para qualquer golpe, e aí, após sair da prisão, persegue quem lhe deve e avança no estratagema seguinte. Interpretado por Misel Maticevic, Trojan soa-nos uma figura retirada da caderneta de Mann, uma mistura de James Caan com um Robert De Niro amargurado. Homem de poucas palavras, ação economizadora, detido por um código de honra apenas equiparado à sua sobre-precaução. A liberdade não é sinónima de redenção, portanto, é procurar um novo “trabalho”, algo que lhe proporciona vida sem conduta alguma, sem compromissos sociais nem calabouços afetivos. 

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"In the Shadows" (2010)

Arslan é apaixonado pelo cinema de género norte-americano, não apenas o western do seu ensaio dourado que o evidencia, mas nestas paradas, reportando o romantismo dessa clandestinidade integrada nas personagens num conceito-cápsula de um neo-noir contemporâneo. Essa tal noite que parece abundar, e até mesmo o dia filmado sem nenhuma radiosidade, é a nocturnidade que se vende à soturnidade, e por si só ao laconismo da personagem que mote dá a “In the Shadows”, um autêntico aspersor, espalhando a sua aura ao longo da narrativa. Filme de fugas, de calculismos e de cauções. Crime manniano que nos oferece um pontapé de arranque para uma história de homens frios e desadequados.

Seguindo com “Scorched Earth” ("Terra Queimada"), Arslan mantém-se na palavra definidora da “prequela”, noite e ação sem grandes estrilhos. Nesta segunda parte, catorze anos depois (e isso nota-se na personagem de Trojan), continua-se como porto-seguro para os elementos que enraizaram em “In the Shadows”. Se procuram crime frenético ou do estiloso encanto, podem esquecer automaticamente. O que vemos, e o que se preserva é a sua contemplatividade. Trojan feito para mais um “heist” relatado sob paciente cadência e sem espectáculos gratuitos, confidencia-se para com o espectador essa aliança sombria. Tornamo-nos cúmplices, não em pactuar com o “criminoso”, mas em nunca encorajar a sua retirada em cena. 

O filme prende nesse tom, a tonalidade de um último golpe … talvez? Como também são as “fisgas” para que seja bem sucedido num “trabalho de quadros” com antagónicas trafulhices que funcionarão como conflitos. Por sua vez, é o filme em que Arslan cede, ou encaminha a audiência a tentar descodificar a humanidade por trás de Trojan, apontando constantes fugas para aquela fura-vida a que chama de existência. Sem “falinhas mansas” ou floreados morais, a noite novamente como manto de segredos e de atos de discreta violência, ao segundo filme se continua romântico na forma como este mundo nos colide.

Aguardemos o terceiro, e possível, final desta demanda sombria …

 

* "Nas Sombras" está disponível na plataforma Filmin [ver aqui], enquanto que "Terra Queimada" encontra-se em exibição nos cinema selecionados [consulte aqui].

“Perseverança” no título, perseverança na vida. Serge Daney e o seu livro-testamento.

Hugo Gomes, 16.08.24

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Pode a crítica de cinema ser também íntima? Desconstruímos a perpétua imagem de fanfarrão, soturno e quase misantropo que a cultura pop tem “pintado” com pinceladas agrestes, ou a automatização que nos Estados Unidos nos facultou como “mero cargo”. Pois bem, Serge Daney, um dos mais influentes nesta arte — e se é que podemos chamar de arte o exercício de pensamento sobre os filmes (claro que sim!) — é um desses estandartes do pensamento e da emoção, coabitada no mesmo quadrante, sendo que a Sétima Arte se une à sua pessoalidade e vice-versa. 

Escritor da revista “Cahiers du Cinéma”, tendo dirigido-a entre 1973 e 1979, passando depois para o jornal “Libération”, onde produziu alguns dos seus celebrizados textos, entre os quais uma estabelecida comparação entre ténis, outra das suas paixões, e o cinema [ver o filme-ensaio-documentário de Juliet Faraut, L’Empire de la Perfection de 2018], e em 1991, realizando o seu desejo de uma “crítica lenta”, dotada no lirismo e sem concessões editoriais, com a revista “Trafic: Revue de cinéma”, projeto que acompanhou até à sua “despedida” prematura aos 48 anos de idade, vítima do HIV (inconvenientemente, esse destino fatídico também lhe conferiu uma aura trágica e mítica). Daney revelou-se ao longo das gerações como uma lenda urbana de uma certa nata crítica-intelectual, dos seus filmes e impressões, dos seus ensinamentos e ideias, das suas gravuras emocionais. Hoje, podemos encontrar nesta sociedade, e principalmente em Portugal, onde tinha afinidades e afetividades, alguns “filhos e primos” de Daney.

Em 2005, editado pela Angelus Novus, é lançado um conjunto de textos provenientes da pena de Daney, intitulado “O Cinema que Faz Escrever”, no qual se incluem os amores a Paulo Rocha e o tão debatido texto “Travelling de Kapo”, o seu último escrito, que, aliás, tem a honra de abrir este “Perseverança”, com edição da The Stone and the Plot (nota: tendo em 2020 publicado uma versão portuguesa do completíssimo livro de Donald Richie, “Ozu”). Ao longo de 140 páginas, acompanhamos Daney numa derradeira entrevista a Serge Toubiana, publicada originalmente em 1994, dois anos após a sua morte. 

Este triste fado envolve a conversa, dividida em tópicos que mapeiam a alma órfã, incompreendida e viajada de Daney: da busca pelo pai, fantasiosamente induzido pela sua família como uma voz pontuada nas telas, à defesa da televisão, passando por um certo cinema francês, a viagem a Hollywood atrás das dinastias clássicas e a desilusão ao deparar-se com a indiferença com que essa indústria trata os filmes e seus mestres como produtos comuns. Há ainda a marginalização dos movimentos pós-Maio de 68 e as suas viagens, sempre acompanhadas por um postal de visita, uma tela fora da tela, um cinema fora do seu espaço natural. Em tom confessionário, Daney revela-se e descodifica-se num gesto sem julgamentos nem autocensura, transparece a sua homossexualidade, abordando a cru, e deixando escapar a sugestão de um “mercado sexual” que frequentava, por exemplo, nas suas idas e voltas pelo território indo-pacífico, ou na morte incrustada em alguns dos seus discursos, antevendo uma última flecha de luz. 

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Há aqui algo de mortuário, como se desse corpo despejasse toda a sua energia, memorialista e ritualística, num tom de testamento. Bem sabido é que, na altura, já sob os primeiros sinais de uma morte anunciada, ambicionava escrever um último livro, longe do registo de críticas selecionadas e coletadas, possivelmente uma obra autobiográfica com título escolhido – “Perseverança”. Como bem sabemos, o livro não se concretizou, mas o jornalista Toubiana, transparecendo um tributo ao idealista, concede esta transcrição sob o nome projetado. “Perseverança” não é um livro sobre cinema e, fechando-se nesse círculo, não é teoria nem tese; é um objeto de prova de que o cinema tem gente dentro, que vive e respira cada frame e de como a cinefilia se apresenta como um continente imaginário, ora individualista, ora coletivo. Conhecemos Daney, esse tão importante crítico da segunda século XXI, e na sua companhia “ouvimos” as suas preces, o outro Daney, intimista e carnal, sem com isto desassociar-se ao Cinema.

A tradução portuguesa é de Luís Lima, anteriormente encarregado de trazer ao nosso mundo editorial os amores e devaneios de outro crítico amado, que virou cineasta em toda a sua força, François Truffaut (“Os Filmes da Minha Vida”, Orfeu Negro, 1ª edição 2015). O produtor, e amigo, Paulo Branco é autor do posfácio.