Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

As mártires de Kinuyo Tanaka: ser ou não ser mulher, eis a questão!

Hugo Gomes, 18.05.23

Collage Maker-18-May-2023-02-37-PM-7691.jpg

Depois de “The Eternal Breasts”, declaradamente a sua “obra-prima”, Kinuyo Tanaka finalizou mais três longas-metragens, duas a cores e uma mantendo as raízes cromáticas, e todas elas, de uma maneira ou doutra, fazendo vénia a um dos seus mestres, Kenji Mizoguchi. Mesmo da sua sabida e silenciosa oposição a esta faceta de Tanaka, o cineasta assinante de “Intendente Sansho" (“Sanshô dayû”) ou Os Contos da Lua Vaga” (“Ugetsu monogatari”) permanece enquanto fantasma inalcançável para a realizadora, que em tempos fora das suas grandes atrizes. Foram experiências, riscos, desejos e ambições, e por sua vez, a confirmação de uma artesã sólida e convincente na indústria nipónica. 

Princesa Errante”, “Mulheres da Noite” e o derradeiro “Senhora Ogin”, os restantes títulos, todos pós-Mizoguchi (falecido em 1958), chegam aos nossos cinemas com a marca The Stone and the Plot.

 

Wandering Princess (1960)

32834id_078_w1600_w1600-1-1600x900-c-default.jpg

Baseado nas memórias de Hiro Saga, “Wandering Princesa” (“A Princesa Errante”) centra-se em Ryuko, mulher aristocrata prometida a Futetsu, o irmão mais novo do imperador do estado-fantoche da Manchúria, isto nos inícios da Segunda Guerra Mundial o qual iria culminar na batalha territorial, e paralelamente a derrota nipónica no conflito global.

Trata-se do primeiro filme a cores de Tanaka, e num esplendoroso Cinemascope (há que dizer), um trabalho ambicioso concentrado nas nuances geopolíticas sob uma perspetiva inteiramente feminina, um cenário não de todo confortável para a realizadora que parece retratá-a com higiênicas luvas, tentando amenizar a “pegada japonesa” nos despojos campais. Nesse sentido, Yasuzo Masumura em “A Woman 's Life” (1962, presente no segundo ciclo de Mestres Japoneses Desconhecidos) revelou-se mais ácido, pesaroso e igualmente simplista. 

Contudo, a jornada de sobrevivência de Ryuko num território em vai-e-vem de exércitos, saqueadores e resistentes, é embrulhado num selo de artifício inquebrável - os travellings que correm paisagens a dentro, por entre estepes e vales, num êxodo “vestido” em cores reluzentes ou o pôr-de-sol de estúdio refletindo em tons escarlates, entendendo-se como uma miragem de uma família “perfeita” harmonizada mas altamente artificializada. “Princesa Errante” conserva o seu lado aventureiro e bélico, só que é no seu romantismo alicerçado a uma certa inocência (ou diríamos mais ingenuidade) que o torna numa produção personalizada dentro do lote, mas não de todo conseguida como documento histórico. Por sua vez, a protagonista e estrela de vários títulos de Mizoguchi, Machiko Kyō, posiciona-se como uma das “tour de force” do projeto.

 

Girls of the Night (1961)

32822id_041_w1600_w1600.jpg

Podemos encarar este filme como o desejo de prosseguir os trilhos deixados pelo seu anterior mestre [Mizoguchi] em dois pontos; primeiro pela proximidade do tema (e título) a “Women of the Night” em 1948 (protagonizado pela própria Tanaka) e o “bater à porta” da Lei de Prevenção à Prostituição na chave de ouro “Street of Shame” (1956, dois antes da morte do cineasta), para além de Mizoguchi ter decretado uma carreira visitante a estes territórios com alguma frequência. 

Em “Girls of the Night” (“Mulheres da Noite”), a tal Lei encontra-se em vigor (e que vigor!), como testemunhamos naquela abertura informativa e contextual, o que leva a ser criado centros de reabilitação social para estas ex-prostitutas. Neste ambiente de cárcere prototípico, seguimos Kuniko (Chisako Hara), jovem determinada a obter uma segunda oportunidade de vida, apenas impedida por uma sociedade rancorosa que a relembra constantemente dos seus atos, ou dos fantasmas do “Natal Passado” que a revisitam com promessas faustianas. A nossa protagonista, um rosto numa massa uniforme o qual podemos apelidar de “rejeitadas”, é uma crucificada digna da sua subida ao calvário, onde só a pureza do mar, em modo “ama-san” a poderá resgatar para um novo horizonte.

Continuando o que havia proposto no seu primeiro filme (“Love Letter”, 1953), Tanaka revela-se mais ambígua neste troço, limitando as questões à perspetiva feminina, enquanto, e subtilmente, debate sobre a condição da mulher como dano colateral de uma guerra sangrenta e moralizante, e sublinhando a classe social enquanto motor de ignição à prostituição (ainda existe espaço, talvez em jeito decadente e patologico, de abordar o “safismo”). É um filme de mulheres (novamente colaborando com a argumentista Sumie Tanaka) sobre mulheres marginalizadas que uma sociedade, vulgo, progressista intenciona em não-perdoar. O regresso ao preto-e-branco, faz com que Tanaka não se distraia com paletas e se concentre no cinzentismo das suas personagens e dos seus respectivos cenários. Depois da “Rua da Vergonha”, cedemos a “Vidas de Vergonha”. 

 

“Love Under the Crucifix” (1962) 

vlcsnap-2019-03-16-00h06m43s179-e1552695207405.web

Possivelmente, foi enquanto senhora Oyu e Oharu, ambas sob as ordens de Mizoguchi, que Tanaka se inspirou para concretizar este amor proibido proveniente dos palco dos mortais que é “Senhora Ogin” (ou com o sugestivo título internacional, “Love Under the Crucifix”), o seu trabalho final enquanto realizadora. 

Esta adaptação de um livro de Tôkô Kon, decorre no século XVI, num Japão feudal dividido e “crucificado”, aí seguimos o sufoco da homónima mulher (Ineko Arima), filha de um prestigiado mestre de cerimónias de chá, que se encontra apaixonada por um samurai cristão, este, cegamente devoto da sua fé e da preservação do seu espírito para lá do terreno. Amores proibidos, gestos inconsolados, são meras formalidades perante o verdadeiro obstáculo para ambos, a banição do cristianismo e a vinda de um senhor feudal sedento em apropriar-se de Ogin como a sua enésima amante. “Senhora Ogin”, o regresso às cores de Tanaka e também o seu mais caro filme (albergado pela produtora de cariz independente Ninjin Club, fundada pelas atrizes Keiko Kishi, Yoshiko Kuga e Ineko Arima), é um jidai-geki [filme-de-época] de aparência reprimida e introvertida (características próprias da cultura Momoyama a qual a protagonista íntegra), mas sem travagens no pendor trágico que este romance materialmente transgressivo emana. 

vlcsnap-2019-10-06-15h56m46s668-e1570402829907.jpg

Um dos mais belos momentos, e possivelmente o núcleo desta história de passagem, é a sequência em uma mulher punida e sentenciada à crucificação, prossegue na sua própria “subida ao Calvário”. Ogin e a sua serviçal constatam um “estranho” brilho nos seus olhos, uma essência de vida libertada, mais proeminente de quando a sua “liberdade” encontrava-se em voga. Com isto declaramos que “Senhora Ogin”, por diversas vezes, incorpora as diretrizes triunfantes da religião cristã de que este mundo, abundante de distrações e pecados, é só um teste, possivelmente a garantia do passaporte para o que realmente interessa. Segundo essas doutrinas, a eternidade do espírito, desde a sua pureza até ao seu sacrifício (a primeira não pode desassociar-se da segunda), é o objetivo máximo da nossa existência. 

Ou seja, o que move e simultaneamente contraí esse amor não são as posições político-sociais, é a salvaguarda da essência espiritual, sofrer em vida para obter a recompensa no além, a transcendência prometida. É nesse aspecto que tal mulher apresenta eufórica vida a poucos momentos de ser crucificada, porque morrer como um mártir é visto Gold.

Godard, o passador

Hugo Gomes, 13.04.23

Entretien DaneyJLG_1.png

Entretien entre Serge Daney et Jean-Luc Godard (Jean-Luc Godard, 1988)

Hoje, consigo reproduzir procedimentos intelectuais ou discursos próximos dos seus - enfim, próximos do Godard daquele período, uma vez que não sei realmente onde está agora. Sem dúvida que há, no gozo de alguém como ele, uma parte que não é comunicável. A respeito de Godard, Jacques Rancière usou o termo passador. O passador é aquele que reserva para si o gozo da última palavra. Há então uma forma de competição e será cada vez maior para se chegar a ser o último. Godard é, talvez, o último grande cineasta, e eu talvez seja o último crítico a tê-lo feito com … Este orgulho que consiste em querer representar um estado terminal ou uma memória lendária é difícil de passar socialmente; deve haver uma espécie de contradição, um constrangimento duplo, onde colocamos as pessoas e que explicaria, efectivamente, que são absolutamente incapazes de …

- Serge Daney entrevistado por Serge Toubiana  [Fevereiro, 1992], publicado sob o título "Perseverança" (edição portuguesa, com tradução de Luís Lima, publicado pela The Stone and the Plot)

Para Sempre Tanaka!

Hugo Gomes, 04.04.23

images-w1280.jpeg

Kinuyo Tanaka dirige o ator Shuji Sano em "The Moon Has Risen" (1955)

A distribuidora The Stone and the Plot prossegue a sua demanda em difusão de cinema nipónico, muito dele inédito, nas nossas salas comerciais. São propostas, que de certa maneira, surgem como catalisadores e incentivadores do nosso circuito comercial, diversas vezes refém das produções norte-americanas oriundas de estúdios megalomanos ou na imposição influenciada pelos festivais de cinema. 

Depois dos mini-ciclos “Mestres Japoneses Desconhecidos”, Parte 1 e 2, chega-nos Kinuyo Tanaka, a primeira mulher a aventurar na realização na indústria japonesa pós-guerra (antes dela houve Tazuko Sakane, cujo espólio perdido até então). Tanaka, atriz e musa de alguns “mestres” hoje canonizados, como Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu, Mikio Naruse e Keisuke Kinoshita - determinada em remexer o sistema cinematográfico da época, apoiada e acarinhada por muitos dos seus mentores, principalmente por Ozu e Naruse (o qual trabalhou como assistente de realização), e silenciosamente negada por Mizoguchi - concretizou um total de seis longas-metragens, focando principalmente nas perturbações político-sociais depois da Segunda Grande Guerra centrando-o no elemento feminino, a Mulher, mais que uma bandeira, o corpo como veremos, e magnificamente, em “The Eternal Breasts” (1955). 

Desta maneira, a The Stone and the Plot convida-nos a “mergulhar” nas suas jornadas fílmicas, as três primeiras longas a chegar às nossas salas correspondem aos cronologicamente aos passos inaugurais, uma artesão em busca da sua voz autoral, que constantemente vai ao seu encontro e vice-versa. 

E agora, algo completamente diferente … Kinuyo Tanaka!

 

Love Letter (1953)

feature-kinuyo-tanaka-love-letter.jpg

Na sua primeira longa-metragem, “Carta de Amor” (“Love Letter”), Tanaka revela-nos um romantizado observatório a um Japão em inerente mudança, cuja derrota na Segunda Grande Guerra limite-a a uma relação de submissão para com o “estrangeiro”, nomeadamente os EUA (o filme é lançado um ano após a ocupação americana). 

Nesta adaptação de um romance homónimo de Keisuke Kinoshita (também autor do argumento), somos guiado ao bairro de Shibuya, em Tóquio, pela mão de Reikichi (Masayuki Mori), um veterano de Guerra que ganha a vida a traduzir correspondência entre prostitutas e os seus soldados americanos com o intuito destas extorquir dinheiro, uma tarefa que não orgulha nem um pouco, porém, não impedindo-o de repreender moralmente as suas "clientes", exaltando um reprimido senso de nacionalismo, “tabu” num país de bandeira branca visível. Certo dia, Reikichi reencontra, acidentalmente, o amor de juventude, o seu Grande Amor, ela, Michiko (Yoshiko Kuga), casada por obrigação da família, agora viúva e com um passado “sujo” nestas andanças de “reconstrução social”. 

Carta de Amor” estabelece um romance quase naruseano para expressar a nacionalidade enamorada pelos seus triunfos passados, eternamente grato às memórias e sob desejos febris de reaver essa mesma glória. Mas a realidade embate, materializando-se num grupo de prostitutas, “corvos-humanos” que trovam feitos de sobrevivência e consequentemente o choque, a emergência de reencontro e o eventual desencontro. Ou seja, dentro de uma trágica história de amantes restringidos e retidos (belíssima sequência no comboio, fazendo antever a personalidade na câmara de Tanaka, ainda não despertada), temos um sintoma de um país vergado e inconsolado. A realizadora capta as dores com uma delicadeza ímpar, como também de uma crueldade pontuada, requisitando a fábula para a trair com a própria epifania. Japão em modo de adaptação? Talvez sim, como a personagem do livreiro a fim de expandir o seu negócio, com revistas e outras publicações “yankees” a servirem de mote para atração numa cultura híbrida a mercê no horizonte. 

 

The Moon Has Risen (1955)

moon-has-risen-still.webp

Ozuesco até à medula, e genuinamente, se não fosse o facto de estarmos perante um argumento da autoria do realizador de “Tôkyô Monogatari", e por si só aproveitado como uma homenagem da pupila a um dos seus mestres. Todo o universo do seu “professor” é aqui conservado, e não apenas a “família” que migra para outros hemisférios (Chishu Ryu, essa presença tão Ozu), como também a estética, a estrutura narrativa e a sua lógica (a salganhada de temas matrimoniais e tradicionais são novamente servidos). 

Tanaka revira o holofote, as mulheres tornam-se gradualmente o centro neste emaranhado de enredos e subenredos de “casórios” e “arranjinhos”, e é sob esse signo feminino, e convém ressaltar rebelde, incorporado em Setsuko (Mie Kitahara), que saltitamos de “caso” a “caso”, as três filhas do patriarca Chishu Ryu (quem mais seria?) e os seus eventuais “nós” atados, em dramas de enganos e consolidações. Num bucolismo haiku, “A Lua Ascendeu” (“The Moon Has Risen”) nunca chega a roçar a genialidade devido ao seu encosto estilístico (câmara a meio metro do chão como manda a "bíblia Ozu”), e por mais boas intenções que isso traga, sentimo-nos perante uma variação de Ozu do que um salto ao eixo de Tanaka

Embora seja um filme do qual não lhe negamos a inteligência (e possessão aos corpos das suas atrizes, incentivando-as a ‘rasgar’ os trajes milenares num gesto libertador), dialogando com o trabalho anterior como um desejo, cobiçando o regresso a Tóquio, à capital, ao progressismo, à terra das oportunidades ou simplesmente a proximidade para com o ocidente. A fuga é, porém, balanceada, os elementos ozuescos pesam nessa mesma balança, tentando invocar um Japão devotamente ancestral, os cânticos religiosos enquanto rituais de lés-a-lés marcam o compasso desta obra, são um memorando que aquele país existe e somente a juventude o deseja esquecer, não voluntariamente, mas por serem seduzidos às promessas feitas pela modernidade. 

Tanaka observa o oásis como um elemento invisível e igualmente tangível, só que nada muda as suas pretensões, a capital nunca nos surge, nunca nos visita, é naquele espaço familiar (para a realizadora é, e com gratidão) que pretende ficar, instalar, mais do que meramente pernoitar, como a terceira e última das irmãs, viúva e “enclausurada” no seu “castelo”. O seu pai (Ryu, quem mais?) como a derradeira oferenda lhe permite reviver, voltar a casar (quem sabe?), só que a resposta negativa aufere um tom nostálgico, a última das últimas de pé firme naquele solo, rejeita qualquer evasão. Tal como a realizadora, vemos naquela mulher o seu statement. Ficamos com a homenagem, a partir daqui ganharemos uma autora por inteiro. 

 

"The Eternal Breasts” (1955)

TheEternalBreasts-750x400.jpg

As essências de Naruse e de Ozu proveniente dos anteriores filmes são elementos que ficam à porta nesta esperada emancipação, Tanaka conquistou o seu lugar por direito através de uma mulher divorciada cujo cancro da mama converte os seus poemas numa espécie de quintessência literária … mas vamos por partes. Primeiro, não é delirante afirmar que “Para Sempre Mulher” (“The Eternal Breasts”) possui uma faceta muito Mizoguchi, até porque a fronteira delineadora do assombro e do mortal oscila, consequencialmente e inadvertidamente, mas o gesto em si não se fica pelo tributo como acontecera com “The Moon has Risen” em relação a Ozu, aqui a realizadora declara-se dona do seu próprio destino, e com isso provocando na sua protagonista a mais divina escadaria ao mártir, não religioso, mas espiritual. 

Brilhantemente protagonizado por Yumeji Tsukioka, Fumiko Shimojô [uma poetisa real] é uma mulher desinteressada com um casamento desinteressante, árdua trabalhadora e mãe ocupada, procura apaziguar o seu descontentamento num clube de poesia da cidade. A sua adesão a este círculo de autores-amadores advém de uma paixão antiga, e não inconsolada de facto, com um dos organizadores, amigo de infância porventura. Certo dia, após "apanhar" em flagrante delito a traição do seu marido, se divorcia e mergulha num lastimável estado de melancolia. No clube, refere-se que a miserabilidade é aliada à poesia, sugerindo que a sua experiência com a dureza da vida a fará atingir com um outro patamar artístico.  

eternals-1200-1200-675-675-crop-000000.jpg

tumblr_3289cbc398fa5e5271580b749b7dbb86_cc59e790_1

Entretanto, o seu amigo / paixão secreta falece subitamente (numa despedida graciosa, quase inadjetivável, combinando uma paragem de autocarro, chuva e um travelling que confronta com a sua própria durabilidade), e porque uma “desgraça” nunca vem só, é diagnosticada com cancro na mama (em contexto imagético, filme ousa em dois precisos momentos, a da protagonista apalpar os seus próprios seios em busca de nódulos, e mais tarde, surgindo ao natural numa sala de operações a mercê da aptidão dos seus cirurgiões, a câmara que percorre corpos femininos de Tanaka não ostenta pudor e sexualização). É de peito desfigurado e num quarto de hospital, em paralelo os seus poemas atravessam o Japão conquistando um reconhecimento mórbido, que a nossa protagonista aprende, finalmente, a viver. A vida está-lhe por um fio, o corredor que nos direciona à morgue, constantemente saí do plano onírico, de sonho a pesadelo, de previsão a realidade. Mas é na vinda de um jornalista de Tóquio (sempre Tóquio!) que Fumiko descobre um prazer mórbido, a veneração (mais precisamente o de ser venerada) ou mais que isso, uma projeção do sexo enquanto conforto de almas.

A ternura quase cruel com que a mulher acaricia e aperta o seu corpo para com o do jovem jornalista, um adeus à carne e a tudo o resto. É nos seus últimos sopros que a nossa protagonista vive intensamente. O jeito fúnebre de pé pesado no melodrama ditará os últimos momentos, uma despedida sadomasoquista, apenas sucedido por um pesar que nos cola como “carraça” após a sua projeção. Contudo, não nos deixemos enganar pelo enredo sucedâneo de tragédias e miserabilidades, “The Eternal Breasts” é Cinema, feminino convém sublinhar (o argumento na pena de uma mulher, Sumie Tanaka, sem parentesco com a realizadora) que rima numa conjugação improvável a vida com a morte, aliás, foi na morte que mais vida esta mulher nos exibiu. O poema, esse que vai perseguindo o filme, relembrando o espectador, é só um “aperitivo” na longa estrofe com que Kinuyo Tanaka pinta com a sua câmara. Uma autêntica obra-prima!

Amar os avós que não nos amam

Hugo Gomes, 10.03.23

rue-de-lestrapade-jacques-becker.jpg

Rue de l'Estrapade (Jacques Becker, 1953)

“Não há muito tempo, estava eu a ver a “História Parisiense" [“Rue de l'Estrapade”], de Becker, na TV por cabo, e não conhecendo bem Jacques Becker, senti-me um pouco envergonhado, pois ele terá sido o único cineasta que, na altura da minha saída da infância, amou a juventude dos actores franceses de então, esses jovens como Daniel Gélin e Louis Jourdan ou Anne Vernon, que tinham tudo para ser os primeiros jovens a estrelar no pós-guerra. Pois, nada disso aconteceu. Não sei o que se passou, mas, dez anos depois, ainda antes da Nouvelle Vague, os cabeça-de-cartaz do cinema francês eram novamente os monstros sagrados de entre as guerras: Fernandel, Gabin, Fresnay, Brasseur, Noël-Noël. Portanto, o que o cinema francês estava a oferecer a uma criança francesa, como eu, eram os seus avós, o vovô e a vovó, decerto fantásticos, mas bastantes amargurados e anti-jovens. Era preciso amar a forma como eles não nos amavam!”

- Serge Daney entrevistado por Serge Toubiana  [Fevereiro, 1992], publicado sob o título "Perseverança" (edição portuguesa, com tradução de Luís Lima, publicado pela The Stone and the Plot)

Uma cadência obstinada

Hugo Gomes, 17.02.23

jenny_02.webp

Albert Préjean e François Rosay em "Jenny" (Marcel Carné, 1936)

O cinema, essa arte paradoxal, privilegiada, diferente de todas as outras. O cinema, lugar dos pais mortos, desaparecidos, ausentes para uma ou duas de cinéfilos por vir. E eu só posso ser o mais obstinado, amarrado à própria “história” como um molusco ao rochedo.”

- Serge Daney entrevistado por Serge Toubiana  [Fevereiro, 1992], publicado sob o título "Perseverança" (edição portuguesa, com tradução de Luís Lima, publicado pela The Stone and the Plot)

Pelo retrovisor ...

Hugo Gomes, 11.01.23

taxi-driver-1976-5972.jpg

Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976)

“Há uma imagem que me agrada muito, que é a do espelho retrovisor. Há um momento - chamemos-lhe envelhecer, morrer - em que é melhor olhar para o retrovisor. Porque, em suma, podemos ver nele tanto a imagem do nosso passado quanto a forma como essa imagem é modificada por todos os presentes, que já nem sequer espreitamos, e que nos caem dos olhos como palimpsesto efêmero, “dromoscópio”. Contentamo-nos em olhar para trás, para as sobras no retrovisor, para aquilo com o que esse presente se parecia.”

- Serge Daney entrevistado por Serge Toubiana  [Fevereiro, 1992], publicado sob o título "Perseverança" (edição portuguesa, com tradução de Luís Lima, publicado pela The Stone and the Plot)

"Mestres Japoneses Desconhecidos II": ainda há muito para (re)descobrir no cinema nipónico

Hugo Gomes, 03.11.22

Collage Maker-03-Nov-2022-02.02-PM.jpg

Um ano depois da arriscada proposta Mestres Japoneses Desconhecidos, do qual a distribuidora e produtora “The Stone and the Plot” nos apresentava uma trilogia nipônica fora dos cânones e das referências comuns do cinéfilo ocidental, eis que seguem os seus frutos. A sequela, esperada, traz-nos até nós mais três obras de rara acessão e de quase total desconhecimento para esse mesmo público. 

O resultado é uma década - a de 60 - nas reformulações da nova vaga japonesa, no qual três diferentes realizadores exibiram os seus dotes transgressores (cada uma à sua maneira) e diferentes óticas quanto ao seu país em constante mudança. Uma proposta mais arrojada, demonstrando a coragem ainda existente em curadorias e processos de distribuição cinematográfica no nosso país. Senhoras e senhores, “Mestres Japoneses Desconhecidos II” …

 

Glass-Hearted Johnny (Koreyoshi Kurahara, 1962)

Johnny-Coracao-de-Vidro-6-1024x419.png

Transformando a região de Hokkaido num pseudo-western lamacento com vislumbres a neorrealismos italianos (“La Strada” de Fellini tem sido a sua indicada influência, e as similaridades não são poucas), “Glass-Hearted Johnny” (“Johnny Coração de Vidro”) é uma encruzilhada de três seres desamparados, a de um talentoso, mas caótico apostador de corridas, um “moço-de-recados” de um bordel e uma jovem provinciana obcecada pela fantasia do “Joe”, música materializada numa premonição que nunca se realizará. 

Peripécias e mal-entendidos nesta produção dos estúdios Nikkatsu, Koreyoshi Kurahara (realizador do popular “Antartica”, que originou “Eight Below” da Disney) executa uma obra romantizada e de uma fervença melancólica que se vai apoderando como uma canção (aliás, que tal como o comparado “La Strada” será uma melodia de ausência), as ruas desta cidadela suja, abandonada por muitos e desejada por poucos, representa essa solidão partilhável das personagens, cujas angulares trazem-nos as memórias os duelos ao pôr-do-sol desse género tão americano, só que aqui, ninguém ousa em reivindicar as suas posses. 

E é no trio de atores que “Johnny Coração de Vidro” sobressai, desde a “clownescaIzumi Ashikawa, o soturno Daizaburo Hirata e o “muso” de Seijun Suzuki, Jō Shishido, naquele que foi um dos seus primeiros papéis. 

 

A Woman’s Life (Yasuzō Masumura, 1962)

A-Vida-de-uma-Mulher-1.png

Dos filmes menos conhecidos de Yasuzo Masumura, realizador por detrás de cultos como “Blind Beast” (1969) e “Irezumi” (1966), ambos circundando a transfiguração do corpo feminino, “A Woman’s Life” (“A Vida de uma Mulher”) já ostentava “sementizinhas” dessas suas posteriores obras, não de uma forma visceral e corporal, porém, colocando a mulher como peça moldável às invariáveis do tempo. 

Baseado no conto de Kaoru Morimoto, uma encomenda imperialista que resultou numa crónica às transmutações da nação, dos seus sonhos de expansão até à pesada derrota bélica da Segunda Guerra Mundial, no centro, uma mulher órfã, Kei (Machiko Kyō, a estrela de muito do cinema de Mizoguchi, e a protagonista de “The Face of Another” de Teshigahara, e de “Rashomon” de Kurosawa) é acolhida por uma família próspera. Encarregada pela matriarca de ser o “leme” desse seio, a nossa “heroína” converte-se, mais do que uma mártir, numa sacrificada, sem emancipação, apenas objetiva com as ambições de outros. 

O tempo atravessa, como a do Japão (as elipses são executadas através de manchetes de jornais), até que, em conjunto com o seu país, isolam-se no conforto das “memórias”, das “velhas glórias” e nos “palácios em cacos”. Ilusões e fatalismos, as aspirações que dão lugar a esquecimentos. Eis um filme encantado com o seu desencantamento, cruel como enganosamente doce, é uma música triste cantarolada em mera impotência. A vida, essa, simbolicamente trocista. Um intenso fado.

 

The Girl I Abandoned (Kirio Urayama, 1969)

A-Mulher-que-eu-Abandonei-8.png

Dos três, o mais vincado quanto aos reconhecíveis contornos da “nova vaga japonesa”, trata-se da terceira longa-metragem de Urayama (que trabalhou como assistente de realização nos primeiros filmes de Shohei Imamura), realizador referido como um dos marginalizados pelo estúdio Nikkatsu

Uma obra tricolor (as cores, iniciando pelos filtros esverdeados-esmeralda e os amarelados que identificam os flashback, mais tarde, as cores apoderam-se dos devaneios e onirismo presenteado no epílogo) - inspirado no homónimo romance do muito cristão Shûsaku Endô (o mesmo autor de “Silêncio”, sobre jesuítas portugueses no Japão, adaptado cinematográfico por Martin Scorsese e João Mário Grilo) - que avança por novas burguesias nipónicas, contrastando com as classes mais desafortunadas, e pela reindustrialização pós-Guerra. Um país irreconhecível, cada vez mais divorciado do tradicionalismo, este convertido em bazares e típicos adornos de sala (há uma máscara que se explicita como um atípico zeitgeist). “The Girl I Abandoned” (“A Mulher que Abandonei”) é toda essa crónica enxugada num romance de juventudes inconscientes (e desiludidas, invocando as manifestações estudantis de 68), rompido abruptamente, a espinha dorsal dramática tracejada com um retrato de transmutação. 

Um filme perturbado por receios apocalípticos, com a derrota bélica relembrada enquanto premonitória assombração (neste aspecto as cores vivas apoderam-se). Por razões pouco esclarecidas, o filme, concretizado em ‘68, apenas conseguiu ser lançado no ano seguinte, sem a devida recepção. Ainda hoje é uma obra (tal como o seu cineasta) pouco conhecida e pouco vista, dentro e fora do Japão

"Mestres Japoneses Desconhecidos": o cinema nipónico para lá dos cânones

Hugo Gomes, 03.11.21

Collage Maker-14-Oct-2022-04.02-PM.jpg

"Mestres Japoneses Desconhecidos" é o título de uma trilogia improvável que é proposta pela The Stone and The Plot, uma distribuidora e produtora independente portuguesa que tem vindo a "quebrar" maldições nos últimos tempos com o lançamento comercial de “O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra e a edição portuguesa do amado estudo de Donald Richie ao mais japonês dos cineastas japoneses, Yasujiro Ozu.

A proposta é a seguinte: trazer para Portugal obras inéditas fora do Japão, oriundas da Nikkatsu, o mais antigo e duradouro estúdio, e filmes que refletem bem essa coletividade de gestos diferentes e da máquina industrial que se vivia na altura - uma Hollywood japonesa. Curiosamente, todos datados de 1955 e que abordam, cada um à sua maneira e feito, a ocidentalização do Japão após a Segunda Guerra Mundial (1939-45) e a resistência da tradição como réstia de uma memória do passado gradualmente distante.

 

The Maid’s Kid (Tomataka Tasaka, 1955)

MV5BNjRmMTI3YjYtOGQwYy00OGI1LWIzMDctNjM0ZDE5MjM5M2

Dentro do trio de "Mestres Japoneses Desconhecidos", “O Menino da Ama” (“The Maid’s Kid”) é dos mais convencionalmente melodramáticos, não se querendo com isto rejeitar a sua subtileza dramática e a afinidade emocional, cozinhadas em lume brando. Considerada a obra-prima do realizador Tomataka Tasaka, o filme segue a jornada de uma jovem rural num trabalho enquanto “criada” numa família abastada dos subúrbios de Tóquio. Ingénua, mas de coração dedicado, depressa a rapariga conquista o seio da família, principalmente a do mais novo membro, tornando-se no substituto de uma mãe “ausente” e desapegada.

O Menino da Ama'', tal como os outros filmes deste ciclo, descreve um Japão contagiado pelo Ocidente, embrenhado na derrota bélica e com a ânsia de rejeição do tradicional. Nesse sentido é possível constatar através do subtil contraste entre as periferias de Tóquio, onde grande parte da ação decorre, entre as idiossincrasias da família empregadora e a gélida comunidade montês que preserva rituais do arco-da-velha com um saudosismo carinhoso. Porém, este filme não vive totalmente desse contexto sociopolítico e sim da franqueza sentimental que nos traz este enredo de adoções afetivas, e no seu centro uma atriz, Sachiko Hidari (a inocente ama), em quem a câmara confia os mais expressivos grandes planos do cinema nipónico.

Ponto de curiosamente, a mesma atriz que nos traz a bondade em forma humana, trouxe-nos oito anos depois um papel arrojado e sensualíssimo em “The Insect Woman”, de Shohei Imamura.

 

Ginza no onna (Kozaburo Yoshimura, 1955)

APW_MulheresdeGinza.png

O filme que antecedeu num ano o derradeiro “A Rua da Vergonha” / “Street of Shame”, de Kenji Mizoguchi (1956), e cujo espírito foi transladado para os tempos porno-romanescos do estúdio Nikkatsu, como por exemplo “Noites Felinas em Shinjuku” / “Night of the Felines”, de Noboru Tanaka (1972).

“Ginza no onna” / “As Mulheres de Ginza” é um turbilhão comunitário de um grupo de gueixas na decadência da sua profissão, todas elas cientes da extinção do seu meio vivente e esboçando planos para a sua eventual sobrevivência. Seja por apadrinhamentos, lotarias ou persuasões dos seus clientes, o realizador Kozaburo Yoshimura, com colaboração com um guião de Kaneto Shindô, enquadra a resistência destas “pseudo-tradicionais” num Japão em constante negação das suas mudanças sociais.

Existe aqui um tom de festividade fúnebre, um certo otimismo na derrota a que todas estas personagens parecem estar condenadas. Contudo, o aguçado humor é um antídoto à previsível negritude do movimento frenético deste quotidiano, onde as mulheres são independentes entre si, como o improvisado jazz que intervém ocasionalmente na trama, para que no terceiro ato se reúnam enquanto “família” em prol de uma causa.

Novamente, são encontrados aqui os contrastes entre metrópole/campo, tentando com isto sugerir um embate de classes sociais (e artísticas, com o seu quê caricatural à veia existencialista importada do Ocidente), nomeadamente um “campo” deixado ao abandono, onde uma só vaca adquire um estimável preço de subsistência.

 

A Hole of My Own Making (Tomu Uchida, 1955)

Cada-Um-Na-Sua-Cova-1-1024x767.png

Quanto às mudanças sociopolíticas do Japão, “A Hole of My Own Making” / “Cada um na Sua Cova” é um dos mais literais na sua representação. Há nele um país de costumes moribundos que deseja resistir à sua ocidentalização, a América como destino desejado e os nostálgicos sem lugar nessa mesma idealização, escorraçados para vidas errantes ou drasticamente deserdados.

Começamos com um “morto”, ou diríamos melhor, alguém que deseja viver como tal, um “vagabundo” convertido que descansa na sua literal cova, como um repouso merecido após viagens intermináveis pelas fábricas pré-guerra abandonadas e os locais que trazem memórias desvanecidas. Depressa julgamos estar perante o protagonista desta história, mas enganamo-nos, é numa boate na companhia de um médico Don Juan que nos apercebemos do erro, acompanhando um homem descaracterizado e sem moral, hipnotizado pelos tesouros prometidos do outro lado do Pacifico, a América como destino desejado, e que, mesmo assim, se enamora pela mais tradicional das mulheres com quem tem contacto.

Tomu Uchida dirige um filme sobre essas rápidas metamorfoses e as adesões de um país refém e com um não declarado Síndrome de Estocolmo. O final, destrutivo e pesaroso, revela a perda como ganho de uma nova identidade. “Cada um na sua Cova” é um ensaio que lança algumas das sementes que a Nova Vaga Japonesa iria requisitar com todo o gosto.

O Movimento das Coisas: requisição a Caronte para um Paraíso Perdido

Hugo Gomes, 23.06.21

O-Movimento-das-Coisas-19.jpg

Na mitologia grega, mais tarde metamorfoseada no imaginário de Dante Alighieri, Caronte oferecia boleia às almas perdidas na sua barca, para que estas atravessassem o rio Estige ao encontro do círculo do Inferno que mais condizia. Em oposição, somos em “O Movimento das Coisas” levados, em travessia pelo Rio Lima, a um território mais térreo ainda povoado por mortais. A neblina adensa-se nas suas beiras, não augurando regressos sebastianos, e sim, vindas do mundo do amanhã, desta forma vendido, com promessas de progresso e prosperidade, nunca instalando, e sim substituindo o quotidiano anterior.

O Movimento das Coisas”, a única realização de Manuela Serra, anteriormente tida como assistente de Rui Simões no “Bom Povo Português” (1981), chegou ao nosso circuito comercial após uma ausência de 36 anos, nesse período, acumulado prémios e menções em festivais, preencheu o imaginário de muitos cinéfilos e futuros cineastas portugueses, alimentando um fascínio deste mesmo cinema pela nossa ruralidade. O que levou Serra a abandonar o meio e romper radicalmente com o cinema na sua vida é ainda discutível, as entrevistas que tem dado à imprensa apontam desde “forças políticas” até a um “mundo imperativamente governado por homens”, passado pelo simples “desinteresse”. Por qual tenha sido o motivo, este foi definitivamente o filme que Portugal, obscuramente, nunca esqueceu, e os seus aficionados falam por si.

Antes de “O Movimento das Coisas”, o meio rural já mantinha ligação com o nosso cinema, encontrando marco estratégico nas aventuras de António Reis e Margarida Cordeiro pelos Trás-os-Montes (o filme data o ano 1976) (e porque não a raridade hoje preservada por Manoel de Oliveira em o “Acto da Primavera” em 1963, e por aí adiante, exemplos são muitos). Mas o que Manuela Serra realmente captou na aldeia de Lanheses (perto de Viana do Castelo) foi a urgência de filmar e registar um quotidiano ameaçado pelo avanço da indústria furtiva (nesta cópia restaurada tal é realçado através da inserção de um novo plano final, o ponto final necessário para a transmissão da sua mensagem). O que conseguiu (passados quase quatro décadas e sob um novo olhar confirma-se tal) foi o efeito de “cápsula do tempo”, uma montra de trabalhos de campo, desfolhadas festivas, dedicações religiosa e os seus ditos rituais centenários, e a modéstia de quem tudo faz / fez para manter estes temas vivos (pelo menos durante o seu prazo de validade), nomeadamente as mulheres, forças hercúleas no dia-a-dia.

Thumbnail.png

Porém, não posso deixar de notar a capacidade de Serra em conjugar esse prisma num riquíssimo e dialogado esforço de montagem, em cumplicidade com uma planificação pormenorizada, digo isto, tendo em conta o legado criado por estas ‘Coisas’, hoje abundante em inúmeros festivais portugueses, onde nota-se sobretudo uma condescendência, não apenas para com os habitantes dos povoados escolhidos, mas para com o material e a forma como este se manifestará em filme. São poucos os que ainda preservam essa veia cinematográfica na ruralidade, ao invés de ceder ao facilitismo formal, diversas vezes elogiado por elites de pensamento crítico cinematográfico. E é por isto, e não só, que “O Movimento das Coisas” é um filme crucial na nossa História, um modelo ora acidentado, ora poetizado sem bucolismos latentes.

Afirmo sem receio de apedrejamentos, que duvido, até à data, que haja mais belo filme sobre o campo que este filho único de Serra. Tão único como a porcelana pintada à mão do qual a anciã consome a sua “sopa tinta improvisada”.

 

Em anexo, a minha entrevista com a realizadora aqui.