Seis décadas, sessenta minutos de filme, é o que se resume a esta composição documental que se dá pelo nome de “Soma das Partes”, um projeto que vénia faz ao percurso histórico da Orquestra Gulbenkian, salientado as suas importâncias sociais, políticas e artísticas.
Um trabalho informativamente rico, integrado por dezenas de entrevistados, solistas, maestros, todos juntos com batutas e instrumentos na mão, sonorizando este “tic-tac” - da sua fundação em 1962 por Madalena Perdigão, até à nossa contemporaneidade -, numa pauta de imagens de arquivo e performances em forma de brilharete, um aperitivo para todos aqueles que estão alheios a este universo, e que mesmo assim musicado para todos os públicos.
Já nos cinemas: “Soma das Partes”, um filme de história e das suas historietas, dirigido por Edgar Ferreira, o condutor – apesar da sua negação – que nos recebeu na própria Fundação Gulbenkian para uma conversa sobre a sua composição e que, adivinhem, terá acompanhamento futuramente…
Questiono-lhe, este filme foi um encomenda ou uma proposta sua à Fundação?
Este filme nasce da necessidade de comemorar os 60 anos daquele que é um dos agrupamentos mais importantes da Instituição e, nessa altura, convidaram-me para fazer o documentário.
E havia alguma estrutura pré-estabelecida pela Gulbenkian?
Não. Não houve uma conversa prévia com o serviço de música. Logo nessa conversa inicial surgiu a ideia de "60 anos, 60 minutos", e tal ficou decidido. Começámos a trabalhar nesse conceito e em como poderíamos fazer um documentário que tivesse paralelismo com a música, sugerindo um determinado ritmo ou compasso, e que conseguisse contar toda a História da Orquestra gulbenkiana, desde o seu início até à formação que se conhece hoje.
E como foi essa gestão de tempo, principalmente nas entrevistas que insere?
O filme é feito em co-argumento com a Andrea Lupi, que fez as entrevistas aos 23 entrevistados. Quando tivemos uma conversa prévia, explicitei a minha proposta de demonstrar o tema do tempo, visto estarmos a comemorar o marco temporal da própria orquestra, e explorar as suas diferentes perspetivas: o tempo da música, o tempo da interpretação, o tempo dos maestros, a própria longevidade do agrupamento ou mesmo o tempo das obras que tocam, que têm entre 200 e 300 anos, e que ainda assim permanecem resistentes à erosão da passagem do tempo.
Edgar Ferreira / Foto.: Elsa Mónica Alexadrino
Com esta estrutura definida, as perguntas que fizemos seguiram essa ideia. Incluímos, sempre que possível, questões relacionadas com o tempo, para nos dar diferentes perspetivas sobre a temática, que depois espelhámos ao longo da narrativa do documentário.
Respondendo especificamente à sua pergunta, com essas entrevistas, havíamos angariado muito material, abrangendo diferentes décadas. Perguntámo-nos se estaríamos a ser demasiado redutores ao restringir-nos a uma estrutura tão rígida que nos obrigava a deixar determinadas partes de fora. O exercício foi: vamos tentar condensar tudo o que queremos dizer num curto período de tempo e perceber se conseguimos fazê-lo ou não.
Fizemos a primeira década, depois passámos para a segunda e assim por diante, mas a dúvida persistia. Houve décadas em que partimos de um pré-argumento com 40 minutos, que tinham que ser concentrados em 10. Como foi feito esse exercício? Na edição, muitas vezes utilizamos a complementaridade do discurso dos entrevistados para conjugar – alguém começa uma frase, outro termina; alguém enuncia um conjunto de obras, outro acrescenta – permitindo que cada entrevistado retomasse o discurso, não se restringindo apenas àquela pequena parte. Respirações, interjeições, tudo o que não era essencial para o entendimento do documentário foi retirado. Adjetivação dupla: "é bonito e elegante", não, basta "elegante". O elegante já contém a beleza, então ficámos apenas com esse adjetivo.
Dessa forma, conseguimos incluir todas as temáticas que nos interessavam em cada uma das décadas. O documentário adquiriu uma cadência e uma rapidez de desenvolvimento inesperadas.
O facto de ter “conduzido” e trabalhado o tempo neste documentário, sente-se com isso próximo dos propósitos de um maestro / condutor?
Não me atrevo a fazer essa comparação porque não tenho domínio suficiente no ato de dirigir uma orquestra. [risos]
Não refiro à arte de dirigir uma orquestra, refiro mesmo a essa ginástica e ensaio de tempo …
Posso dizer algo complementar: a ideia de termos uma marcação de tempo no filme não é nada de novo, já foi feita inúmeras vezes, mas, regra geral, essa marcação de tempo é em contagem decrescente, o que gera ansiedade quanto ao fim. Aqui é o inverso, temos uma contagem crescente, uma soma, não uma subtração. Acrescentamos à história deste agrupamento, não na expectativa de um fim que resolva o filme. Em vez de sentir expectativa ou ansiedade sobre o fim, há um sentimento de crescendo, continuidade e progressão.
Eu tinha dúvidas porque, quando sentimos a passagem do tempo, nem sempre é por um bom motivo; estamos à espera de algo, e isso reflete-se no documentário. Ou seja, para o espectador, ver que o tempo está a passar pode ser prejudicial, mas devido à elevada cadência, o que acontece, ou a sensação que pretendemos obter, é que quando chegamos ao fim de uma nova década, ficamos curiosos por saber o que vem a seguir. O que vamos ouvir a seguir? Isso combina com o momento final que de alguma forma nos transmite o que é comum num movimento de uma orquestra ao longo de 60 anos.
Maria João Pires em "Soma das Partes" (2023)
Mas essa decisão de colocar um cronómetro no seu filme, não teve medo de transmitir uma ideia contrária ao espectador?
Como estava a dizer, tive essa dúvida. Acho que no resultado final não sinto. Em qualquer momento poderia ter optado por retirar, mas não o fiz porque senti que este cronómetro faz sentido existir no filme. Ao contrário de fechar, esta contagem permanece, é um movimento contínuo.
Quanto aos entrevistados? À sua seleção? Houve alguém que recusou o convite?
Ninguém recusou o convite, houve dificuldades em reunir com alguns deles, seja por motivos de agenda. Estamos a falar de pessoas com agendas muito preenchidas, concertos a nível internacional. No caso dos maestros, dirigem orquestras em todos os cantos do globo, semana após semana. Alguns solistas, como Maria João Pires ou Evgeny Kissin, dão igualmente concertos pelo mundo inteiro com frequência, e reunir todas as entrevistas no mesmo espaço, no Grande Auditório, foi uma tarefa difícil, requerendo alguma logística.
Como funcionou essa abordagem com os entrevistadores?
Com a Andrea, falávamos previamente sobre a questão do tempo, e depois falávamos antes e durante cada entrevista, tendo algumas perguntas-guia para direcionar os conteúdos que pretendíamos obter, especificamente para aquela área ou para aquilo que aquela pessoa nos poderia dar. Houve esse exercício. A conversa fluía naturalmente e, normalmente, eu e a Andrea discutíamos na entrevista: "Que tal perguntarmos isto também?". E, se houvesse disponibilidade, essa pergunta era feita.
Em relação à investigação?
Tenho trabalhado com a Gulbenkian com alguma regularidade, e é um privilégio poder estar neste meio com os músicos e tudo o que isso envolve. Tendo a oportunidade de trabalhar com o serviço de música, vou conhecendo parte da história. Do diálogo com os músicos e técnicos, vou conhecendo histórias, coisas que aconteceram ou estão a acontecer, momentos importantes que, de alguma forma, marcaram a vida da Orquestra Gulbenkian.
Quando comecei o documentário "Soma das Partes", já tinha em mente temas que para mim eram bastante evidentes: a música contemporânea, a Madalena Perdigão, que está na génese dos três agrupamentos da Fundação Calouste Gulbenkian: Orquestra, Coro e Ballet.
À medida que o documentário foi se desenvolvendo, adquiri conhecimento de outros episódios até então desconhecidos para mim, seja por via de pesquisa, seja de menções feitas pelos entrevistados nas nossas conversas. Como as entrevistas foram espaçadas, ao obter uma resposta, permitiu-nos investigar um pouco mais sobre o tema e, se achássemos pertinente o seu desenvolvimento e aprofundamento, fazíamos isso com outro entrevistado a seguir.
Houve algum episódio dentro desta “Soma de Partes” que o fez repensar na estrutura do documentário? Por exemplo, enquanto espectador, senti curiosidade em saber mais sobre o afastamento de Madalena Perdigão da Fundação.
A Madalena Perdigão merece um trabalho exclusivo sobre ela. Este documentário não é sobre ela, é sobre a Orquestra. Achei importante mencioná-la, porque obviamente está ligada à história da Orquestra, mas houve um momento em que tivemos que deixar essa questão de lado. Estaria mais preocupado, como havia afirmado há pouco, se aqueles dez minutos correspondentes a uma década não fossem suficientes para esquematizar todos os acontecimentos desse período e se tornasse redutor, refém de uma estrutura inicial que nos impedia de atingir todo o potencial prometido. E as décadas foram-se resolvendo, uma a uma, e no final sinto que não ficou nada de fora que eu achasse que deveria estar no documentário.
Mas em relação a esse filme sobre Madalena Perdigão. Seria o realizador indicado para essa tarefa?
Gostava muito, mas ... só o tempo dirá. [risos]
Fale-nos desse outro projeto seu, o “Coro: 60 Anos do Coro Gulbenkian”?
É um projeto que tem um ponto em comum com o filme da Orquestra, que é a passagem por 60 anos de existência …
Ou seja, não terá 60 minutos?
... e as semelhanças terminam aí. O documentário do Coro permitiu-me conceber algo distinto do que fiz com a Orquestra e só faria sentido fazê-lo dessa forma. Isto está relacionado com a forma como abordo cada projeto. Tem que ser desafiante, tem que me propor algo de novo, que não me faça sentir que estou a replicar um modelo ou esquema do que fiz anteriormente. Tendo dois agrupamentos que pertencem à mesma instituição e que estão a comemorar o mesmo arco temporal, achei que tinham que ser dois projetos inteiramente distintos.
Sobre o título “Soma das Partes”? Este é alusivo à composição do documentário, seis décadas a 10 minutos cada, dando no seu total 60 minutos de duração, ou é uma referência à estrutura da orquestra, ela uma formação de vários músicos, talentos, instrumentos e classes musicais?
É as duas coisas. A resposta está na pergunta. [risos] E daí, sendo natural, que é um nome comum, sempre utilizamos essa expressão "A soma das partes é maior que o todo", e isso não deixa de ser verdade neste caso, tanto nos elementos que compõem uma orquestra, no som que acabam por produzir, na perseguição pela excelência que está na génese da iniciativa da Madalena Perdigão até à formação atual, como também é maior do que o próprio tempo que foi experienciado pela Orquestra.