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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Música ... ¿Por qué no te callas?

Hugo Gomes, 10.05.17

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A música toca e toca em modo playlist, continuamente, imperativamente e ritmicamente perante as imagens que funcionam num vórtice de corpos vazios, que bailam ao som das mesmas de forma dessincronizada. A música, segundo Malick, é a alma de Austin, esse paraíso liberal num estado tão fechado como o Texas, e a única alma verdadeiramente sentida, por a arte invocada por estes ritmos diversos não engendrar com a narrativa visual que o realizador “tímido”, agora prometendo uma maior assiduidade na indústria, gera.

"Song to Song" é a sua nona longa-metragem, a terceira da fase pós-2011 (sem considerar o seu documentário "Voyage of Time"), e a nova evidência de que os autores, por mais inconfundíveis que sejam, também cedem ao mais profundo conformismo. O “culpado” desta presença repentinamente está no digital, a infinidade e o facilitismo que as tecnologias atribuíram ao Cinema, mas para Malick é o prenúncio do seu fim enquanto ser misterioso da indústria, é o cansaço em pessoa de quem não tem mais nada de novo para contar. Triste realidade, "Song to Song" é mais do mesmo em doses malickianas, são as “maliquices” levadas até ao fim e o seu cinema tão “autoral” converteu-se na mais perfeita caricatura, a loucura da repetição e dos problemas de primeiro mundo como base de um prolongado sofrimento de personagens. Esse sofrimento entra em loop, na persistência dos mesmos planos “over and over”, e das frases sussurrantes cada vez menos inspiradas e cedidas a uma lamechice de pacotilha. Será Malick o Pedro Chagas Freitas cinematográfico?

"Song to Song" começa com um triangulo amoroso (Michael Fassbender, Ryan Gosling e Rooney Mara), um ménage de "Dreamers", de Bertulocci, com os mesmos “joguinho” sexuais e de foro emocional. Tais vértices vão-se afastando dando origens a trilhos cada vez mais paralelos entre as diferentes personagens. Sim, é triste chamar isto de personagens, até porque Malick brinca com o vazio, com os movimentos erráticos e circulares destas, nos diálogos impostos num falso-raccord. Não existe espaço para personagens, tudo são bonecos que se pavoneiam perante um autor que se assume desorganizado, espontâneo e refém do seu instinto.

Será isso bom? Não será a Arte um veículo pensante? Ou um instinto humano de comunicar? Conforme seja a escolha, a verdade é que o sedentarismo é um veneno e para Malick esperemos que encontre a cura. "Song to Song" é um som incorrespondido com a narrativa visual, é a prova de depois de Tree of Life, Malick não demonstra qualquer sinal de revitalização, mas sim de preguiça no mais incurável sentido.

"Maliquices" a saldos ...

Hugo Gomes, 17.11.15

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"You gave me peace. You gave me what the world can't give. Mercy. Love. Joy. All else is cloud. Mist. Be with me. Always."

Há quatro tipos de realizadores a exercerem a sua função como tal no Cinema: o ilustrador ou “tarefeiro” [termo mais pejorativo, é verdade], o mero profissional no ramo dedicado a cumprir as ideias dos outros e os propósitos dos produtores; o megalómano, um pouco como as convenções formadas por Griffith que tornaram a cadeira de realizador em algo absoluto, competente para os seus propósitos como também dos seus superiores hierárquicos; os autores versáteis de ideias variadas que submetem a um gosto autoral criativo e sempre emergente; e por fim os conformados, os autores formalistas, preso a uma marca e guiados em redor de uma solitária criativa.

Nesses termos, Terrence Malick é um transcendente, tendo iniciado a sua carreira no terceiro tópico e atravessando atualmente no último, um realizador condenado a olhar constantemente ao seu próprio umbigo e a utilizar o mesmo “truque de magia” vezes sem conta, a fim de causar espanto. O que não apercebe é que o seu público poderá eventualmente cansar desta sua egotrip. Na mesma demanda de cineastas barricados no seu artesanato, surge nesta discussão Yasujiro Ozu, o nipónico “parte-corações” que nos presenteou verdadeiras obras-primas como “Tokyo Story” e “Equinox Flor”, foi também acusado de apresentar-se constantemente num registo fechado e formalmente identificável à sua pessoa nas suas últimas estâncias. Contudo, ao contrário deste Malick crente, as relações entre as personagens e a afeição destas para com a intriga encontram-se presentes e para além de gradualmente desafiadas e reinventadas.

Em “Knights of Cups”, a demanda é outra. O cunho de Malick é visível - a jornada esotérica soa como um mero caso de estética - o qual o nosso senhor repete a sua forma, assim como na invocação dos seus temas intrínsecos, entre os quais a sucessão patriarcal [“Tree of Life”] e uma busca por um amor absoluto, confinado à inexistência [“To the Wonder”]. Neste ciclo "malickiano" encaramos o sonâmbulo, cuja vida é escrita como uma premonição derivada das lidas cartas de tarot, e é através dessa vidência, que Rick (Christian Bale) vagueia num prolongado e interminável sonho. Esse mesmo que arranca com a morte de um ente querido, passando pela obsessão de um pai para que os seus herdeiros sigam um legado anteriormente construído. Morte e herança de braços dados tornam o nosso protagonista numa incompleta marioneta que se aventura na boémia do dia e na luxúria da noite para compensar o seu incógnito signo (o filme é repartido em capítulos consoante as místicas).

Neste caso até poderei anexar o nosso Malick àquela expressão “que tão bem eu filmo”. “Knights of Cups”, tal como os anteriores filmes do cineasta, é recorrente a montagens rápidas e instáveis, com personagens erguidas pelas presenças físicas dos atores e pelas divagações filosóficas sussurrantes em voz off, os diálogos são uma raridade e quando acontecem alienam a sua estabelecida narrativa. Os dramas de Rick, os seus dotes enquanto mulherengo são encurtados com as, admitimos, belíssimas imagens de Natureza ou da beleza encontrada em “cenários de cartão” ou edifícios imaculados pelo tempo e pelo espaço (quase como um Andy Warhol sem expressionismo).

Mas o descaramento é a não-reinvenção de Malick, um homem preso à sua “ilha” que concebe um produto visualmente belo, mas vazio, atropelando esse suposto trabalho de construção com citações pseudo-filosóficas e uma burla ingressada num ciclo rotineiro. A certa altura, numa breve passagem, Joseph (Brian Dennehy), pai de Rick, vagueia de forma apática pelos cenários emanados por Malick até chegar a um palco de teatro, observado por uma multidão indiferente. Essa sequência transmite a verdadeira essência de “Knights of Cups”, um ensaio pouco expressivo, exposto e rasurado de forma a soar na sétima maravilha do Cinema Contemporâneo. Infelizmente, tal como é dito a determinada altura “Se o nariz de Cleópatra fosse menor, o Mundo mudaria”, neste caso, se o ego de Terrence Malick fosse menor, até poderíamos ter um grande filme. Ao invés disso … postais e maliquices!

Badlands: horizontes longínquos e desejos próximos

Hugo Gomes, 01.04.14

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Na primeira longa-metragem de Terrence Malick, Badlands: Noivos Sangrentos (anos-luz das suas aventuras em territórios metafísicos e formalidades quase esotérica), seguimos num filme correspondente às estruturas convencionais da sua contemporaneidade, que por entre as suas elipses antevia o futuro autor que é hoje tido numa indústria cada vez mais despido de autoralidade.

Três anos depois da curta de graduação no American Film Institute - Lanton Mills - Malick remete-nos a um longo road movie entrelaçado com as influências coming-of-age, ao mesmo tempo que distorce as lenda já firmada na sociedade americana. O amor fervoroso, animalesco e por vezes grotesco entre Kit (Martin Sheen) e Holly (Sissy Spacek) tem de todo inspiração no caso Honeymoon Killers, um casal de assassinos que nos anos ‘50 "assombravam" as estradas norte-americanas com as suas fantasias e modus operandi de matança. Um enredo que conta e reconta, assim por dizer, a história de dois assassinos em plena "lua-de-mel", a base de um vasto imaginário do cinema dos EUA que nos conceberam obras importantes como Bonnie & Clyde, de Arthur Penn, ou o perturbado e delirante Natural Born Killers, de Oliver Stone (com argumento de Quentin Tarantino), que tinha como alvo principal o mediatismo vampírico e anti-ético da comunicação social.

Então o que de singular e distinto tem este Badlands (1973)? A resposta centra-se no seu conjunto fílmico e na reflexão contraída pelo cineasta tendo em vista o seu panorama. Uma sociedade a florir e a ser "arrancada" do seu "armário", a glorificação da violência e o papel dos órgãos comunicacionais nessa mesma divindade, como é possível verificar numa das sequências, o qual Kit é detido e exposto a um bando de soldados, todos eles curiosos em constatar as suas peculiaridades.

A busca destas mesmas singularidades que supostamente iriam elaborar a evidente tese da divergência entre o "individuo comum" para com o "maníaco homicida", é de uma indiferença desarmante, entrando em oposição, com The Texas Chainsaw Massacre, de Tobe Hooper (a estrear um ano depois), que de certa forma representava o assassino em série (nesse caso a persona Leatherface) dotado de comportamentos "animalescos" como uma bizarria humana. Kit de Martin Sheen é despido dessas características monstruosas, correspondendo fisicamente aos parâmetros aceitáveis da sua sociedade (nomeadamente a referida semelhança com James Dean) e isente de perturbações acentuadas desse género. Terrence Malick já previa uma ligação ténue entre a figura do serial killer e do mundano, pensamento hoje tido no "boom" cinematográfico e até mesmo televisivo de tal arquetipo.

Mas é nesse mesmo retrato que entra as influências "coming of age", o desenvolvimento do par de personagens, que por sua vez são "congeladas" pelo impasse que se dá pelo nome de enredo. Contudo, quer Kit e obviamente Holly, são dois adolescentes desencontrados (mesmo que a personagem de Sheen tenha 25 anos de idade) com o meio que vivem, ambos são os rebeldes sem causa (sim, a menção ao popular filme de Nicholas Ray, protagonizado por James Dean, não é por acaso) ligados por sentimentos contidos dilacerados pela frieza dos seus gestos e a inconsequência dos seus atos. História de amor conturbada que se guia pela paisagem que se transforma a meio da jornada, desde o vilarejo sem futuro do Sul de Dakota até às terras indomáveis e desabitadas de Montana, as "Badlands" [= terras más] do titulo. Neste último, a catarse para Malick "refugiar-se" na paisagem, é descrita como troço das decisões, o paraíso sem retorno ou simplesmente o inferno disfarçado de Éden.

Dotado de uma pertinente violência social e psicológica, Badlands é um dos elos de transição para o cinema contemporâneo, cuja distinção surgiu apenas com o passar dos anos. O sucesso, neste caso a falta dele, não foram favoráveis para o filme e para Malick na sua data de estreia. Houve um relançamento em 1979, seis anos depois da primeira estreia, como suporte da sua segunda longa-metragem, Days of Heaven, mas a receção foi a mesma. Devido a esta frieza geral, tivemos que esperar pacientemente dezanove anos para vermos um novo trabalho, o muito apreciado Thin Red Line. Todavia, e com a “carrada” de anos em cima, Badlands continua a fascinar corações, a extraí-los das suas zonas de conforto e imperativamente vivê-las sobre os calores da paixão e do sangue unificados.

As danças ao luar ao som de “A Blossom Fells”, de Nat “King” Cole; o “gigante crucificado”, o tributo de Martin Sheen a James Dean e as suas respetivas rebeldias sem causa; a frieza da violência para com os olhos de Kit; o desconhecido que reside no coração de Holly e os enredos paralelos que geram especulações (protagonizado pelo próprio Terrence Malick), são algumas das características desta obra deveras memorável, tanto como a mítica frase que ecoa nesta consanguinidade com o Sonho Americano: “I’ll kiss your ass if he don’t look like James Dean". Indescritível!