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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"A Morte de uma Cidade" vista por João Rosas: "a presença da câmara exige uma postura ética e moral"

Hugo Gomes, 03.09.24

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A Morte de uma Cidade (2022)

Há muito tempo que queria fazer um filme sobre a morte de uma cidade”, em voz-off João Rosas declara um desejo de testemunhar um fim, ou talvez uma transformação, ao conceito clássico de cidade. Esse exemplo, trazido pela perspectiva de um estaleiro e a sua comunidade trabalhadora, é encontrado na capital, Lisboa, a metrópole que lutou e cedeu aos fenómenos correntes que atropelam vários pólos populacionais da Europa (e não só). O documentário “A Morte de uma Cidade”, o título diz tudo e nada esconde, é um filme resposta à sede e à perplexidade do seu realizador perante esse local que não mais reconhece. 

No entanto, sob uma arma poderosa, a câmara de filmar, ele penetra em obras, estaleiros propriamente ditos, e depara-se com uma outra cidade, uma cidade invisível e ao mesmo tempo visível, por vezes ignorada — a cidade que muitos temem e que outros fecham os olhos numa indiferença abismal. É a cidade destes trabalhadores de passagem, imigrantes das várias partes do globo, que aqui encontram a sua provisória Torre de Babel. João Rosas procurou um filme e o encontrou nessa gente. “A Morte de uma Cidade” é o colocar a cidade em nu.

Aproveitando a estreia, conversei com o realizador sobre este mesmo filme, a sua passagem na nossa contemporaneidade, desde as crises habitacionais até aos discursos inflamados sobre imigração, a Lisboa cada vez mais seletiva, e saindo desse círculo, sobre a ficção própria de João Rosas, das Marias do Mar aos Cataventos, sempre com a cidade na mente. Fiquemos com a conversa:

O filme estreia em sala após ter sido introduzido a nós no Doclisboa de há dois anos, julgo que recebeu lá um prémio …

Sim, o Doc Alliance, que é atribuído por seis ou sete festivais europeus de documentário. Cada um desses festivais nomeia um filme, e o Doclisboa nomeou o meu. Depois, o filme é avaliado por um júri independente, composto por três pessoas, que não está ligado a esses festivais. 

Já tinha passado uns mil anos desde a estreia [risos].

Mas foi filmado antes da pandemia?

Sim, foi.

Faço esta pergunta porque só agora estreámos o filme em sala, no circuito comercial. E numa altura em que, talvez, este tema tenha sido sempre debatido, mas agora parece estar a ganhar ainda mais força — esta transformação da nossa cidade. Aliás, acho que foi na semana passada que saiu uma notícia sobre derrubar um quarteirão inteiro em Arroios para construir um hotel. Ou seja, ao ver o seu filme, mesmo com dois anos … quer dizer, foi feito durante a pandemia, não foi?

Sim, quer dizer, no fundo, acho que o que mudou foi apenas o agravamento da situação. Aquilo que presenciei quando comecei a filmar, no final de 2016, e continuei a registar até meados de 2018, já era um fenómeno em desenvolvimento há alguns anos. Este fenómeno começou, sobretudo, nos anos da crise, por volta de 2011 e 2012, durante a crise imobiliária mundial, que resultou num aumento do investimento estrangeiro em propriedades desvalorizadas e degradadas.

O que filmei já refletia esse fenómeno, que desde então só se agravou devido a uma série de factores. Alguns são de ordem internacional, como o investimento estrangeiro e o funcionamento do sistema capitalista e financeiro atual, que favorece os interesses dos investidores. Outros factores estão ligados a medidas governamentais, inicialmente introduzidas pelo governo do PS e depois continuadas, mas que tiveram origem no governo de Passos Coelho, como os vistos Gold e outras políticas para atrair investimento. Estas políticas, aliadas à desregulação do mercado de arrendamento, entre outras medidas, conduziram à situação dramática que vivemos hoje, especialmente para quem procura casa e tem o direito de viver na cidade.

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João Rosas

Este fenómeno não afeta apenas a habitação, mas toda a vivência da cidade. Estamos a assistir à criação de uma cidade virada, não só para o turismo, mas também para o consumo, para a privatização de espaços públicos e para uma vivência que exclui uma parte significativa da população local, que já não consegue viver na cidade. Isto inclui também pessoas que trabalham na construção civil e que, paradoxalmente, constroem a cidade, mas não encontram condições para viver nela.

O filme pretende não apenas retratar esta realidade, mas também servir como uma forma de eu próprio questionar este fenómeno, mais do que apresentar respostas ou fazer uma denúncia direta. Para mim, o desafio foi muito pessoal: tentar compreender estes fenómenos, que são extremamente complexos e de uma escala macroeconómica, através das histórias pessoais das pessoas que trabalham nestes edifícios e que integram este processo mais amplo.

Foi sempre um filme de perguntas. Durante o processo, estive constantemente a questionar, não só os outros, mas também a mim próprio, para tentar perceber melhor este fenómeno. Mais do que denunciar, o filme procura revelar as diferentes escalas e os diversos atores envolvidos neste processo...

É curioso como continuamos a lidar com este problema. Aliás, há uma frase no seu filme que diz: Lisboa, cidade sem memória, sem perdão. Esta cidade corre o risco de perder a sua memória e a sua cultura, de certa forma. E, ao mesmo tempo, há outro tema muito atual, que continua a ser debatido hoje, que é a questão da imigração, sendo que grande parte desta mão de obra para esses investimentos vem precisamente de pessoas imigrantes. Como é que vê esta relação entre os dois fenómenos?

Sim. É óbvio que, do ponto de vista do Estado e do governo, existe uma grande hipocrisia. Por um lado, há medidas que atraem certo tipo de imigrantes, como os vistos Gold, mas, por outro, existem políticas que dificultam a vida das pessoas que vêm para cá trabalhar e procurar melhores condições do que as que tinham nos seus países de origem, ou mesmo de pessoas que nasceram cá, mas enfrentam dificuldades por pertencerem a estratos sociais mais baixos, etc. No entanto, este debate não é novo. A nível português e global, temos assistido ao crescimento da extrema-direita, com discursos identitários e nacionalistas que ganham cada vez mais força, e que são, obviamente, fortemente direcionados contra a imigração.

Este fenómeno é o culminar de medidas que, apesar de apresentadas como centristas ou até benéficas para os imigrantes, na verdade acabam por dificultar a vida dessas pessoas. Medidas que, através de um processo burocrático brutal, da dificuldade na reunião familiar e da imposição de contratos de trabalho, colocam essas pessoas em situações de grande fragilidade. E, no fundo, estamos a falar de pessoas que são iguais a todas as outras, mas que...

Acho que isso é óbvio …

São pessoas que, na verdade, trazem uma grande riqueza, e não se trata apenas da riqueza de fazerem trabalhos que os portugueses não querem fazer. Elas trazem riqueza enquanto pessoas, pela sua presença humana e cultural. Na realidade, a cidade, a própria ideia de cidade, vive desse cruzamento de pessoas, de entradas e saídas, de trocas de ideias, culturas e experiências. É óbvio que, do meu ponto de vista — mais até do que cinematográfico, diria do ponto de vista humano — aprendi imenso e ganhei muito com esta experiência, ao ver como aquele estaleiro funcionava como uma pequena cidade. Ali, havia esta troca constante de experiências e ideias, tanto entre mim e os trabalhadores, como entre os próprios trabalhadores. O estaleiro era, assim, um ponto de encontro, um local de interação entre estas pessoas.

E as relações entre eles também.

Sim, claro, é isso mesmo. Também aprendi muito com essa experiência. No fundo, aquele estaleiro funcionava um pouco como uma mini-cidade, com esta ideia de cruzamento e passagem de pessoas, que é, aliás, o que eu referi anteriormente. Não se trata apenas de uma crise de habitação ou financeira, mas também de uma crise da própria ideia de cidade. A cidade está cada vez mais segregada, cada vez mais voltada para um certo tipo de população, perdendo-se essa noção de partilha de espaços, de percursos, e de trocas de ideias e experiências

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A Morte de uma Cidade (2022)

Há um ponto muito curioso no seu filme, que nem sequer é diretamente subjacente a estes temas de que estamos a falar — a gentrificação e a imigração — mas que, ainda assim, está presente: a sua própria busca enquanto realizador pelo filme. Se não estou em erro, na altura do “Catavento” (2020) li um artigo sobre uma longa-metragem de ficção que estava a preparar, a sua primeira longa de ficção. Este seria o filme que deveria ter nascido dessa ideia, não é? Ou seja, essa ficção que estava a preparar acabou por dar lugar a este documentário, certo?

Não, não. Este filme até foi filmado antes do “Catavento”. Só que o “Catavento” nasceu do meio da montagem deste “A Morte de uma Cidade”, até porque o processo de montagem foi muito longa, não só pela quantidade de material que tinha, mas também porque foi um filme que, inicialmente, tinha um financiamento muito reduzido e, por isso, foi sendo montado aos “bochechos”. Depois veio o Covid, tive outra filha... Enfim, a vida foi acontecendo no meio do cinema, como tem de ser. Durante esse período, o “Catavento” foi feito.

Este filme já tinha, desde o início, esta forma e ideia de documentário, tal como é. Quanto ao filme que tinha planeado como ficção, a longa-metragem, essa, foi filmada no ano passado e agora estou a terminar a pós-produção desse projeto.

Então esse filme ainda existe?

O de ficção? Sim, será o próximo a sair …

Voltando à questão, e obrigado por este contexto temporal. Mesmo assim, parece haver neste filme um realizador que está à procura do seu próprio caminho. Ao longo, talvez, da primeira hora, acompanhamos o realizador — neste caso, você —, ainda que invisível no filme, numa espécie de busca. Primeiro, quer filmar a “morte” da sua cidade, talvez porque sempre teve esse desejo de retratar esse último suspiro. Aliás, é curioso, porque já tinha uma obra chamada “Birth of the City” (2009) e agora parece desejar o seu oposto estatuto. Depois, ao entrar no estaleiro, começou com uma certa intenção de denúncia, mas acabou por se aproximar das pessoas. Foi isso que aconteceu?

Ou seja, interessava-me precisamente por isso ser, como eu disse, um “filme de pergunta", um chavão que pode parecer pouco pretensioso, mas que traduz bem a minha abordagem. Era um filme de pergunta no sentido de que eu estava a explorar e a descobrir o terreno à medida que o fazia. Não tinha respostas pré-definidas, e para mim isso era essencial, não de uma forma narcisista ou para chamar a atenção para a minha arte ou para o ofício de realizador, mas porque achava importante que o processo de procura da forma do filme, e a forma como se filma naquelas condições, estivesse visível.

Parecia-me também interessante, e essencial, refletir sobre esta dúvida que tinha em relação ao que significava fazer um filme destes. Havia um paralelismo entre a construção do filme, a construção de uma cidade e a construção de um prédio. Tal como uma cidade, ou aquele estaleiro, os filmes são construídos por camadas.

A rodagem foi muito longa, e com pessoas que iam e vinham no estaleiro, acabou por passar por várias fases diferentes. Nesse processo, eu próprio passei por várias fases. Houve, de facto, uma fase inicial mais marcada pela denúncia, pelo confronto direto com a violência daquele trabalho e daquelas condições. Foi uma experiência muito crua. Depois, veio uma fase de maior distanciamento, quase de frustração, em que cheguei a sentir-me perdido, achando que talvez não conseguisse fazer o filme.

Quando as primeiras equipas de trabalhadores mudaram e os primeiros andares começaram a ser construídos, tornou-se ainda mais difícil. Tive de refazer todo o processo de aproximação às pessoas, começar tudo do zero. Mas o momento de viragem foi, sem dúvida, quando conheci este grupo de trabalhadores guineenses, que me acolheu como parte do grupo, por assim dizer. Apesar das distâncias que existiam entre nós, essa ligação permitiu-me encontrar um novo rumo para o filme.

Pareceu-me interessante refletir sobre todo este processo na própria narração, na voz off. Desde o início, essa ideia já existia, até porque há uma ligação com o “Birth of the City", que também tinha voz off e foi filmado em Londres. A voz off permitiu-me não só refletir sobre o processo de fazer o filme, mas também preencher algumas lacunas em relação às histórias que estas pessoas me iam contando e que, por uma razão ou outra, não consegui captar diretamente com a câmara … tive pena, achei que era mais uma camada que se acrescentava ...

Em algum momento durante a rodagem deste filme, sentiu que devia intervir, mas tentou manter-se como um observador passivo, apenas a captar aquilo que via? Como lidou com essa tensão entre a vontade de agir e a necessidade de apenas registar?

Acho que este é um filme em que estou bastante interventivo. O que me parece mais interessante, tanto enquanto cineasta quanto em termos de reflexão, é a relação que estabeleci com as pessoas. Embora o filme tenha uma abordagem, até certo ponto, observacional, a minha presença é muito marcante. Apesar de estar atrás da câmara, há uma interação significativa entre mim e as pessoas. Para conseguir esse grau de intimidade — filmar em suas casas, captar certas conversas — foi necessário um envolvimento pessoal muito grande, e com todo o gosto. Na verdade, grande parte do tempo que passei no estaleiro era tempo de convívio, e isso tornou-se uma rotina diária para mim. Para mim, essa parte foi até mais fácil, porque, enquanto as pessoas estavam a trabalhar, eu também estava, mas a parte do trabalho envolvia também o convívio e a conversa.

Todos os dias, percorria o estaleiro pela manhã, conversando com as diversas pessoas e, depois, começava a filmar gradualmente aqueles que me interessavam mais. Não diria que sou uma presença passiva; pelo contrário, a minha presença é muito forte. 

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Sim, até em relação àquele trabalhador do estaleiro que ainda trabalha no café do patrão. Lembro-me de que o João lhe questionava se ele não estava a ser enganado.

Sim, exatamente. A questão é que, a certa altura, o que mais me interessava era como essa barreira entre o cinema e a vida se foi esborrando. Há sempre uma câmara presente, e a presença da câmara exige uma postura ética e moral. É importante ter essa consciência, porque acabamos por ter um poder na relação que não é, à partida, horizontal. O que me interessava era construir essa relação de igualdade, apesar da presença da câmara. Por isso, a minha presença no estaleiro, às vezes sem a câmara ou, pelo menos, com a câmara desligada, foi essencial.

Essa barreira foi-se esbatendo porque desenvolvi relações de amizade. Nesse sentido, a minha intervenção foi forte, pois estava muito presente e partilhava aspectos da minha vida, embora esses aspectos não estivessem no filme. As pessoas conheciam coisas sobre mim, sobre a minha família, as minhas dificuldades, porque também partilhei coisas com elas. A relação tornou-se, de facto, uma amizade.

O filme foi, então, construído com base nesses pressupostos. Embora estivesse a filmar, grande parte do processo envolvia relações que continuam a existir até hoje.

Portanto, para além do filme, tem contato com algum deles?

Sim.

É que se fica com a sensação que eles desaparecem, como aquilo é trabalho de passagem e estão sempre em transição.

Os primeiros trabalhadores com quem estive não conseguimos manter contacto, porque, como menciono no filme, muitas vezes desapareciam de um dia para o outro. No entanto, na fase de construção — ou seja, na segunda fase da obra — houve uma certa estabilização das equipas. Embora houvesse rotatividade de pessoal, a equipa dos pedreiros, composta por um grupo de guineenses, manteve-se durante vários meses, alguns até por um ano, o que permitiu construir uma relação mais sólida.

Hoje, com alguns dos trabalhadores, ainda mantenho contacto, enquanto outros mudaram de país ou de número de telemóvel e desapareceram do meu radar. Não sei se estão cá ou não, mas muitos deles ainda mantêm contacto. Aliás, alguns estiveram presentes na estreia do Doclisboa, o que foi um momento muito emocionante. Ver-se a si próprios na tela e ver o seu trabalho valorizado num contexto cultural que muitas vezes lhes é inacessível foi algo muito significativo para eles.

Houve um lado emocional muito forte, como o exemplo da esposa de um dos trabalhadores, que viu o trabalho do marido pela primeira vez no filme. Ela subiu ao palco e falou sobre o esforço do marido para sustentar a família, sublinhando a importância de ver o que ele passava durante o dia para garantir o sustento da família. Essa experiência foi um dos pontos de partida do filme.

Assim, o filme explora também a ideia de como se filma num estaleiro, como se entra naquele ambiente, como se aborda pessoas que têm os seus próprios códigos, regras de conduta e formas de sociabilidade. O funcionamento daquele espaço é muito particular, e o desafio foi exatamente entender e respeitar esses aspectos enquanto se capturava a realidade, e essa relação passa por anteceder ou vai para além do cinema, não passa só por filmar.

Saindo da ‘Cidade, gostaria que me falasse sobre essa ficção.

“Entrecampos” (2013), “Maria do Mar” (2015) e "Catavento" (2020) formam uma trilogia que segue a história do Nicolau (Francisco Melo) e, em menor grau, da Mariana (Francisca Alarcão). Conheci o Nicolau quando ele tinha 11 anos e fui acompanhando o seu crescimento ao longo dos anos. Esta longa-metragem [“A Vida Luminosa”] é o quarto capítulo da trilogia, que agora se transforma numa tetralogia, onde continuo a acompanhar o crescimento do Nicolau, que agora tem 24 anos.

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Catavento (2020)

Uma espécie de “Boyhood às fatias”?

Sim, é como se fosse o “Boyhood" em partes [risos]. Esta abordagem reflete um outro lado do meu trabalho, com certos pontos de contacto com a exploração da “Morte de uma Cidade”. A ideia, mais uma vez, é a relação com a cidade, com certos lugares que vou descobrindo a partir das pessoas que trago para os filmes. A narrativa parte sempre do núcleo central, que é o Nicolau, quer dizer, do Francisco, o rapaz que o interpreta. A partir dele, conheço outras pessoas, seja através de castings ou de contatos, e descubro a cidade pelos olhos dessas pessoas, inserindo esses elementos no filme, muitas vezes de uma forma mais ficcional.

E é curioso essa partida do Nicolau, porque não era o protagonista de “Entrecampos”, e sim, um secundário, a Mariana, a menina de Serpa, ou melhor Francisca Alarcão, era sim, a protagonista.

No fundo, a ideia de “Maria do Mar" já existia na altura de “Entrecampos", mais ou menos, com mais ou menos desenvolvimento, e tinha esta ideia da descoberta da sexualidade, da ideia de o rapaz estar fora do seu contexto durante o fim de semana. Depois, quando conheci o Francisco durante a realização de “Entrecampos”, pensei: “Por que não continuar esta relação com ele?”. Embora a Mariana, essa rapariga, não tenha tido lugar nessa história, foi daí que nasceu a ideia de continuar a história. Não havia essa ideia no início, pois “Entrecampos” era um filme isolado, mas depois essa ideia foi-se desenvolvendo cada vez mais, de trabalhar com certas pessoas, de trabalhar em continuidade e de explorar também...

E há também um trabalho... o tempo, e como esse elemento o influencia, neste caso com o Nicolau, o Francisco Melo. Como também, acredito, que houve em fazê-lo crescer enquanto ator? Notei que de “Entrecampos” a “Maria do Mar” ocorreu uma evolução muito grande.

Sim, é engraçado, porque muitas pessoas me diziam quando comecei a filmar o “Maria do Mar”: “tens a certeza de que queres trabalhar com ele? Porque ele não tem jeito nenhum.” Mas, claro, ele era muito jovem na altura. Estava a lidar com páginas e mais páginas de texto, e ele, coitado, tinha de lidar com tudo isso. Mas o que realmente me interessava não eram as suas capacidades enquanto ator, e sim a pessoa que ele é e a relação que conseguimos estabelecer. A relação dele com as pessoas que entraram em “Maria do Mar” foi fundamental, incluindo um grupo formado que conheci, como a Maria do Mar, que trabalhava na biblioteca onde eu estava a estudar, e a italiana Júlia, que trabalhava num quiosque.

O filme aborda o dilema e o deslocamento que o Nicolau sente, algo comum a muitos nessa fase da vida, como a descoberta da sexualidade, a indecisão sobre o que fazer após o secundário e a escolha de um curso. No caso da longa-metragem, trata-se de sair de casa dos pais, começar a trabalhar, enfrentar uma primeira relação amorosa mais séria e a descoberta de um segundo amor. A partir do núcleo do Francisco e das suas dúvidas, construí um mosaico de pessoas que ajudam a criar o seu universo. É ficcional, mas parte de pessoas reais que não são atores, e que partilham aspectos das suas vidas, da cidade em que vivem, dos lugares que frequentam e das suas personalidades, o que enriquece o filme.

Apesar de haver um guião bem definido da minha parte, o trabalho sempre envolve diálogo com as pessoas e descobrir a linguagem de cada uma, para construir uma verdadeira sinfonia de experiências e sentimentos.

Gosto da palavra sinfonia. De certa forma, faz filmes para causar um efeito de Proust, quase como a “madalena de Proust”. Há um lado seu nestes filmes apesar da presença de Francisco / Nicolau?

Sim, há um lado de... E esses aspectos nascem um pouco daí. Embora não seja autobiográfico e eu não tenha vivido exatamente as situações que aparecem no filme, há certamente memórias e experiências pessoais que influenciam o trabalho. Os filmes, de facto, partem dessa tentativa de, apesar de se situarem em universos muito específicos — como a certa classe média lisboeta e os seus circuitos —, tentar transcender esses contextos e, humildemente, alcançar sentimentos, dúvidas, medos e indecisões que muitos de nós enfrentamos no nosso quotidiano. Assim, há uma tentativa de explorar e refletir sobre a ideia de aprender a viver e, ao mesmo tempo, aprender a filmar, enquanto se vive.

Na Toca de Platão

Hugo Gomes, 10.07.24

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Astrakan 79 (2023)

Catarina Mourão, realizadora e documentarista cada vez mais citada após a aclamação de “A Toca do Lobo”, que - assumindo o tom de investigação, procurou o rasto memorialista do seu avô (Tomás de Figueiredo) - chega-nos, na presença de dois filmes estreados em modo pack promocional, como uma exímia artesã do espaço memória, esse a que o cinema português, nomeadamente na sua área documental, tem conquistado ou até mesmo colonizado através de ensaios e formatos inteiramente maleáveis, e outros nem tanto. O módulo tem encontrado sucesso entre o público resistente deste cinema tão nosso, a “culpa”, que não nasce nem morre solteira, teve como parte do cartório no passo, em jeito de um salto trazido, por Catarina Vasconcelos no seu “A Metamorfose dos Pássaros”, a busca da sua história enraizada num constante e inacabado exercício visual e artístico.

Com Mourão, nomeadamente com “A Toca do Lobo”, a elasticidade do seu artifício pouco sai do “arquivo”, das imagens encontradas e ali alinhadas ao serviço de eventuais interrogatórios, ora ternos, ora esclarecedores e, porque não, também eles crípticos. Daí se nota a sua bravura na descura, uma documentarista com voz, corpo e mente. Com estes dois trabalhos a tomar a sala de cinema como sua, distinguimos duas Catarinas Mourão no processo criativo, e no entanto, são diluídas numa só personalidade e num só método.

O primeiro (e com título que parece ter saído de uma música de Jorge Palma), “O Mar Enrola na Areia” (2019), soa-nos um poema visual de Mello Breyner, a ligação com o Mar presta vénia a essa despertada ligação, mas aparências iludem perante aquelas imagens vintage de convívios balneares em tempos salazaristas, apenas recortados por trechos, palavras, não escritas na areia, mas cujo papel nelas imprimidas higienicamente estabelecem um contacto, não só com o ambiente, como também com o arquivo ali amanhado e montado. É uma busca, como em “A Toca do Lobo”, de uma personagem que hoje vive enquanto lenda verbal. Trata-se do “homem do apito”, caminhante das praias do Estado Novo, de apito na boca e com uma relação ainda hoje por comprovar; há quem fale num sem-abrigo, ou num pedófilo, ou, embarcando na aura de mito urbano, numa espécie de “pai natal” do Verão, e, contudo, num papão. Os relatos de quem o viu ou de quem o presenciou, são esses intertítulos manuais com medo da chegada da próxima onda, eles estabelecem as diferentes visões quanto a esta figura inteiramente entregue a um folclore popular.

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O Mar Enrola na Areia (2019)

Mourão “capturou” 30 segundos da sua presença em antigas bobines, só isso, o restante dos seus quase 15 minutos de duração faz-se pela ondulação de uma poesia imagética, algo nostálgica, de rostos encantados pelo mar e dos seus estados de espírito. Do silêncio trazido por este falso-filme mudo, corresponde-nos cognitivamente, e há que jurar que a sonoridade do batimento das ondas, o vento que sopra dunas acima, dunas abaixo, integra esta composição. É como ouvir um búzio e imaginar …

Já a sua longa-metragem - “Astrakan 79” (2023, ingressado na Competição Nacional do Indielisboa desse ano) - também lidando com mitos enraizados na cultura popular portuguesa, é, formalmente, um atalho para o seu regressar (talvez nunca tenha saído) ao cinema de pesquisa, mas é nos entretantos, sem nunca dispensar esse lado de “descoberta” e de “clarificação”, que resulta numa espécie de reconstituição artística em conjunto com um ato de esvaziar um baú arquivista. Permanece como um ensaio memorialista, até à sua segunda metade, um filme que parte de uma ideia, de uma fabulação, das doutrinas impostas por uma família militante comunista ao seu filho, Martim Santa Rita, e que a sua eventual experiência na União Soviética, em 1979 [Astrakan para sermos exatos], o mergulha num clima de desilusão quanto à “utopia” que lhe fora vendida desde cedo. A sua vivência por lá, assim como o seu retorno a casa, são descritos como temas tabus, engavetados e fechados a sete chaves. Com o segundo tomo, adquirindo um intimismo imediato pela presença do protagonista, 40 anos depois, relatando o que sucedera, e mais que isso, as consequências que tal viagem e percepção tiveram no seu seio familiar. 

Astrakan 79” é, inversamente a “Toca do Lobo”, a perda do fascínio familiar, que com o descortinar do seu mistério percebemos o quão presas, por vezes, estão a essas crenças instituídas, mantendo-se, ditatorialmente, como lemas de união entre eles, e cuja “diferença”, seja ela adquirida de forma for, é ostracizada. Família é nesses termos um regime, “fascista”, “censuratório”, imperando uma só vontade e pensamento. É comunismo soviético, como poderia ser outra ideologia, é a diferença política que antagoniza, e por um lado é valorização da política enquanto cerne de tudo e de todos. Catarina Mourão faz a sua “Metamorfose dos Pássaros”, num encantamento em gradual ruína. Com o seu quê de performativo, e a sua vontade de ir a fundo nos segredos só nossos.

O meu corpo, os meus géneros ...

Hugo Gomes, 26.06.24

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Chegamos a mais um trio de curtas emparelhadas como uma sessão única, utilizando a sua temática unificadora como “desculpa” para a sua aliança. “Ovnis, Monstros e Utopia: Três Curtas Queer” [“Entre a Luz  o Nada”, “Sob Influência”, “Uma Rapariga Imaterial”] reúne três obras, fruto de três produtoras diferentes [“Primeira Idade”, “Promenade”, “Terratreme”], mas cujas vertentes artísticas parecem saltitar de filme para filme. Enquanto o seu cuidadoso lançamento em junho assinala o içar da bandeira arco-íris e o punho certeiro em nome do Pride, como soa ordenar este calendário temático.

Contudo e quanto aos filmes, mesmo entrelaçados no selo queer, é curioso encontrar uma voz antagónica a essa mesma categorização, e é dela que gostaria de partir. Odete, atriz , performista e personagem principal de “Sob Influência” de Ricardo Branco - e também participante do festival de “Entre a Luz e o Nada” de Joana de Sousa, e compositora musical de “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho -, brindou-nos com um questionário habitual, sempre pontuado pela produtora Promenade nas suas redes sociais. É um hábito na sua conta de Instagram: os atores e agentes artísticos desta casa são desafiados a enumerar cinco coisas que adoram e cinco coisas que odeiam, curiosamente, Odete assinala o termo “queer” na lista dos ódios. 

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Não entendendo bem o seu contexto, mas junto-me a ela, não em odiar [palavra demasiado forte], mas em questionar essa gravidade orbital trazida pelo uso da palavra queer. Mesmo conhecendo a “estética queer” no cinema - uma prolongação do camp com mais requinte visual - neste caso, oponho a categorização como um catálogo, um sectarismo que vai contra aquilo que as três curtas parecem/desejam manifestar – o romper de barreiras (leia-se géneros, sexualidades, códigos pré-socialmente estabelecidos).

Quanto às curtas propriamente ditas, os três elementos impostos no título da sessão são referências simbólicas, signos presentes em cada uma delas, ou por um lado, alegorias e personificações. Comecemos então com os “Ovnis”: “Entre a Luz e o Nada”, o lado intergaláctico de uma rave organizada em edifícios ao abandono, um filme sensorial que se apresenta como o segundo trabalho de Joana de Sousa, reconhecida no meio como ex-programadora do Festival Doclisboa (2015 - 2023). 

Dos três, é o mais convencional na dita estética queer, impondo uma brincadeira de luzes, purpurinas, constelações e música techno que se avançam em sonhos coletivos e em loop. Parte dessa brincadeira para se impor como uma mostra de uma fauna única deste mesmo universo, consolidado numa festa à moda daquilo que Portugal faz bem, seja em juventudes inquietas [“Verão Danado”], seja em territórios cavernícolas [“Ruby”], são convívios marginalizados, algo escapistas para com a uma realidade que os aterroriza, e os obriga a “banalizarem-se”. “Entre a Luz e o Nada”, o festim (quase) nu possui não só essa evasão de uma normalidade, como um culto de apelo a forças maiores que elas próprias, uma vinda extraterrestre quem sabe, que os liberta das suas amarras e a apresenta num único corpo, uma utopia [calma, já lá vamos!]. Joana de Sousa brinca aos misticismos como uma nova religião.

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Monstros”: não dos saídos do armário, mas daqueles cujas garras nos sacodem para forma dos nosso parâmetros, aqui, Odete, a tal protagonista contra o termo Queer, é emborcada de alucinógenos que a empurram para fora do seu terreno, da sua realidade, torna-se um corpo alheio, abananado, deambulando para lá onde for. “Sob Influência”, de Ricardo Branco (também assistente de realização de “Entre a Luz e o Nada”), faz a sua fuga pro vai desse estupefaciente e o coloca a mente e o corpo de Odete na demanda da sua alegoria, é um “objeto” perdido e simultaneamente encontrado no limiar da sua fronteira (convenhamos, há um elemento abstracto conformidade com a alusão de não-pertença, Odete não pertence a etiquetas, géneros, nem seja o que for, povoa na sua exclusividade como a sua plena característica). 

Branco brinca a outros géneros, o do cinema, com sugestões de um terror psicadélico e de criaturas escuras como breu, voyeuristas e famintas, tudo envolvido num exercício de “nem carne, nem peixe” mas com atributos estéticos e produtivos que colocam “Sob Influência” num quadrante de um sonho acordado, e drogado. 

Contemplamos então a “Utopia”: “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho, o dos três o mais conseguido esteticamente, mas o mais ambíguo na sua temática / abordagem. A história tem tanto de fantástico-erótico como onírico-febril, um encontro mesmerizante entre Tiago (João Duarte Costa) e uma “rapariga” de nome João, que reside numa isolada casa no meio da floresta. Existe um choque inicial que nos guia à parcialidade do cinema de João Pedro Rodrigues, dos travestis caçadores-de-gambuzinos em “Morrer como um Homem” (2009) ou das amazonas agressoras de observadores de aves em “Ornitólogo” (2016), mas é nesses cantos e recantos obscuros do feral e do silvestre que se esconde sexualidades a ser exploradas nos confins da empestada civicionalidade que termina essas comparações. 

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Odete em "Sob Influência" (Ricardo Branco, 2023)

João Pedro Rodrigues não é tão favorável às mulheres como Godinho encanta neste registo com sonho de diluir géneros, corpos e genitálias, e isso torna-se evidente na sequência de sexo erotizado e hipnótico em que a tal rapariga de nome João assume e encorpora três carnes, distribuídas em três géneros (João Abreu, Aurora Pinho e Mafalda Banquarte), quebrando os limites do seu erotismo direccionado, nesse termo relembra o “faz de conta” de Bertrand Mandico na sua fantasia surrealista “Les Garçons sauvages”, ao trocar os papeis dos géneros e com isto desafiando o sexualismo dessas imagens e desses corpos. 

Só que “Uma Rapariga Imaterial” termina exatamente nesse registo erotizado e prossegue com uma agenda escancarada de revolução, contrapondo os “eles” contra os “outros”, os normalizados, os males do mundo materializados. Aí, a confusão instala-se, invocando e desinvocando todos os temas e mais alguns, propagando uma ideia de utopia (a cena final resume-se a isso). Infelizmente, o resultado é o contrário: uma distopia, um confronto sem decretos e declarações convictas.

É uma pena que um filme que desbrava as ervas-daninhas da sexualidade através de uma montagem perfeccionista e encantatória (a cargo de Francisco Moreira, responsável pela montagem de “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos e “Alva” de Ico Costa) se deixe deslumbrar pela necessidade de transmitir uma mensagem imperativa, ou múltiplas mensagens, num ativismo algo tosco. A subtileza dos primeiros minutos era mais do que suficiente.

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Uma Rapariga Imaterial (André Godinho, 2023)

"Entre Muros": todos somos prisioneiros ...

Hugo Gomes, 07.05.24

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Prestigiando a proposta set de curtas-metragens portuguesas, eis o proto-ciclo “Entre Muros”, reunindo três das produções mais aclamadas do nosso panorama no ano passado, que em comum viabilizam cercas, sejam elas visíveis ou invisíveis, sociais ou emocionais, otimistas ou apocalípticas, propondo uma jornada que vai além da compreensão individual, explorando a sensação de estarmos "encurralados" tanto física quanto metaforicamente. De um lado da “barricada”, temos Basil da Cunha, novamente envolvido no seu já familiar biótopo; por outro, Inês Teixeira, num "coming-of-age" que estreou na última Semana da Crítica; e também Mónica Lima, vencedora do recente Prémio Curta de Melhor Realização, num Fim do Mundo aceite e conformado.

Entre Muros” chega como uma revitalização de um programa que coloca as curtas-metragens num espaço há muito negado a elas: o das salas de cinema comerciais.

 

2720 (Basil da Cunha, 2023)

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Não fugindo do seu universo, ou local, um bairro clandestino na Reboleira, Basil da Cunha faz desta curta um ensaio de espaço e de tempo, cometendo um ato de virtuosismo em que a câmara “persegue” duas narrativas perpendiculares, tudo num único dia. De um lado, uma pequena menina em busca do paradeiro do seu irmão e do outro, um jovem, atrasado no seu primeiro dia de trabalho, tentando remediar o atraso procurando uma boleia qualquer e a qualquer custo. Estas procuras incessantes fazem com a ameaça de um rusga policial que poderão comprometer os seus dias e as suas vontades.

Realizador voraz da nossa praça, em “2720” vincula uma variação de malapata condensado em discurso social, mas sempre filmado com honra às suas personagens, não-atores sobretudo e ao labiríntico que aquele biotipo havia manifestado no seu cinema. É um realizador estimável, este Basil da Cunha.

 

Corpos Cintilantes (Inês Teixeira, 2023)

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A pequena e atípica menina a quem a mãe apelidava de Girafa, e que partiu foragida por Lisboa com o seu brejeiro urso de pelúcia em busca de financiamento para o Discovery Channel, em "Tristeza e Alegria na Vida das Girafas" de Tiago Guedes, está crescida (!) e é através desse ponto que “Corpos Cintilantes” perpetua, um coming-to-age silencioso, discreto e mesmo assim sensível acima da sua timidez. Seguindo a sua personagem que aceita um convite de um colega para passar um fim-de-semana na sua estadia em Leiria, é movida pelo instinto e questionada pelo seu interior que a vai transformando, emancipando ou apenas preparando-a para o que futuro inevitavelmente ditará, antes de se libertar da sua couraça emocional, o seu “muro” que a interpela sempre que age. 

Dos três filmes apresentados nesta sessão coletiva, "Corpos Cintilantes" (obra de estreia de Inês Teixeira) é o que menos parece corresponder à sua duração, é paciente e misterioso (talvez confundido com o impasse característico da sua geração), sem nunca entregar de bandeja uma intriga com os atos narrativos definidos, ao invés comporta-se como um ensaio de impressões e contenções. O filme termina e questionamos quanto aos trajetos da personagem, faz-nos solicitar por mais, só que não o faz destacar do comum dos mortais em matéria de “coming-to-age”.

 

Natureza Humana (Monica Lima, 2023)

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Às portas de um eventual Fim do Mundo, uma possível pandemia ou um cataclismo qualquer quem sabe, um casal (Crista Alfaiate e João Vicente) luta para conformar a sua existência ao restante prazo de validade; no caso dela, a angústia a trama com uma frustrante desilusão ao seu rumo, e ele, o jardim, aquele pequeno paraíso nos encostados do seu prédio é um refúgio, um Éden fabricada para a sua Eva e a criança projetada. Lima consegue, acima do retrato derrotista, um ambiente de enclausura existencial, as personagens parecem interromper o seu luto pela perda do seu Mundo como tentam, mas perante as gargalhadas da menina que pede morangos no quintal e o convívio com um casal amigo que troçam do fado que as reveste, a tristeza não evade, manifesta-se como uma doença, e na solidão destas mesmas que tal apodera-se como uma doença venérea. Sexo, ou tentativa do mesmo, triste, passados assombrados, e infertalidades “esmagadoras”, só que o magnetismo pelo apocalipse os dita a viver como podem. 

Com uma apontada fotografia de Faraz Fesharaki (“What Do We See When We Look at the Sky?”), “A Natureza Humana” é um filme pensado, nascido e evocado à pandemia e ao seu consequente lockdown, pontuado na incerteza e no abstrato que aqueles dias confusos nos trouxeram. Um trauma coletivo aqui exposto enquanto horticultura.

Nós somos uma espécie com uma atração marada pelo abismo

Os Verdes Anos já foram ... excepto Isabel Ruth, ela fica entre nós

Hugo Gomes, 02.12.23

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

Lisboa, minha Lisboa, em tempos vi-me incrustado nas tuas ruas, enraizado nas respetivas calçadas, tal que nasceu em mim um desejo de não apartar-me de ti. Resistir a sair, mesmo quando forças antagonistas me empurram para longe dos teus braços, é o meu intento. Meu Ubbos, minha maravilha de Ulisses. No entanto, foi através do Cinema que me uni a ti. Os "nossos" cineastas, dispostos a encantar e a propagar as tuas virtudes, a cidade-destino para muitos vindos do “campo”, a nossa Las Vegas para alguns provincianos em busca de novas oportunidades, em direção à modernidade que lhes foi negada no berço. Vejo isso nas comédias da chamada "Idade de Ouro", em tempos, foi assim que me foi vendido, a mim e aos meus, através de um mito, tal como o mito da Expansão Marítima, onde auto-intitulamos de os "melhores" e cuja a desgraça caímos por descuido. Lendas forjadas e hoje debatidas perante uma objetiva que não se deixa envolver pelo saudosismo, mas não importa. Vasco Santana passeando no Jardim Zoológico, contando macacos ou diagnosticando problemas de fígado à girafa - "Chama-me doutor" - dizia ele ao seu acidental assistente para impressionar.

E o que dizer dos olhares estrangeiros? Que belos olhares trouxeram até nós! Desde Alain Tanner a Wim Wenders, sem esquecer o passeio fora do Teatro de S. Carlos de Christine Laurent. Fascínio ou turismo, era uma diversidade, uma Lisboa não única, mas multifacetada. E hoje, testemunhamos essa cidade em constante transformação, com mudanças atrás de mudanças: de Manuel Mozos a Jorge Cramez, de Teresa Villaverde a Pedro Cabeleira, e tão recentemente Telmo Churro pisando o solo sagrado em histórias e historietas, mas apesar de tudo, a capital alfacinha já havia escolhido o seu filme-estandarte - "Os Verdes Anos" de Paulo Rocha, e quem mais? Não irei prolongar a importância cinematográfica e histórica do filme de 1963. Não é o tempo nem o momento para me perder quanto ao seu impacto geral, e sim envolver-me nas suas paisagens. A Lisboa em ‘crescimento’, entre o campo baldio e agreste e o Areeiro que acenava ao asfalto.

O sapateiro da cave, com a sua janelinha apontada para o passeio, onde poucas vistas mereciam ser apreciadas através dela, a não ser Isabel Ruth. Ela, a menina e moça da cidade, que mais tarde, em cenas seguintes, encostada corpo a corpo com Rui Gomes, dançando ao som de "Os Verdes Anos", num travelling naturalmente decorrido pelo salão a direito. Sempre afirmei que era a dança mais bela, e terna, que a tela projetou, ou talvez seja a cobiça de integrar esse mesmo bailado, nessa época desvairada e desconcentrada, onde um senso inquieto nos fazia desafiar a falsa estabilidade de um regime. Mais algumas cenas depois, Rui Gomes descia a escadaria em direção ao Cais do Sodré, penetra numa casa de alterne, mas aí o lápis azul teve que funcionar, já era demais segundo as sensibilidades da época. "Os Verdes Anos" é isso, um filme imutável apesar de tratar de mutações e gerações instáveis. É através dele que deparamos com o coração de todo o cinema português, que despoletou ao longo de anos, mesmo para aqueles que repudiam o seu cinema em favor de fórmulas televisivas ou telenovelescas, isso nem sabemos ao certo. Toca-se Carlos Paredes, acordes reconhecíveis que se tornaram um hino citadino, apenas equivalente ao chamamento do amolador de facas, e eis a obra-prima portuguesa.

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

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Os Verdes Anos (1963)

Ou, não façam caso de todo este “textão”, o amor por este filme é imenso; apenas poucos ultrapassaram a mera fronteira do belo e alcançaram o íntimo, onde morar e onde sonhar. Talvez seja por esse amor que rejeitei "Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois", o suposto tributo de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata ao mesmo filme. Uma manifestação de amor vindo de outros sobre o meu amado, e para embarcar em tal declaração, é necessário aceitar essas carícias e beijos de mão. Infelizmente, o amor proclamado pela dupla levou-me a negá-lo, mesmo que os gestos sejam pré-concebidos e reconhecidos como uma "carta de paixões proclamadas" - filmar Lisboa de "Os Verdes Anos" plano a plano como se fosse um trajeto turístico e memorialista. A prática revela-se mais como umbiguismo da dupla do que supostamente um beijo encenado ao vento. Contudo, fiquemos com Isabel Ruth, em dois momentos cruciais: um pairando como um fantasma, negligenciando o seu próprio desaparecimento e renegando a sua redução a mero ícone, desejando com isso viver acima da sua própria imagem (fora Paulo Rocha, foram poucos aqueles que souberam captar a essência da atriz); e por último, despertando da passividade do filme, cantarolando para uma cidade aberta e vazia, uma pin-up tardia e colorida, a protagonista do seu próprio filme sem imposição dos realizadores. 

Mas estas duas aparições de Nossa Senhora fazem pelo registo in local de "Os Verdes Anos", aproveitando o confinamento para induzir a liberdade de filmar e movimentar-se na metrópole. Ao espectador, é oferecida uma viagem às suas recordações, constatando as alterações vincadas do cenário de Paulo Rocha, um contracampo, e sim, a projeção original. Só que a subversão do projeto leva-me a questionar as reais ambições dos autores perante a sua ideia de "Os Verdes Anos", entre as quais a estrutura aparentemente mimetizada, abalroada pela instintividade do ato de filmar, numa câmara por vezes trocista e individualista.

É a Lisboa de Rodrigues, aqui, em mar plantado, com a sua "fauna" (personagens que também poderiam integrar o seu rol fílmico) a pavonear nos bastidores de Rocha e mais alguns (o projeto não se limita a seguir os "lugares-comuns" do filme anterior, inventa-se... ou reinventa-se). O que indica é o uso do "tributo" como uma desculpa para impor a sua marca, o seu mundo que 'engole' o outro, separando o objeto do propósito inicialmente 'vendido', e recompensados como "brinde" de bolo-rei em forma de Isabel Ruth (não canso de mencionar a diva, e sempre será a nossa diva). Portanto, não consideramos uma homenagem ao clássico, mas sim uma via para uma Lisboa entre confinamentos, desertos artificiais, necessitadas de uma transformação político-social. Se fosse isso, teríamos um filme a elogiar; de outro modo, fomos enganados acriticamente.

Até amanhã, camaradas

Hugo Gomes, 29.10.23

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A morte saiu à rua num dia assim

Naquele lugar sem nome pra qualquer fim

Uma gota rubra sobre a calçada cai

E um rio de sangue dum peito aberto sai

“A Morte Saiu à Rua”, música de Zeca Afonso (dedicado a José Dias Coelho)

 

Com base na obra autobiográfica de Margarida Tengarrinha (1928 - 2023) - "Memórias de uma Falsificadora" - "Clandestina" parte da mórbida ideia de uma repetição histórica, em prática exagerada, mas em tese pensada como um "desejo ao vertigo", perante esse eventual retorno (vindo dos mais pessimistas dos pessimistas), quase como um exorcizar de espíritos oriundos de outras eras.

O filme é, então, a conjugação de duas realidades; a primeira, o texto de Tengarrinha, fantasmagoricamente citado e refletido como uma cápsula de um tempo não muito distante - a fase clandestina da autora enquanto falsificadora de documentos e na redação do jornal Avante, entre o período de 1955 a 1961, data fatídica do assassinato do seu companheiro, José Dias Coelho, pelas mãos da PIDE - e as imagens, reconstituídas numa contemporaneidade identificável. É pintar o moderno no passado, é construir uma ponte sobre as duas memórias, uma real, a outra abstratamente fabricada (há uma influência de “A Metamorfose dos Pássaros” nessa mesa de mistura imagética), de forma a gerar uma só realidade: a realidade da resistência. Portanto, a primeira longa-metragem de Maria Mire (“Parto sem Dor”) é essa continuidade do ativismo, tentando, com isso, e fracassadamente, equiparar-se ao relato de Tengarrinha. O ativismo de hoje, e felizmente, no nosso país, soa-nos como voluntariado, sem as consequências obtidas na luta em estados novos (ou antes, velhos).

"Clandestina" resulta desse exercício de escuta às histórias de coragem, bravura nas sombras, esse exército obscuro que não arredou pé perante a opressão, enquanto o visual, esse manufaturado, por mais interessante que possa ocasionalmente atingir, enfraquece com uma tendência atualizada de unir todos os "punhos erguidos" numa só luta. É uma visão politizada, essa, não correspondida às lutas travadas pela autora daqueles enredos. É um filme dotado de boas intenções, boas condições e bom material, mas demasiado ingénuo na sua posse; enquanto isso, há aquela elipse final ao som do grande Zeca Afonso, numa melodia que Tengarrinha nunca esquecera. 

"A Morte Saiu à Rua", e a clandestina exilou-se fora daquele jazigo em forma de país, levou o seu combate para outras extremidades, a partir daí a história tornou-se outra. 

 

O vento que dá nas canas do canavial

E a foice duma ceifeira de Portugal

E o som da bigorna como um clarim do céu

Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu

 

Maria Clara Escobar: "Acho que filmes como "Desterro" não serão produzidos nos próximos anos"

Hugo Gomes, 29.06.23

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Em janeiro de 2020, a poucas semanas do confinamento... sabíamos lá nós no que é que iríamos meter... antecipava-se mais um Festival de Roterdão. Esse ano contaríamos com uma presença, em parte, portuguesa - "Desterro" - obra da brasileira Maria Clara Escobar, a disrupção de um seio familiar e matrimonial, uma mulher em fuga e Trio de Odemira em baile.

A realizadora concordou em encontrar-se comigo para uma conversa sobre este seu trabalho e de certa maneira foi disso que tetamos restringir, mas as assombrações contemporâneas pairavam entre nós - do outro lado do Oceano Atlântico, Bolsonaro era o representante máximo do Brasil e Roberto Alvim, porta-voz da cultura, havia solicitado, em jeito Joseph Goebbels, uma aliança da arte com os valores defendidos pelo governo em atuação.

Passados três anos, resgato esse diálogo, essa incerteza vivida diversas vezes, relembrada pela existência de um filme eclético, pujante e autodestrutivo como "Desterro", hoje disponível na plataforma Netflix, ou em sessões especiais em mostra e cineclubes como é o caso do Alvalade Cineclube e o seu ciclo "Família é Família" [ver programação aqui].

Começo com esta pergunta trivial e meio informal, como se sente em ir a Roterdão com o seu filme?

As pessoas que trabalharam e tiveram comigo tanto tempo no projeto vão ser reconhecidas de alguma forma e vão também poder estar lá. Mais por eles e primeiro do que por mim. É importante esse tipo de reconhecimento porque, de alguma forma, combate um discurso que está sendo feito de que os filmes que estão sendo feitos nos últimos anos do Brasil são ruins ou não interessam a ninguém. Então, de alguma forma, é uma conquista política também lá estar. 

Mas buscando essa parte da conquista política e tendo agora os últimos envolvimentos acerca da nominação ao Oscar [“Democracia em Vertigem” de Petra Costa como Melhor Documentário], ao Brasil, também há de uma certa parte quase um esforço em vão, este reconhecimento mundial, mas em território nacional, pelas altas patentes, não é reconhecido e por isso completamente desprezado. Não há certo sentimento em vão?

Acredito que não, porque toda conquista é uma conquista. E de certa forma, isso responde. Não quer dizer que vá resolver a paralisia que estamos a viver atualmente no cinema, mas responde e mostra que estamos em diálogo com o mundo e com as coisas. Portanto, não é em vão. Existe algo muito valioso nisso, que é a minha única esperança, na verdade, em relação ao Brasil. As pessoas aprenderam a falar, aprenderam que podem falar, podem fazer coisas, podem fazer filmes, podem publicar coisas, podem escrever na internet. Isso é algo que acredito que não voltará atrás. Existe uma potência de resistência nisso. E, bem, isso nos liberta para ter confiança em falar sobre as coisas, não é mesmo? Poder falar sobre o nosso presidente, sobre a situação do Brasil e, claro, a Petra [Costa] ainda mais, no Oscar, que é também um lugar reconhecido por essa parte da população brasileira, que está muito ligada à humanidade dos Estados Unidos, à América do Norte, e assim por diante. Portanto, é um reconhecimento muito importante.

Voltando ao “Desterro”, gostaria que me falasse sobre a sua criação, da ideia ao argumento que escreveu em colaboração com a atriz Carla Kinzo [a protagonista]. 

Eu comecei a escrever este argumento quando ainda estava a concluir o meu documentário "Os Dias com Ele" (2012), que fiz com o meu pai. Acredito que em algum momento descobri que estava interessada em abordar algo irreparável, algo que também está presente no documentário, que fala sobre a tortura e a Ditadura Militar. Havia, por um lado, o desejo de abordar o comportamento de uma classe média brasileira que, naquela época, jamais imaginaria que iria desembocar na situação em que nos encontramos hoje. Era uma forma de se ausentar um pouco, de evitar conflitos e dizer "enquanto não falarmos sobre isso, enquanto não chegarmos a isso, isso não existe". Mas as coisas estão a acontecer, essa estrutura familiar está a repetir-se historicamente. 

Não é por acaso que quando chegamos à votação do impeachment da Dilma, todos votam em nome das suas próprias famílias. Esse era um ponto de partida, de certa forma, para refletir sobre o que isso significa. No final das contas, acredito que a resposta para mim é destruir a casa, destruir a ideia de casa. Foi assim que o vimos. Ao longo do processo, que durou cerca de oito anos, desde o início até agora, trabalhando em conjunto com a equipa, com a atriz, passamos três anos no quarto, foram sendo descobertas outras coisas.

Muito da sequência do autocarro foi construído em conjunto com as mulheres que surgiram na minha vida ao longo do processo, à medida que o mundo ia mudando e eu também ia mudando. Fui pensando com eles, sobretudo.

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Maria Clara Escobar no Festival de Roterdão

Ou seja, o filme representa um processo de mudança e criação. Talvez seja essa a sensação que ficou em mim ao assistir a "Desterro", a de ter presenciado dois filmes completamente opostos. De facto, existe uma clara fissura entre o protagonista no Brasil e a protagonista deixando o país. Gostaria de saber a sua opinião sobre a questão de deixar o Brasil. Apesar de ter mencionado que não possui as mesmas referências que existem no mundo atual, hoje em dia faz mais sentido abordar essa temática. Este filme adquiriu uma interpretação própria.

É difícil falar sobre isso porque não posso falar pelas outras pessoas, mas para mim sair do Brasil não é uma solução. É uma solução de sobrevivência individual para aquelas que pertencem a uma certa classe social. No entanto, cada pessoa tem a sua própria história. Para mim, na verdade, trata-se mais de uma questão de território, no sentido simbólico de deixar um determinado espaço, um certo território, e conseguir se transformar ou se reinventar em outro tempo, em trânsito, na verdade. A questão do trânsito é mais importante do que simplesmente sair do Brasil... É claro que estou falando a partir do Brasil, mas não acho que seja uma questão exclusivamente brasileira. É um reflexo da nossa sociedade familiar e patriarcal.

Até saindo do lado politizado, é um lado compreensivelmente existencial.

Sim, acho que é mais nesse caso. A ideia de atravessar uma fronteira, que no exemplo do filme, é física, e igualmente simbólica, o ato de não ter mais para onde voltar.

Até porque a personagem principal é completamente amarrada a certas questões morais, a própria ideia estabelecida de que uma mulher na sociedade deve restringir a casa, família, filhos, casamento, etc. O momento em que ela realmente se libertou foi naquele não-lugar, uma área de serviço que é uma mistura de bomba de gasolina ou discoteca. Gostaria que me falasse dessa determinada cena e na escolha da música [“Ana Maria” dos Trio de Odemira].

É genial a banda, porque tem uma coisa muito racional e ao mesmo tempo muito passional. O filme é brasileiro, é português e é argentino, por isso a música realça essa identidade portuguesa presente. Só em Portugal alguém consegue ser tão apaixonado e tranquilo ao mesmo tempo. A música transmite algo muito forte. Ele está em desespero, mas canta a rir. E no videoclipe é ainda melhor.

Mas acho que a escolha coincide com o filme porque vai dando pistas. Ela aborda toda a representação da mulher que já foi feita, ou que ainda é feita, em argumentos, em livros, em filmes. Como pensamos e enquadrámos uma mulher e tentamos colocar isso em questão. Então ela está lá no auge, tem um tipo a chamá-la... Enfim. A dizer tantas "coisas ruins" sobre uma mulher quando, de repente, não é essa imagem que vemos. Essa desconexão faz parte da natureza de "Desterro".

A música é praticamente solta para a sequência em si. É como se fundisse dois ferros de diferentes estruturas numa única peça. E é curioso, a própria protagonista em transe naquela cena.

Eu acredito que o filme em si é construído dessa forma. Sempre foi um desejo meu. Por exemplo, durante a edição com a Patrícia Saramago, eu costumava dizer: "Se está parecendo bom, vamos fazer o oposto". Não no sentido de ser bonito, agradável. Se o filme está parecendo confortável, acho que devemos tentar o contrário. Porque desde o início, o filme trata também de ir contra uma certa tradição do cinema de ser excessivamente realista e ter que fingir que você não está assistindo a um filme, para que as pessoas acreditem que elas vão sentir algo, entende? Elas precisam se distanciar e acreditar que aquilo é apenas um filme. 

Portanto, há sempre um desejo de construção em memória de que este filme existe, ele é um filme, e apesar de ser um filme, ou talvez por ser um filme, sentimos coisas e estamos imersos nessa ... Acho que isso está relacionado com o conflito das questões e aprofundá-las, e sentir mais, ter consciência das coisas. Então, havia esse desejo de desconforto presente durante a construção dos atores e atrizes, na estética, na edição posterior, e também nas músicas.

Outra questão a abordar, algo que está muito em voga, inclusive com a influência dos Oscars e do filme "Marriage Story", é a deterioração amorosa que leva ao divórcio. No seu caso, é uma separação, independentemente dos bens. No entanto, é curioso que as únicas cenas em que esse casal se comunica ocorrem durante o “café da manhã” [pequeno-almoço]. E mesmo assim, a comunicação é superficial, consistindo em conversas triviais e de certa forma desconectadas das emoções. Além disso, é interessante notar que nessas sequências a Maria Clara utiliza o falso raccord.

Tinha o desejo de repetição, mas também de desconexão. Na verdade, o segundo “café da manhã” é filmado através de um espelho, o que causa tanta confusão, porque constantemente há uma alteração de eixo. No entanto, acredito que há um forte desejo pelo novo. Para essa sensação de conexão, pensamos muito em como criar um sentimento de estar gradualmente desconectado, mas ao mesmo tempo não deixar claro a consequência do ato. Não é um problema, é mais uma questão de surpresa. Não ficamos pensando "Ah, olha, estão fazendo isso dessa forma". Sempre ficamos com uma certa sensação. 

Para mim, a gramática é o primeiro sistema, certo? A primeira organização sistemática. E as palavras são uma forma de conflito. Usar palavras, falar, sempre vai gerar algum tipo de conflito no sentido de que o outro nunca vai entender exatamente o que se está a dizer. E vai tentar responder a algo e, acho que o espírito vai permanecer nessa desarmonia, como diz a personagem. Então, de certa forma, eles não estão realmente ali. Eles não estão mais em relação.

E a palavra, talvez a partir desse ponto de vista, deixe de fazer sentido para eles dois, como se eles estivessem apenas repetindo coisas. Apenas ensinando que a paz é uma ilusão na vida deles.

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De certa forma, o casamento é uma encenação?

De certa forma, o casamento é uma representação. É verdade! Eles estão ali cumprindo os seus respectivos papéis. O filme também aborda isso. Quando a personagem do Júlio (Rômulo Braga) entra em cena, ele de certa forma repete um modus operandi, assim como ela repete um padrão de comportamento ao substituir apenas o ator dos meus papéis, sem questionar muito. Para mim, tudo é uma encenação de alguma forma. Mas é importante sempre manter um diálogo com o que se sente, com o que se é, com o seu mundo, com essa encenação que realizamos. Caso contrário, ela se torna apenas uma representação vazia, algo que ninguém mais deseja assistir ou que não faz mais sentido algum. Não traz transformação. É como encenar uma peça antiga.

No seu filme é nos incutindo um poema - “ O Útero é do Tamanho do Punho” de Angélica Freitas - que por sua vez tem uma “história” com os deputados da extrema-direita de um estado brasileiro, quer-nos contar essa história?

Este poema é um dos poemas mais... como posso dizer... impactantes que li nos últimos tempos. Acredito que há algo central no filme é tentar compreender o que é e como pode ser uma mulher em movimento. Estamos acostumados a "congelar". A pensar "esta mulher é assim, esta mulher é assim". As pessoas, de um modo geral, mas especialmente as mulheres, são historicamente obrigadas a serem julgadas e terem outras pessoas definindo o que são, escrevendo sobre elas, fazendo filmes sobre elas. Então, este livro aborda muito a impossibilidade dessa mulher. A mulher que se desvia um pouco do que é considerado puro, que é tida como suja, bêbada, má. Não há lugar para ela. 

E o poema é extremamente violento, mas ao mesmo tempo muito preciso, muito correto. E sim, essas coisas que acontecem, os filmes demoram a serem feitos e não têm qualquer relação com o governo, com este poema em particular, sequer. No Brasil, para ingressar numa universidade, é preciso fazer um “vestibular”, uma prova abrangendo todas as disciplinas em geral, depois são realizadas provas específicas.

E há leituras obrigatórias, livros que devem ser lidos para realizar essas mesmas provas. E um dos livros que é obrigatório é o dela. Acredito que seja em alguma área específica, como ciências humanas, literatura, letras, algo assim. E então o governo, julgo que seja do estado dela, que é do sul [Santa Catarina], tentou proibir, afirmou que era um absurdo a existência desse livro, que ofende a moral religiosa. E de facto, o livro pode ser ofensivo em algum sentido, mas isso só significa que a nossa sociedade mantém um vínculo muito patriarcal e machista. 

Eu senti assim, como se estivesse em diálogo com as pessoas certas, porque é sobre isso, é sobre desconstruir essa ideia da mulher confinada em casa, preparando a comida para o marido. Essa imagem está muito ligada ao catolicismo, ao conservadorismo religioso. E isso se estende também a outras religiões.

E o casamento é uma questão existencial, não é apenas uma prisão existencial, mas também uma limitação da própria possibilidade de subjetividade. Acho que se trata de como uma mulher se vê, como vê o seu horizonte, e como um homem se vê, que horizontes consegue vislumbrar. Como a subjetividade é mais restrita para as mulheres e como isso as afeta.

E quanto a novos projetos?

Estou de momento a trabalhar em dois filmes. Um é um documentário ficcionalizado. Não sei bem como descrever, mas estamos a trabalhar com uma amiga nossa que é empregada de limpeza, ou melhor, diarista, como ela se refere. Ela sempre teve o sonho de cantar. Então, decidi fazer um filme em que ela pudesse ser cantora e experimentar isso. No filme, ela se transforma numa cantora e gravamos um álbum com ela. Ainda está em processo, falta a montagem e dinheiro para finalizar. Também estou a escrever outro filme chamado "O teu silêncio não te protegerá". Mas está ainda numa fase inicial, é apenas um esboço.

Mas já tem título!?

Na verdade, é uma frase de uma feminista chamada Audre Lorde. Mas acho que, de certa forma, pelo título, já dá para perceber que o filme segue em frente no pensamento da mesma questão. Está relacionado com tudo o que falamos, sobre a palavra, sobre a política …

Ou seja, também será um filme politizado?

Sim. Com certeza.

O facto de também ter agora dois projetos em mente e este medo de não haver financiamento para filmes brasileiros …

Tal como o “Desterro”, serão co-produções.

Gostaria que me falasse sobre esse medo, e o resgate da coprodução assim dizendo, e o que é que poderíamos esperar pela sua ideia de cinema brasileiro do futuro. Acrescentar, acho que foi ontem que um dos representantes da cultura brasileira [Roberto Alvim] fez um discurso muito "goebbels" acerca do cinema …

Aí precisa de letras "Goebbels", ele cita o "Goebbels", é assustador. É complicado falar sobre o futuro, porque nós não sabemos. A verdade é essa. Neste momento, o cinema está paralisado. A ANCINE funciona com uma diretoria colegiada que precisa de pelo menos três diretores, e dois para que qualquer decisão seja tomada. Acho que mais ou menos há um ano, o Bolsonaro não nomeia ninguém para ser o segundo diretor. Então, nada pode ser decidido. Enquanto isso, cortes estão sendo feitos não só na cultura, mas também na educação e na saúde, o que é fundamental para a existência do país e também para a cultura, para que as pessoas possam viver. É um governo contra qualquer ideia de pensamento, que declarou uma guerra, suposta guerra, contra esse inimigo que é aquele que pensa. Eles acham que quem pensa é o que atrapalha. Então, neste momento, não dá para saber o que vai acontecer, quanto tempo esse governo vai durar, o que virá a seguir. Eu acho que provavelmente serão vários anos de incertezas que teremos à nossa frente. E as pessoas vão ter que buscar dinheiro à Europa novamente.

Existem uma série de fundos, alguns fundos que existiam e nos quais o Brasil era contemplado anteriormente, porque era um país pobre e ao longo do seu desenvolvimento económico foi excluído. Fundos que vão para a África, vão para a América Latina. Talvez ele volte a fazer parte desses fundos agora que sua economia está em queda. Não sei, vamos ter que reinventar de alguma forma. Não sei se os filmes vão ser feitos da mesma forma, acredito que será mais difícil fazer filmes. 

Acho que filmes como "Desterro" não serão produzidos nos próximos anos. Mas também não quero fazer um discurso derrotista. A indústria cinematográfica é uma classe privilegiada, assim. Então, também não acho que todas as pessoas vão parar de fazer filmes. Agora, o pior é para as pessoas jovens que estavam a começar. Mulheres negras fazendo filmes no Brasil, ampliando a visão do nosso país e promovendo reflexões. Essas provavelmente serão as primeiras a serem excluídas por falta de recursos, por falta de conexão com a Europa, por exemplo.

Dia do trabalhador!!

Hugo Gomes, 01.05.23

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La Sortie de l'usine Lumière à Lyon (Auguste Lumière & Louis Lumière, 1985)

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Modern Times (Charlie Chaplin, 1936)

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Tout va Bien ( Jean-Luc Godard & Jean-Pierre Gorin, 1972)

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La loi du marché / The Measure of a Man (Stéphane Brizé, 2015)

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Trabalhar Cansa (Juliana Rojas & Marco Dutra, 2011)

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La mano invisible / The Invisible Hand (David Macián, 2016)

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North Country (Niki Caro, 2005)

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Sorry We Missed You (Ken Loach, 2019)

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Stachka / Strike (Sergei Eisenstein, 1925)

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Ressources Humaines / Human Resources (Laurent Cantent, 1999)

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Labour of Love (Aditya Vikram Sengupta, 2014)

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A Fabrica do Nada (Pedro Pinho, 2017)

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Vida Activa (Susana Nobre, 2014)

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Hugo Gomes, 19.04.23

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Descolonização: palavra de muita celeuma, proporcional a revanchismo, ou a descortinamento a um mito constantemente perdurado, consistindo na ambiguidade histórica. Descobrimentos? Nada disso, substituiremos por expansão marítima, isto para não prosseguirmos no acréscimo vilipendiado do “colonial”. 

Assim, chegamos à devolução de artefactos museológicos aos seus países de origem (por vezes, negligenciando as fracas condições de preservação dos mesmos, ou até o desinteresse de muitas recém-formadas nações), à queda e destruição de estátuas homenageadas a vultos precisos desse referido processo ou na negação de qualquer embarque memorialista que não seja a sua antagonização. Falar de colonialismo, hoje em dia, é uma tarefa árdua e demarcadamente unilateral de forma a vincar e pregar a justiça um tanto negada. Contudo, descolonizar é também dialogar, retirando das sombras velhos traumas, basculho ocultado nos sótãos daquelas heranças não declaradas. É aquele ex-combatente, por exemplo, recusando confessar crimes ou experiências, apropriando como suas e apenas suas, crenças e cicatrizes, fantasmas aliás, dançantes na sua perturbada imaginação. A descolonização serviu como desculpa para esta abertura, a apuração de factos ao invés de consequências, mas os saudosismos mantidos em cativeiro, por vezes, falam por alto nas imediações das suas fragilidades. 

Carlos Conceição, angolano de raiz, comenta através desses mesmos fantasmas, e o faz por via do território do thriller, isso, se quisermos enjaular em géneros definidos e fechados, como manda a mais nefasta indústria, sem as honras da diluição. Eventualmente, é nessa feitoria narrativa, elaborando não apenas metáforas, e sim fábulas sobre as feridas esquecidas. A esteticidade supra de “Um Fio de Baba Escarlate, uma conversão do terror e do desejo erotizado, é superado pela noite tourneana, dos mortos-vivos pálidos e amaldiçoados por “causas perdidas”, meras manifestações de loucos delirantes da Fantasia Lusitana, pela guerra perduradora que une Atlântico e Índico, infamemente catalogado como “Ultramar” (palavra atualmente “proibida” devido, a isso mesmo, descolonização).

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Nesta demanda, segredos são incorporados em corpos jovens, meninos convertidos a soldados com ordem para matar em nome de um país longínquo. Eles mantêm a “paz”, diversas vezes ameaçadas por um "inimigo invisível" oriundo do outro lado da muralha, uma secreta muralha para lá do permitido, decretando o fim das suas divagações. São as crianças perdidas da Terra do Nunca, sendo que essa Terra’, é igualmente uma construção, uma fabricada alegoria que preserva a raiva, a dor e as ilusões. É o sinal do derrotismo, o projeto de um sonho não concretizado, caído no calor do 25 de Abril. Esta colaboração entre Conceição e o seu muso (João Arrais), “Nação Valente” revela-se numa cápsula temporal abanada e abalroada pela sede de desconstrução que estes novos tempos requerem. 

Com isso, nesta insuflação de masculinidade embrionária, é no desejo, palavra de ordem no cinema do realizador, que derruba cercos quase zoológicos e assume uma estância freudiana (a mãe ... sempre a figura maternal). Por outras palavras, este é cinema para irritar conservadores devidos ao impacto para com as memórias estabelecidas, porém, desvia-se do suposto panfletarismo, porque, enquadrando nos muitos propósitos cinematográficos, o insere numa narrativa e … convenha-se afirmar … com os seus ares shyamalanos, nem que seja na aposta do twist, na revelação em modos do “Como um Sonho Acordado” de Fausto, a contemplação da mentira (e que mentira!), que essa Nação, pátria amada, os egoistamente enclausurou . Soldados, vítimas dos devaneios de outros. 

A esta altura do campeonato, solicitar provas de valentia de Carlos Conceição não é mais um pedido aceitável, não há mais a provar, temos realizador (não só de agora). E se “Nação Valente” indignar alguém, então eis a vitória bélica para o nosso autor do desejo, porque o Cinema é também inquietar. Cinema confortável, este mundo anda cheio, e mais que isso, cansado.