Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os Verdes Anos já foram ... excepto Isabel Ruth, ela fica entre nós

Hugo Gomes, 02.12.23

1660061452052_0620x0413_0x18x1000x666_167926771881

Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

Lisboa, minha Lisboa, em tempos vi-me incrustado nas tuas ruas, enraizado nas respetivas calçadas, tal que nasceu em mim um desejo de não apartar-me de ti. Resistir a sair, mesmo quando forças antagonistas me empurram para longe dos teus braços, é o meu intento. Meu Ubbos, minha maravilha de Ulisses. No entanto, foi através do Cinema que me uni a ti. Os "nossos" cineastas, dispostos a encantar e a propagar as tuas virtudes, a cidade-destino para muitos vindos do “campo”, a nossa Las Vegas para alguns provincianos em busca de novas oportunidades, em direção à modernidade que lhes foi negada no berço. Vejo isso nas comédias da chamada "Idade de Ouro", em tempos, foi assim que me foi vendido, a mim e aos meus, através de um mito, tal como o mito da Expansão Marítima, onde auto-intitulamos de os "melhores" e cuja a desgraça caímos por descuido. Lendas forjadas e hoje debatidas perante uma objetiva que não se deixa envolver pelo saudosismo, mas não importa. Vasco Santana passeando no Jardim Zoológico, contando macacos ou diagnosticando problemas de fígado à girafa - "Chama-me doutor" - dizia ele ao seu acidental assistente para impressionar.

E o que dizer dos olhares estrangeiros? Que belos olhares trouxeram até nós! Desde Alain Tanner a Wim Wenders, sem esquecer o passeio fora do Teatro de S. Carlos de Christine Laurent. Fascínio ou turismo, era uma diversidade, uma Lisboa não única, mas multifacetada. E hoje, testemunhamos essa cidade em constante transformação, com mudanças atrás de mudanças: de Manuel Mozos a Jorge Cramez, de Teresa Villaverde a Pedro Cabeleira, e tão recentemente Telmo Churro pisando o solo sagrado em histórias e historietas, mas apesar de tudo, a capital alfacinha já havia escolhido o seu filme-estandarte - "Os Verdes Anos" de Paulo Rocha, e quem mais? Não irei prolongar a importância cinematográfica e histórica do filme de 1963. Não é o tempo nem o momento para me perder quanto ao seu impacto geral, e sim envolver-me nas suas paisagens. A Lisboa em ‘crescimento’, entre o campo baldio e agreste e o Areeiro que acenava ao asfalto.

O sapateiro da cave, com a sua janelinha apontada para o passeio, onde poucas vistas mereciam ser apreciadas através dela, a não ser Isabel Ruth. Ela, a menina e moça da cidade, que mais tarde, em cenas seguintes, encostada corpo a corpo com Rui Gomes, dançando ao som de "Os Verdes Anos", num travelling naturalmente decorrido pelo salão a direito. Sempre afirmei que era a dança mais bela, e terna, que a tela projetou, ou talvez seja a cobiça de integrar esse mesmo bailado, nessa época desvairada e desconcentrada, onde um senso inquieto nos fazia desafiar a falsa estabilidade de um regime. Mais algumas cenas depois, Rui Gomes descia a escadaria em direção ao Cais do Sodré, penetra numa casa de alterne, mas aí o lápis azul teve que funcionar, já era demais segundo as sensibilidades da época. "Os Verdes Anos" é isso, um filme imutável apesar de tratar de mutações e gerações instáveis. É através dele que deparamos com o coração de todo o cinema português, que despoletou ao longo de anos, mesmo para aqueles que repudiam o seu cinema em favor de fórmulas televisivas ou telenovelescas, isso nem sabemos ao certo. Toca-se Carlos Paredes, acordes reconhecíveis que se tornaram um hino citadino, apenas equivalente ao chamamento do amolador de facas, e eis a obra-prima portuguesa.

1722031.jpg

Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

Os-Verdes-Anos-1963-3.webp

Os Verdes Anos (1963)

Ou, não façam caso de todo este “textão”, o amor por este filme é imenso; apenas poucos ultrapassaram a mera fronteira do belo e alcançaram o íntimo, onde morar e onde sonhar. Talvez seja por esse amor que rejeitei "Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois", o suposto tributo de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata ao mesmo filme. Uma manifestação de amor vindo de outros sobre o meu amado, e para embarcar em tal declaração, é necessário aceitar essas carícias e beijos de mão. Infelizmente, o amor proclamado pela dupla levou-me a negá-lo, mesmo que os gestos sejam pré-concebidos e reconhecidos como uma "carta de paixões proclamadas" - filmar Lisboa de "Os Verdes Anos" plano a plano como se fosse um trajeto turístico e memorialista. A prática revela-se mais como umbiguismo da dupla do que supostamente um beijo encenado ao vento. Contudo, fiquemos com Isabel Ruth, em dois momentos cruciais: um pairando como um fantasma, negligenciando o seu próprio desaparecimento e renegando a sua redução a mero ícone, desejando com isso viver acima da sua própria imagem (fora Paulo Rocha, foram poucos aqueles que souberam captar a essência da atriz); e por último, despertando da passividade do filme, cantarolando para uma cidade aberta e vazia, uma pin-up tardia e colorida, a protagonista do seu próprio filme sem imposição dos realizadores. 

Mas estas duas aparições de Nossa Senhora fazem pelo registo in local de "Os Verdes Anos", aproveitando o confinamento para induzir a liberdade de filmar e movimentar-se na metrópole. Ao espectador, é oferecida uma viagem às suas recordações, constatando as alterações vincadas do cenário de Paulo Rocha, um contracampo, e sim, a projeção original. Só que a subversão do projeto leva-me a questionar as reais ambições dos autores perante a sua ideia de "Os Verdes Anos", entre as quais a estrutura aparentemente mimetizada, abalroada pela instintividade do ato de filmar, numa câmara por vezes trocista e individualista.

É a Lisboa de Rodrigues, aqui, em mar plantado, com a sua "fauna" (personagens que também poderiam integrar o seu rol fílmico) a pavonear nos bastidores de Rocha e mais alguns (o projeto não se limita a seguir os "lugares-comuns" do filme anterior, inventa-se... ou reinventa-se). O que indica é o uso do "tributo" como uma desculpa para impor a sua marca, o seu mundo que 'engole' o outro, separando o objeto do propósito inicialmente 'vendido', e recompensados como "brinde" de bolo-rei em forma de Isabel Ruth (não canso de mencionar a diva, e sempre será a nossa diva). Portanto, não consideramos uma homenagem ao clássico, mas sim uma via para uma Lisboa entre confinamentos, desertos artificiais, necessitadas de uma transformação político-social. Se fosse isso, teríamos um filme a elogiar; de outro modo, fomos enganados acriticamente.

Até amanhã, camaradas

Hugo Gomes, 29.10.23

CLANDESTINA_3.jpg

A morte saiu à rua num dia assim

Naquele lugar sem nome pra qualquer fim

Uma gota rubra sobre a calçada cai

E um rio de sangue dum peito aberto sai

“A Morte Saiu à Rua”, música de Zeca Afonso (dedicado a José Dias Coelho)

 

Com base na obra autobiográfica de Margarida Tengarrinha (1928 - 2023) - "Memórias de uma Falsificadora" - "Clandestina" parte da mórbida ideia de uma repetição histórica, em prática exagerada, mas em tese pensada como um "desejo ao vertigo", perante esse eventual retorno (vindo dos mais pessimistas dos pessimistas), quase como um exorcizar de espíritos oriundos de outras eras.

O filme é, então, a conjugação de duas realidades; a primeira, o texto de Tengarrinha, fantasmagoricamente citado e refletido como uma cápsula de um tempo não muito distante - a fase clandestina da autora enquanto falsificadora de documentos e na redação do jornal Avante, entre o período de 1955 a 1961, data fatídica do assassinato do seu companheiro, José Dias Coelho, pelas mãos da PIDE - e as imagens, reconstituídas numa contemporaneidade identificável. É pintar o moderno no passado, é construir uma ponte sobre as duas memórias, uma real, a outra abstratamente fabricada (há uma influência de “A Metamorfose dos Pássaros” nessa mesa de mistura imagética), de forma a gerar uma só realidade: a realidade da resistência. Portanto, a primeira longa-metragem de Maria Mire (“Parto sem Dor”) é essa continuidade do ativismo, tentando, com isso, e fracassadamente, equiparar-se ao relato de Tengarrinha. O ativismo de hoje, e felizmente, no nosso país, soa-nos como voluntariado, sem as consequências obtidas na luta em estados novos (ou antes, velhos).

"Clandestina" resulta desse exercício de escuta às histórias de coragem, bravura nas sombras, esse exército obscuro que não arredou pé perante a opressão, enquanto o visual, esse manufaturado, por mais interessante que possa ocasionalmente atingir, enfraquece com uma tendência atualizada de unir todos os "punhos erguidos" numa só luta. É uma visão politizada, essa, não correspondida às lutas travadas pela autora daqueles enredos. É um filme dotado de boas intenções, boas condições e bom material, mas demasiado ingénuo na sua posse; enquanto isso, há aquela elipse final ao som do grande Zeca Afonso, numa melodia que Tengarrinha nunca esquecera. 

"A Morte Saiu à Rua", e a clandestina exilou-se fora daquele jazigo em forma de país, levou o seu combate para outras extremidades, a partir daí a história tornou-se outra. 

 

O vento que dá nas canas do canavial

E a foice duma ceifeira de Portugal

E o som da bigorna como um clarim do céu

Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu

 

Maria Clara Escobar: "Acho que filmes como "Desterro" não serão produzidos nos próximos anos"

Hugo Gomes, 29.06.23

desterro5.jpg

Em janeiro de 2020, a poucas semanas do confinamento... sabíamos lá nós no que é que iríamos meter... antecipava-se mais um Festival de Roterdão. Esse ano contaríamos com uma presença, em parte, portuguesa - "Desterro" - obra da brasileira Maria Clara Escobar, a disrupção de um seio familiar e matrimonial, uma mulher em fuga e Trio de Odemira em baile.

A realizadora concordou em encontrar-se comigo para uma conversa sobre este seu trabalho e de certa maneira foi disso que tetamos restringir, mas as assombrações contemporâneas pairavam entre nós - do outro lado do Oceano Atlântico, Bolsonaro era o representante máximo do Brasil e Roberto Alvim, porta-voz da cultura, havia solicitado, em jeito Joseph Goebbels, uma aliança da arte com os valores defendidos pelo governo em atuação.

Passados três anos, resgato esse diálogo, essa incerteza vivida diversas vezes, relembrada pela existência de um filme eclético, pujante e autodestrutivo como "Desterro", hoje disponível na plataforma Netflix, ou em sessões especiais em mostra e cineclubes como é o caso do Alvalade Cineclube e o seu ciclo "Família é Família" [ver programação aqui].

Começo com esta pergunta trivial e meio informal, como se sente em ir a Roterdão com o seu filme?

As pessoas que trabalharam e tiveram comigo tanto tempo no projeto vão ser reconhecidas de alguma forma e vão também poder estar lá. Mais por eles e primeiro do que por mim. É importante esse tipo de reconhecimento porque, de alguma forma, combate um discurso que está sendo feito de que os filmes que estão sendo feitos nos últimos anos do Brasil são ruins ou não interessam a ninguém. Então, de alguma forma, é uma conquista política também lá estar. 

Mas buscando essa parte da conquista política e tendo agora os últimos envolvimentos acerca da nominação ao Oscar [“Democracia em Vertigem” de Petra Costa como Melhor Documentário], ao Brasil, também há de uma certa parte quase um esforço em vão, este reconhecimento mundial, mas em território nacional, pelas altas patentes, não é reconhecido e por isso completamente desprezado. Não há certo sentimento em vão?

Acredito que não, porque toda conquista é uma conquista. E de certa forma, isso responde. Não quer dizer que vá resolver a paralisia que estamos a viver atualmente no cinema, mas responde e mostra que estamos em diálogo com o mundo e com as coisas. Portanto, não é em vão. Existe algo muito valioso nisso, que é a minha única esperança, na verdade, em relação ao Brasil. As pessoas aprenderam a falar, aprenderam que podem falar, podem fazer coisas, podem fazer filmes, podem publicar coisas, podem escrever na internet. Isso é algo que acredito que não voltará atrás. Existe uma potência de resistência nisso. E, bem, isso nos liberta para ter confiança em falar sobre as coisas, não é mesmo? Poder falar sobre o nosso presidente, sobre a situação do Brasil e, claro, a Petra [Costa] ainda mais, no Oscar, que é também um lugar reconhecido por essa parte da população brasileira, que está muito ligada à humanidade dos Estados Unidos, à América do Norte, e assim por diante. Portanto, é um reconhecimento muito importante.

Voltando ao “Desterro”, gostaria que me falasse sobre a sua criação, da ideia ao argumento que escreveu em colaboração com a atriz Carla Kinzo [a protagonista]. 

Eu comecei a escrever este argumento quando ainda estava a concluir o meu documentário "Os Dias com Ele" (2012), que fiz com o meu pai. Acredito que em algum momento descobri que estava interessada em abordar algo irreparável, algo que também está presente no documentário, que fala sobre a tortura e a Ditadura Militar. Havia, por um lado, o desejo de abordar o comportamento de uma classe média brasileira que, naquela época, jamais imaginaria que iria desembocar na situação em que nos encontramos hoje. Era uma forma de se ausentar um pouco, de evitar conflitos e dizer "enquanto não falarmos sobre isso, enquanto não chegarmos a isso, isso não existe". Mas as coisas estão a acontecer, essa estrutura familiar está a repetir-se historicamente. 

Não é por acaso que quando chegamos à votação do impeachment da Dilma, todos votam em nome das suas próprias famílias. Esse era um ponto de partida, de certa forma, para refletir sobre o que isso significa. No final das contas, acredito que a resposta para mim é destruir a casa, destruir a ideia de casa. Foi assim que o vimos. Ao longo do processo, que durou cerca de oito anos, desde o início até agora, trabalhando em conjunto com a equipa, com a atriz, passamos três anos no quarto, foram sendo descobertas outras coisas.

Muito da sequência do autocarro foi construído em conjunto com as mulheres que surgiram na minha vida ao longo do processo, à medida que o mundo ia mudando e eu também ia mudando. Fui pensando com eles, sobretudo.

Maria_livro.webp

Maria Clara Escobar no Festival de Roterdão

Ou seja, o filme representa um processo de mudança e criação. Talvez seja essa a sensação que ficou em mim ao assistir a "Desterro", a de ter presenciado dois filmes completamente opostos. De facto, existe uma clara fissura entre o protagonista no Brasil e a protagonista deixando o país. Gostaria de saber a sua opinião sobre a questão de deixar o Brasil. Apesar de ter mencionado que não possui as mesmas referências que existem no mundo atual, hoje em dia faz mais sentido abordar essa temática. Este filme adquiriu uma interpretação própria.

É difícil falar sobre isso porque não posso falar pelas outras pessoas, mas para mim sair do Brasil não é uma solução. É uma solução de sobrevivência individual para aquelas que pertencem a uma certa classe social. No entanto, cada pessoa tem a sua própria história. Para mim, na verdade, trata-se mais de uma questão de território, no sentido simbólico de deixar um determinado espaço, um certo território, e conseguir se transformar ou se reinventar em outro tempo, em trânsito, na verdade. A questão do trânsito é mais importante do que simplesmente sair do Brasil... É claro que estou falando a partir do Brasil, mas não acho que seja uma questão exclusivamente brasileira. É um reflexo da nossa sociedade familiar e patriarcal.

Até saindo do lado politizado, é um lado compreensivelmente existencial.

Sim, acho que é mais nesse caso. A ideia de atravessar uma fronteira, que no exemplo do filme, é física, e igualmente simbólica, o ato de não ter mais para onde voltar.

Até porque a personagem principal é completamente amarrada a certas questões morais, a própria ideia estabelecida de que uma mulher na sociedade deve restringir a casa, família, filhos, casamento, etc. O momento em que ela realmente se libertou foi naquele não-lugar, uma área de serviço que é uma mistura de bomba de gasolina ou discoteca. Gostaria que me falasse dessa determinada cena e na escolha da música [“Ana Maria” dos Trio de Odemira].

É genial a banda, porque tem uma coisa muito racional e ao mesmo tempo muito passional. O filme é brasileiro, é português e é argentino, por isso a música realça essa identidade portuguesa presente. Só em Portugal alguém consegue ser tão apaixonado e tranquilo ao mesmo tempo. A música transmite algo muito forte. Ele está em desespero, mas canta a rir. E no videoclipe é ainda melhor.

Mas acho que a escolha coincide com o filme porque vai dando pistas. Ela aborda toda a representação da mulher que já foi feita, ou que ainda é feita, em argumentos, em livros, em filmes. Como pensamos e enquadrámos uma mulher e tentamos colocar isso em questão. Então ela está lá no auge, tem um tipo a chamá-la... Enfim. A dizer tantas "coisas ruins" sobre uma mulher quando, de repente, não é essa imagem que vemos. Essa desconexão faz parte da natureza de "Desterro".

A música é praticamente solta para a sequência em si. É como se fundisse dois ferros de diferentes estruturas numa única peça. E é curioso, a própria protagonista em transe naquela cena.

Eu acredito que o filme em si é construído dessa forma. Sempre foi um desejo meu. Por exemplo, durante a edição com a Patrícia Saramago, eu costumava dizer: "Se está parecendo bom, vamos fazer o oposto". Não no sentido de ser bonito, agradável. Se o filme está parecendo confortável, acho que devemos tentar o contrário. Porque desde o início, o filme trata também de ir contra uma certa tradição do cinema de ser excessivamente realista e ter que fingir que você não está assistindo a um filme, para que as pessoas acreditem que elas vão sentir algo, entende? Elas precisam se distanciar e acreditar que aquilo é apenas um filme. 

Portanto, há sempre um desejo de construção em memória de que este filme existe, ele é um filme, e apesar de ser um filme, ou talvez por ser um filme, sentimos coisas e estamos imersos nessa ... Acho que isso está relacionado com o conflito das questões e aprofundá-las, e sentir mais, ter consciência das coisas. Então, havia esse desejo de desconforto presente durante a construção dos atores e atrizes, na estética, na edição posterior, e também nas músicas.

Outra questão a abordar, algo que está muito em voga, inclusive com a influência dos Oscars e do filme "Marriage Story", é a deterioração amorosa que leva ao divórcio. No seu caso, é uma separação, independentemente dos bens. No entanto, é curioso que as únicas cenas em que esse casal se comunica ocorrem durante o “café da manhã” [pequeno-almoço]. E mesmo assim, a comunicação é superficial, consistindo em conversas triviais e de certa forma desconectadas das emoções. Além disso, é interessante notar que nessas sequências a Maria Clara utiliza o falso raccord.

Tinha o desejo de repetição, mas também de desconexão. Na verdade, o segundo “café da manhã” é filmado através de um espelho, o que causa tanta confusão, porque constantemente há uma alteração de eixo. No entanto, acredito que há um forte desejo pelo novo. Para essa sensação de conexão, pensamos muito em como criar um sentimento de estar gradualmente desconectado, mas ao mesmo tempo não deixar claro a consequência do ato. Não é um problema, é mais uma questão de surpresa. Não ficamos pensando "Ah, olha, estão fazendo isso dessa forma". Sempre ficamos com uma certa sensação. 

Para mim, a gramática é o primeiro sistema, certo? A primeira organização sistemática. E as palavras são uma forma de conflito. Usar palavras, falar, sempre vai gerar algum tipo de conflito no sentido de que o outro nunca vai entender exatamente o que se está a dizer. E vai tentar responder a algo e, acho que o espírito vai permanecer nessa desarmonia, como diz a personagem. Então, de certa forma, eles não estão realmente ali. Eles não estão mais em relação.

E a palavra, talvez a partir desse ponto de vista, deixe de fazer sentido para eles dois, como se eles estivessem apenas repetindo coisas. Apenas ensinando que a paz é uma ilusão na vida deles.

1-2.webp

De certa forma, o casamento é uma encenação?

De certa forma, o casamento é uma representação. É verdade! Eles estão ali cumprindo os seus respectivos papéis. O filme também aborda isso. Quando a personagem do Júlio (Rômulo Braga) entra em cena, ele de certa forma repete um modus operandi, assim como ela repete um padrão de comportamento ao substituir apenas o ator dos meus papéis, sem questionar muito. Para mim, tudo é uma encenação de alguma forma. Mas é importante sempre manter um diálogo com o que se sente, com o que se é, com o seu mundo, com essa encenação que realizamos. Caso contrário, ela se torna apenas uma representação vazia, algo que ninguém mais deseja assistir ou que não faz mais sentido algum. Não traz transformação. É como encenar uma peça antiga.

No seu filme é nos incutindo um poema - “ O Útero é do Tamanho do Punho” de Angélica Freitas - que por sua vez tem uma “história” com os deputados da extrema-direita de um estado brasileiro, quer-nos contar essa história?

Este poema é um dos poemas mais... como posso dizer... impactantes que li nos últimos tempos. Acredito que há algo central no filme é tentar compreender o que é e como pode ser uma mulher em movimento. Estamos acostumados a "congelar". A pensar "esta mulher é assim, esta mulher é assim". As pessoas, de um modo geral, mas especialmente as mulheres, são historicamente obrigadas a serem julgadas e terem outras pessoas definindo o que são, escrevendo sobre elas, fazendo filmes sobre elas. Então, este livro aborda muito a impossibilidade dessa mulher. A mulher que se desvia um pouco do que é considerado puro, que é tida como suja, bêbada, má. Não há lugar para ela. 

E o poema é extremamente violento, mas ao mesmo tempo muito preciso, muito correto. E sim, essas coisas que acontecem, os filmes demoram a serem feitos e não têm qualquer relação com o governo, com este poema em particular, sequer. No Brasil, para ingressar numa universidade, é preciso fazer um “vestibular”, uma prova abrangendo todas as disciplinas em geral, depois são realizadas provas específicas.

E há leituras obrigatórias, livros que devem ser lidos para realizar essas mesmas provas. E um dos livros que é obrigatório é o dela. Acredito que seja em alguma área específica, como ciências humanas, literatura, letras, algo assim. E então o governo, julgo que seja do estado dela, que é do sul [Santa Catarina], tentou proibir, afirmou que era um absurdo a existência desse livro, que ofende a moral religiosa. E de facto, o livro pode ser ofensivo em algum sentido, mas isso só significa que a nossa sociedade mantém um vínculo muito patriarcal e machista. 

Eu senti assim, como se estivesse em diálogo com as pessoas certas, porque é sobre isso, é sobre desconstruir essa ideia da mulher confinada em casa, preparando a comida para o marido. Essa imagem está muito ligada ao catolicismo, ao conservadorismo religioso. E isso se estende também a outras religiões.

E o casamento é uma questão existencial, não é apenas uma prisão existencial, mas também uma limitação da própria possibilidade de subjetividade. Acho que se trata de como uma mulher se vê, como vê o seu horizonte, e como um homem se vê, que horizontes consegue vislumbrar. Como a subjetividade é mais restrita para as mulheres e como isso as afeta.

E quanto a novos projetos?

Estou de momento a trabalhar em dois filmes. Um é um documentário ficcionalizado. Não sei bem como descrever, mas estamos a trabalhar com uma amiga nossa que é empregada de limpeza, ou melhor, diarista, como ela se refere. Ela sempre teve o sonho de cantar. Então, decidi fazer um filme em que ela pudesse ser cantora e experimentar isso. No filme, ela se transforma numa cantora e gravamos um álbum com ela. Ainda está em processo, falta a montagem e dinheiro para finalizar. Também estou a escrever outro filme chamado "O teu silêncio não te protegerá". Mas está ainda numa fase inicial, é apenas um esboço.

Mas já tem título!?

Na verdade, é uma frase de uma feminista chamada Audre Lorde. Mas acho que, de certa forma, pelo título, já dá para perceber que o filme segue em frente no pensamento da mesma questão. Está relacionado com tudo o que falamos, sobre a palavra, sobre a política …

Ou seja, também será um filme politizado?

Sim. Com certeza.

O facto de também ter agora dois projetos em mente e este medo de não haver financiamento para filmes brasileiros …

Tal como o “Desterro”, serão co-produções.

Gostaria que me falasse sobre esse medo, e o resgate da coprodução assim dizendo, e o que é que poderíamos esperar pela sua ideia de cinema brasileiro do futuro. Acrescentar, acho que foi ontem que um dos representantes da cultura brasileira [Roberto Alvim] fez um discurso muito "goebbels" acerca do cinema …

Aí precisa de letras "Goebbels", ele cita o "Goebbels", é assustador. É complicado falar sobre o futuro, porque nós não sabemos. A verdade é essa. Neste momento, o cinema está paralisado. A ANCINE funciona com uma diretoria colegiada que precisa de pelo menos três diretores, e dois para que qualquer decisão seja tomada. Acho que mais ou menos há um ano, o Bolsonaro não nomeia ninguém para ser o segundo diretor. Então, nada pode ser decidido. Enquanto isso, cortes estão sendo feitos não só na cultura, mas também na educação e na saúde, o que é fundamental para a existência do país e também para a cultura, para que as pessoas possam viver. É um governo contra qualquer ideia de pensamento, que declarou uma guerra, suposta guerra, contra esse inimigo que é aquele que pensa. Eles acham que quem pensa é o que atrapalha. Então, neste momento, não dá para saber o que vai acontecer, quanto tempo esse governo vai durar, o que virá a seguir. Eu acho que provavelmente serão vários anos de incertezas que teremos à nossa frente. E as pessoas vão ter que buscar dinheiro à Europa novamente.

Existem uma série de fundos, alguns fundos que existiam e nos quais o Brasil era contemplado anteriormente, porque era um país pobre e ao longo do seu desenvolvimento económico foi excluído. Fundos que vão para a África, vão para a América Latina. Talvez ele volte a fazer parte desses fundos agora que sua economia está em queda. Não sei, vamos ter que reinventar de alguma forma. Não sei se os filmes vão ser feitos da mesma forma, acredito que será mais difícil fazer filmes. 

Acho que filmes como "Desterro" não serão produzidos nos próximos anos. Mas também não quero fazer um discurso derrotista. A indústria cinematográfica é uma classe privilegiada, assim. Então, também não acho que todas as pessoas vão parar de fazer filmes. Agora, o pior é para as pessoas jovens que estavam a começar. Mulheres negras fazendo filmes no Brasil, ampliando a visão do nosso país e promovendo reflexões. Essas provavelmente serão as primeiras a serem excluídas por falta de recursos, por falta de conexão com a Europa, por exemplo.

Dia do trabalhador!!

Hugo Gomes, 01.05.23

PikJWvblmySeD8Hq3ITayWDQ68.jpg

La Sortie de l'usine Lumière à Lyon (Auguste Lumière & Louis Lumière, 1985)

327168964_556268056437049_6974013853936435890_n.jp

Modern Times (Charlie Chaplin, 1936)

341985345_2515860045245056_4517444373285375415_n.j

Tout va Bien ( Jean-Luc Godard & Jean-Pierre Gorin, 1972)

341994002_203673702454321_4759042424493951812_n.jp

La loi du marché / The Measure of a Man (Stéphane Brizé, 2015)

342002720_610230314486791_4121219705945080512_n.jp

Trabalhar Cansa (Juliana Rojas & Marco Dutra, 2011)

342073543_6124354547656781_8557917725949911337_n.j
La mano invisible / The Invisible Hand (David Macián, 2016)

343986421_182623844692763_8414637122502161715_n.jp

North Country (Niki Caro, 2005)

344199087_1285766175697365_1155831829483810314_n.j

Sorry We Missed You (Ken Loach, 2019)

344584282_1103396097717796_4681421223623293649_n.j

Stachka / Strike (Sergei Eisenstein, 1925)

344607790_596090582465644_913050294867957134_n.jpg

Ressources Humaines / Human Resources (Laurent Cantent, 1999)

labouroflove3.jpg

Labour of Love (Aditya Vikram Sengupta, 2014)

MV5BOTU0ZjkyMDUtMDYzOC00NjQ0LTg3ZGQtYmZmZDdiM2JhND

A Fabrica do Nada (Pedro Pinho, 2017)

vida-activa.webp

Vida Activa (Susana Nobre, 2014)

Des-co-lo-ni-zar

Hugo Gomes, 19.04.23

12966.jpg

Descolonização: palavra de muita celeuma, proporcional a revanchismo, ou a descortinamento a um mito constantemente perdurado, consistindo na ambiguidade histórica. Descobrimentos? Nada disso, substituiremos por expansão marítima, isto para não prosseguirmos no acréscimo vilipendiado do “colonial”. 

Assim, chegamos à devolução de artefactos museológicos aos seus países de origem (por vezes, negligenciando as fracas condições de preservação dos mesmos, ou até o desinteressante de muitos recém-formadas nações), à queda e destruição de estátuas homenageadas a vultos precisos desse referido processo ou na negação de qualquer embarque memorialista que não seja a sua antagonização. Falar de colonialismo, hoje em dia, é uma tarefa árdua e demarcadamente unilateral de forma a vincar e pregar a justiça um tanto negada. Contudo, descolonizar é também dialogar, retirando das sombras velhos traumas, basculho ocultado nos sótãos daquelas heranças não declaradas. É aquele ex-combatente, por exemplo, recusando confessar crimes ou experiências, apropriando como suas e apenas suas, crenças e cicatrizes, fantasmas aliás, dançantes na sua perturbada imaginação. A descolonização serviu como desculpa para esta abertura, a apuração de factos ao invés de consequências, mas os saudosismos mantidos em cativeiro, por vezes, falam por alto nas imediações das suas fragilidades. 

Carlos Conceição, angolano de raiz, comenta através desses mesmos fantasmas, e o faz por via do território do thriller, isso, se quisermos enjaular em géneros definidos e fechados, como manda a mais nefasta indústria, sem as honras da diluição. Eventualmente, é nessa feitoria narrativa, elaborando não apenas metáforas, e sim fábulas sobre as feridas esquecidas. A esteticidade supra de “Um Fio de Baba Escarlate, uma conversão do terror e do desejo erotizado, é superado pela noite tourneana, dos mortos-vivos pálidos e amaldiçoados por “causas perdidas”, meras manifestações de loucos delirantes da Fantasia Lusitana, pela guerra perduradora que une Atlântico e Índico, infamemente catalogado como “Ultramar” (palavra atualmente “proibida” devido, a isso mesmo, descolonização).

ba5bd3ed09fbd504f247bc32fab90a54.jpg

Nesta demanda, segredos são incorporados em corpos jovens, meninos convertidos a soldados com ordem para matar em nome de um país longínquo. Eles mantêm a “paz”, diversas vezes ameaçadas por um "inimigo invisível" oriundo do outro lado da muralha, uma secreta muralha para lá do permitido, decretando o fim das suas divagações. São as crianças perdidas da Terra do Nunca, sendo que essa Terra’, é igualmente uma construção, uma fabricada alegoria que preserva a raiva, a dor e as ilusões. É o sinal do derrotismo, o projeto de um sonho não concretizado, caído no calor do 25 de Abril. Esta colaboração entre Conceição e o seu muso (João Arrais), “Nação Valente” revela-se numa cápsula temporal abanada e abalroada pela sede de desconstrução que estes novos tempos requerem. 

Com isso, nesta insuflação de masculinidade embrionária, é no desejo, palavra de ordem no cinema do realizador, que derruba cercos quase zoológicos e assume uma estância freudiana (a mãe ... sempre a figura maternal). Por outras palavras, este é cinema para irritar conservadores devidos ao impacto para com as memórias estabelecidas, porém, desvia-se do suposto panfletarismo, porque, enquadrando nos muitos propósitos cinematográficos, o insere numa narrativa e … convenha-se afirmar … com os seus ares shyamalanos, nem que seja na aposta do twist, na revelação em modos do “Como um Sonho Acordado” de Fausto, a contemplação da mentira (e que mentira!), que essa Nação, pátria amada, os egoistamente enclausurou . Soldados, vítimas dos devaneios de outros. 

A esta altura do campeonato, solicitar provas de valentia de Carlos Conceição não é mais um pedido aceitável, não há mais a provar, temos realizador (não só de agora). E se “Nação Valente” indignar alguém, então eis a vitória bélica para o nosso autor do desejo, porque o Cinema é também inquietar. Cinema confortável, este mundo anda cheio, e mais que isso, cansado.

E tudo começou na Rua da Cidade de Rabat ...

Hugo Gomes, 22.02.23

bpstudgdprdx3yhmxvyhskmy5i2.jpg

O cinema como confessionário, ou antes divã. Papel branco em jeito diarístico, tela como o mais fiel companheiro, a plataforma de partilha de sentimentos, pensamentos e anotações. Gesto, esse, que se tem sido sugerido como um caminho a percorrer a novas vozes ou a estágios de introspecção, e no panorama nacional, vemos uma normalização desse mesmo estado de “abertura” enquanto matéria fílmica. Para muitos uma tendência de tratar o cinema por “tu” e o espectador por “vocês”, para outros um tratado de ego, um narcisismo, a espreitadela contemplativa ao Espelho de Narciso

Susana Nobre nunca negou que o seu cinema é feito de partilhas, de experiências e motivações concretamente trabalhadas em filme, condensadas e integradas num perpétuo movimento de procura e de redescoberta. Fez desse mote a sua partida observacional no programa das Novas Oportunidades [“Vida Activa”, 2014)”, para mais tarde espelhar as suas reflexões maternais [“Tempo Comum”, 2018] e pelo caminho debruçando em histórias de outros [“No Táxi do Jack”, 2021], Nobre nunca dedicou-se inteiramente a si, até porque sob a sua perspetiva o cinema é um mecanismo “díptico, uma pessoa que ouve, outra pessoa que fala, uma que interpela e outra que responde, num espaço completamente circunscrito”. Mas é aí que “Cidade Rabat” rompe a “tradição”. Confeccionado como a sua primeira longa de ficção assumida, a realizadora se esconde por trás do exercício narrativo para transformar memórias num afazer. 

O exercício está à vista de todos, deitar-se no divã e abordar os seus fantasmas, o seu luto e trazer dessa sua experiência um deslumbramento para novos rumos, mais existencialistas que artísticos. Nessa feita, “Cidade Rabat” parte de um estado de autognose, uma rua lisboeta de igual designação ao do título nas Portas de Benfica, uma escadaria num prédio antigo, moradores singulares, piso a piso, até cedermos ao rés-do-chão, à figura maternal que aí habita (ou habitava), esse início de tudo. A voz de Susana - um espírito concentrado na figura de Raquel Castro, anterior enfermeira (esta informação dará luzes a um discreto e delicioso cameo em tom jocoso de "troca-de-papéis"), agora atriz - nos guia por essa viagem memorialista sem representação visual, é um trajeto imaginário em modo “Big Bang”, a génese, a origem das “coisas”, ou melhor o fim de todas elas. 

Porque é através do luto que “Cidade Rabat” despoleta, metamorfoseia-se num retrato de dor (o verbo não é coincidência, o filme prossegue do mesmo ponto que A Metamorfose dos Pássaros de Catarina Vasconcelos, da ausência), numa terapia à mesma, porém, ao contrário do seu cinema não dá “ares” de partilha, remonta-se como uma demanda sua e só sua poderá se revelar. Porém, o exercício esgota na sua própria premissa, a veste fúnebre é intransponível, a realizadora fala para ela própria (com imagens sobre ela própria) enquanto despe a sua ficção de todas as suas vertentes fabulistas, ao espectador cabe entender o nojo, a negação, a deambulação e por fim, superação em forma de emancipação (muitos “ãos” aqui reunidos!). Com “Cidade Rabat”, uma “coisa” é certa, Susana Nobre é mais arregaçada em falar dos outros do que resumir-se a si própria. 

"A Culpa não morre solteira": o ano terrível para o Cinema Português

Hugo Gomes, 24.12.22

img_828x523$2022_04_21_11_25_01_304912.jpg

"Km 224" (António-Pedro Vasconcelos, 2022)

2022, mais um ano, mais lamentações a caminho. O Cinema Português, essa formalizada instituição que muitos adoram cuspir, resiste face aos números vergonhosos nas bilheteiras nacionais, mesmo que, muitos deles beneficiam de “boa imprensa”, de críticas esplendorosas, artigos requintados e o esforço hercúleo por parte das suas distribuidoras e produtoras em os promover. 

Mas o cinema nacional demonstrou-se alheio aos planos do grande público, que o diga o veterano António-Pedro Vasconcelos e o seu drama de custódias “Km 224” que terminou com uns “míseros” 4.128 espectadores (tendo em conta a sua ambição comercial, 830 sessões contra, comparativamente, as 161 de Lobo e Cão de Cláudia Varejão que arrecadou, até ao momento, valores mais acima), ou o que dizer a estreia de Tiago R. Santos e o quarteto de luxo [Ricardo Pereira, Teresa Tavares, Margarida Vila-Nova e Cristóvão Campos] com “Revolta”, filme que em outros tempos chegaria, na pior das hipóteses, aos 5.000 espectadores, apenas arrecadou 1.719. Melhor posicionado esteve “Salgueiro Maia: O Implicado” de Sérgio Graciano [16.777], o qual convém referir a importância ainda memorial da sua figura-alvo, e a dupla rural “Restos do Vento” de Tiago Guedes e “Alma Viva” de Cristèle Alves Meira [11.685 e 7,537].

Nem mesmo João Botelho, possivelmente o realizador com mais imprensa por metro quadrado nos seus filmes, que nos trouxe uma das suas melhores obras em muito tempo (“Um Filme em Forma de Assim”), não escapou à derrota nessa estrangulada luta nas bilheteiras [2.208], e num ano em que contou com retrospetiva integral na Cinemateca, novamente promovida em todos os meios, mas igualmente captada pela indiferença do seu público-alvo. Cinema português e bilheteiras são um eterno fado e que nada descura da qualidade de muitas destas obras. 

Já os restantes autores propriamente ditos; "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues a exibir a sua legião de adeptos [3.533 espectadores], com cerca do dobro do atendimento, Marco Martins e o seu “Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965 - 2005” demonstraram adesão ao documentário português (enquanto o mais visto nessa categoria foi “Cesária Évora" de Ana Sofia Fonseca com 7.057 espectadores). Números longínquos para com uma Rita Azevedo Gomes, por exemplo, cujo O Trio em Mi Bemol levou até ao momento 467 espectadores, mais que o tríptico de Joaquim Pinto e Nuno Leonel acolheram [“Pathos Ethos Logos / 178 espectadores]. Comparativamente, com menos promoção e imprensa, a segunda longa-metragem de Adriano Mendes - “28 ½ - concretizou 725 espectadores, em 43 sessões, menos que as projeções do filme da Azevedo Gomes, ainda em cartaz [62 até à data].

221202_20220325124032_9D9CJL5T109790DZTWJJ.jpg

"O Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Estes trazidos números serviram para mostrar um só propósito - o constante desfasamento entre o público e o seu cinema - um fenómeno latente à dissertação das salas pelo conforto do ambiente doméstico sob a febre das “novidades do streaming”, ou a cada vez mais “exigente” seleção do que realmente ver numa sala de cinema … a aspas são pertinências visto que o cardápio parece fundamentado em redor de super-heróis ou franchises duradouros. Contudo, quando o tema é cinema português, a discussão resume-se na própria qualidade destes do que no gosto do espectador. Anos a fio a ouvir os mesmos queixumes, enfrento-o esses argumentos com os iguais números.  

Mas antes disso, há que procurar as causas para esse divórcio? Possivelmente, um dos graduais problemas, como havia sido sugerido, seja a reputação que a nossa produção adquiriu e acumulou ao longo destes anos. As avenças de “Amor de Perdição” de Manoel de Oliveira ou os enterros antecipados a António Macedo (o sketch satírico de Herman José fantasmagoricamente ainda povoa na nossa imaginação coletiva), conspiradas raízes para este boicote orquestrado ou até politizado que hoje fomenta furiosos pedidos de uma renovação de histórias, de estilos, de ritmo, de atores e sobretudo uma “americanização” do nosso cinema, em jeito de encabeçar sem grandes histrionismos um catálogo de um globalizado streaming

Porém, o desejo é diferente dos sucessos, “Dois Duros de Roer” ou Curral de Moinas: Os Banqueiros do Povo, inquestionavelmente amadora televisão descaradamente embutida na tela conquistou espectadores (48.830 e 314.115 respetivamente), muitos deles assinantes dessa “carta de exigências". Com este cenário em conta, para quê continuar a debater sobre o que o cinema português precisa de fazer para “apelar” ao seu público? Claro que não, como todos os divórcios, a culpa não morre solteira. 

Escusado será totalmente imputar a nossa produção tendo em conta que o dito “espectador português” tem demonstrado ao longo destes anos zero paladar no ramo.

Entre selvagens e domesticados, um conto de "crianças perdidas"

Hugo Gomes, 09.12.22

LOBO-E-CAO-04.jpg

Numa das imagens mais celebradas do filme, um grupo de misfits posicionam, um a um, num palco de purpurinas, fitando o seu olhar numa câmara invisível / visível a fim de quebrar a quarta barreira, resultando numa troca de impressões para com o espectador, existente do outro lado da tela, que os atenta observa. Como um aquário, após o retrato completado, somos expostos à diversidade, representatividade, e mais que isso de apreço, empatia, ou apenas solicitação da mesma, que todo aquele palanque nos transmite. 

“Lobo e Cão”, a nova longa-metragem de Cláudia Varejão, poderia resumir a esta mesma sequência movida a música e a faixas multicolores, um "inventário" da ilha de São Miguel, que nele oculta um punho contra o binarismo, a “prisão” que os nossos personagens / indivíduos vivem entre o estatuto de atores e não-atores. No seu centro, há um contorcionismo em romper a imposição documental e inserir estes “marginalizados” (assim se sentem numa comunidade ultra-regida pela religiosidade e o conservadorismo), numa intriga ramificada em subenredos para que possam apelidar de ficção. Ora, aí reside a grande fraqueza do filme, pelo facto de ser tratado ou tratar da sua “ficcionalidade”, nunca desenvolve apropriadamente qualquer um desses seus “ramos”, com isto perde-se em incentivos que culminarão a becos sem fins, prestando contas à colaboração (à comunidade acima de tudo) do que maioritariamente visando a saúde da sua narrativa. 

Por outras palavras, somos como um açor, pairando ali e acolá, tendo a figura da Ana (Ana Cabral, um achado) como peça central nesta teia de relações - entre as quais, possivelmente a mais relevante, a de Luís (Ruben Pimenta), o seu melhor amigo que lida com a sua descoberta identitária e sexual de forma naturalíssima, isto, servindo de afronta à reacionária comunidade que vive. Para além deste contacto, Ana também se aventura no seu próprio e causado turbilhão de sentimentos, acontecendo no preciso momento em que a “visita” de Cloé (Cristiana Branquinho), uma amiga residida no Canadá, a desperta para um determinismo nunca antes cedido através de um subtil choque cultural. 

loboecao1.jpg

Lobo e Cão”, é desta forma, um coming-to-age, interagindo na comunidade queer da ilha, tentando com isso homenageá-la, dignificá-la e a acima disso, sublinhá-la num contexto ainda envelhecido, confrontando com uma população ainda preconceituosa e obscurantista. Varejão filma o biótopo destas personagens, não julgando-as criminosamente, mas revelando-as como servos de um milenar peso da Igreja e das suas impostas tradição (procissões e peregrinações são estampados em “Lobo e Cão” como um gesto quase pagão, retirando-lhe a aura divina que outros poderiam cometer com as suas câmaras). 

Uma obra de relevância sociológica e até mesmo antropológica, e possivelmente cultural (só o futuro dirá), porém, fora do tema e temáticas, demonstra vitalidade, força nutrida nas suas figuras e no realismo capsulado (e devemos também salientar que é um retrato sem condescendências). Porém, fraqueja, ocasionalmente, em emanar credibilidade nas suas tramas. Infelizmente, uma das sequências que viria a ser desperdiçada pela decisão dos “não-atores” (ou falta de direção), é o do bullying na procissão, perdendo a sua ferocidade perante a incapacidade dos seus “protagonistas”.

Mas hein … temos Ana Cabral, e que a garra de lobo se mantenha com ela por muito tempo.  

Caravaggio, sem sê-lo

Hugo Gomes, 20.07.22

1698831.jpg

Uma árvore … um amigo

É no leito da sua morte que a velha monarquia solta o último sopro do seu conservadorismo, “banhado” pelo quadro de José Conrado Rosa, uma representação longínqua, mas continuamente presente do espírito colonialista [o espírito da “apropriação”], a companhia ou talvez barqueiro da sua jornada pós-vida. O fim da monarquia, a realeza propriamente dita nos levará, enquanto espectador, às memórias corruptivas de quem, por via dos seus deveres reais, desejou obter utilidade na sua existência. 

João Pedro Rodrigues, que afasta e afasta, cada vez mais, do seu realismo frustrado e sujo (a estreia ainda hoje badalada de “O Fantasma” o assombra), lançando na procura por “gambuzinos”, o sugerido em “Morrer como um Homem” que se transformou no brasão familiar de todo o seu cinema. A juntar a isso, as declarações do próprio em alturas de “O Ornitólogo” (até à data o meu predileto da sua filmografia, o qual não escondo o fascínio pelo seu encanto febril), em que notava um erotismo bárbaro nas imagens sacra, isto, num filme recheado de reconstituições dessas mesmas gravuras em estatuetas vivas e de saliências lascivas agravadas. Essa readaptação, ou talvez deveremos antes insinuar reinterpretação da arte, qualquer que seja, parece ter encontrado “caminha feita” no cinema de Rodrigues, e "Fogo-Fátuo" (uma evidente curta metragem em vestes de longa), não oculta esse feito, integrado nos propósitos e no contacto do seu protagonista, o nobre Alfredo (Mauro Costa), que após o primeiro dia no quartel de bombeiros onde deseja voluntariar, é confrontado com reconstituições homoeróticas por parte dos seus “camaradas de armas”. 

Caravaggio, Vilhena, Bacon, Velasquez ou Rubens, obras não-identificáveis, mas cujos estilos dos seus criadores são preservados nestas celebrações humanas, os corpos nus relembram essa mesma arte, obviamente negada por Alfredo, que não reconhece tais trabalhos em lado algum. Isto porque essas peças não são mais que remontagens do seu criador máximo - João Pedro Rodrigues - que metamorfoseia este conhecimento artístico como seu. Por exemplo, é fácil apontar para Caravaggio montado nos pénis hirtos e nos troncos suados destes bombeiros erotizados, mas não se trata de Caravaggio nem uma réplica do mesmo, e sim de uma “pintura” aparte que o realizador nos vende como tal. 

As pessoas estão a ver-nos”, numa mesa de jantar no indeterminado palacete, proferido aviso de Margarida Vila-Nova enquanto quebra a quarta parede, o espectador é a partir deste ponto, assumidamente, um espectador (pelo menos adquire a percepção de tal) e esta mesma sequência, mesmo petrificado num certo burguesismo, é a evidência de como a galeria que iremos testemunhar nas cenas seguintes será de um âmbito, não provocatório, mas ostentoso à mão-criadora de Rodrigues. O desejo de ser um pintor, e para tal, remodelando as pinturas cujo senso-comum tornou-as como suas, em qualquer outra coisa. Talvez um ensaio, e o filme, "Fogo-Fátuo", aproveitando a deixa dessa personagem de Vila-Nova, têm a percepção da sua observação. Abrem-se as portas e a galeria é revelada. O pintor? João Pedro Rodrigues