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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Curte a Curta: 2ª edição dos Prémios Curtas

Hugo Gomes, 10.04.24

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Fotografia.: Ricardo Fangueiro

Após o seu nascimento e os primeiros passos, chegou a tão aguardada segunda edição dos Prémios Curtas, que teve lugar no Cine-Turim no passado dia 6 de abril, num sábado à noite em Lisboa, cidade com "400 e tal coisas para fazer", como citou o anfitrião da cerimónia, Rui Alves de Sousa. Apesar disso, a sala estava praticamente cheia. Sentia-se no ar o ambiente de premiação, mas acima de tudo um espírito de camaradagem cinematográfica entre produtores, realizadores, atores e outros técnicos, todos ansiosos pelos títulos conquistados e pela promessa de uma terceira edição (provável, mas quem sabe). Aceitei o convite de André Marques (o "outro", não o realizador) em integrar uma equipa de jurados* ainda na sua génese, sempre com o intuito de contribuir e opinar para a formação de um júri de excelência e referência. Já no final da primeira edição e perante uma segunda edição à vista, voltei a aceitar o convite, quanto à terceira, ainda espero por um pedido oficializado. Contudo, saindo do parênteses e voltando ao que “aconteceu”, poderemos encarar a adesão e o falatório (principalmente o gerado na comunicação social) como sinais de estarmos no caminho certo.

Quanto à premiação propriamente dita, apesar de “Monte Clérigo” de Luís Campos ter sido o vencedor da categoria de Melhor Curta de Ficção, foi a animação de Maria Hespanha, “A Rapariga de Olhos Grandes e o Rapaz de Pernas Compridas" que se autointitula de grande vencedor da noite. Foram quatro os prémios atribuídos; Animação, Argumento, Direção Artística e Banda Sonora [Pedro Marques]. Seguido pela também animação “Ana Morphose” de João Rodrigues (Som / Efeitos sonoros e Efeitos Visuais), “Maria José Maria” de Chico Noras (Montagem e Caracterização), “Natureza Humana” de Mónica Lima (Realização e Direção de Fotografia [Faraz Fesharaki]) e “Febre de Maria João” de Afonso e Bernardo Rapazote (Ator Secundário para António Mortágua e Guarda Roupa). Já os restantes, foram para a atriz Teresa Sobral pela sua interpretação em “Sagrada Família” de Diogo S. Figueira, Isac Graça como Ator em “Heitor Sem Nome” de Vasco Saltão, Maria Leite como Atriz Secundária por “Abafador” de Silvana Torricella, Gabriel Pêra vence Interpretação Infantil por “Capa de Honras, La Cuonta de L Garotico I L Bielho” de Rui Falcão, e “Défilement” de Francisca Miranda como Curta Documental.

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Os premiados e os jurados / Fotografia.: Ricardo Fangueiro

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Fotografia.: Ricardo Fangueiro

*Bruno Gascon (realizador), Inês Sá Frias (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Bernardo Freire (crítico), André Pereira (videografo e editor de vídeo), Filipa Amaro (realizadora), Carolina Serranito (programadora), Hugo Azevedo (diretor de fotografia), Bruno Bizarro (compositor).

Prémios Curtas - 2ª Edição

Hugo Gomes, 05.04.24

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É já amanhã (05 de abril) que decorrerá a 2ª Cerimónia de entrega dos Prémios Curtas, Cine-Teatro Turim em Benfica (Lisboa), apresentado por Rui Alves de Sousa (jornalista e radialista da Antena 1) e com exibição de três curtas-metragens (“Azul” de Ágata de Pinho [o grande vencedor da edição passada]), “O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto”, de Bruno Caetano, “Fora de Jogo”, de José Freitas, “Comezainas”, de Mafalda Salgueiro e “As Feras”, de Paulo André Ferreira [vencedor do Prémio Curta de Melhor Atriz Secundária da 1ª edição]). Integrei o júri em conjunto com Bruno Gascon (realizador de “Carga”, “Sombra” e “Pátria”), Inês Sá Frias (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Bernardo Freire (crítico), André Pereira (videografo e editor de vídeo), Filipa Amaro (realizadora), Carolina Serranito (programadora), Hugo Azevedo (diretor de fotografia), Bruno Bizarro (compositor).

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Os nomeados poderão ser conferidos aqui.

Arranca o 6º BEAST IFF, da Eslovénia cinematográfica a finais (nada) felizes: "uma procura por novas fórmulas, por novos destinos e por novos caminhos"

Hugo Gomes, 26.09.23

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I Miss Sonja Henie (Karpo Godina, 1971)

A Eslovénia torna-se assim no centro geocultural desta sexta edição do BEAST IFF, o Festival Internacional de Cinema que acontecerá já no dia 27 de setembro, estendendo-se até ao primeiro dia de outubro em vários pontos da cidade do Porto. Este ano, para além do país homenageado e do melhor cinema do leste o qual tem dedicado com coração, poderemos contar (e continuar a contar) com um enorme foco feminino - com especial destaque para argumentista e figurinista Ester Krumbachová, uma das parceiras da “mãe” Věra Chytilová nos seus devaneios que lançaram a nova vaga checoslovaca para o holofote do mundo - e uma forte aposta no cinema queer originário das Balcãs. Sem esquecer Karpo Godina, um dos nomes maiores do cinema esloveno, que marcará presença numa retropectiva à sua figura.

É "no happy ever after" a inundar a cidade invicta nestes cinco dias, mas apesar do slogan pessimista, o BEAST IFF promete ser um festival "feliz", porque Cinema haverá, logo a felicidade é garantida. Só que esta felicidade está nas longitudes longínquas das utopias e dos "we are the worlds" hollywoodescos. Mas deixemos de descrições baratas e passemos aos nossos diretores e programadores - Radu Sticlea e Teresa Vieira - que, respondendo ao convite do Cinematograficamente Falando …, desvendam a rota desta edição.

Ao chegar a uma sexta edição do festival, e olhando em modo retrospectivo, quais os objetivos atingidos e o que poderá ainda atingir?

Radu Sticlea: Acredito que com cada edição conseguimos curar com sucesso um programa que não só mostra o trabalho de realizadores de renome, mas também dá destaque a talentos emergentes. Esta abordagem permitiu-nos nutrir e promover a próxima geração de realizadores da Europa de Leste, enquanto nos estabelecemos como uma plataforma única.

Como festival, a nossa missão é a seguinte: construir uma plataforma dinâmica para colaborar e fazer networking entre Portugal e a Europa Central e de Leste, enquanto simultaneamente desafiamos e desfazemos estereótipos associados à região. Nós acreditamos que um programa reflexivo e provocante não é só um testemunho da nossa dedicação para os talentos cinematográficos, mas também é uma oportunidade para expor a diversidade e densidade criativa do cinema da Europa de Leste. Ao abraçar conteúdos provocativos e quebrar barreiras, temos como objetivo incentivar conexões significativas e contribuir para uma compreensão mais extensa desta paisagem cinematográfica vibrante.

Sobre a Eslovénia, o país-homenageado, o que poderá dizer sobre a sua cinematografia e como resumi-la para o seu Focus. Que impressões os espectadores terão com esta viagem?

Teresa Vieira: Todos os anos, o BEAST dedica-se à criação de uma programação focada no panorama cinematográfico de um país, apresentando trabalhos de realizadores de renome e realizadores emergentes, num leque de diferentes temporalidades (das marcas do passado, ao presente e apontando para um futuro). Este ano, a escolha do Foco na Eslovénia surgiu por diversas razões. Desde logo, por sentirmos uma falta de representatividade do país - ou um certo desconhecimento da sua cinematografia - no panorama nacional, procurando criar um espaço para uma mostra mais aprofundada de produções passadas e presentes. A tal adicionado o facto de ser o primeiro país pós-comunista a legalizar a adopção e o casamento entre casais do mesmo sexo, o que se liga à nossa atenção para com as questões queer na Europa Central e de Leste

Em termos de programação específica, decidimos alterar o modelo de selecção para a cerimónia de abertura (que, ao longo da história do festival, se concretizava com a exibição de uma longa-metragem do País em Foco), seleccionando três curtas-metragens de três realizadoras da Eslovénia. Consideramos esse gesto representativo do festival de diversas formas: o formato de curta, sobre o qual trabalhamos um pouco por toda a programação, como forma de lançamento do mote para esta 6ª edição; e a escolha de três obras realizadas por mulheres, que traduz a nossa atenção para com questões de género na programação. 

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Věra Chytilová e Ester Krumbachová

Aquilo que o público poderá esperar, após esse ponto de partida, é uma viagem por diferentes pontos: uma retrospectiva de curtas metragens dos anos 60 e 70 de Karpo Godina, realizador de renome (aqui num ponto de passado estabelecido e fortemente marcado na história do cinema); duas sessões de trabalhos de duas escolas de cinema (criando uma mostra dos futuros nomes da cena cinematográfica, dando também um espaço para estas produções circularem noutros territórios e contactar com outros públicos); uma sessão especial de LGBT_SLO_1984, parte do programa queer do festival, para um maior entendimento dos movimentos artísticos, activistas e históricos associados à evolução dos direitos LGBTQIA+ do país; uma retrospectiva de video-art, um formato que foi (e ainda é) marcante da cena artística do país, e que consideramos fundamental para um maior entendimento das abordagens artísticas e cinematográficas da Eslovénia, procurando ao mesmo tempo enfatizar o nosso ângulo de criação de espaço para “outros formatos”, por vezes afastados das salas; um cine-concerto de “No Reino Do Chifre De Ouro” (“In the Kingdom of the Goldhorn”, 1931), com o artista sonoro Ivo São Bento, em que exibiremos a primeira longa-metragem realizada na Eslovénia acompanhado por um trabalho musical e sonoro original e exclusivo para este evento.

Procuramos, no fundo, apresentar uma seleção diversificada de múltiplas formas - e despertar todos os sentidos do público pelo caminho.

Em BEAST IFF existe uma “apetite”, chamaremos assim, em se focar num cinema feito por e para mulheres, descortinando nomes emergentes como a de Tereza Nvotová [“Nightsiren”] ou de heroínas como Ester Krumbachová, colaboradora de Věra Chytilová, ambas representadas nesta edição. Gostaria que me abordasse esta abordagem, se é algo coincidente ou uma convicção político-social-artística do festival?

TV: A resposta poderá passar pelas duas partes: surge de uma convicção político-social-artística e aconteceu igualmente (de forma não coincidente mas) natural - sendo que tal advém, desde logo, por exemplo, de escolhas em pré-criação de programação. A nossa atenção para com questões de representação de género está presente, em primeiro lugar, na constituição da equipa do festival: procuramos ter um grupo de vozes diversas, o que de forma natural influencia os resultados nas escolhas curatoriais e na programação. 

Não tendo uma maioria de programação cis masculina, implica que, regra geral, a questão (necessária, urgente, fundamental) que tem de ser muitas vezes apresentada e reforçada noutros contextos - e firmada constantemente -, de atenção para com a representação de género, se tornou quase “redundante” no nosso processo colectivo de trabalho. No sentido em que, enquanto pessoas que não fazem parte de uma categoria de “privilégio”, tal implica inevitavelmente um posicionamento individual e colectivo - um olhar - que carrega em si estas questões de forma contínua - é a nossa vida, a nossa luta, a nossa história. Faz parte de nós e a programação reflecte isso mesmo. 

Relativamente a elementos de secções não-competitivas, o caso do programa de retrospectiva de video-art da Eslovénia poderá ser ilustrativo: após a selecção de grande parte das obras que vão ser agora exibidas ao público, foi possível observar que o programa, de si, já representava uma maioria feminina. Assim, foi mantida a programação exatamente como estava após essa análise. Em relação a outros programas temáticos (fora de competição e do Foco Eslovénia), dar destaque a Ester Krumbachová é dar uma atenção para o trabalho criado por uma mulher mas também para uma pessoa cuja função não recaiu somente na realização. É igualmente um posicionamento do festival de que é necessário criar e fortalecer espaços de foco em áreas além da realização e produção: o caso da Ester, multi-facetada e fundamental set designer, costume designer, guionista da New Wave Checa, é uma forma de demonstrar essa vontade.

Uma questão pertinente, visto que o festival foca este ano numa mostra de cinema Queer (ou simplesmente de temática LGBTQIA+), o qual decorrerá em simultâneo com o Festival Queer Lisboa e posteriormente com a extensão no Porto. Existe diálogo entre os dois festivais, ou há um sentimento de concorrência?

TV: O BEAST tem dedicado ao longo de diversas edições um espaço para programação de cinema queer. Este ano, o festival decidiu criar um título para essa secção: “How to Care for Cosmos”. Um título que surgiu, entre outras coisas, de inspiração a partir de “Modern Nature”, de Derek Jarman. Uma ideia de um jardim que tem de ser cultivado, com flores que representam o “tudo”, o “universo” - o “nós e es outres”. É um programa que procura o cuidado, a atenção para com questões que consideramos urgentes, de forma a procurar um futuro melhor para todes. 

Este foco transparece uma identidade queer que não é somente uma secção: faz parte do ADN do festival, composto maioritariamente por pessoas da comunidade LGBTQIA+. O programa desta secção, este ano, resulta em grande parte de colaborações com dois festivais de cinema queer da Europa de Leste: Sunny Bunny (Ucrânia) e FFi (Eslováquia). O Sunny Bunny é o primeiro festival de cinema queer da Ucrânia e teve este ano a sua primeira edição. Exibir estas curtas-metragens ucranianas neste momento é também um statement do BEAST, que tem reforçado o seu foco - já existente em edições passadas - no cinema ucraniano durante este período de guerra, com uma vontade explícita de dar voz aos cineastas do país - e, este ano em particular, à comunidade queer. A colaboração com o FFi resulta de uma preocupação para com a situação sócio-política do país: em 2022, duas pessoas da comunidade LGBTQIA+ foram assassinadas à frente de um bar (safe space para pessoas queer). 

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Before Curfew (Angelika Ustymenko, 2023)

Mostrar curtas-metragens da Eslováquia é também uma forma de demonstrar o nosso apoio para com a comunidade do país, e uma procura para um alerta de movimentos de ódio que ainda (ou desde sempre) acontecem na Europa. Os programas que serão apresentados foram criados colaborativamente: uma selecção que uniu diversos olhares de diferentes pontos geográficos - todos a partir de perspectivas de indivíduos queer.

Esta resposta passou, primeiro, por uma mostra do gesto programático desta secção: colaboração, diálogo e trocas. Não foi por acaso: serve de ponte para aquilo que poderá ser dito em relação ao Queer Lisboa e a sua extensão no Porto. Não só não existe qualquer concorrência entre festivais, como almejamos que existam cada vez mais e mais espaços para vozes, visões e identidades queer - algo que consideramos crucial. Felizmente, nos tempos que correm, é possível ver cada vez mais a presença de cinema queer em programações não dedicadas exclusivamente ao cinema queer

No entanto, a existência do Queer Lisboa/Porto, que têm notoriamente das identidades mais firmadas e estabelecidas no panorama de festivais nacionais, é algo que consideramos absolutamente fundamental, insubstituível e de um valor imenso. A sua linha de programação denota preocupações partilhadas - desde logo, por exemplo, exibindo filmes que relatam as questões da Guerra na Ucrânia - , também com produções de países como a Roménia, o Kosovo, mas também de múltiplas regiões além-Europa (filmes da Nigéria, do Brasil, da Colômbia, entre tantos outros). Partilha de preocupações, um olhar atento para com as questões da comunidade LGBTQIA+ e uma selecção de excelência a nível de qualidade de produção cinematográfica são ingredientes para a receita perfeita para aquilo que diremos de seguida, em jeito de conclusão.

O Queer Lisboa e o Queer Porto são festivais que respeitamos, que admiramos, com quem claramente partilhamos (para além das datas de calendário entre Queer Lisboa e BEAST) uma simpatia imensa e com quem obviamente gostaríamos de um dia colaborar (se elus nos quiserem também ;) ).

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

TV: Um dos destaques inevitáveis da programação é a retrospectiva de Karpo Godina, realizador que marcará presença no festival. As obras produzidas entre os anos 60 e 70 por esta figura incontornável da história do cinema são uma magnífica amostra da originalidade, frescura e a abordagem satírico-politizada (com uns óptimos travos musicais e de humor à mistura) que marcam o espólio deste cineasta e um pouco do seu trajecto inicial no universo cinematográfica - essa descoberta que podemos ter dos primeiros passos que o realizador deu nessa sua própria (e única) viagem.

Destaque igualmente para o programa “Post Porn - Radical Visibility”. Criado em colaboração com o Post Pxrn Film Festival Warsaw, surge como resultado de uma curadoria conjunta entre os festivais, de apresentação de uma selecção de curtas-metragens polacas de post porn. O encontro com os diretores deste festival, que estarão presentes na sessão, será uma excelente oportunidade para conhecer melhor o “post-pxrn” mas também a relevância da produção destas - e outras obras -  no contexto sócio-político e artístico particular da Polónia.

Em relação ao programa queer, não só destacamos todas as sessões — Sunny Bunny, FFi e LGBT_SLO_1984 — como também consideramos importante mencionar a Queer Talk que decorrerá durante o festival, onde será possível participar numa conversa com todos os directores desses festivais, aos quais se juntará Romas Zabarauskas, cineasta lituano reconhecido pelo seu trabalho no cinema queer, convidado do evento de indústria do BEAST.

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In the Kingdom of the Goldhorn (Janko Ravnik, 1931)

Por fim, destaque para o regresso da secção CINE-GEOGRAFIA SOCIALISTA | ÁFRICA - EUROPA DE LESTE. Este ano, com um programa em que será exibido um documentário de Traian Cocoș e Răzvan Marchiș “Viagem... longe da África” (1972-194), seguido de uma talk com Iolanda Vasile. Este programa, que conta com o apoio do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, através do projecto EDU-AM, e do Instituto Cultural Romeno, criará espaço para uma conversa que terá como ponto de partida a investigação de Iolanda Vasile sobre as ligações que a República Socialista da Roménia teve com vários países do continente africano entre os anos 1965- 1989. Será discutido como os câmbios educacionais, principalmente no cinema, mas também em outras áreas, contribuíram para as transições políticas no continente Africano colocando as bases do processo de transição pós-colonial.

O festival contará com a presença de realizadores das diversas secções, para além de convidades de indústria que estarão presentes durante esta edição.

Muito deste cinema do leste que aposta enquanto tema do evento é normalmente ignorado pela distribuição comercial nacional. Existe um preconceito para com estes filmes, ou entendimento (provavelmente pelo senso comum adquirido pelo experimentalismo de muitas destas cinematografias) como pouco acessíveis a públicos maiores.

RS: Nós reconhecemos o panorama evolutivo do consumo de cinema português. O público português está a demonstrar um interesse cada vez maior pelo cinema de nicho, incluindo as particularidades únicas e cativantes da Europa de Leste. Esta mudança na preferência do público é encorajadora e sinaliza um desejo crescente por experiências cinematográficas diversificadas, para além dos filmes comerciais mainstream.

Além disso, observamos uma tendência positiva no sector da distribuição. Os distribuidores estão a começar a reconhecer a mudança dos gostos do público português e estão mais abertos a atribuir espaço a conteúdos de nicho, incluindo filmes da Europa de Leste. Esta abordagem progressiva reflete um reconhecimento amplo do valor cultural e do significado artístico destes filmes.

Enquanto festival, esforçamo-nos ativamente para estar na vanguarda desta onda de transformação. O nosso objetivo é tornarmo-nos num ponto de encontro fundamental para os profissionais da indústria, incluindo cineastas, produtores e distribuidores, tanto de Portugal como da Europa de Leste. Acreditamos que a promoção de ligações entre estas duas regiões pode levar a oportunidades interessantes de colaboração e co-produção.

Sobre um eventual crescimento do festival, alguma vez colocou-se em cima da mesa extensões das vossas mostras? Ambições para o futuro?

TV: O festival tem realizado extensões ao longo dos anos, vendo esses momentos como forma de reforçar a presença do festival mas acima de tudo de criar a possibilidade de expansão de visibilidade de obras de cineastas. O BEAST, estabelecido, nutrido e com raízes no Porto (onde se pretende manter) já realizou mostras em espaços em Lisboa, como no Cinema City Alvalade e na Galeria Zé dos Bois (neste último caso, em colaboração com o Cineclube Aparição, com uma mostra de cinema ucraniano - o país de foco em 2021 - e os filmes vencedores da competição desse ano).

Em relação ao próprio festival, apostamos na criação de uma plataforma de networking e colaboração — East, Match, Go! —, que terá este ano a primeira edição. Um evento de Indústria que procura aproximar — e fomentar ligações — entre profissionais de Portugal (com ênfase no Porto) e profissionais da Europa Central e do Leste.

Nesse sentido de aproximação de Portugal a esta região da Europa, o festival tem realizado a curadoria de programas de cinema português. Nomeadamente, o exemplo mais recente, foi a criação de um programa de curtas-metragens queer portuguesas, que chegaram a diversos festivais da Europa Central e de Leste (como o BRNO 16, o Sunny Bunny, entre outros).

O objectivo do BEAST — como o de todos os festivais — será sempre o de crescer, mas também de amadurecer e de se fortalecer de forma consciente e atenta àquilo que o rodeia, tendo sempre presente a atenção para com a forma através da qual tal evolução poderá ser sustentável e adequada para a manutenção da qualidade e dos valores do festival. Para o futuro é possível dizer que pretendemos criar uma ligação cada vez mais forte com festivais e mostras com quem partilhamos ideais - e ideias -, num gesto de manter activa e em funcionamento a nossa perspectiva de que, através da colaboração, será possível crescermos — equilibradamente — em conjunto.

no happy ever after”, o tema desta 6ª edição, é um reflexo de uma procura por novas fórmulas, por novos destinos, por novos caminhos. É nesse percurso, de construção, de análise, de escuta e aprendizagem, em que queremos — e precisamos de — estar.

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Toda a programação poderá ser consultada aqui

Curtas, curtinhas, a origem: 1ª edição dos Prémios Curtas

Hugo Gomes, 13.03.23

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Os premiados e os jurados / Fotografia.: Ricardo Fangueiro

Foi através de uma curta que Portugal desbravou caminho em direção à Kodak Theater, a nomeação à tão cobiçada estatueta norte-americana automaticamente entrou para a História audiovisual do nosso país, e então porquê de estarmos constantemente a reduzi-los a "protótipos" de futuras longas-metragens?

André Marques teve um sonho, criar uma cerimónia de festividades, premiações e de comunhão a esse universo bem português, a resistência do Cinema na sua mais natural essência, a simples e de rápida dicção, a curta. Para isso juntou oito magníficos* e fundou um júri, aliciou e arrecadou apoios, e “convidou” a todos os participantes a inscrever o seu trabalho. A sua vontade fez com que o seu desejo se materializasse. No passado dia 10 de março, sexta-feira nervosa devido à nomeação de “Ice Merchants”, cujos Óscares seriam revelados no domingo seguinte (“será desta?” pensavam todos os que presentes), o Auditório Fernando Pessa em Lisboa encheu-se (deve-se sublinhar), para receber a primeira edição, modesta, ainda com o seu quê de improviso, muitas vezes ocultado graças ao malabarismo e carisma de Rui Alves de Sousa, radialista da Antena 1, que assumia o papel de anfitrião. Intercalado pela dita premiação e pela projeção de três curtas referentes aos três géneros-base (ficção, documentário e animação), a cerimónia ficou marcada pelas promessas do seu fundador, ambicionando seguintes edições em maior escala e a ambição de um “microfestival” em celebração daquilo que a curta-metragem tão bem representa - o Cinema, aqui e agora.   

Quanto à premiação, a noite consagrou “Azul” de Ágata de Pinho com cinco prémios, no qual incluem as categorias de Curta de Ficção, Realização, Argumento, Atriz (também Pinho) e Fotografia (assinado por Leonor Teles). “O Homem do Lixo” de Laura Gonçalves arrecada três distinções (Curta de Animação, Curta Documental, Banda-Sonora), igualando com “Punkada” de Gonçalo Barata Ferreira (Montagem, Caracterização, Guarda-Roupa). Os outros prémios; Vítor Norte recebe o de Melhor Ator (“O Caso Coutinho” de Luís Alves), Nuno Nolasco como Ator Secundário (“Tornar-se um Homem na Idade Média” de Pedro Neves Marques), Rita Tristão na categoria de Atriz Secundária (“As Feras” de Paulo André Ferreira), Rodrigo Manaia em Interpretação Infantil (“By Flavio” de Pedro Cabeleira), e ainda a animação “Garrano” de David Doutel e Vasco Sá no campo dos Som / Efeitos Sonoros juntamente com a ‘dobradinha’ de “2020: Odisseia no 3.º Esquerdo” de Ricardo Leite (Direção Artística, Efeitos Visuais).

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Rui Alves Sousa e eu / Foto.: Ricardo Fangueiro

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Vítor Norte brama ao Cinema após vencer o Prémio de Ator / Foto.: Ricardo Fangueiro

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André Marques, fundador do evento, discursa / Foto.: Ricardo Fangueiro

*Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger do Hoje Vi(Vi) um Filme), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico e fundador do Fio Condutor) e André Pereira (videografo e editor de vídeo da Renascença).

Prémios Curtas - 1ª Edição

Hugo Gomes, 07.03.23

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Na próxima sexta-feira (10 de março) irá decorrer a 1ª Cerimónia de entrega dos Prémios Curtas, Auditório Fernando Pessa (Lisboa), apresentado por Rui Alves de Sousa (jornalista e radialista da Antena 1) e com exibição de três curtas-metragens (“Glória de Fazer Cinema em Portugal” de Manuel Mozos, “Arena” de João Salaviza e a animação “Nestor” de João Gonzalez [o mesmo de “Ice Merchants”, nomeado ao Óscar]). Integrei o júri em conjunto com Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico) e André Pereira (videografo e editor de vídeo). 

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Os nomeados poderão ser conferidos aqui.

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A ressureição da Crítica de Cinema?

Hugo Gomes, 09.02.23

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Foto retirada do Facebook da Ifilnova - Instituto de Filosofia da Nova

Será que a crítica de cinema está mesmo morta? Como muitos desejam decretar? Aclamei, numa masterclass da Universidade da Beira Interior, em 2022, de que a Crítica de Cinema necessitava reconfigurar-se aos novos tempos e a solução seria “regredir”, ou seja regressar ao seu romantismo. Acredito que no futuro não haverá espaço para a crítica de cinema nos jornais e em outros órgãos de comunicação, porque neste jogo de poderes e  influências existe o sonho de tornar a crítica num “braço estendido" do marketing, portanto, é quase imperativo devolver a este ofício a sua capacidade e liberdade de pensar. Como tal, com curiosidade, essa vertente que me conquista mais e mais, integrei o curso de quatro dias na FCSH, uma atividade do OutLab/IFILNOVA, sobre isso mesmo … Crítica de Cinema.

Após três aulas, orientadas por Daniel Ribas, Luís Mendonça e Teresa Vieira, constatei, e com bastante agrado, a afluência das mesmas por jovens, ultrapassando, obviamente, o estabelecido limite de 30 integrantes. Sim, provou-se que a Crítica de Cinema não está enterrada, e ainda consegue ter a capacidade de cativar essa camada jovial, o próprio futuro da arte (porque sim, é uma arte, e o crítico o seu artista, mas isso poderá ser outro debate) está bem entregue à sua supervivência. Novos nomes surgirão com certeza, infelizmente não operarão nos tradicionais meios, mas também é necessário rompê-los, quer os Poderes estabelecidos, quer as ideologias que têm sido confundidas como Cinema (refiro obviamente a homogeneidade por vezes descrita do “que é o Cinema”).

Porque a Crítica mantém o cinema vivo, no sentido em que possa ser pensado, discutido e interpretado (multi-interpretado, para sermos exatos), preserva os cânones, questiona-os, e rompe-os. É a formação de um novo olhar, e acima de tudo, um aliado fiel à Sétima Arte.

Que venham daí esses novos Críticos, há muito para fazer!

15 Anos, Escritos de Resistência [Índice]

Hugo Gomes, 12.08.22

Não há título: são só três dias de notas

Hugo Gomes, 22.07.22

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Lynhida (Ana Nusan Dragan, 1989)

Decidi escrever este texto em pequenos momentos de pausa ao longo de três dias. Como que num “Tri Istorii” mas sem qualquer ligação a não ser pelo número (de histórias). Uma colagem que parte dos furos do quotidiano em que somos presenteados com a possibilidade (forçada) de retiro do mundo das obrigações, das frustrações,

As interrupções visíveis serão marcas.

Agora revejo os sentidos, as palavras não ditas, as vontades por concluir. Estes são momentos de enganos, rascunhos, (risquei) oportunidades. O pensamento reparte-se por diferentes interesses, vagueia por inúmeros estímulos (o que faço, o que vou fazer). Este é o modelo em que vivemos, em que vivo, em que estamos, em que estou. Formatei o texto para agradar ao olho, visto que a pressão da sua existência se acumula, se multiplica, se intensifica. Um pouco como estou, como estamos; como vivo, como vivemos.

Enquanto caminho entro no delírio do planeamento dos passos a seguir. Dos objectos a apreciar, das criações com as quais me deixarei ir. O que vi antes, o que virei depois; o que sinto agora, o que quero sentir. Permanentes rascunhos de vontades ilusórias de linearidades disruptivas do frenesim da rotina disfuncional. Estas são palavras de um corpo em desgaste constante, em potencial declínio súbito. Ao chegar ao metro tenho lembranças dos filmes e vídeos que encontrei nas loucas horas que gastei numa procura por algo que faça sentido (para uma investigação, para uma intenção, para uma programação, para uma crítica, para uma divagação). Lembro-me das curiosidades inéditas [de “Tereza” (1983)], lembro-me dos arquivos (quase sempre perdidos) que guardei no disco e que decidi escavar: “I am Somebody” (1970) e “Sapekhuri” (1985) . Aproveitei a ausência de internet no avião em que estive ontem para navegar pela aleatoriedade sobre as escolhas de um passado (não tão) distante (e também ele quase esquecido). Queria, na verdade, rever “Mariupolis” mas confesso que ainda tenho alguma dificuldade em lidar com o assassinato de Mantas Kvedaravicius. O meu primeiro professor de cinema na faculdade. Mantas que nos despertou para a análise crítica cinematográfica, que nos abriu portas para universos fílmicos desconhecidos numa época em que eu ainda indagava respostas sobre o percurso a seguir. Recordo-me das nossas sessões em comunidade, das nossas trocas de ideias, da sensação de (re)descoberta de uma arte com a qual sempre contactei mas sobre a qual nunca ousei pensar trabalhar. Mantas, com o seu ser (em todo ele) activista, humano, sensível, deu-nos o mundo das possibilidades.

Assim o recebi e o guardo comigo.

Coloco a máscara e deixo-me levar para mais um destino.

Antes de me sentar nos bancos de cortiça da carruagem, antes de ouvir os sons ensurdecedores das linhas, pensei que podia falar sobre o medo da escrita. Sobre algo que vai para além de "writer 's block” e que surge mais num lugar de quem presume o fracasso antes da execução. Não escrevo, não sigo impulsos de expressão, não dou espaço a fracassos presumíveis. Submeto-me ao mergulhar nas marés das impossibilidades, dificuldades impostas por um sistema que me diz tanto (e tantas vezes) que não pertenço, que não pertencemos, que não temos  voz. Aqui considero mais uma vez a reformulação da premissa inicial. Mas já vai tarde. E a carruagem chegou.

Leio “Quem quer ser hoje? Seja você”. Volto às notas enquanto deambulo pelos percursos entediantes de obrigações pós-laborais. Slogans de vidas por concluir, que no contexto de uma publicidade nos contactam como que num gesto de venda de novas visões (sigo no jogo de desconstrução de marketing de oculistas). É difícil sermos quem somos neste espaço de vulnerabilidade e intimidade de leituras. É difícil termos reconhecimento neste espaço de formas ditadas, de registos marcados, de meios congelados num tempo que ficou para trás.

Enquanto espero para ser atendida (não passou assim tanto tempo desde há bocado), penso no quanto que se proclama o fim, a morte da crítica. Digo: estamos aqui. Estaremos a ser ouvides?

Novo dia e já à espera. De uma conversa, de um mote, de uma resolução. Já pouco nos agarra. Fica a vontade de superar. Um impulso de persistência na insistência da permanência neste lugar que se alcançou, que se mantém, que se

Depois da conclusão de mais um momento, tomo pela primeira vez a posição de pessoa sentada à frente do computador. Tudo aquilo que está para vir nas próximas horas, nos próximos dias, nas próximas semanas enrola-se num novelo do qual não me consigo desligar. Ao menos hoje consegui meter a roupa para lavar. Espero que a máquina termine, para estender peça a peça, enquanto penso, penso. Apercebo-me de que esta outra máquina não desliga. Não era isto que queria? Não. A turbulência dos dias demonstra, a cada momento, a sede de ficar, de não deixar o tempo escapar, em busca de um dia em que as linhas se cruzem e formem um estado (sempre) desejado: de estabilidade na concretização. Por instantes olho de longe - já se sabe que tenho medo das palavras - para as formas aqui delineadas, e vejo os modelos dos dias. Estou cansada. Só espero que este pedaço sincronize com as notas do telemóvel. Não quero perder este bloco (não tão) valioso e ter de (re)começar. Agora esbocei um sorriso (enquanto a máquina ecoa pela casa) por ter feito uma descoberta que servirá de mote para algo (um texto, uma programação, um conhecimento adquirido?). No meio de pesquisas que aliviam a minha mente (nesse gosto pela escavação), deparei-me com o trabalho de Ana Nuša Dragan num arquivo de vídeo online. Comecei por “H20”, uma curta-metragem de 2 minutos de 1970 em que o registo visual explora (olha o spoiler do título) diferentes movimentos de toque da água: desde o mar, às bóias, à boca de quem bebe um sumo com as ondas por trás. Um simples gesto de apreciação de um elemento que nos rodeia, que nos constitui, com uma banda sonora ritmada mas quase dissonante. Repleto de (ditas) imperfeições, (de ditos nadas,) este filme termina sem uma conclusão. Vejo no texto da descrição que foi filmado durante a escola de cinema de verão em Koper, em 1968. Sinto que foi um momento de aglomeração de pequenas contemplações, de breves curiosidades de um ambiente que rodeava Dragan. Nessa água ficou, para mim, no entanto, um certo interesse para chegar mais perto. Assim o fiz, graças às possibilidades lançadas pelo arquivo. O que me traz, desta vez, à cabeça uma conversa que tive num festival nos Açores com Pedro Morais, crítico de arte e curador que vive em França. Falava-me de uma investigação que tem feito e partilhou comigo uma curiosidade que me levou à pesquisa [mas, dessa vez, a uma frustração que (penso e espero que) me levará a alguma resolução]. Falou-me de Virgínia de Castro e Almeida: escritora, produtora e cineasta. Mais uma - entre tantas - mulheres apagadas dos livros da história do cinema. Mais uma - entre tantas - mulheres esquecidas no tempo. Mais uma - entre tantas - mulheres de quem me quero aproximar mas em que a procura de poucos resultados traz. Vou parar, para já, por aqui porque tenho de estender a roupa. Mas sinto que já estou a chegar a algum lado. Esboço um tímido sorriso desta vez. É melhor não reler e ficar assim.

Vim a correr para poder terminar pelo menos uma das várias (tantas!) ideias que tenho na mente. A inacessibilidade a vidas, a obras demonstra, por um lado, a falta de reconhecimento da importância no passado. Nem sempre é possível aceder àquilo que se pretende porque, às vezes, não está lá. A ideia de perda histórica, reconhecendo a dificuldade de existência e execução num período de domínio de só de alguns é de um corte profundo. De longe, sente-se bem perto. Os tempos mudaram mas o caminho ainda está a ser traçado. Ouvia a voz de um dos meus colegas de casa a ecoar pelos corredores das traseiras do prédio e pensava no quanto que queremos (e precisamos d)essa projecção. A força está cá (existe! persiste!) mas os espaços estão saturados. A nossa voz, o nosso olhar, as nossas ideias tal como as vossas vozes, os vossos olhares, as vossas ideias deviam (e mereciam) coexistir. Para uma salvação do nosso caminho conjunto - enquanto críticos, leitores, cinéfilos, cidadãos, indivíduos. Perpetuam-se, no entanto, apagamentos do passado. Mas tal como se escava, se (re)descobrem pérolas, aqui também se escreve, se (re)descobrem fórmulas. O futuro terá de estar nas nossas mãos, pois o presente (ainda) não nos pertence.

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Mariupolis (Mantas Kvedaravicius, 2016)

Olho para o fundo de ecrã do meu computador e vejo uma referência de Parajanov (des)construída por Ana Nusan Dragan. Lembro-me das conversas, dos colóquios, das conferências em que tudo acaba por passar por menções dos conhecimentos cinéfilos à base de estruturas designadas como as fundações do cinema. Confesso que, pessoalmente e fora raras excepções, evito colocar em comparação obras ou cineastas. Comparações essas que terminam sempre na visão daquilo que foi dit(ad)o como sendo a história do cinema. Existem referências inevitáveis, não retiro isso. Mas se estamos aqui para reinventar, para desconstruir, poderemos começar a olhar para aquilo que sempre foi considerado à margem? Poderemos procurar a criação de uma história mais digna, mais justa, mais fiel do mundo? Penso no caso de Nutsa Gogoberidze, que é um entre vários (tantos!) exemplos de uma cineasta pioneira no cinema. Mulher, do Leste, que fez somente um filme (por questões relacionadas com o seu género na época e contexto sócio-político em que se encontrava). Não é viável (nem possível) colocar tudo na escrita da história. Mas também não é só através de uma compilação de seis horas com excertos de filmes realizados por mulheres que o problema fica resolvido. Não é só por termos ciclos dedicados a mulheres no cinema que o problema fica resolvido. São passos necessários, mas não é possível descansar: é preciso mais. Urge uma desconstrução diária dos impulsos normativizados. Urge uma atitude (ainda mais) activa de financiamento para a produção de obras, de desenho de programações conscientes, de mudança do paradigma dos indivíduos que assumem posições de chefia. Neste campo de mudança, a crítica também entra em jogo: e é necessário - ou até fulcral - uma alteração que ultrapasse as dinâmicas dos meios (ditos) alternativos e que entre nos meios (ditos) tradicionais.

Tive de sair.

Estou a correr contra o tempo. Meto a máscara. Perdi o comboio. Deixo as notas em aberto - em suspenso, na parte de trás de outras aplicações, interações que pedem a minha atenção - para o caso de ter algo mais para dizer. Mas penso que é esse um dos problemas: achar que há sempre algo mais a dizer, que nunca chega a conclusão. Será talvez uma potencialidade, no entanto? Aquilo que urge o acto de expressão (mais ou menos imediata)? Chegou o comboio. 

Apareceu uma citação de “inspiração” de uma aplicação a dizer “Run Your Own Race”. Acho que todes temos uma relação de “ah, pois é/ew” com este tipo de frases baratas. Acho também engraçado como o algoritmo apanha a quantidade de vezes em que falo e escrevo sobre correria, sobre esgotamento. Agora que estabeleci esta relação com as notas

Parei. Avancei. Este lado de pausas com (outro) significado tem ajudado num certo desbloquear das sensações que reportei no início. Esse medo, essa incapacidade de escrever para algo sem rumo, sem sentido. A divagação a que me propus tem preenchido certos vazios e despertou algo curioso: uma corrente de desinibição de filtros, de edições, de revisões. Não acredito no extraordinário do imediato, mas reforço a minha fé na deambulação.

Aproveito a brecha no cimento para olhar para o Tejo. Uma linha cheia de azul que o Sol faz reluzir de uma forma em que não consigo evitar o deslumbramento. Elementos da simplicidade (sempre) presente. Com deficiência auditiva, com olfacto em declínio, agarro-me às visões propostas pelo mundo. Prendo-me àquilo que me impulsiona na leitura de um universo que não compreendo, mas que me move. Aplico esta filosofia na arte. Dedico este estado à experiência fílmica.

Deixo-me estar nas correntes. Só queria mais espaço, só queria mais tempo. Mas terminou.

Cuidado com os degraus.

Apoiar sobre a barra para abrir.

Bebi um café para me refrescar. No elevador oiço um solo de violino que me transporta nesta elevação de poucos segundos. Tudo isto volta para o plano de fundo.

Por vezes ligo-me ao mundo e observo um aparato que me confunde. A minha bolha, no entanto, dá-me um refúgio ilusório, uma segurança transitória. Todas as questões que coloco são repetidas, ecoadas por mentes sintonizadas. As minhas questões são as nossas: mas quem nos vê? Eu não leio muito desde a faculdade. Talvez se note pela fragilidade da escrita, talvez se denote pela escassez de argumentos, talvez se desmonte no futuro. A minha bolha não é a vossa: venho aqui num gesto de tentativa de aproximação, de contacto. Um toque superficial, desleixado, sem pudor mas repleto de boa vontade.

Imagino que só chega aqui quem revê o texto. Quem diria que havia tanto nada (ou tudo) para sair? O texto nem está a actualizar no computador para poder olhar para a mancha.

Chegada a casa, depois de um longo dia que está longe de terminar, sei o porquê de deixar até ao último momento a lavagem da roupa: a ritualidade do banal soa a perda. Talvez também porque implique um tempo em que, após a finalização da tarefa, seja necessário revertê-la. O roçar dos limites de concretização é o comum. Existe aquele sentido de adrenalina misturado com desculpabilização de possíveis falhas quando se evita a entrega ao máximo. Aplico isso à vida, ao trabalho, à escrita. Este texto é o resultado - ou a materialização - disso mesmo. Pouco ou muito diz, mas tenta acima de tudo apontar para pequenos relances de possíveis notas relevantes. Cada uma estendida, aprofundada, estilizada daria, talvez, mote para uma dissertação. Mas aqui pretendo demonstrar os efeitos de um sistema que nos exige uma constante (in)actividade. Parar é perder; perder é deixar de existir. Mas o que falha mais do que o humano é o que está nas manchas não preenchidas. A incapacidade de dedicação. Talvez esta generalização seja mais uma vez uma forma de desculpar uma situação individual. Mas os radares, mesmo que em permanente captação, conseguem registar uma fadiga natural deste mundo (quase insano). É nestes moldes que a arte da crítica (pode) acontece(r). A poesia está nestas prosas do concreto, a magia está na arte da ilusão.

 

*Texto da autoria de Teresa Vieira, crítica de cinema, programadora e jornalista cultural. Podemos encontrar o seu trabalho na Antena 3À Pala de Walsh e no Cineuropa.