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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Como ver a “Índia por um canudo” ...

Hugo Gomes, 06.05.23

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Karen (Denise Fraga) deseja estabelecer um tipo de contacto espiritual com a cidade de Lisboa, um refúgio à sua melancolia, e para isso contrata os serviços de guia turístico-histórico de Tiago (Pedro Inês), especializado, pouco ortodoxo, e ainda assim de jeitos metódicos. Na primeira digressão pela capital portuguesa, a brasileira Karen deslumbra-se com a fachada do Teatro de São Carlos, sob os anúncios da ópera de Giuseppe Verdi - “La Forza del Destino” -, dirigindo-se ao seu guia com a hesitante contestação - “É a ópera?” - no qual é recebida com tamanho desprezo pelo mesmo - “Lisboa é uma cidade feita de muitas revoluções, vou falar de alguns, mas digo-lhe já que das ‘fachas’ não falo…”. 

Com isto, “Índia”, a primeira longa-metragem de Telmo Churro, esclarece ao nosso espectador o tipo de figura que este protagonista será, um “Ramiro” de Mozos doente, “esquerdinado” e agressivo-passivamente embargado na sua própria tragédia. A tragédia de não se revoltar, ou metamorfosear para algo acima da mortal e inútil carapaça, da mesma forma que Lisboa manifestou ao longo da sua “existência”. Nisto chegamos à "Índia", através de um invisível caminho marítimo, nas caravelas velejadas e conduzidas nos sugeridos azimutes da Rosa dos Ventos, aqui, Churro, o escritor e editor tão lá da casa da produtora “O Som e a Fúria”, se tem definido como um farol estético e temático do cinema de Miguel Gomes, sobretudo, ou do já mencionado “Ramiro” de Manuel Mozos (a referência não foi ao calhas). O Adamastor de uma Lisboa “afundada” num estado de graça saudosista e em plena fase de negação, mística e detentora de uma veia cínico-fabulista. 

Digamos que é a cidade de João César Monteiro sem o seu espírito de irreverência, sem a sua perversão e ocultismo cinéfilo, são os “rebentos”, as vagas e vagens deixadas e semeadas em terra de ninguém, contudo, se Miguel Gomes criou nos embarques da África Colonial ou dos ditos e feitos à lá Sherazade um sinónimo seu, e do outro, Mozos, figura patusca, algo zeitgeist de um cinema paralelamente projetado e idealizado, Churro revela-se incapaz de emancipar dos seus colhidos frutos. Não por estas tormentas condenar “Índia” à perfeita inutilidade, é um filme de espaços, não físicos, e sim temporais, onde cada ideia se amontoa na outra, consequentemente criando num alinhar de tendências e criatividades inutilizadas pelo seu ego. 

Se ficamos encantados com Karen, essa personagem evadida do seu próprio espaço, comunicando com a ausência como Nanni Moretti fizera nos últimos tempos, por outro, sentimos esvaziados com a ridicularidade com que Tiago se assume. Em teoria, são maçãs do mesmo ramo, figuras lidando com o seu próprio desterro, mirando Índia por um canudo”, essa sua respectiva idealização de felicidade, nem que seja temporária. Karen consegue, com serenidade e tréguas com a sua tragédia, enquanto que Tiago, a sua inquieta e inconsolável dor o enquadra no perfeito caos. Em “Índia”, Churro persiste num filme visto e revisto quanto aos seus graus técnicos e processuais, sendo que no fundo uma história, ou antes, uma alegoria é encenada e relida à luz das idiossincrasias.  

 

Ele está a contar uma história?”

“Acho que sim … mas eu não estou entendendo nada.”

“Quer que lhe vá explicando.”

“Não deixa, isso já está passando.

Manuel Mozos: "Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar"

Hugo Gomes, 10.03.18

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Manuel Mozos

Manuel Mozos é uma peça importante no cinema português contemporâneo. A sua geração, na qual cabem autores como Pedro Costa, Teresa Villaverde e Joaquim Leitão, tem sido apontada desde sempre como “salvadores” de um cinema escasso. A sua prolificidade tem o transformado numa figura constantemente presente, contudo, em comparação com os demais, a sua visibilidade é quebradiça. A culpa, possivelmente, é de um certo e proclamado fantasma: Xavier.

De qualquer modo, é “Ramiro” que com carinho o recebemos no seu regresso à ficção, nove anos depois de “4 Copas”. Esta história de um alfarrabista preso à sua passividade e ao passado glorioso que deixou fugir entre mãos é uma comédia tragicómica que vai ao encontro de uma Lisboa a passos da sua modernidade, assim como da personalidade que Mozos assume nesta “Glória que é Fazer Cinema em Portugal”.

De onde surgiu a ideia de Ramiro?

Bem, a ideia não é minha. Esta surgiu de Telmo Churro e de Mariana Ricardo, que escreveram o argumento, e me propuseram certo dia. Aceitei e, uns dias depois, eles apresentaram-me uma versão reduzida que gostei. Foi então que incentivei-os a avançar com essa mesma ideia. A partir daí trabalhamos em conjunto, tínhamos reuniões, encontros, mais propriamente, íamos falando. No fundo […] o projeto encontrava-se bastante próximo daquilo que tenho feito na arte da ficção. Uma intriga sobretudo centrada nas personagens, sendo a central alguém um pouco desfasado da realidade, e os espaços que vão desaparecendo e que se vão transformando.

De certa forma, Ramiro é uma personagem tragicómica, como disse, o seu mundo está a transformar, mas ele não recusa tal metamorfose.

Ou seja, a ideia era mesmo ter esse pendor tragicómico. Porém, não queríamos uma personagem somente restringida a esse sentido. Não pretendíamos um “velho do Restelo”, que olhava permanentemente ao “antigamente”. Queríamos fragilidades, uma figura inábil na sua relação com os outros, criando assim uma certa comicidade, digamos.

Existe uma frase dita pelo próprio Ramiro que desmistifica toda a sua personagem que é “E foi então que descobri que sou um ser passivo”. Aliás, porque como nós já percebemos, o mundo mudou mas ele não quer saber dessas mudanças.

Concretamente há uma certa resistência saliente da parte dele em fechar-se ao Mundo, não é que esteja contra o Mundo, mas ele próprio forma ao seu redor um casulo. Depois, quando tenta espreitar fora dele, depara-se com um cenário não muito confortável. Ramiro vai repentinamente viver com algumas situações que para pessoas “mais normais” [risos] não seria nenhum problema, mas para ele são grandiosos desafios, porque simplesmente limitou-se àquela redomazinha, o entre a casa e a loja, a loja e a tasca com os amigos. Um mundo pequenino, portanto.

E aí entra o paralelismo com as novelas. Ramiro consegue por fim ver telenovelas no ecrã e subitamente a sua vida transforma-se em conformidade com isso.

Sim, queríamos brincar com essa dimensão. Ele não ligava às novelas e à conta de outros acaba por tornar-se espectador das mesmas. As novelas acabam por ser um reflexo do mundo em que ele vive, que transforma-se num autêntico conto novelesco.

Quanto à entrada de António Mortágua no elenco? A sua escolha até o processo criativo da personagem.

Não gosto de fazer castings, até porque a certa altura, tendo um argumento sólido, começo a pensar quais os atores que servirão para essas personagens criadas. Uns são mais fáceis de encaixar, outros mais complicados, consoante as hipóteses e dependendo do conhecimento que tenho desses mesmo atores. O único casting feito para “Ramiro” foi o da personagem de Daniela, que seguiu para Madalena Almeida, devido à sua faixa etária. Esse casting exigiu muito trabalho, visto que muitos desses candidatos são atores que fizeram pouco ou que ainda estavam a estudar interpretação. Muitos deles apenas sonhavam.

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Ramiro (2017)

O caso do António foi mais complexo. Eu conhecia-o, não pessoalmente, de duas peças de teatro, e ele não tinha feito nenhum filme. Portanto, decidi arriscar e contactei-o. Ele ficou surpreendido, até porque não estava à espera de fazer cinema, assim me disse numa conversa muito aberta, onde também lhe confessei o pouco que conhecia do seu trabalho. Começamos a fazer ensaios e a perceber melhor como iriamos conceber a personagem central. Pouco a pouco, íamos tendo conversas sobre o argumento, sobre a personagem e às tantas julgo que ficamos convencidos que valia a pena o risco. Sinceramente, estou bastante satisfeito com a decisão dele e da sua parte julgo também estar.

Até que ponto esta personagem do Ramiro tem um polvilhar de autobiografia?

De alguma maneira sim. Na verdade, quando li a primeira versão do argumento que me entregaram automaticamente exclamei, pelo que eles afirmaram: “Sim, é verdade. Por isso é que propusemos a ti”.

De facto, o que não quero é que julguem que aquilo representado é a minha vida. Sim, existem algumas similaridades, ou proximidades da minha vivência com a do Ramiro, sem dúvida, mas isto não é um filme autobiográfico. Ao trabalhar no filme notei sobretudo esses elementos, mas de certa forma os meus filmes anteriores já indiciavam isso, essa conformidade para com a minha vida. Aqui talvez possa ter mais proximidade, mas sempre vi este lado biográfico representado em outros projetos meus como “Xavier” ou “… Quando Troveja”, que respetivamente marcam e espelham etapas da minha vivência. Em relação a “Ramiro”, não gosto de carregar isso, quem me conhece poderá identificar tais ligações.

O Manuel tem a consciência de que a personagem do Ramiro possui um livro da sua autoria que é visto como uma obra fundamental da literatura portuguesa, mas esquecido e cujos objetivos não foram cumpridos. Isso torna-se uma alusão ao seu “Xavier”, cujas infelicidades de produção o desviaram da obra que poderia ter sido. Quero com isto pegar numa frase apropriada de um documentário, “Glória de Fazer Cinema em Portugal” – Custa fazer Cinema no nosso país?

Sim, custa. E se custa. Mas não é só para mim, é para todos. Obviamente o título de “Glória de Fazer Cinema em Portugal” possui uma carga irónica, principalmente para mim hoje. Mas nem sempre foi assim, quando estava a fazer o “Xavier”, detinha um certo tipo de ambição, aliás trabalhava no filme um ano depois da primeira obra – “Um Passo, Outro Passo e Depois…”.

Mas foi a partir daí que as coisas mudaram, quer dizer, até certa altura pensava “isto está a correr bem”, mas o “desastre” trazido por “Xavier” [devidos a problemas de produção] colocou isso de parte. Apesar de tudo, consegui ir fazendo filmes, uns mais visíveis, outros menos visíveis, e num determinado ponto, visto que já não tenho a juventude, nem o fulgor de há trinta anos, posso fazer uma auto-ironia daquilo que faço, e por outro lado estar apaziguado com essa ideia.

Há ainda esse lado, o do realizador que teve um percalço e ficou numa situação esquecida de visibilidade. Esse é um lado que pode aproximar à figura do Ramiro, que trará escrito um livro importante de qualquer maneira, mas de algum modo bloqueou a sua criatividade.

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Xavier (1992)

Mas ao contrário do Ramiro, o Manuel não bloqueou …

Sim, não bloqueei, mas em termos de visibilidade é um bocado parecido. O de viver com a ideia de que poderia ir para um lado mas a carreira não seguiu. Nisso sim, há um paralelismo com o Ramiro.

De certa forma é um pouco triste todos relembrarem que foi o realizador do “Xavier” e constantemente estarem a trazer isso à tona?

Não. Para já, há algo muito curioso que é o facto de muita gente não ter visto o “Xavier”. Sim, podem falar ou conhecer a história por detrás, mas são mais aqueles que o nunca viram. Por outro lado, felizmente, isso já é levado por outros dois filmes meus que eventualmente tiveram mais visibilidades, como no caso do “Ruínas” e do “Outros Amarão As Coisas que eu Amei”, ou até mesmo o já referido “Glória de Fazer Cinema em Portugal”, que de algum modo me deram um outro tipo de atenção. Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar [risos].

É certo que em “Ramiro” encontramos influências do cinema de Miguel Gomes, aliás, recorda-se que trabalhou em inúmeros projetos do realizador e os argumentistas de Ramiro são colaboradores habituais.

Nós conhecemo-nos pela primeira vez no Porto durante uma edição do Fantasporto, onde projetava o meu “… Quando Troveja”. Na altura, Miguel era jornalista do Público, e em alturas do festival escreveu uma crítica muito benéfica, aclamado que o filme seria uma referência no cinema português. Lá contactou que gostaria de fazer-me uma entrevista e fez, e foi a partir daí que, de algum modo, criamos uma amizade.

Na sua segunda curta-metragem (“Inventário de Natal”), o Miguel convidou-me para o cargo de anotador e responsável pela montagem do filme, uma colaboração que foi repetida com a sua primeira longa (“A Cara que Mereces”), onde trabalhei no argumento ao lado de Telmo Churro. Mais tarde conheci a Mariana Ricardo.

Quando tinha o projeto “Ruínas”, pertencíamos todos à mesma produtora, sendo que criamos uma espécie de relação quase familiar. Obviamente não é a única produtora em que tal sucede. Várias começaram desta maneira. Apesar de tudo, o Miguel nunca faria o “Ramiro”, assim como eu não faria o “Mil e uma Noites”, não por não querer, mas se isso acontecesse resultariam filmes completamente diferentes. O cinema do Miguel é dele mesmo, o meu é o meu. Não sei até que ponto as influências são óbvias, mas acredito que o facto dos argumentistas oscilarem entre projetos, compõem uma espécie de núcleo o qual o Miguel assume. Núcleo base como motor da sua filmografia. Não trabalho assim, porém, se eles [Churro e Ricardo] propuserem outros argumentos para mim, ótimo.

Um facto curioso, "Ramiro" foi o filme escolhido para abrir a passada edição do Doclisboa …

[risos] Confesso que também fiquei surpreendido após a proposta do Luís Urbano [da produtora Som e Fúria], e ao mesmo tempo hesitante, visto que é uma ficção e não um documentário. Então falei com a direção do Doclisboa que se sentiam agradados com a escolha. O argumento encontrado é a possibilidade de abrir portas no festival, não restringindo a um só formato de cinema.

É verdade que a fronteira do que é documentário e do que é ficção vai-se esbatendo ano após ano, mas mesmo assim … abrir um festival especializado em documentários. Lá, eles alegaram que de certa maneira “Ramiro” possui uma face documental, o retrato de uma Lisboa em transformação, e cuja inserção na programação poderia levar o festival a passar ficções, até porque os planos deles são apresentar retrospetivas de autores que desbravaram nesses dois mundos. Se formos a ver bem as coisas, o Indielisboa, por exemplo, não passa só cinema independente, nem o Curtas Vila do Conde é exclusivo a esse formato.

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Ramiro (2017)

Pegando nesse termo, “o retrato de uma Lisboa em transformação”, e no seu documentário, "Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista", considera a cidade num local eficazmente cinematográfico?

Absolutamente. Lisboa é definitivamente cinematográfica. Desde o ambiente à sua atmosfera e até mesmo a qualidade e a disponibilidade da luz, apesar disso ser por vezes um pesadelo para os diretores de fotografia. Mas falamos de Lisboa, assim como falamos do Porto, que é igualmente cinematográfica, mesmo soturna e mais pesada. Aliás, gostaria de reformular que Portugal tem das cidades mais cinematográficas.

Novos projetos?

Quase garantidamente estou com um documentário, mas ainda não sei quando irei filmar e antes disso vou preparar o trabalho de pesquisa. Terá algumas proximidades com o “Ruínas”, e será sobre espaços concentracionários no qual esbarrarei em algumas figuras históricas, como por exemplo Camilo Castelo Branco e o poeta António Gancho. Será um filme que relaciona espaços com as personalidades.

Ainda tenho algumas outras curtas a serem preparadas, mas ainda em fase embrionária. De momento procuro ideias para uma nova ficção.

Um “loser” à moda alfacinha

Hugo Gomes, 21.10.17

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Ramiro é aquilo a que poderíamos apelidar cinematograficamente de «loser», uma personagem à deriva da sua sorte, encostada às “cordas” do passado, da glória que lhe nunca passou, nem sequer o esforço que detêm para a atingir. A certa altura, o protagonista-título confessa aos seus amigos que acabara de descobrir a sua passividade (“Sou uma pessoa passiva”), sequência-chave que revelará por completo a sua anti-tour de force, até porque o seu talento, diversas vezes mencionado por outros, nunca fora devidamente reconhecido, assim como conquistado. O seu proclamado bloqueio criativo é simplesmente fruto desse autodesprezo.

Mas Ramiro não é de todo um desprezível, é dotado de uma boa índole, o espectador crê isso através dos seus atos minuciosos, na sua teimosia controlável que nos leva aos seus próprios demónios, o medo; o medo de falhar, automaticamente, o medo de tentar.

É fácil simpatizar com este Ramiro, nem que seja pela interpretação derivante do ator António Mortágua, um laço de empatia com uma audiência que se lança nas prateleiras de um alfarrabista em busca de preciosidades. O que encontramos é “livros esquecidos”, estilos não vingados, enredos antiquados com o intuito de agradar aos “velhos do restelo” ou os reféns das “coisas que outros amaram”. Porém, e utilizando esse mesmo lugar, “Ramiro” enquadra-se num cinema português desadequado, não pela inutilidade estilística, mas como oposição às novas vagas que tendem em: a) manejar a experimentação narrativa e visual no qual diversas vezes disfarça a pura incapacidade; b) a sedução pelos formatos wannabe hollywoodescos, de forma a repudiar toda uma História da nossa cinematografia.

Tal como a personagem, Manuel Mozos cria um filme passivo na sua positiva afirmação, até porque é em “Ramiro” que evidenciamos um cinema lúcido, intrinsecamente português-alfacinha e discretamente irónico, mesmo sob as influências de João César Monteiro e dos seus constantes e castiços trocadilhos. Talvez tenha sido a experiência com Miguel Gomes, outro influenciado pela natureza do anterior “João de Deus”, o catalisador para esta invocação. Porém, Mozos não pretende o mero tributo. O filme concentra-se sobretudo numa saudação, a vénia a uma iminente emancipação, assim como a transformação de Ramiro após a perda do seu mentor.  

Eis um pequeno achado do cinema português, um “livro” poeirento e esquecido na mais oculta das prateleiras que resulta na mais graciosa das descobertas. Sem alterar o curso do nosso cinema, temos aqui filme e não pretensões.  

Oh venturoso Rei, fui sabedora de …

Hugo Gomes, 24.09.15

O Inquieto

Logo na sua introdução, quando confrontado com a questão de que ligação teria o encerramento de um estaleiro e a exterminação de uma praga de vespas asiáticas em Viana, a resposta negativa de Miguel Gomes foi dada da seguinte forma: “eu sou estúpido e a abstração dá-me vertigens“. Depois disto, e repentinamente, o realizador foge da cena como o diabo foge da cruz.

Os vinte minutos que sucedem levam-nos ao encontro de um retrato “docuficcional”, esse subgénero que a cinematografia portuguesa adotou com todo o coração. Nesse preciso momento pensamos estar perante em mais um enésimo registo etnográfico, um revisitar aos códigos canónicos do género, ou até mesmo (visto Miguel Gomes protagonizar uma sequência intimista de um filme dentro de um filme) numa reciclagem à estrutura do seu “Aquele Querido Mês de Agosto”.

Mas passados vinte minutos tudo pára. A promessa é dada em forma de “imaginem só isto” e voilá, eis que começa realmente “As Mil e uma Noites”, a prometida epopeia portuguesa que tem como base a estrutura narrativa da clássica e homónima compilação de histórias persas. Nesta versão, as histórias mirabolantes de um país arruinado pelo comando de “belzebus“, como a certa altura são descritos os governantes de Portugal, serve de substituição aos contos narrados por Xerazade: para entreter o cruel rei Shariar, a fim de alimentar a sua curiosidade e assim adiar a derradeira noite de núpcias. É um mundo fantástico criado através de uma imaginação corrosiva e trocista na caricatura e, com isso, sublinhar a “portugalidade” da sua gente. Nisto, Miguel Gomes consegue atingir a crítica social.

Dividido em três “grossos” atos, todos eles sustentados por tons distintos, começamos por elaborar uma sátira à política, não só portuguesa, como também europeia. Em “The Men with Hard-Ons” o absurdo ganha vida e funde-se com a referência persa, na qual as maldições dos feiticeiros e os fundos europeus caminham lado a lado. Depois deste “aperitivo” segue-se algo mais rústico, e igualmente surreal: “The Story of the Cockerel and the Fire”, passada na aldeia de Resende, onde um galo que canta a desoras gera um movimento social e uma onda de protestos pela liberdade de expressão. No decorrer deste episódio espalhafatoso está um trio amoroso cujas consequências são catastróficas.

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Encantados até com aqui com todos estes paradoxos e caricaturas em dívida com o surrealismo, surge-nos “The Swim of the Magnificents”, provavelmente o mais emocional e revoltado dos três enredos apresentados. O ator Adriano Luz desempenha um professor de natação que planeia os banhos do dia 1 de janeiro, um ritual local, mas que para este possui um significado mais profundo. Neste episódio, o intimismo de Miguel Gomes revela-se mais humano e corajoso em abordar algo que poderia ser motivo de atenção para telejornais ou programas televisivos matinais. É aqui que “As Mil e uma Noites” funde por completo a ficção com o seu lado mais vérité, onde os testemunhos dos desempregados, mais corretamente denominados de “desesperados”, auferem um registo coletivo, tudo enquanto Gomes faz maravilhas com a câmara.

As sequências tornam-se melancolicamente memoráveis, proclamando a extinção de um mundo fantástico e pagão e abrindo portas ao realismo do quotidiano e social, o nosso Portugal.

Terminado o primeiro trio de histórias, confirmamos o que já havia sido afirmado: Miguel Gomes é a cabeça de uma nova vaga Portuguesa. Comparando com a nouvelle vague Francesa ou não, a verdade é que há muito não víamos cinema português tão revitalizante, complexo e, sobretudo, tão criativo.

O Desolado

É entendido que o realizador do muito prestigiado “Tabu” conseguiu captar a atenção de todos ao esboçar um mundo que funde a realidade com um surrealismo caricato e sempre abrangido por um constante tom de denúncia. Esse extenso surrealismo é salientado logo na primeira história logo após do intervalo – “Chronicle of the Escape of Simão ‘Without Bowels’ (Crónica da Fuga do Simão ‘Sem Tripas’)” – no qual seguimos um fugitivo à polícia em montes de aldeias vizinhas de Viseu. Uma história que na prática soa-nos mirabolante e, contudo, familiar, na verdade inspirado num mediático caso real que fez as manchetes dos nossos jornais. Aqui, Miguel Gomes revela uma faceta mais contemplativa, mais paciente e nem por isso menos lunática, trabalhando com atores (Chico Chapas) e alguns não-atores. “Mil e uma Noites” invoca uma linguagem enraizada na nossa “portugalidade”.

Porém, o ritmo fraqueja levando Gomes, infelizmente, a cair no erro dos muitos “autores” portugueses. Mesmo assim, a narração é digna de um ar de revolta constante, ares que se prolongam ao ato seguinte, “The Tears of the Judge” (“As Lágrimas da Juíza”), uma verdadeira queda de dominós que expõe um "caldeirão" de problemas estruturais que assolam a Nação. Luísa Cruz consegue levar a sua personagem ao extremo, num misto de teatralidade com o seu ego oculto e uma vontade inerente de denúncia. Se Simão ‘Without Bowels’ foi a menos conseguida das histórias, aqui Miguel Gomes encontra a sua pequena “obra-prima”: um vórtice de bizarrices, comédia non sense e uma crítica sem receios.

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Diríamos que estamos no auge das “Mil e uma Noites”, apogeu que acalma com a passagem ao conto seguinte, “The Owners of Dixie” (“Os Donos de Dixie”), que tal como acontecera com a primeira parte [“O Inquieto”] é o último tomo onde é transferida toda a emoção antes ignorada. A jornada de um cão e dos seus donos recebe contornos etnográficos ao tentar esboçar a comunidade de um bairro suburbano de Lisboa. Três atos sob tons opostos e divergentes que indiciam uma só verdade: Miguel Gomes é um conhecedor nato de todos os códigos do cinema português, sendo óbvio que a sua carreira enquanto crítico favoreceu essa diversidade criativa, a qual não se via desde João César Monteiro.

O cinema contemplativo da genérica definição de “autor” português em Simão ‘Without Bowels’ (sem negar os traços de António Reis e Margarida Cordeiros, e todo os seus “filhos paridos”), o conto ácido e de influências teatrais de um Manoel de Oliveira em “The Tears of the Judge” e o cinema sociológico captado por um Pedro Costa ou Marco Martins na última, fazem daqui três histórias, três estilos diferentes, três razões para proclamar “As Mil e uma Noites” como um grande evento do cinema português e até mesmo mundial. Mas acalmemos, Xerazade ainda não se calou, o rei ainda não está satisfeito, a sua curiosidade é alimentada, mas não por muito tempo. 

O Encantado 

As anteriores histórias bastariam para confirmar o quão gratificante é este novo projeto de Miguel Gomes, há nele referências, estilos, alusões, um conjugado filme-denúncia, frontal, emaranhado em "lençóis" irónicos e caricaturais. Ao terceiro mandamento, o realizador guia-se novamente por essas matrizes do nosso cinema para encerrar um épico fílmico sustentado por uma militância quase guerrilheira. Portanto, reiniciamos na “paz do Senhor”, e vislumbramos o próprio mundo de Xerazade (Crista Alfaiate), a bela jovem que é obrigada a casar com um tirano e angustiado Rei, célebre por matar as suas esposas após a primeira noite núpcias. 

Para além de bela, Xerazade é também inteligente, culta e possuidora de dotes oratórios, virtudes que a auxiliam no seu prolongado plano de sobrevivência. Todas as noites, ela narra uma história sobre um país longínquo e respetivas crónicas mirabolantes envoltas, de forma entusiasmante para que o rei se encha de curiosidade e aguarde pacientemente pela noite seguinte para mais uma história, evitando assim, a mortal noite de núpcias. O primeiro plano deste arranque é quase todo ele um tributo ao cinema mais marginal de Fritz Lang, “The Indian Tomb”, para depois se incorporar na intimidade das imagens invocadas. Este mundo descrito por Xerazade, tem de tanto místico como alusivo, de caricatural como de surreal.

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Uma opção arriscada por parte de Miguel Gomes para complementar este terceiro fôlego com uma sentimentalidade e cariz distinto, para depois avançar para um profundo registo etnográfico, enquanto mergulha no submundo dos “passarinheiros”e dos seus tentilhões em “The Inebriating Chorus of the Chaffinches” e a cruza com imagens dos protestos policiais ocorridos em novembro de 2013, em simultâneo, com o relato de uma imigrante chinesa “Hot Forest“, uma combinação sobretudo bizarra mas que de certa forma fiel ao paralelismo iniciado por esta aventura: o encerramento dos estaleiros com a dizimação das pragas de vespas asiáticas em Viana do Castelo. Um paralelismo que o próprio Miguel Gomes revelou ser de uma “abstração que lhe dá vertigens“, para poder encenar de seguida o papel de realizador desaparecido.

Desaparecido, enquanto corpo, porque a alma de autor encontra-se nas mais tenras veias deste “Mil e uma Noites”, a maior epopeia cinematográfica do cinema português. E assim Xerazade se calou, sem voz ou simplesmente a curiosidade do seu monarca terminou. É o prenúncio do seu fim, a predestinada morte após a primeira noite de prazer não-consensual. O que resta dela?  Ficou um espectro e a memória efêmera do seu carrasco. O que deixou? Uma obra-prima, e digo-o sem modos nem hesitações. 

Das maiores obras cinematográficas que este triste país entre os países chegou a produzir.