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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Denise Fernandes: "A autenticidade, para mim, não é algo que se procura, mas sim algo que se respeita."

Hugo Gomes, 15.05.25

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Peço desculpa pelo que vai acontecer [risos]. Tenho conversado com alguns colegas meus que já a entrevistaram nos últimos dias, portanto, algumas questões que lhe farei já as fizeram anteriormente”, “Não faz mal [risos]”, responde a voz do outro lado da linha.

Uns quantos aviões passam. Lisboa, de céus tão exaustos desses aços alados, deixa-se rasgar por um barulho por vezes insuportável. Contudo, nem as forças antagónicas saídas do aeroporto Humberto Delgado impediram a conversa — breve, mas reveladora — com Denise Fernandes, laureada há poucos dias na 22.ª edição do IndieLisboa, ao conquistar a Competição Nacional com a sua primeira longa-metragem, “Hanami”. Já consagrado em Locarno, chega agora às salas portuguesas prometendo um bilhete, só de ida, para a Ilha do Fogo, em Cabo Verde.

O filme aponta mar adentro até desembarcar no refúgio atlântico, entre escombros e casas-fantasmas, onde a pequena Nana, nascida e criada ali, vê os outros partir e “conquistar Mundo”, esse mesmo que, para ela, apenas presente naquele pedaço de terra à beira do vulcão. Em contraste com o ruído incansável de Lisboa, aquele paraíso insular instala-se num silêncio quase melódico. Por entre festejos de funaná com muita comida e doces de coco para sobremesa, é nas proximidades do cume e da terra batida em cinzas que a ausência de som nos transporta para outras eras, ou, quem sabe, para outros realismos, mágicos até. Contudo, Denise Fernandes não quer delirar: quer autenticar. Ir atrás do que realmente representa Cabo Verde — as suas gentes, as diásporas, as antípodas, a identidade de “ser cabo-verdiana”.

Sem mais demoras, segue uma breve conversa do Cinematograficamente Falando… com a realizadora: sobre a obra-destaque, os olhares, existencialismos e simbolismos, e, acima de tudo, autenticidade. A palavra de ordem.

... Só um momento... vai passar mais um avião!

Antes de conversarmos gostaria de lhe dar os parabéns pelo Prémio do IndieLisboa [Competição Nacional], do passado domingo, como também pelos prémios conquistados no Festival de Locarno no ano passado [Cineasta do Presente em 2024]. Portanto, começo exatamente por aí: sendo “Hanami” a sua primeira longa-metragem, o que significam para si estas distinções? E que tipo de impulso ou motivação podem trazer à sua carreira?

A maior recompensa para um filme como “Hanami”, que não é de todo um filme comercial, é, sem dúvida, a visibilidade. Filmes independentes, de autor, não têm o mesmo acesso a promoção e distribuição que os comerciais. Por isso, o reconhecimento através de prémios pode dar precisamente isso: mais visibilidade. E essa mesma é essencial para projetos com esta dimensão.

Antes de Hanami, a Denise já tinha realizado algumas curtas, nomeadamente “Nha Mila” (2020), estreado também em Locarno, que lhe deu alguma projeção. Que desafios encontrou na transição para a longa-metragem?

Foram muitos. Quando estudamos cinema, como foi o meu caso, fazer curtas faz parte do percurso académico, mas não há um caminho claro ou direto para seguir para uma longa. É um processo muito mais longo e complexo.

Tudo o que acontece antes de filmar uma longa envolve anos de desenvolvimento, preparação, tentativas de financiamento. Um dos maiores desafios foi, precisamente, perceber como se faz uma longa: por onde começar, o que é suposto fazer em cada fase. E isso varia muito: depende do país, do contexto de produção, da língua, do sítio onde se vive.

No meu caso, o primeiro grande desafio foi este: tinha uma ideia, mas como é que chego a concretizá-la?

Numa recente entrevista foi abordada a questão do regresso a Cabo Verde. No entanto, mencionou que não é originária da Ilha do Fogo onde o filme decorre. O que a atraiu cinematograficamente nessa ilha, ao ponto de situar aí uma história tão pessoal?

É verdade, os meus pais são da Ilha de Santiago, não do Fogo. Mas muitos dos temas abordados em “Hanami” — a diáspora, a espera, o vínculo ao território — são comuns à identidade cabo-verdiana no geral. Então, mesmo não sendo do Fogo, esses temas dizem-me respeito. Escolhi a Ilha do Fogo porque as suas características — tanto geográficas como simbólicas — estavam alinhadas com a história que queria contar. Foi quase ao contrário: primeiro escolhi a ilha e só depois surgiu a história. Para mim, “Hanami” não podia acontecer noutro lugar. A ilha, com a sua paisagem, a sua energia, foi determinante.

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Denise Fernandes e o produtor Luís Urbano [O Som e a Fúria] durante a apresentação de "Hanami" na antestreia no Batalha Centro de Cinema.

Numa outra entrevista, julgo que foi uma reportagem de Cabo Verde onde a Denise iria programar sessões do “Hanami” para a comunidade da Ilha do Fogo, ressaltou a importância de trazer autenticidade às pessoas e aos locais retratados no filme. Tendo em conta que a Ilha do Fogo tem sido representada por realizadores estrangeiros — como Pedro Costa, entre outros —, gostava que me falasse sobre essa necessidade de um olhar interno. E também sobre o realismo mágico presente em “Hanami, como é que ele se cruza com esse conceito de autenticidade?

A autenticidade, para mim, não é algo que se procura, mas sim algo que se respeita. É um compromisso com as pessoas que vivem aquilo que estou a filmar. Sendo cabo-verdiana, embora não do Fogo, senti que o mínimo que podia fazer era garantir que quem vive na ilha se reconhecesse no retrato que apresentava.

Quanto ao realismo mágico, não foi uma escolha estilística deliberada no sentido clássico. Cresci a ler livros infantis onde tudo era possível; personagens que voavam, portas que se abriam para jardins infinitos. Mas raramente vi essas possibilidades aplicadas ao contexto africano. Era como se a África fosse sempre apresentada como lugar de limites, de carência. Com “Hanami, quis contrariar isso.

A “magia” no filme não foi inventada, ela já lá estava, na forma como as crianças veem o mundo, nos rituais, na paisagem. Apenas a aceitei como parte do universo. Para mim, filmar o realismo mágico foi filmar o real, só que com os olhos de quem está disponível para ver o invisível.

Quando pensamos na Ilha do Fogo no cinema, é difícil não lembrar imediatamente de “Casa de Lava”, do Pedro Costa, por exemplo, e de outros autores portugueses que, depois dele, foram a Cabo Verde retratar as suas próprias ideias sobre o país. O seu filme parece contrariar essas visões externas. Tem alguma posição sobre essa tradição? Vê o “Hanami” como um gesto consciente contra esse olhar?

Sim, tinha consciência de que a Ilha do Fogo já tinha sido filmada por olhares exteriores, e, de certa forma, também o meu é um olhar exterior: como disse sou da diáspora e não nasci naquela ilha. Mas escolhi não me focar nesses outros filmes. Quis concentrar-me no meu percurso, no que desejava contar.

Dito isto, claro que desejo uma mudança: um futuro onde as histórias de Cabo Verde sejam contadas de dentro para fora. Onde a ilha não seja apenas um cenário exótico, mas um lugar com voz própria. O ideal seria que os próprios realizadores cabo-verdianos tivessem os meios e as oportunidades para narrar o seu país. O que já foi feito está feito — não costumo comentar. O que me interessa é o que ainda está por vir, e o que podemos construir a partir de dentro.

Mas existe um momento, diria até, quase de antípoda no seu filme. Há uma energia japonesa, não só representada no título da obra (“Hanami” = palavra nipónica que significa “contemplar as flores de cerejeira”) como também em vários elementos a certa altura. Porquê o de cruzar estes universos tão distintos? Há uma tentativa de aproximação entre culturas que aparentemente estão nos antípodas?

O tema do Japão é, ao mesmo tempo, simples e complexo. Não queria que o filme fosse só sobre uma ilha isolada no mundo. Queria mostrar que essa ilha também pode estar ligada ao resto do mundo, que há pontes possíveis, mesmo que pareçam improváveis. E, pessoalmente, novamente, enquanto cabo-verdiana da diáspora, cresci com uma certa narrativa sobre África como um lugar distante, quase incomunicável com o resto.

Aceitamos muitas vezes essas narrativas sem as questionar, e isso é doloroso. O que tentei fazer com o “Hanami” foi contrariar isso: criar uma metáfora de aproximação. A presença japonesa não é um exotismo gratuito, é um exercício de empatia, de espelhar experiências humanas aparentemente distantes que, afinal, podem ter muito em comum. 

Posso avançar que a tartaruga presente nesses “espaços de aproximação” funciona como uma subtil representação do Tempo? Ou é apenas a minha leitura?

A tartaruga? Sim, pode representar muitas coisas — o tempo, a continuidade, o ritmo da natureza. Mas prefiro deixar isso aberto à interpretação de cada um [risos].

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Voltando ao território da autenticidade, e novamente àquela reportagem em Cabo Verde: você falou sobre trabalhar com não-atores. Gostaria de saber mais sobre essa escolha e como isso se relaciona com a autenticidade do filme.

Na verdade, essa não foi uma escolha consciente no sentido de querer trabalhar com não-atores. A realidade é que estamos a falar de Cabo Verde, de um país que não tem uma indústria cinematográfica forte, como em Portugal, França ou nos Estados Unidos, onde há uma enorme disponibilidade de atores profissionais. Para fazer um filme em Cabo Verde, na Ilha do Fogo, e especialmente em locais remotos, como o Pacífico, sabia desde o início que ia ser feito com pessoas locais, da própria ilha. Quase todos os atores portugueses presentes no filme nunca tinham feito filmes antes. Isso não era apenas uma escolha minha, era uma realidade do contexto em que estávamos a trabalhar.

No entanto, penso que isso acabou sendo uma das maiores riquezas do filme. Eles trouxeram uma autenticidade e uma naturalidade para as suas personagens que não teria conseguido alcançar de outra forma. Mesmo sabendo que não eram profissionais, eles deram muito ao filme. Para mim, trabalhar com não-atores foi uma maneira de ter uma conexão mais direta e genuína com as pessoas e a história, sem as formalidades e os limites que às vezes um ator profissional pode trazer. Foi um grande desafio, mas também uma experiência profundamente enriquecedora.

Só mais uma questão que tem a ver com o trabalho com não-atores. Sabemos que em muitos filmes, quando se trabalha com não-atores, ou atores não profissionais, como muitos preferem apelidar, há sempre esse elemento de autenticidade que é difícil de conseguir com profissionais. Como é que você lidou com a direção dos não-atores? Foi um desafio maior para você, já que, como você mencionou, a maioria deles nunca tinha atuado antes?

Sim, foi um desafio grande, porque, de facto, a maior parte das pessoas que participaram no filme não tinham experiência com a atuação. Mas, ao mesmo tempo, isso foi uma grande vantagem para o projeto. Ao contrário do que poderia parecer, a falta de formação formal em interpretação não limitou as pessoas, porque elas trouxeram algo que nenhum ator profissional poderia oferecer: uma espontaneidade, uma forma muito pura de expressar emoções, que é muito característica de quem vive naquele ambiente.

E a direção foi algo que teve de ser ajustado constantemente, porque era necessário trabalhar mais com as emoções e as reações naturais das pessoas do que com a técnica de atuação. Queria que as personagens fossem verdadeiras, não criadas, e, por isso, o trabalho foi mais de orientá-las para o que a cena exigia, mas sem perder a autenticidade. A maior parte das cenas foi construída no improviso, e as reações, as interações entre os personagens, eram muito naturais. Foi importante também criar um ambiente de confiança com eles, onde se sentissem à vontade para se expressar sem medo de errar.

Claro que houve momentos difíceis, como seria de esperar, especialmente em algumas cenas mais emocionais, mas, no final, tudo isso acabou sendo uma das maiores riquezas do filme. Eles estavam completamente imersos nas suas personagens e na história, e isso é algo que é muito difícil de reproduzir com atores profissionais. Para mim, foi uma experiência extremamente gratificante, o de dar voz a quem nunca tinha sido ouvido nesse contexto cinematográfico.

No terceiro ato do filme, há uma forte questão identitária em jogo, principalmente relacionada à protagonista e ao seu conflito com a mãe, e até mesmo à recusa de ir com ela para fora da ilha. Encaro isso como um dos pontos centrais do filme — um questionamento profundo sobre o que significa “ser cabo-verdiano hoje”, na diáspora, e mesmo na ilha. Gostaria de saber o que você pensa sobre isso. Ou, numa questão mais aberta, que “significa ser cabo-verdiano” para você?

Ah, essa é uma pergunta que não tenho uma resposta definitiva, e gosto muito de não ter [risos]. Para mim, a beleza dessa questão é justamente a sua resposta indefinida. O que significa ser cabo-verdiano é pode variar de pessoa para pessoa, de experiência para experiência, e, por isso, também gosto que o filme lance essas perguntas ao espectador, sem impor uma resposta clara.

É claro que, hoje, ser cabo-verdiano tem a ver com o que estamos vivendo agora, mas talvez também com o que já foi vivido e isso não é algo estático. O conceito de identidade é fluido, e também muda dependendo do tempo e da perspectiva. Gosto da ideia de que a resposta não é algo fixo, algo que se pode definir de uma vez por todas. Cada pessoa tem a sua própria experiência, a sua própria vivência da identidade cabo-verdiana. E o filme, para mim, abre esse espaço para reflexão, sem querer forçar uma única visão sobre o que é ser cabo-verdiano.

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Agora, para terminarmos a nossa conversa, gostaria de saber se, sendo esta a sua primeira longa-metragem, que vai ser lançada nos cinemas portugueses esta semana, você já tem novos projetos em mente? Está a pensar em mais uma longa-metragem? Ou algum outro tipo de projeto?

Não sei... A minha resposta é muito simples. Espero que sim, mas também sou muito reservada com relação a isso. Na verdade, não gosto de falar muito sobre projetos antes de estarem realmente concretizados. Para mim, os meus filmes são quase como segredos, protejo muito o processo e os projetos. Considero que as pessoas só devem saber o que o filme vai ser quando ele chegar aos cinemas. Então, mesmo que tenha uma ideia ou sinopse, nunca diria exatamente o que vou fazer, porque para mim, o processo criativo é algo que deve ser protegido até o momento em que o filme se concretize. Espero que consiga fazer a segunda longa-metragem, mas, de facto, ainda está tudo muito no início.

Dizem que a segunda longa é ainda mais desafiadora do que a primeira. Vamos ver. [risos]

Denise Fraga: "quando reflectimos sobre a morte, no fundo, estamos sempre a reflectir sobre a vida."

Hugo Gomes, 07.05.25

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Sonhar com Leões (Paolo Marinou-Blanco, 2024)

"Terra à vista!" Do outro lado do Atlântico, a atriz brasileira Denise Fraga parece ter encontrado novos palcos onde se preencher enquanto atriz e artista. Pisou Portugal pela primeira vez como alguém entre os portugueses — e não como turista — com o filme "Índia", a emancipação de Telmo Churro no território da longa-metragem, onde interpretava uma visitante estrangeira com outras intenções para além de conhecer monumentos, datas históricas de uma cidade e um guia em plena crise existencial.

Contudo, não ficou por aqui. Fraga desenvolveu um gosto pela nossa cinematografia e, com um segundo chamariz, regressa a Lisboa com "Sonhar com Leões", o marcado regresso de Paolo Marinou-Blanco, uma comédia absurda e negra sobre a morte, a eutanásia e o que significa estar vivo numa sociedade que impõe uma felicidade consumida e para consumir. A atriz interpreta Gilda, mulher com desejo de morrer sem dor, assim lhe prometeram, que se inscreve numa empresa de aconselhamento de suicídio. No percurso, conhece Amadeu (João Nunes Monteiro), jovem empregador de uma agência funerária, marcado por um crónico medo de ser feliz.

A atriz falou com o Cinematograficamente Falando… numa conversa que atravessa, inevitavelmente, a morte, o tabu e a arte, talvez a de viver com dignidade. 

Isto será uma pequena conversa, muito centrada no filme Sonhar com Leões, mas queria começar com uma pergunta mais sobre a "génese". Ou seja, pelo que percebi, ultimamente tem tido uma ligação forte com Portugal - começou com o filme “Índia”, do Telmo Churro, e numa pesquisa rápida vi também que filmou em Aveiro um outro projeto, “Livros Restantes”, da Márcia Paraíso, que também parece ser uma coprodução luso-brasileira. Tendo em conta esse percurso, queria lhe perguntar: o que é que atrai agora Portugal?

Isso foi uma coisa curiosa que aconteceu. O convite do Telmo [Churro], do Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, chegou em 2021, em plena pandemia. Achei curioso eles me encontrarem, porque no filme do Telmo eu era a única brasileira, ou seja precisava de uma atriz brasileira, portanto houve essa busca. Acredito que algumas atrizes foram indicadas, e o que realmente fez diferença foi um programa que criei no YouTube durante a pandemia, chamado “Horas em Casa”.

O meu marido também é cineasta [Luiz Villaça], meu filho também [Pedro Fraga Villaça], e nós os três estávamos trancados em casa. Temos um grupo de argumentistas com quem trabalhamos, e decidimos criar esses episódios curtos, escritos e gravados em casa, durante aquele momento tão angustiante. Esse programa acabou por ser o diferencial que levou o Telmo a escolher-me, e, curiosamente, quando o convite do Paolo [Marinou-Blanco] chegou em 2023, pensei logo que um tivesse indicado o outro … mas não, não houve essa ponte directa. Só que ambos chegaram até mim pelo mesmo caminho: o “Horas em Casa”.

O filme do Paolo já tinha uma coprodução com o Brasil e também com a Espanha, e o facto da Gilda ser brasileira não exigia, necessariamente, uma atriz brasileira - poderia ser de qualquer nacionalidade. Fiquei muito feliz por ter sido a escolhida, ainda mais porque tenho Portugal no sangue: minha família é toda portuguesa.

Fui criada numa casa com sotaque português, acho que mais para Norte: minha avó era de Matosinhos, meu tio casou com uma mulher de Trás-os-Montes, meu avô nasceu em Vila Nova de Gaia... então cresci ouvindo muito esse português. Até hoje uso expressões como "vou lá ter com vocês", que muitos brasileiros nem entendem [risos].

Na infância, passava o dia na casa da minha avó, porque minha mãe trabalhava. O meu tio era taxista, e muitas vezes me levava com ele pelo Rio de Janeiro, dizendo que ia levar a sobrinha ao dentista, mas que afinal era só um passeio. Então, quando vim filmar o “Índia” e fiquei dois meses em Portugal, tive uma sensação muito forte de "estar em casa". Já tinha visitado o país antes, mas sempre como turista e essa foi a primeira vez que estive mesmo entre portugueses.

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Índia (Telmo Churro, 2022)

Durante as filmagens do “Índia”, a Márcia Paraíso, que mora em Florianópolis (onde há uma forte influência açoriana, até com um certo "sotaque aportuguesado") me contactou para o seu novo projeto que estava a preparar. Curiosamente, era sobre uma brasileira que “larga tudo” para viver em Portugal, convidada para uma residência artística em Aveiro. O mais curioso é que ela nem sabia que eu estava em Portugal! É incrível como Portugal foi surgindo na minha vida. Hoje sinto uma conexão muito forte com o país, não só pela herança familiar, mas também pela comida, pelos sotaques, pelas experiências. Esses convites aqueceram meu coração.

Queria voltar também ao “Índia”, porque a sua personagem é, à primeira vista, uma turista brasileira, mas ao longo do filme percebemos que não é bem isso .. ela vem a Portugal para se aproximar da morte, do luto pelo marido, e em “Sonhar com Leões”, temos uma outra mulher que quer morrer, que procura o fim com dignidade. Apesar das diferenças entre as personagens, ambas se relacionam de forma muito intensa com a morte. Antes delas, a webserie "Horas em Casa", em que lida com um constante clima de incerteza, e de inevitável morte ao redor, visto tratar-se em tempos de pandemia. Queria falar sobre isso, e se vê esse fio condutor. E também ... quando leu o guião de “Sonhar com Leões”, se não pensou: “Isto é muito ousado”?

É verdade. Existe aí um fio comum. Até comentava isso noutra entrevista: os personagens não aparecem por acaso. Acredito mesmo nisso. Eles chegam em momentos em que temos algo a aprender, ou que nos ajudam a processar vivências que estamos a atravessar, ou então vêm como um aviso, uma preparação. A Gilda, por exemplo, apareceu numa altura em que precisava de força para lidar com a decadência física da minha mãe, que faleceu agora em janeiro. A minha mãe era extremamente lúcida, adorava viver, mas o corpo foi-se tornando uma prisão e isso tem muito a ver com a Gilda, uma mulher intensa, criativa na forma como vive. Para ela, não fazia sentido viver sem liberdade, sem prazer. A minha mãe também era assim.

Num festival na Arábia Saudita [Red Sea], onde exibimos o filme, um rapaz me disse: “Nunca torci tanto para que uma personagem que gostei morresse.” E isso diz muito sobre a Gilda. Ela tem um carisma tão grande que faz da morte uma vitória, é quase um pensamento paradoxal.

Então sim, acho que “Horas em Casa”, o filme do Telmo, “Sonhar com Leões”, a morte da minha mãe, o contexto da pandemia … aliás nós não vivemos a pandemia, nós vivemos a pandemia no Brasil, sob Bolsonaro... tudo isso se cruzou. Foi, talvez, a época mais reflexiva da minha vida profissional. Sempre fui uma pessoa inquieta, muito voltada para essas questões da existência — uma “filósofa de boteco” [risos], digamos assim. Gosto de conversar sobre a complexidade da vida e esses trabalhos vieram mesmo intensificar essa busca.

A Gilda foi uma das personagens mais ricas que já interpretei: ensinarem-me algo, de irem além da simples atuação. Ela tem um autoconhecimento muito grande, uma clareza sobre o que quer e o que não quer. E quando refletimos sobre a morte, no fundo, estamos sempre a refletir sobre a vida.

Sobre esse aspecto que acabou-me por contar sobre o festival na Arábia Saudita, curiosamente, aconteceu-me o mesmo. “Espero mesmo que a Gilda morra. Que consiga cumprir o seu desejo.”, pensei eu, pedindo para que o filme não enveredasse por um caminho mais moralista… No fundo, estamos a referir um tema muito delicado, e o humor do filme ajuda, não a branqueia-lo, mas suavizar o peso da questão. A eutanásia, aliás, ainda hoje … não sei como está no Brasil, mas creio que a situação é ainda mais complicada do que em Portugal … é um tema que continua a ser muito fracturante.

Não sei se houve algum momento, durante o filme, em que o argumento apontava para um desvio, um "rebound", nesse desejo mórbido da Gilda. Mas não … Adorei o argumento. Quando o li, a minha reação foi: “Quem é esse cara? Quem escreveu isso?” Quis logo conversar com o Paolo, e a primeira coisa que lhe perguntei foi: “Por que é que você escreveu isso?”. Sou muito curiosa sobre as motivações das pessoas, e é interessante a forma como ele resolveu abordar este tema.

Acho que é um filme único. Não existe outro igual. É difícil até de o encaixar numa categoria. Ele tem uma especificidade muito própria, de alguém que teve uma ideia original para tratar um assunto extremamente delicado, não só complexo, mas também tabu. É um tema sobre o qual, geralmente, as pessoas não conseguem aprofundar a conversa como deveriam, justamente por ser difícil.

Aconteceu uma coisa curiosa comigo. Durante todo o tempo em que estive envolvida com o filme, li muito sobre eutanásia, e tornei-me uma pessoa muito a favor do seu direito. Acho que todos deveríamos ter o direito de morrer. Ou melhor: o direito de viver dignamente … é mais por aí. Essa é a verdadeira questão. Porque o “direito de morrer” é, claro, um conceito relativo, ma medicina, hoje, permite-nos tantas formas de prolongar a vida que precisamos, sim, de refletir sobre o que significa estar vivo, diante de tantas possibilidades de continuar vivo... sem, de facto, viver.

A maneira como o Paolo decidiu abordar o tema, usando o humor, foi muito feliz. Porque, em nenhum momento, o espectador deixa de sentir a dor. Falávamos muito disso durante o processo. Acho que a morte continua a ser um tabu, talvez não tanto pelo nosso próprio fim, mas pelo fim das pessoas que amamos. É essa a grande dor — a perda. E nós evitamos de falar sobre o assunto porque não queremos encarar essa dor. É aquela velha história: é pior para quem fica. Porque, para quem vai, muitas vezes, a pessoa já está pronta.

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A webserie "Horas em Casa" (2020)

A minha mãe, por exemplo, falava com muita clareza sobre a morte. Dizia: “Estou cansada. Já deu. Aproveitei.” Ela parecia a Gilda. “Eu aproveitei. Eu vivi, minha filha. Fiz tudo o que quis. Mesmo casada com o teu pai, fiz tudo o que quis.” Essa consciência... é algo muito forte e foi muito claro que, para ela, quando o corpo virou uma prisão para tanta vida, para tanta pulsão e desejo, ela já estava pronta. Mas não tinha acesso à eutanásia, e penso que, se tivesse, teria ido antes, com dignidade.

Isso fez-me pensar muito, porque mesmo depois de ter vivido a Gilda, de ter feito esse papel, tudo o que vivi com a minha mãe nessa “sobrevida” que a eutanásia teria evitado... trouxe-me questões e inquietações. Será que, se ela tivesse esse direito, teria mesmo optado por ir mais cedo? E, se tivesse, será que teria feito disso um ritual? Uma celebração? O que todo esse processo me ensinou foi que a trajetória do fim — quando, por exemplo, a Gilda decide partir e começa a ver que aquilo está, de facto, a acontecer — desperta nela uma felicidade. É muito louco. Ela não desiste da ideia, mas, ao mesmo tempo, quando chega a Maiorca, encontra aquela beleza... e está a viver uma paixão. Algo surpreendente, até para ela.

É como se a vida invadisse aquele momento. Acho que isso também faz parte. Essa percepção aumentada do viver. Essa consciência do tempo e da existência. Isso também faz parte do fim. Pude ver isso com a minha mãe. Vivi momentos de uma intensidade muito bonita com ela nesses últimos tempos. Acho que, se tivéssemos um pouco mais de consciência de que todos vamos morrer, viveríamos melhor.

É muito difícil viver como se fôssemos morrer — porque não queremos pensar nisso, mas, se conseguíssemos viver com um pouco dessa consciência, daríamos mais valor às pequenas coisas. A vida é curta, e, muitas vezes, deixamos o essencial de lado por causa da correria, dos boletos, do trabalho… e, nessa demanda diária, esquecemos de viver plenamente. De saborear a vida como ela merece!

Se nós, seres humanos, soubéssemos exatamente o dia em que iríamos morrer, aproveitaríamos mais a vida do que nesta incógnita da existência?

Definitivamente! Pessoalmente, sinto que tenho uma certa tranquilidade em relação à morte.

Há pessoas que não gostam de falar sobre o tema, que o negam. Cada vez que se fala em morte, respondem logo: “Ai, para com isso, Deus me livre!” — e rejeitam o assunto. Mas acho que, se compreendêssemos melhor o ciclo da vida, se tivéssemos essa consciência... Não sei se seria preciso saber a hora exata, porque isso dá um nervoso danado. [risos]

Tem uma música do Gilberto Gil em que ele canta: "Eu não tenho medo da morte, tenho medo de morrer." Essa distinção é muito significativa. O momento da passagem — esse lugar misterioso — como no solilóquio do Hamlet: "To die, to sleep... To sleep, perchance to dream..." — ninguém nunca voltou para contar como é. E é aí que mora o medo. O medo não é só da morte, mas de não sabermos como é morrer.

Toda a gente deseja morrer dormindo. Então, sim, o momento da morte é uma grande interrogação. A Gilda, por exemplo, tem essa aflição: ela quer morrer sem dor, quer esse direito. E, mesmo assim, ela não consegue se atirar. É difícil atravessar esse limiar.

Mas se nós compreendêssemos melhor o ciclo da vida - que vamos morrer - talvez vivêssemos de outra forma. Cada aniversário que faço, penso: “Ai, meu Deus, não vai dar tempo...” Sabe aquela “síndrome da livraria”? Eu tenho isso. Sempre que entro numa livraria, fico angustiada. É tanto livro! “Não vou conseguir ler tudo. Não vou conseguir ver todos os filmes. Não vou conseguir rever todos os amigos.” E talvez o nosso medo da morte, ou mesmo a recusa em falar sobre ela, venha dessa angústia diante do tempo.

Porque, se tivéssemos total consciência do tempo, talvez vivêssemos angustiados com a sua finitude. A vida é múltipla demais, e vamos seguir o ritmo da música, na corrente do rio. Mas se soubéssemos exatamente quanto tempo temos, haveria quem agendasse tudo — os metódicos fariam um projeto de vida, um organograma do que fazer em cada ano...

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Denise Fraga e Paolo Marinou-Blanco durante a rodagem de "Sonhar com Leões"

E, nesse sentido, talvez o próprio medo da morte nos poupe de uma relação demasiado pragmática com a vida. Se falássemos mais sobre a morte, se compreendêssemos a vida como uma jornada, uma viagem que nos foi dada … uma oportunidade de experimentar, de aprender, de desfrutar tudo o que ela tem para nos oferecer … tentaríamos vivê-la da melhor forma possível.

Muito mais do que se estivéssemos distraídos, sem saber por que estamos aqui, sem querer pensar no fim. A verdade é que estar vivo é um privilégio. Esse bilhete que recebemos para esta viagem é algo precioso, e, sim, acredito que essa consciência nos faria viver melhor.

Sobre o filme, quero referir arrojo — especialmente para a nossa cinematografia, a portuguesa — que a tua relação, no filme, com o jovem Amadeu (João Nunes Monteiro). Esse relacionamento que se constrói no filme é bastante rara para o cinema português, porque pouco, ou quase nunca, lidamos com esses romances ou sexo como afronta ao “idadismo”.

Pois é. A diferença de idades não é tema do filme. O filme não trata disso e nunca se fala diretamente sobre o assunto. Até cheguei a dizer que queria tocar nesse ponto, mas o Paolo respondeu: “Não precisa, não é o tema.

E isso é muito interessante, porque, em qualquer outro lugar, isso se tornaria central, mas a coisa mais bonita do mundo é ver essas duas pessoas, que à partida, segundo o olhar preconceituoso que a sociedade ainda tem, não seriam “apaixonáveis” uma pela outra, a apaixonarem-se. É tão bonito ver a intimidade e a cumplicidade entre eles crescendo!

E vai crescendo... e tu nem sabes bem se eles vão mesmo tornar-se um casal ou não. Até que há um beijo, e aí percebemos que o amor entre as pessoas, e a paixão propriamente dita, está muito além daquilo que nós, culturalmente, definimos como “par romântico”, seja na dramaturgia ou na vida. As pessoas apaixonam-se umas pelas outras independentemente de género, de idade, e a vida mostra isso a toda a hora, nas experiências reais, mas continuamos a insistir em ver isso como um tabu.

Diz-se: “Ah, mas ele não se apaixonaria por ela.” Mas a paixão é surpreendente. Ela ultrapassa os desejos primários, os corpos até. Por vezes estás a conversar com alguém por quem, num primeiro momento, não sentes nenhuma atração, nenhum desejo sexual,  mas essa pessoa começa a dizer coisas que te tocam, e, de repente, aquilo desperta um “tesão danado” [risos]. É curioso como colocamos a paixão fora do lugar onde, de facto, ela pode acontecer.

Gosto muito disso no filme: ver o quanto eles vão criando cumplicidade — esse casal improvável — e, quando essa cumplicidade floresce, ela é ainda mais forte. Porque é fruto do impossível. Do absurdo.

Sim, e gostaria também de perguntar sobre algo que me fascinou no filme: toda a imagética da empresa de aconselhamento de suicídio, a Joy Transition International., que invoca — até pela parte de ser num armazém — das igrejas pentecostais, especialmente aqui em Portugal, as evangélicas e tudo isso… Mais a propagação dos movimentos de coaching, e outros palcos motivacionais.

Sim, sim. Nunca falámos diretamente sobre isso no filme. O Paolo escreveu e criou toda uma forma plástica muito singular. A direção de arte do filme nesse aspecto é preciosa. Os figurinos da Maria [Barbalho] são incríveis nesse aspeto, porque eles criam uma ambiguidade - nem sabemos ao certo o que aquilo é. É uma mistura de empresa, de culto, de algo meio místico… Mas depois há aquela mão imensa no armazém, que parece mesmo uma mão de marionete sobre as pessoas. E aquele sorriso... aquela máscara com o sorriso forçado … O Paolo está a falar de algo que vai para além das igrejas pentecostais ou de qualquer outra coisa definida. Ele fala da nossa era coach, dessa era que exige de nós uma felicidade histérica.

Hoje em dia, as leituras mais oferecidas são de autoajuda. Reparo nisso nas livrarias de aeroporto — como viajo muito, passo por muitas — e fico sempre a pensar: “Gente, isso é desleal!” O sujeito está cansado, estressado do trabalho, de andar a voar de um lado para o outro… e quando entra na livraria está tudo a gritar com ele: “Tire sua vida do rascunho”, “O Poder do Agora”…

Aí no vosso país também tem um que é “A arte de dizer o foda-se”?

Tem, tem sim.

O Poder do Hábito”, “Ganhe dinheiro agora”... São títulos de salvação e a verdade é que nós queremos uma salvação. Só que temos de ter cuidado com essa ideia de salvação.

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Sonhar com Leões

A Gilda, quando pega aquele panfleto que diz “Como morrer sem dor”, é óbvio que quer saber o que aquilo significa, e ela vai, mesmo desconfiando o tempo todo, mas depois o filme vai criando aquele teatro do absurdo maravilhoso.

Aquelas pessoas a dizerem aquelas coisas, aquela comédia que roça o absurdo — e os atores que são geniais … a Sandra [Faleiro], a Joana [Ribeiro] e o Alex [Tuji Nam]. Adoro todas as partes da Joy Transition. São quase como um spin-off dentro do filme…

Quando fazia o “trabalho de casa”, dei de “caras” com um podcast chamado Ribalta Podcast, em que Denise foi convidada para um dos episódios, e na altura da apresentação, há algo que diz, que gostaria de explorar um pouco consigo. Quando lhe pedem para se definir, para se apresentar, a Denise diz que é uma atriz, mas também se define como uma artista. Gostava de terminar com esta pergunta: Uma atriz não pode ser uma artista?

Pode, sim. Claro que pode. O que acontece é que nem todo ator aproveita toda a sua condição de artista. Um ator é um artista. Mas o que acontece, muitas vezes, é que — com os meios da industrialização da arte, com a força da televisão aqui no Brasil, e até mesmo no cinema — muitos atores acabam por se privar das suas potencialidades criativas. Privam-se da sua capacidade de dizer algo, da sua vontade de expressar através do trabalho. Privam-se da sua condição autoral.

Sempre que faço um filme, o “Sonhar com Leões” do Paolo é um exemplo claro disso, tento sempre imbuir-me do espírito do criador. Neste caso, a primeira pergunta que lhe fiz foi: “Por que você escreveu isto? O que você quer dizer com isto?” Isto porque o que mais quero, quando estou num projeto, é fazer aquele cineasta feliz. E para o fazer, não posso ser só uma marioneta morta nas mãos dele, tenho de estar cheia de vida, da alma, da razão que levou aquela história a ser contada.

Então, quando me aproprio, ou melhor, quando pego emprestada a alma do cineasta, tudo aquilo que ele quer dizer, tento compreender profundamente, para poder dizer junto com ele, da forma mais plena possível. Quando digo que agora já me considero uma artista, e não apenas uma atriz, refiro que no meu trabalho tenho procurado, cada vez mais, esse potencial de expressar, de dizer algo através daquilo que faço como atriz, da minha performance e da minha presença. Mesmo quando o projeto não é meu, arranjo uma forma de dizer algo com ele. E quando o projeto é meu — que geralmente é no teatro — escolho as peças que faço porque quero dizer algo com elas.

A escolha do texto já é, por si só, um discurso. A história que escolho contar já carrega em si o meu posicionamento no mundo. Acredito muito que os discursos, na maioria das vezes, servem mais a quem os profere do que a quem os ouve. Inclusive os livros de autoajuda, muitas vezes você só consegue mesmo transmitir aquilo que precisa quando conta uma história. Acho que as histórias dizem muito mais do que os discursos.

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Sonhar com Leões

E nós estamos a viver uma época em que estamos a levar um grande olé, como dizemos aqui … um embuste. Porque a internet está cheia de discurso e cheia de opinião… mas com muito pouca história, pouca vivência e pouca experiência real. E é pela experiência vivida de alguém que você chora, que você se emociona, já com a opinião, não. Você até pode absorver uma opinião, mas se ela não vier sustentada por uma vivência, corre o risco de ser uma opinião emprestada. Uma ideia que pousa num terreno frágil, sem a experiência necessária para a sustentar.

Até é generoso quando alguém escolhe dizer o que tem para dizer através de uma história, e é isso que tenho procurado fazer no meu trabalho. Talvez seja por isso que agora me defina também como artista.

Como ver a “Índia por um canudo” ...

Hugo Gomes, 06.05.23

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Karen (Denise Fraga) deseja estabelecer um tipo de contacto espiritual com a cidade de Lisboa, um refúgio à sua melancolia, e para isso contrata os serviços de guia turístico-histórico de Tiago (Pedro Inês), especializado, pouco ortodoxo, e ainda assim de jeitos metódicos. Na primeira digressão pela capital portuguesa, a brasileira Karen deslumbra-se com a fachada do Teatro de São Carlos, sob os anúncios da ópera de Giuseppe Verdi - “La Forza del Destino” -, dirigindo-se ao seu guia com a hesitante contestação - “É a ópera?” - no qual é recebida com tamanho desprezo pelo mesmo - “Lisboa é uma cidade feita de muitas revoluções, vou falar de alguns, mas digo-lhe já que das ‘fachas’ não falo…”. 

Com isto, “Índia”, a primeira longa-metragem de Telmo Churro, esclarece ao nosso espectador o tipo de figura que este protagonista será, um “Ramiro” de Mozos doente, “esquerdinado” e agressivo-passivamente embargado na sua própria tragédia. A tragédia de não se revoltar, ou metamorfosear para algo acima da mortal e inútil carapaça, da mesma forma que Lisboa manifestou ao longo da sua “existência”. Nisto chegamos à "Índia", através de um invisível caminho marítimo, nas caravelas velejadas e conduzidas nos sugeridos azimutes da Rosa dos Ventos, aqui, Churro, o escritor e editor tão lá da casa da produtora “O Som e a Fúria”, se tem definido como um farol estético e temático do cinema de Miguel Gomes, sobretudo, ou do já mencionado “Ramiro” de Manuel Mozos (a referência não foi ao calhas). O Adamastor de uma Lisboa “afundada” num estado de graça saudosista e em plena fase de negação, mística e detentora de uma veia cínico-fabulista. 

Digamos que é a cidade de João César Monteiro sem o seu espírito de irreverência, sem a sua perversão e ocultismo cinéfilo, são os “rebentos”, as vagas e vagens deixadas e semeadas em terra de ninguém, contudo, se Miguel Gomes criou nos embarques da África Colonial ou dos ditos e feitos à lá Sherazade um sinónimo seu, e do outro, Mozos, figura patusca, algo zeitgeist de um cinema paralelamente projetado e idealizado, Churro revela-se incapaz de emancipar dos seus colhidos frutos. Não por estas tormentas condenar “Índia” à perfeita inutilidade, é um filme de espaços, não físicos, e sim temporais, onde cada ideia se amontoa na outra, consequentemente criando num alinhar de tendências e criatividades inutilizadas pelo seu ego. 

Se ficamos encantados com Karen, essa personagem evadida do seu próprio espaço, comunicando com a ausência como Nanni Moretti fizera nos últimos tempos, por outro, sentimos esvaziados com a ridicularidade com que Tiago se assume. Em teoria, são maçãs do mesmo ramo, figuras lidando com o seu próprio desterro, mirando Índia por um canudo”, essa sua respectiva idealização de felicidade, nem que seja temporária. Karen consegue, com serenidade e tréguas com a sua tragédia, enquanto que Tiago, a sua inquieta e inconsolável dor o enquadra no perfeito caos. Em “Índia”, Churro persiste num filme visto e revisto quanto aos seus graus técnicos e processuais, sendo que no fundo uma história, ou antes, uma alegoria é encenada e relida à luz das idiossincrasias.  

 

Ele está a contar uma história?”

“Acho que sim … mas eu não estou entendendo nada.”

“Quer que lhe vá explicando.”

“Não deixa, isso já está passando.

Manuel Mozos: "Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar"

Hugo Gomes, 10.03.18

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Manuel Mozos

Manuel Mozos é uma peça importante no cinema português contemporâneo. A sua geração, na qual cabem autores como Pedro Costa, Teresa Villaverde e Joaquim Leitão, tem sido apontada desde sempre como “salvadores” de um cinema escasso. A sua prolificidade tem o transformado numa figura constantemente presente, contudo, em comparação com os demais, a sua visibilidade é quebradiça. A culpa, possivelmente, é de um certo e proclamado fantasma: Xavier.

De qualquer modo, é “Ramiro” que com carinho o recebemos no seu regresso à ficção, nove anos depois de “4 Copas”. Esta história de um alfarrabista preso à sua passividade e ao passado glorioso que deixou fugir entre mãos é uma comédia tragicómica que vai ao encontro de uma Lisboa a passos da sua modernidade, assim como da personalidade que Mozos assume nesta “Glória que é Fazer Cinema em Portugal”.

De onde surgiu a ideia de Ramiro?

Bem, a ideia não é minha. Esta surgiu de Telmo Churro e de Mariana Ricardo, que escreveram o argumento, e me propuseram certo dia. Aceitei e, uns dias depois, eles apresentaram-me uma versão reduzida que gostei. Foi então que incentivei-os a avançar com essa mesma ideia. A partir daí trabalhamos em conjunto, tínhamos reuniões, encontros, mais propriamente, íamos falando. No fundo […] o projeto encontrava-se bastante próximo daquilo que tenho feito na arte da ficção. Uma intriga sobretudo centrada nas personagens, sendo a central alguém um pouco desfasado da realidade, e os espaços que vão desaparecendo e que se vão transformando.

De certa forma, Ramiro é uma personagem tragicómica, como disse, o seu mundo está a transformar, mas ele não recusa tal metamorfose.

Ou seja, a ideia era mesmo ter esse pendor tragicómico. Porém, não queríamos uma personagem somente restringida a esse sentido. Não pretendíamos um “velho do Restelo”, que olhava permanentemente ao “antigamente”. Queríamos fragilidades, uma figura inábil na sua relação com os outros, criando assim uma certa comicidade, digamos.

Existe uma frase dita pelo próprio Ramiro que desmistifica toda a sua personagem que é “E foi então que descobri que sou um ser passivo”. Aliás, porque como nós já percebemos, o mundo mudou mas ele não quer saber dessas mudanças.

Concretamente há uma certa resistência saliente da parte dele em fechar-se ao Mundo, não é que esteja contra o Mundo, mas ele próprio forma ao seu redor um casulo. Depois, quando tenta espreitar fora dele, depara-se com um cenário não muito confortável. Ramiro vai repentinamente viver com algumas situações que para pessoas “mais normais” [risos] não seria nenhum problema, mas para ele são grandiosos desafios, porque simplesmente limitou-se àquela redomazinha, o entre a casa e a loja, a loja e a tasca com os amigos. Um mundo pequenino, portanto.

E aí entra o paralelismo com as novelas. Ramiro consegue por fim ver telenovelas no ecrã e subitamente a sua vida transforma-se em conformidade com isso.

Sim, queríamos brincar com essa dimensão. Ele não ligava às novelas e à conta de outros acaba por tornar-se espectador das mesmas. As novelas acabam por ser um reflexo do mundo em que ele vive, que transforma-se num autêntico conto novelesco.

Quanto à entrada de António Mortágua no elenco? A sua escolha até o processo criativo da personagem.

Não gosto de fazer castings, até porque a certa altura, tendo um argumento sólido, começo a pensar quais os atores que servirão para essas personagens criadas. Uns são mais fáceis de encaixar, outros mais complicados, consoante as hipóteses e dependendo do conhecimento que tenho desses mesmo atores. O único casting feito para “Ramiro” foi o da personagem de Daniela, que seguiu para Madalena Almeida, devido à sua faixa etária. Esse casting exigiu muito trabalho, visto que muitos desses candidatos são atores que fizeram pouco ou que ainda estavam a estudar interpretação. Muitos deles apenas sonhavam.

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Ramiro (2017)

O caso do António foi mais complexo. Eu conhecia-o, não pessoalmente, de duas peças de teatro, e ele não tinha feito nenhum filme. Portanto, decidi arriscar e contactei-o. Ele ficou surpreendido, até porque não estava à espera de fazer cinema, assim me disse numa conversa muito aberta, onde também lhe confessei o pouco que conhecia do seu trabalho. Começamos a fazer ensaios e a perceber melhor como iriamos conceber a personagem central. Pouco a pouco, íamos tendo conversas sobre o argumento, sobre a personagem e às tantas julgo que ficamos convencidos que valia a pena o risco. Sinceramente, estou bastante satisfeito com a decisão dele e da sua parte julgo também estar.

Até que ponto esta personagem do Ramiro tem um polvilhar de autobiografia?

De alguma maneira sim. Na verdade, quando li a primeira versão do argumento que me entregaram automaticamente exclamei, pelo que eles afirmaram: “Sim, é verdade. Por isso é que propusemos a ti”.

De facto, o que não quero é que julguem que aquilo representado é a minha vida. Sim, existem algumas similaridades, ou proximidades da minha vivência com a do Ramiro, sem dúvida, mas isto não é um filme autobiográfico. Ao trabalhar no filme notei sobretudo esses elementos, mas de certa forma os meus filmes anteriores já indiciavam isso, essa conformidade para com a minha vida. Aqui talvez possa ter mais proximidade, mas sempre vi este lado biográfico representado em outros projetos meus como “Xavier” ou “… Quando Troveja”, que respetivamente marcam e espelham etapas da minha vivência. Em relação a “Ramiro”, não gosto de carregar isso, quem me conhece poderá identificar tais ligações.

O Manuel tem a consciência de que a personagem do Ramiro possui um livro da sua autoria que é visto como uma obra fundamental da literatura portuguesa, mas esquecido e cujos objetivos não foram cumpridos. Isso torna-se uma alusão ao seu “Xavier”, cujas infelicidades de produção o desviaram da obra que poderia ter sido. Quero com isto pegar numa frase apropriada de um documentário, “Glória de Fazer Cinema em Portugal” – Custa fazer Cinema no nosso país?

Sim, custa. E se custa. Mas não é só para mim, é para todos. Obviamente o título de “Glória de Fazer Cinema em Portugal” possui uma carga irónica, principalmente para mim hoje. Mas nem sempre foi assim, quando estava a fazer o “Xavier”, detinha um certo tipo de ambição, aliás trabalhava no filme um ano depois da primeira obra – “Um Passo, Outro Passo e Depois…”.

Mas foi a partir daí que as coisas mudaram, quer dizer, até certa altura pensava “isto está a correr bem”, mas o “desastre” trazido por “Xavier” [devidos a problemas de produção] colocou isso de parte. Apesar de tudo, consegui ir fazendo filmes, uns mais visíveis, outros menos visíveis, e num determinado ponto, visto que já não tenho a juventude, nem o fulgor de há trinta anos, posso fazer uma auto-ironia daquilo que faço, e por outro lado estar apaziguado com essa ideia.

Há ainda esse lado, o do realizador que teve um percalço e ficou numa situação esquecida de visibilidade. Esse é um lado que pode aproximar à figura do Ramiro, que trará escrito um livro importante de qualquer maneira, mas de algum modo bloqueou a sua criatividade.

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Xavier (1992)

Mas ao contrário do Ramiro, o Manuel não bloqueou …

Sim, não bloqueei, mas em termos de visibilidade é um bocado parecido. O de viver com a ideia de que poderia ir para um lado mas a carreira não seguiu. Nisso sim, há um paralelismo com o Ramiro.

De certa forma é um pouco triste todos relembrarem que foi o realizador do “Xavier” e constantemente estarem a trazer isso à tona?

Não. Para já, há algo muito curioso que é o facto de muita gente não ter visto o “Xavier”. Sim, podem falar ou conhecer a história por detrás, mas são mais aqueles que o nunca viram. Por outro lado, felizmente, isso já é levado por outros dois filmes meus que eventualmente tiveram mais visibilidades, como no caso do “Ruínas” e do “Outros Amarão As Coisas que eu Amei”, ou até mesmo o já referido “Glória de Fazer Cinema em Portugal”, que de algum modo me deram um outro tipo de atenção. Mas é óbvio que terei o fantasma do “Xavier” para me assombrar [risos].

É certo que em “Ramiro” encontramos influências do cinema de Miguel Gomes, aliás, recorda-se que trabalhou em inúmeros projetos do realizador e os argumentistas de Ramiro são colaboradores habituais.

Nós conhecemo-nos pela primeira vez no Porto durante uma edição do Fantasporto, onde projetava o meu “… Quando Troveja”. Na altura, Miguel era jornalista do Público, e em alturas do festival escreveu uma crítica muito benéfica, aclamado que o filme seria uma referência no cinema português. Lá contactou que gostaria de fazer-me uma entrevista e fez, e foi a partir daí que, de algum modo, criamos uma amizade.

Na sua segunda curta-metragem (“Inventário de Natal”), o Miguel convidou-me para o cargo de anotador e responsável pela montagem do filme, uma colaboração que foi repetida com a sua primeira longa (“A Cara que Mereces”), onde trabalhei no argumento ao lado de Telmo Churro. Mais tarde conheci a Mariana Ricardo.

Quando tinha o projeto “Ruínas”, pertencíamos todos à mesma produtora, sendo que criamos uma espécie de relação quase familiar. Obviamente não é a única produtora em que tal sucede. Várias começaram desta maneira. Apesar de tudo, o Miguel nunca faria o “Ramiro”, assim como eu não faria o “Mil e uma Noites”, não por não querer, mas se isso acontecesse resultariam filmes completamente diferentes. O cinema do Miguel é dele mesmo, o meu é o meu. Não sei até que ponto as influências são óbvias, mas acredito que o facto dos argumentistas oscilarem entre projetos, compõem uma espécie de núcleo o qual o Miguel assume. Núcleo base como motor da sua filmografia. Não trabalho assim, porém, se eles [Churro e Ricardo] propuserem outros argumentos para mim, ótimo.

Um facto curioso, "Ramiro" foi o filme escolhido para abrir a passada edição do Doclisboa …

[risos] Confesso que também fiquei surpreendido após a proposta do Luís Urbano [da produtora Som e Fúria], e ao mesmo tempo hesitante, visto que é uma ficção e não um documentário. Então falei com a direção do Doclisboa que se sentiam agradados com a escolha. O argumento encontrado é a possibilidade de abrir portas no festival, não restringindo a um só formato de cinema.

É verdade que a fronteira do que é documentário e do que é ficção vai-se esbatendo ano após ano, mas mesmo assim … abrir um festival especializado em documentários. Lá, eles alegaram que de certa maneira “Ramiro” possui uma face documental, o retrato de uma Lisboa em transformação, e cuja inserção na programação poderia levar o festival a passar ficções, até porque os planos deles são apresentar retrospetivas de autores que desbravaram nesses dois mundos. Se formos a ver bem as coisas, o Indielisboa, por exemplo, não passa só cinema independente, nem o Curtas Vila do Conde é exclusivo a esse formato.

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Ramiro (2017)

Pegando nesse termo, “o retrato de uma Lisboa em transformação”, e no seu documentário, "Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista", considera a cidade num local eficazmente cinematográfico?

Absolutamente. Lisboa é definitivamente cinematográfica. Desde o ambiente à sua atmosfera e até mesmo a qualidade e a disponibilidade da luz, apesar disso ser por vezes um pesadelo para os diretores de fotografia. Mas falamos de Lisboa, assim como falamos do Porto, que é igualmente cinematográfica, mesmo soturna e mais pesada. Aliás, gostaria de reformular que Portugal tem das cidades mais cinematográficas.

Novos projetos?

Quase garantidamente estou com um documentário, mas ainda não sei quando irei filmar e antes disso vou preparar o trabalho de pesquisa. Terá algumas proximidades com o “Ruínas”, e será sobre espaços concentracionários no qual esbarrarei em algumas figuras históricas, como por exemplo Camilo Castelo Branco e o poeta António Gancho. Será um filme que relaciona espaços com as personalidades.

Ainda tenho algumas outras curtas a serem preparadas, mas ainda em fase embrionária. De momento procuro ideias para uma nova ficção.

Um “loser” à moda alfacinha

Hugo Gomes, 21.10.17

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Ramiro é aquilo a que poderíamos apelidar cinematograficamente de «loser», uma personagem à deriva da sua sorte, encostada às “cordas” do passado, da glória que lhe nunca passou, nem sequer o esforço que detêm para a atingir. A certa altura, o protagonista-título confessa aos seus amigos que acabara de descobrir a sua passividade (“Sou uma pessoa passiva”), sequência-chave que revelará por completo a sua anti-tour de force, até porque o seu talento, diversas vezes mencionado por outros, nunca fora devidamente reconhecido, assim como conquistado. O seu proclamado bloqueio criativo é simplesmente fruto desse autodesprezo.

Mas Ramiro não é de todo um desprezível, é dotado de uma boa índole, o espectador crê isso através dos seus atos minuciosos, na sua teimosia controlável que nos leva aos seus próprios demónios, o medo; o medo de falhar, automaticamente, o medo de tentar.

É fácil simpatizar com este Ramiro, nem que seja pela interpretação derivante do ator António Mortágua, um laço de empatia com uma audiência que se lança nas prateleiras de um alfarrabista em busca de preciosidades. O que encontramos é “livros esquecidos”, estilos não vingados, enredos antiquados com o intuito de agradar aos “velhos do restelo” ou os reféns das “coisas que outros amaram”. Porém, e utilizando esse mesmo lugar, “Ramiro” enquadra-se num cinema português desadequado, não pela inutilidade estilística, mas como oposição às novas vagas que tendem em: a) manejar a experimentação narrativa e visual no qual diversas vezes disfarça a pura incapacidade; b) a sedução pelos formatos wannabe hollywoodescos, de forma a repudiar toda uma História da nossa cinematografia.

Tal como a personagem, Manuel Mozos cria um filme passivo na sua positiva afirmação, até porque é em “Ramiro” que evidenciamos um cinema lúcido, intrinsecamente português-alfacinha e discretamente irónico, mesmo sob as influências de João César Monteiro e dos seus constantes e castiços trocadilhos. Talvez tenha sido a experiência com Miguel Gomes, outro influenciado pela natureza do anterior “João de Deus”, o catalisador para esta invocação. Porém, Mozos não pretende o mero tributo. O filme concentra-se sobretudo numa saudação, a vénia a uma iminente emancipação, assim como a transformação de Ramiro após a perda do seu mentor.  

Eis um pequeno achado do cinema português, um “livro” poeirento e esquecido na mais oculta das prateleiras que resulta na mais graciosa das descobertas. Sem alterar o curso do nosso cinema, temos aqui filme e não pretensões.  

Oh venturoso Rei, fui sabedora de …

Hugo Gomes, 24.09.15

O Inquieto

Logo na sua introdução, quando confrontado com a questão de que ligação teria o encerramento de um estaleiro e a exterminação de uma praga de vespas asiáticas em Viana, a resposta negativa de Miguel Gomes foi dada da seguinte forma: “eu sou estúpido e a abstração dá-me vertigens“. Depois disto, e repentinamente, o realizador foge da cena como o diabo foge da cruz.

Os vinte minutos que sucedem levam-nos ao encontro de um retrato “docuficcional”, esse subgénero que a cinematografia portuguesa adotou com todo o coração. Nesse preciso momento pensamos estar perante em mais um enésimo registo etnográfico, um revisitar aos códigos canónicos do género, ou até mesmo (visto Miguel Gomes protagonizar uma sequência intimista de um filme dentro de um filme) numa reciclagem à estrutura do seu “Aquele Querido Mês de Agosto”.

Mas passados vinte minutos tudo pára. A promessa é dada em forma de “imaginem só isto” e voilá, eis que começa realmente “As Mil e uma Noites”, a prometida epopeia portuguesa que tem como base a estrutura narrativa da clássica e homónima compilação de histórias persas. Nesta versão, as histórias mirabolantes de um país arruinado pelo comando de “belzebus“, como a certa altura são descritos os governantes de Portugal, serve de substituição aos contos narrados por Xerazade: para entreter o cruel rei Shariar, a fim de alimentar a sua curiosidade e assim adiar a derradeira noite de núpcias. É um mundo fantástico criado através de uma imaginação corrosiva e trocista na caricatura e, com isso, sublinhar a “portugalidade” da sua gente. Nisto, Miguel Gomes consegue atingir a crítica social.

Dividido em três “grossos” atos, todos eles sustentados por tons distintos, começamos por elaborar uma sátira à política, não só portuguesa, como também europeia. Em “The Men with Hard-Ons” o absurdo ganha vida e funde-se com a referência persa, na qual as maldições dos feiticeiros e os fundos europeus caminham lado a lado. Depois deste “aperitivo” segue-se algo mais rústico, e igualmente surreal: “The Story of the Cockerel and the Fire”, passada na aldeia de Resende, onde um galo que canta a desoras gera um movimento social e uma onda de protestos pela liberdade de expressão. No decorrer deste episódio espalhafatoso está um trio amoroso cujas consequências são catastróficas.

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Encantados até com aqui com todos estes paradoxos e caricaturas em dívida com o surrealismo, surge-nos “The Swim of the Magnificents”, provavelmente o mais emocional e revoltado dos três enredos apresentados. O ator Adriano Luz desempenha um professor de natação que planeia os banhos do dia 1 de janeiro, um ritual local, mas que para este possui um significado mais profundo. Neste episódio, o intimismo de Miguel Gomes revela-se mais humano e corajoso em abordar algo que poderia ser motivo de atenção para telejornais ou programas televisivos matinais. É aqui que “As Mil e uma Noites” funde por completo a ficção com o seu lado mais vérité, onde os testemunhos dos desempregados, mais corretamente denominados de “desesperados”, auferem um registo coletivo, tudo enquanto Gomes faz maravilhas com a câmara.

As sequências tornam-se melancolicamente memoráveis, proclamando a extinção de um mundo fantástico e pagão e abrindo portas ao realismo do quotidiano e social, o nosso Portugal.

Terminado o primeiro trio de histórias, confirmamos o que já havia sido afirmado: Miguel Gomes é a cabeça de uma nova vaga Portuguesa. Comparando com a nouvelle vague Francesa ou não, a verdade é que há muito não víamos cinema português tão revitalizante, complexo e, sobretudo, tão criativo.

O Desolado

É entendido que o realizador do muito prestigiado “Tabu” conseguiu captar a atenção de todos ao esboçar um mundo que funde a realidade com um surrealismo caricato e sempre abrangido por um constante tom de denúncia. Esse extenso surrealismo é salientado logo na primeira história logo após do intervalo – “Chronicle of the Escape of Simão ‘Without Bowels’ (Crónica da Fuga do Simão ‘Sem Tripas’)” – no qual seguimos um fugitivo à polícia em montes de aldeias vizinhas de Viseu. Uma história que na prática soa-nos mirabolante e, contudo, familiar, na verdade inspirado num mediático caso real que fez as manchetes dos nossos jornais. Aqui, Miguel Gomes revela uma faceta mais contemplativa, mais paciente e nem por isso menos lunática, trabalhando com atores (Chico Chapas) e alguns não-atores. “Mil e uma Noites” invoca uma linguagem enraizada na nossa “portugalidade”.

Porém, o ritmo fraqueja levando Gomes, infelizmente, a cair no erro dos muitos “autores” portugueses. Mesmo assim, a narração é digna de um ar de revolta constante, ares que se prolongam ao ato seguinte, “The Tears of the Judge” (“As Lágrimas da Juíza”), uma verdadeira queda de dominós que expõe um "caldeirão" de problemas estruturais que assolam a Nação. Luísa Cruz consegue levar a sua personagem ao extremo, num misto de teatralidade com o seu ego oculto e uma vontade inerente de denúncia. Se Simão ‘Without Bowels’ foi a menos conseguida das histórias, aqui Miguel Gomes encontra a sua pequena “obra-prima”: um vórtice de bizarrices, comédia non sense e uma crítica sem receios.

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Diríamos que estamos no auge das “Mil e uma Noites”, apogeu que acalma com a passagem ao conto seguinte, “The Owners of Dixie” (“Os Donos de Dixie”), que tal como acontecera com a primeira parte [“O Inquieto”] é o último tomo onde é transferida toda a emoção antes ignorada. A jornada de um cão e dos seus donos recebe contornos etnográficos ao tentar esboçar a comunidade de um bairro suburbano de Lisboa. Três atos sob tons opostos e divergentes que indiciam uma só verdade: Miguel Gomes é um conhecedor nato de todos os códigos do cinema português, sendo óbvio que a sua carreira enquanto crítico favoreceu essa diversidade criativa, a qual não se via desde João César Monteiro.

O cinema contemplativo da genérica definição de “autor” português em Simão ‘Without Bowels’ (sem negar os traços de António Reis e Margarida Cordeiros, e todo os seus “filhos paridos”), o conto ácido e de influências teatrais de um Manoel de Oliveira em “The Tears of the Judge” e o cinema sociológico captado por um Pedro Costa ou Marco Martins na última, fazem daqui três histórias, três estilos diferentes, três razões para proclamar “As Mil e uma Noites” como um grande evento do cinema português e até mesmo mundial. Mas acalmemos, Xerazade ainda não se calou, o rei ainda não está satisfeito, a sua curiosidade é alimentada, mas não por muito tempo. 

O Encantado 

As anteriores histórias bastariam para confirmar o quão gratificante é este novo projeto de Miguel Gomes, há nele referências, estilos, alusões, um conjugado filme-denúncia, frontal, emaranhado em "lençóis" irónicos e caricaturais. Ao terceiro mandamento, o realizador guia-se novamente por essas matrizes do nosso cinema para encerrar um épico fílmico sustentado por uma militância quase guerrilheira. Portanto, reiniciamos na “paz do Senhor”, e vislumbramos o próprio mundo de Xerazade (Crista Alfaiate), a bela jovem que é obrigada a casar com um tirano e angustiado Rei, célebre por matar as suas esposas após a primeira noite núpcias. 

Para além de bela, Xerazade é também inteligente, culta e possuidora de dotes oratórios, virtudes que a auxiliam no seu prolongado plano de sobrevivência. Todas as noites, ela narra uma história sobre um país longínquo e respetivas crónicas mirabolantes envoltas, de forma entusiasmante para que o rei se encha de curiosidade e aguarde pacientemente pela noite seguinte para mais uma história, evitando assim, a mortal noite de núpcias. O primeiro plano deste arranque é quase todo ele um tributo ao cinema mais marginal de Fritz Lang, “The Indian Tomb”, para depois se incorporar na intimidade das imagens invocadas. Este mundo descrito por Xerazade, tem de tanto místico como alusivo, de caricatural como de surreal.

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Uma opção arriscada por parte de Miguel Gomes para complementar este terceiro fôlego com uma sentimentalidade e cariz distinto, para depois avançar para um profundo registo etnográfico, enquanto mergulha no submundo dos “passarinheiros”e dos seus tentilhões em “The Inebriating Chorus of the Chaffinches” e a cruza com imagens dos protestos policiais ocorridos em novembro de 2013, em simultâneo, com o relato de uma imigrante chinesa “Hot Forest“, uma combinação sobretudo bizarra mas que de certa forma fiel ao paralelismo iniciado por esta aventura: o encerramento dos estaleiros com a dizimação das pragas de vespas asiáticas em Viana do Castelo. Um paralelismo que o próprio Miguel Gomes revelou ser de uma “abstração que lhe dá vertigens“, para poder encenar de seguida o papel de realizador desaparecido.

Desaparecido, enquanto corpo, porque a alma de autor encontra-se nas mais tenras veias deste “Mil e uma Noites”, a maior epopeia cinematográfica do cinema português. E assim Xerazade se calou, sem voz ou simplesmente a curiosidade do seu monarca terminou. É o prenúncio do seu fim, a predestinada morte após a primeira noite de prazer não-consensual. O que resta dela?  Ficou um espectro e a memória efêmera do seu carrasco. O que deixou? Uma obra-prima, e digo-o sem modos nem hesitações. 

Das maiores obras cinematográficas que este triste país entre os países chegou a produzir.