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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Takes Slamdance 2024: com os problemas dos outros, bem eu fico

Hugo Gomes, 24.01.24

Look at Me

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O que têm em comum depressões com ansiedades, distúrbios da ordem psicológica (com agravante alimentar) e até a "simples" melancolia é encarar esse sofrimento não só como único, mas também como o mais 'pesado' do mundo. "Look at Me", a segunda longa-metragem de Taylor Olson, é um filme dessa ordem, do íntimo, do "eu", do terapêutico, em que o realizador assumidamente ator, assumidamente personagem e assumidamente inspiração, confronta-se numa sociedade ditada pelo estético e cuja ânsia de vencer (em ser e acreditar ser um “contender”) numa indústria igualmente competitiva (a do audiovisual) o guia por um tormento de bulimia e autodestruição.

Do mesmo prisma que Ari Aster enfatizou os seus demónios num prolongado "Beau is Afraid" (2023), Olson parte de si e da sua própria experimentação, incutindo um jeito "videoclipeiro" para representar um fado interiorizado e monstruoso, e ‘brinca' com a resolução do seu mundo [leia-se tela], comprimindo como sufoco ou alargando como libertação ou simples folgamento, recordando as semelhantes manobras de Xavier Dolan no aperto sentimental de "Mommy" (2014). É um projeto arriscado enquanto segunda obra, essa autognose pitada com um pouco de egocentrismo, cujo diálogo de si para si parece restringir tudo à sua volta, desde os secundários às eventuais figurações, recolhidos a uma mera subserviência narrativa. 

Porém, Taylor Olson detém genica em conseguir envernizar um filme com claras carências de recursos e "mão de obra", e numa eventual indústria, esses dotes serão ferramentas para um futuro... quem sabe.

Secção: 2024 Unstoppable Features

 

All I've Got & Then Some

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Uma história "underdog", daquelas que Hollywood tanto gosta de se encantar, com inspirações autobiográficas: "All I've Got & Then Some" acompanha Rasheed Stephens a ser, ele mesmo, Rasheed Stephens, rapaz de sonhos e ambições. Entre a comédia de stand-up e a atuação, vive na sua viatura e corre contra o ditado tempo para conseguir o seu "momento". Rasheed é igualmente o realizador, argumentista e produtor, ao lado de Tehben Dean, numa longa-metragem que, tal como o protagonista, anseia atingir essa emancipação artística. Porém, mesmo cedendo a algumas rasteiras de "obra de principiante" (como aquela montagem musical sob fragrâncias de vitória antecipada), existe um gesto algo transgressivo à própria noção do seu realismo imediato, assim como um reality show e as suas vertentes televisivas.

Nesse aparelho estético, é possível encontrar um elo de ligação do percurso de Rasheed com o formato vencedor da série "Seinfeld". As peripécias, muitas delas a acontecerem frente aos nossos olhos, são figuradas em ensaios de stand-up comédia, aqui num tom confessional e, por vezes, derrotista como separadores capitulares. E tal como o referido ‘Jerry’, é o humor do trágico, é o fracasso na vitória e, quem sabe, a comédia como apaziguação duma dor interna. Rasheed, o nosso jovem, ora cedido à sua melancolia, ora cedido à motivação, em que todos os dias são "os melhores dias da sua vida".

Secção: 2024 Narrative Features

 

L'Incidente

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É sempre no lugar da pendura que acompanhamos "L'Incidente", trabalho inaugural da longa-metragem de ficção de Giuseppe Garau, que literalmente, seguimos a reboque de Marcella (Giulia Mazzarino), uma mulher e mãe solteira desesperada que, após ver a sua vida desmoronar num acidente rodoviário, prossegue num trabalho de assistência a outras sinistralidades. A sua escolha de perspetiva e, com isso, o seu reduto fortalecido, transmite-nos vitalidade a este drama descendente duma protagonista passiva e a caminho da "necrofagia". É um "crash" eventualmente moral, e sobretudo uma tortura com ajuste de contas a esta personagem, "rastejando" perante a chapa acumulada da sua não-reação.

Garau, também argumentista, faz do seu percurso uma crónica da sua contemporaneidade, ilustrando, através dessa tela reduzida à impotência imposta e exercida numa sociedade cada vez menos empática (encontramos estéticas equiparadas ao realismo social dos irmãos Dardenne ou do realismo absorvido de Lucrecia Martel). É o velho enredo a colar à nossa traseira, enquanto nós, espectadores, reduzidos ao “lugar de testemunha”, sentimos-nos impotentes e incomodados pelo constante embaraço e humilhação do filme para com a sua protagonista. Será que o realizador odeia efetivamente a sua personagem? Ao contrário do que soa, a resposta é não. Há um gesto de solidariedade da parte dele em auxiliar uma luz moral, um agradecimento indevido depois de um subsistente gesto antiético, saboreia-se como uma epifania persistente, na esperança de que a sua queda à insignificância não seja total.

Já nós, espectadores, somos ofendidos com a “correria” de ofensas a Marcella. Nada podemos fazer, nem sequer apontar o dedo; a sociedade já nos consome, e demasiado, a nossa paciência.

Secção: 2024 Narrative Features

 

One Bullet Afghanistan

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Tendo dedicado 18 anos ao Afeganistão, imersa nesta guerra prolongada, a oscarizada documentarista Carol Dysinger ("Learning to Skateboard in a Warzone (If You're a Girl)"), apresenta-nos esta abordagem como resultado da sua ligação com o país e das experiências dele decorrentes. O relato inicia-se como um episódio quase kafkiano: um jovem afegão baleado na perna, cujo ferimento o levaria à morte. Antes disso, surgiram acusações de que a autoria da bala era de negligência americana, e o exército americano a negar esses direitos, resultando, burocraticamente, na falta de apoio ao ferido e família.

"One Bullet Afghanistan" retorna à história alguns anos depois, tentando confortar uma família que vive um luto constante, e como cada membro familiar expressa esse mesmo luto de maneiras distintas. Compreendemos o filme como um retrato subtil do conflito, da impotência de um povo enredado nesta situação e da ascensão de um radicalismo anti-ocidentalismo que levou o Afeganistão ao estado atual, marcado por retrocessos civilizacionais e um revanchismo vincadamente talibã.

"One Bullet Afghanistan" é, formalmente, direto e possivelmente imediato; as imagens não o valor que as declarações extraídas, seja das proclamações de uma crença única e não-negociável ou de uma mãe desgostosa que desespera em ser a melhor anfitriã [“coma, coma, (...)]. O seu lado político-social é suscitado nestes diálogos e na observação de um movimento em ascensão, especialmente de uma ideologia anti-mulher que bebe e agrava do seu tradicionalismo vindouro (“No Afeganistão, só és órfão quando o teu pai morre, mesmo que a tua mãe esteja viva”). Carol Dysinger despede-se assim do país que a acompanhou por quase duas décadas e das experiências que transformou em filmes. No entanto, a despedida é triste, pessimista e desprovida de forças para prosseguir. É o Afeganistão de hoje, impelido à barbárie, ao isolamento e ao fanatismo, que "dela boa poesia não traz" [Catherine Nixey].

Filme de abertura