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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Aqueles que me desejam a morte, a minha como a do “star system”!

Hugo Gomes, 19.05.21

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Num período, como este que experienciamos, onde grande parte do cinema americano é dependente de específicos polos “criativos” como o cada vez mais vincado subgénero de super-heróis ou o orientado e tido “cinema independente norte-americano”, uma recente produção encabeçada por Angelina Jolie faz-nos suspirar perante os resquícios de uma extinta “star system”.

Aquilo que era visto como a grande força de uma indústria, a sua comercialização de personalidades “fabricadas” que competiam por legiões e legiões de seguidores, atingiu o seu auge durante a época de ouro de Hollywood tornando-se esporádico e por vezes até (aparentemente) infalível até à chegada dos anos 2000. O que aconteceu não foi bem simples, mas o “salto em queda livre” obteve coordenação com as drásticas mudanças nos hábitos dos espectadores, da natureza das produções (cada vez mais focadas em personagens adaptadas dos “quadrinhos”) até à migração de passadas “grandes estrelas” para as séries televisivas, que por sua vez transportavam as audiências mais velhas deixando as grandes telas à mercê de outras faixas etárias.

Curiosamente, já Anthony Mackie durante a sua intervenção na Comic Con de Londres (em 2017), quase em modo de confissão, apontava a baixa qualidade da Hollywood contemporânea com o declínio do sistema estrelar, isto, perante um público que salivava por novidades da franquia “The Avengers”, o qual o ator participa enquanto personagem Falcon. “Já não existem mais ‘movie stars’. Anthony Mackie não é uma estrela de cinema, mas o “Falcon” é.” Hoje em dia entendemos o quanto desesperante que algumas antigas estrelas de cinema resistem à sua própria decadência, em esforços e resultados humilhantes, e nomes, outrora movedoras de multidões, como Will Smith, Tom Cruise ou Arnold Schwarzenegger, lidam com verdadeiros fracassos de bilheteiras, concorrendo com propostas mais familiarizadas ao público-alvo da indústria atual. A esta altura, o leitor desespera pela volta de 180º dada numa crítica a um filme como “Those Who Wish me Dead”, segunda longa-metragem dirigida por Taylor Sheridan (quatro anos depois de “Wind River”), mais popular enquanto argumentista de “Sicário” e do neo-western desconstruído “Hell or High Water”.

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É bem verdade que este thriller de ação ambientado no Estado da Novo México, em plena estação de fogos florestais, encontra espaço no circuito comercial e na atenção dos medias e dos espectadores menos dados a efemérides cinéfilas como o filme de Angelina Jolie, realçando a réstia de poder numa estrela moribunda, mas ainda capaz de erguer, enquanto Atlas, um produto genérico como este. Sheridan toma posse de rascunhos do western, modelo de um enredo atualizado e, por vias de algumas piscadelas, atual (sendo este um guião com colaboração de mais outras quatro mãos e baseado num livro de Michael Koryta).

A subcamada política, porém demasiado sugestiva de forma a evitar confrontos ideológicos, funcionam como fuel nesta demanda moralizante (ao estilo desse velho género norte-americano), em que a personagem de Jolie (papel considerado a Nicolas Cage), uma bombeira acompanhada pelos seus fantasmas interiores, é “apanhada” no seio de um “complot”. A já batida equação do “homem errado, no sítio errado e na hora errada”, neste caso, obviamente, a mulher equivocada numa derivação de “Intriga Internacional” (“North by Northwest”), falha em “abraçar” os seus lugares-charneiros destas produções, pela desespero/apelo à emoção lacrimejante e por fim, como mero pormenor, os antagonistas, involuntariamente “inofensivos”. É como se os dois larápios de “Sozinho em Casa” dessem de caras com a “Tomb Raider” … uma luta bem desigual.

Embora não esperássemos tamanha viragem no género, “Those Who Wish me Dead” cumpre todos os requisitos necessários para entender-se como produto de ação passageira, e o fator Jolie opera aqui como um dos destaques salientes disto tudo. Não … não é a ressurreição do “star system” hollywoodesco, e sim, o espectro dessa sua (anterior) forte presença entre nós.

Guerra de fronteiras! Os monstros de Villeneuve!

Hugo Gomes, 16.10.15

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Enquanto um dos mais notórios dos “enfants terribles” de Hollywood, Oliver Stone, espatifou o seu retrato narcotráfico mexicano com um onírico romance hedonista em Savages, Denis Villeneuve demonstra como se faz uma vertiginosa viagem aos horrores dessa realidade presente e muitas vezes negada. Sicário é isso, um filme forte em emoções mas sem nunca oferecer o que se pretendia neste tipo de produções. Nisso, o realizador já havia sido claro no seu registo ascendente, até mesmo o mais mainstream dos seus trabalhos – Prisoners (2013) – evidenciou uma capacidade de transcender o tema proposto e apostar num furacão de complexidades humanas bem salientado pela sua sensibilidade dramática.

Porém, em Sicário registamos o seu filme mais frio, calculista mas nem por isso isento de emotividade, essa, transmitida pela personagem de Emily Blunt, que compõe a ponte direta com o espectador, funcionando como os olhos desta jornada interminável. México é aqui convertido num palco de guerra, um Médio Oriente à porta da apelidada “terra de oportunidades”, e cuja sua entranha opera como uma crítica ácida a ambos lados, sem nunca vergar pela costura politicamente correcta ou pelo optimismo sonhador. Iniciando com o de bom se faz no cinema de acção dos últimos anos, uma sequência dotada pela vibração energética e com um realismo “à lá Michael Mann”, Sicário começa aqui a transcrever a mista porção de fascínio / repudia para com a violência, quer física, quer espiritual.

Os eventos aqui demonstrados levarão Kate Macer [a personagem de Emily Blunt] a voluntariar numa missão de alto risco a uma das cidades mexicanas mais fustigadas pelo narcotráfico e com a pobreza geral, um cenário que espelha um panorama social, porém, visto sob uma protecção física. Nesse ponto de vista, Villeneuve demonstra o que aprendeu com o cinema iraniano, mais concretamente com o de Abbas Kiarostamis e o seu “mundo no interior automobilístico”. Todavia, durante este combate a uma “hidra de inúmeras cabeças”, Kate começa a evidenciar ilegalidades e amoralidades nesta mesma guerra, factores que a fazem questionar sobre a sua posição, os seus ideais enquanto autoridade e a natureza de toda esta operação deveras orquestrada nas sombras.

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A personagem de Blunt evolui para uma figura frágil, uma mulher num mundo de homens que por sua vez não ostenta a “girl power” e a igualdade que uma Hollywood guiada por um feminismo mercantil parece constantemente requisitar. Não, Kate não é simplesmente uma mulher no filme, e sim uma humana, a moralidade que falta neste negro conto injectado com uma ambiguidade sem igual. Humana! Até porque os outros “parceiros” no combate ao narcotráfico, Josh Brolin e Benicio Del Toro, parecem carecer tais nobres e quebradiças emoções, se o primeiro comporta como um negligente e sexista chefe de operações, um contraste invocado para com a personagem de Blunt, o segundo é o autêntico anti-herói desta complexa ambivalência social.

É o trio de desempenhos que coincidem em si num equilíbrio dependente, registando não apenas sentimentos humanos vividos, entre os quais primários como o medo e o rancor, mas a transposição simuladamente realista dos actos das suas respectivas personagens. Outro factor que nos demonstra a preocupação de Villeneuve (e do argumentista Taylor Sheridan) na criação de protótipos humanos é a sua tentativa de preencher até mesmo as figuras menos relevantes desta trama, escolha que o levará a atribuir uma dimensão atenciosa a uma personagem paralela que até às últimas questionará o espectador sob a sua verdadeira importância. Tal cenário fabricado a essa mesma figura trará uma pesarosa consciência ao filme, que ao invés de relatar "bonecos" alude histórias de vida.

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Para sermos exactos, este Sicário é tudo um pouco, um obra fabulista, um ensaio de realidade fincada, com toques variáveis de descrição dessa mesma realidade cinematográfica, um panfleto sem ser evidentemente um, ou um olhar sem julgamentos a um panorama conhecedor, contudo, mirado sob um receio pessimista (tal como é verificado no seu sublime e subliminar final, transcrevendo uma catarse aos sonhos de paz mundial que teimamos a prometer e a acreditar). 

Eis um monstro criado na berma da porta, e tal besta dominante presenciada numa omnipresente banda sonora de Jóhann Jóhannsson. Sicário é sim uma das mais poderosas incursões deste tema no grande ecrã, um filme falado numa linguagem mista e atormentada pelo seu próprio dialecto. Assustador, agressivo sem fugir das regras da subtileza e verdadeiramente humano, coletivamente falando.