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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Apollo antes de Rocky e depois de Rocky

Hugo Gomes, 02.02.24

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Em “Rocky” (John G. Avildsen, 1976), ao contrário do que se vende e da imagem que perdurou, existem duas faces da mesma moeda; um “underdog” ítalo-americano, ou melhor “garanhão italiano”, que cresceu nas ruas de Filadélfia com o “coração de campeão” e de uma vontade algo-infantil (leia-se sonhador, apesar da teimosia que sublinha imaturidade) - sim, o Grande Rocky Balboa (Sylvester Stallone) - e do outro lado, um campeão de ambições fortes, por direito, Apollo Creed (Carl Weathers), o ex-”underdog” que certo dia, perante a fraca concorrência, decide apontar holofote a um “Zé Ninguém”, entendendo-o, é claro, dando a mão para uma eventual catapulta social. O resto, é confronto de ringue, homem contra homem, soco a soco, até ao último K.O. Como sabem, Rocky perdeu esse combate, não estava destinado a fantasias maiores que ele próprio, Apollo era melhor pugilista, e mais, experiente, e igualmente detentor desse “olhar de tigre”, dessa garra em conquistar um lugar previamente proibido à sua existência.

Rocky Balboa é para mim uma espécie de figura paternal, um modelo, um guia que aspira nos momentos árduos que só a Vida proporciona numa cantiga de injustiça, e desse jeito não o consigo separar de Sylvester Stallone, mas em Apollo Creed encontro a outra fase, a consagração, o espírito de preservação, o lutador em repouso após tremendos assaltos, o por fim, descanso merecedor, o K.O. à vida maldita e trafulha. Rocky caminha para Apollo, até porque Apollo já foi Rocky, um não existe sem o outro, e o outro não existiria sem ele. Assumo que Carl Weathers fez muito mais para além de “Rocky”, é verdade, mas se existe personagem o qual detive tamanha estima, essa é definitivamente Apollo Creed, o bom americano, aliás o Tio Sam que deu certo! 

Na vida, Rocky aspira ser Apollo! Na vida, Apollo inspira Rocky!

 

Carl Weathers (1942 - 2024)

Arranca o 13º Encontros Cinematográficos: "um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade."

Hugo Gomes, 10.08.23

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Paradise Alley (Sylvester Stallone, 1978)

A proposta é a seguinte: a 40 km da fronteira com Espanha, mais precisamente na cidade do Fundão, realiza-se um seminário para cinéfilos com o intuito de ver, discutir, debater e apreciar o Cinema, seja através de filmes variados, modernos, clássicos, cultos e ocultos. Trata-se de um seminário anual que chega à sua 13ª edição, um número associado à má sorte para os supersticiosos, mas à sorte para aqueles para quem o Cinema é uma religião única e absoluta. Referimos, sim, aos Encontros Cinematográficos, que acontecerá de 11 a 14 de agosto, na Moagem do Fundão. 

Este ano, o evento prestará homenagem à animação portuguesa, na sua fase ascendente e resgatada, e as primeiras imagens da obra (ainda em fase de montagem) “Senhora da Serra”, de João Dias (editor de alguns trabalhos de Pedro Costa), que remete-nos a lendas oriundas do interior português, com especial atenção ao misticismo da Gardunha. Além disso, o Serge Daney será o signo destes quatro dias, não apenas pela apresentação do livro "Perseverança" (editado em português pela The Stone and the Plot), mas também porque será o ponto de partida para a exibição de dois clássicos amados por este crítico e eterno cine-amante: "Hiroshima Mon Amour" de Alain Resnais e "Paradise Alley" ("O Beco do Paraíso") de Sylvester Stallone.

No entanto, não revelaremos mais detalhes sobre o programa desta intensa peregrinação cinéfila, deixaremos isso para o programador Mário Fernandes, nesta conversa que traz à baila surpresas e destaques deste “encontro entre cine-amigos”.

Na 13ª edição e com uma perspetiva / retrospectiva, o que podemos esperar dos novos Encontros Cinematográficos, para onde se direcionam e quais são as ambições deste evento?

No essencial, dar a ver um cinema diferente de uma forma diferenciada: um Encontro na verdadeira acepção da palavra, assente na partilha e não na competição. Todas as edições são naturalmente diferentes, mas creio que o maior desafio para o futuro será manter o nosso espírito identitário ou linha editorial: «posicionados ao lado dos que resistem, dos que fazem do ofício um acto de amor, dos que divergem da unanimidade premiada, das “anomalias” dos pequenos e grandes gestos cinematográficos.» [Catálogo da XI edição dos Encontros Cinematográficos, p. 6].

Ao tentarmos definir os Encontros Cinematográficos, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

Diria que os Encontros Cinematográficos são essa comunhão, não apenas entre cinéfilos. Podemos defini-los como um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade.

Celebrando o centenário da animação portuguesa, que nos últimos meses ganhou destaque, em grande parte devido à nomeação para o Óscar de "Ice Merchants" de João Gonzalez. No entanto, nem sempre foi assim, uma vez que já foi considerada um subproduto do cinema nacional. Sem questionar se concorda ou não com esta depreciação, acredita que são necessárias mais iniciativas como esta para promover e divulgar este tipo de produções? O que mais acha que deve ser feito?

O cinema de animação começou por ser uma das vanguardas cinematográficas por excelência, em linha com as vanguardas artísticas do início do séc. XX, pelo menos era esse o entendimento do Henri Langlois, que nunca teve qualquer problema em programar filmes de animação ao lado dos maiores filmes da vanguarda francesa, por exemplo. Talvez tenha sido ele o primeiro a perceber a relação visceral entre o cinema de animação e a pintura, a música, a dança, o desenho, etc. Muitos animadores são, na verdade, extraordinários artistas, além de cineastas de corpo inteiro. Desde o Émile Cohl, o Picasso da animação, ao Theodore Ushev. No caso português, penso que o filme do João Gonzalez foi fundamental para o cinema de animação recuperar uma certa “carta de nobreza”, pelo menos em Portugal, onde há grandes talentos, com um universo muito próprio e muito poético, desde o Abi Feijó ao Nelson Fernandes, entre muitos outros. Seria perfeitamente possível programar blocos de filmes de animação na televisão em horário nobre…  Falta-nos o Vasco Granja!

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Ice Merchants (João Gonzalez, 2022)

Olhando para a programação, não apenas deste ano, mas também dos anos anteriores, constatamos que existe muita produção portuguesa que não tem tido divulgação nem distribuição em grande parte do país. Os Encontros Cinematográficos têm a intenção de quebrar essa barreira, realçando um cinema independente (um dos poucos no nosso panorama 'industrial') ou de criar um polo criativo-artístico?

Um dos objetivos dos Encontros é, de facto, resgatar do esquecimento ou dar visibilidade a importantes obras e autores, muitas vezes fora dos circuitos comerciais ou festivaleiros. Assim tem acontecido com várias obras e realizadores do cinema português. Chegámos mesmo a organizar ciclos paralelos, como os Filmes Proibidos, onde programávamos filmes portugueses censurados pela ditadura política ou económica ou, mais genericamente, pela ditadura da estupidez. Talvez a grande (re)descoberta nos Encontros tenha sido um dos mais belos filmes de sempre, “O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra. O filme foi aqui exibido várias vezes, desde 2011, com a presença da realizadora. Escrevemos vários textos sobre o filme, entrevistas para o nosso catálogo, etc.. Para nós era inconcebível que pouca gente conhecesse essa maravilha. Como a própria Manuela Serra reconheceu em entrevistas recentes, agora que o filme já circulou pelo país e pelo mundo, foi fundamental a persistência dos Encontros Cinematográficos.

Em relação à programação desta 13ª edição, o que destacaria, seja em termos de filmes ou convidados? E já agora, sobre a recente reavaliação da carreira de Sylvester Stallone, que José Oliveira considerou um autor numa crónica do jornal Público no âmbito dos Encontros Cinematográficos?

Além do bloco dedicado ao cinema de animação, com as presenças de grandes realizadores (Abi Feijó, Regina Pessoa, João Gonzalez, Nelson Fernandes e Bruno Caetano), destaco a estreia do filme “Senhora da Serra”, de João Dias, um filme belíssimo e surpreendente, que transforma a Serra da Gardunha num palco giratório onde se debatem as grandes questões universais, como numa tragédia grega. E o filme “Terra que Marca”, de Raul Domingues, um dos grandes filmes portugueses dos últimos anos, de imensa poesia telúrica, concreto e abstracto, absolutamente extraordinário, único. 

Pela raridade, o épico terreno “Uma Aldeia Japonesa: Furuyashikimura” ("A Japanese Village", 1984) de Ogawa Shinsuke. Quanto ao filme “O Beco do Paraíso”, julgamos que será uma boa revelação para muita gente. É mais um filme que urge descobrir e talvez ajudar a derrubar o preconceito que existe em relação ao Stallone. O grande músculo de Sly é mesmo o coração e, no caso deste filme, conseguiu uma realização totalmente à altura das personagens, com momentos de grande emoção. Foi, de resto, um filme muito importante para cineastas tão diferentes como Carax ou Tarantino, que escreveram sobre ele. No fundo, ao programá-lo, continuamos o esforço de recuperação de realizadores pouco consensuais, como quando organizamos retrospectivas de Michael Cimino ou Sam Peckinpah

Para lá dos filmes e dos realizadores, os excelentes convidados que irão conversar sobre os filmes, a apresentação do livro do Serge Daney (outro admirador de “O Beco do Paraíso”), a caminhada na Serra da Gardunha, o concerto dos Blue Velvet.  

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Senhora da Serra (João Dias, 2023)

A importância de iniciativas cinematográficas como esta, realizadas fora das metrópoles como Lisboa e Porto.

Em 13 edições, sem apoio do ICA e com a paixão e dedicação de 3 ou 4 voluntários, a importância dos Encontros Cinematográficos é manifesta: 192 convidados de nacionalidades diferentes, 200 filmes exibidos e discutidos, 13 catálogos com textos inéditos e entrevistas aos realizadores convidados, um livro de celebração do 10º aniversário, diversas colaborações, lançamentos de livros, concertos, exposições, exibições especiais para a população escolar, projecções descentralizadas, extensões anuais na Cinemateca Portuguesa, vários artigos nacionais e internacionais a elogiar o trabalho desenvolvido e um número crescente de participantes com algumas sessões esgotadas nos últimos anos.

E, claro, a qualidade dos convidados que têm passado pelos Encontros Cinematográficos do Fundão: Victor Erice, Pedro Costa, Billy Woodberry, Manuela Serra, Pierre-Marie Goulet, Andrea Tonacci, Peter Nestler, Miguel Marías, Chris Fujiwara, Luís Miguel Cintra, Virgínia Dias, Pablo Llorca, Adolfo Luxúria Canibal, Bruno Andrade, Patrick Holzapfel, Andy Rector, Mercedes Álvarez, Rita Azevedo Gomes, Pierre Léon, Vítor Gonçalves, Paulo Faria, Manuel Mozos, Mike Siegel, entre muito outros.  E, sem dúvida, os Encontros também contribuíram para a fixação de cineastas no concelho do Fundão, como o próprio João Dias, realizando nesta região muitos dos seus filmes que depois viajam pelo mundo.

 

A entrada é livre. Ver toda a programação aqui.

O Rei Pelé no Cinema (1940 - 2022)

Hugo Gomes, 29.12.22

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Com Renato Aragão em "Os Trapalhões e o Rei do Futebol" (Carlos Manga, 1986)

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Na rodagem de "Os Trapalhões e o Rei do Futebol" (Carlos Manga, 1986)

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Vinheta promocional de "Os Trombadinhas" (Anselmo Duarte, 1979)

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Com Sylvester Stallone na promoção de "Escape to Victory" (John Huston, 1981)

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"Escape to Victory" (John Huston, 1981)

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Hot Shots (Rick King, 1987)

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"Os Trombadinhas" (Anselmo Duarte, 1979)

A última continência a Rambo

Hugo Gomes, 24.09.19

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Podemos obrigar um "Rambo" a reformar-se? Será possível, após tanto investimento para produzir a mais perfeita arma de guerra para, solicitar no final o seu afastamento, como uma peça descartável num mundo que já não lhe pertence?

Em 1982 e pegando nos ecos da Guerra do Vietname e nas feridas ainda por sarar numa nação orgulhosa, surgiu um improvável símbolo antissistema e sobretudo anti-bélico - John Rambo - interpretado por um Sylvester Stallone já consagrado como Rocky Balboa: um estranho à deriva num país que já não reconhece e, pior de tudo, não o reconhece. Dirigido por Ted Kotcheff e inspirado no livro David Morrell, “The First Blood” constituiu num improvável sucesso que o encaminhou por trilhos que não era suposto ter seguido. Stallone, durante um colóquio especial na 72ª edição do Festival de Cannes, referiu que a personagem não se integrava concretamente em nenhum lado político, apenas representava as repercussões que o conflito do Vietname tivera nos EUA, sentindo-se por isso embaraçado pela declaração assertiva do então presidente Ronald Reagan de que John Rambo era republicano.

É através desse equívoco que o sucesso do primeiro filme se transformou numa trilogia em que a personagem foi imposta como um protótipo heroico que reúne as melhores qualidades norte-americanas (vale a pena referir que até foi produzida mesmo uma série de animação dirigida aos mais novos). Passados 20 anos desde a última missão (aquela em que John Rambo defendia os talibans perante as forças soviéticas!) e após a ressurreição de outra das suas icónicas "personas" - Rocky Balboa - num homónimo filme que fazia jus ao seu legado, Stallone regressou ao veterano com "John Rambo" (foi esse o título oficial), que, apesar do seu agressivo maniqueísmo, se aproximava da fonte original, apresentando um envelhecido ex-militar na esfera dos conflitos armados na Birmânia (Myanmar).

Mas a história do veterano, afinal, não acabou ali: John Rambo mudou-se da Tailândia para o rancho da família em plena terra natal, a poucos quilómetros da fronteira mexicana. E os fantasmas das guerras passadas continuam a assombrá-lo, acabando por vir ao de cima após a tragédia chegar ao seu território. É fácil encontrar em “Rambo: The Last Blood”, a aplicação do dilema de uma máquina de matar que nunca descansa perante um “caldeirão em ebulição”. E tal como o quarto filme, é o festim macabro e direto como aditivo da ação que se sobrepõe ao enredo anorético. Apenas o olhar descontroladamente raivoso de Stallone nos leva aos esperados picos de loucura pós-Vietname.

Infelizmente, John Rambo continua vítima do equívoco perpetuado por Reagan: as suas cicatrizes são confundidas com atos patrióticos e a semiótica faz das suas quando o vemos “massacrar” mexicanos de cartéis (os “bad hombres” que Trump cita constantemente). Isto não quer dizer que o quinto filme seja uma declaração pró-Trump, mas é um maniqueísmo sem esforço que entra em confronto com os tempos que correm, numa altura em que, por exemplo, “Sicario”, não nos sai da cabeça. O final é exemplo disso, traindo-se a si mesmo, depositando o coração na literalidade dos mortíferos gestos, que não são mais do que epifanias de uma nação em perfeita luta contra o resto do mundo.

A tudo isto junta-se a realização desinspirada de Adrian Grunberg (“Get me the Gringo”), que converte esta produção em algo desajeitado e demasiado fechado (há algo de claustrofóbico neste México filmado quase inteiramente em planos fechados). “Rambo: A Última Batalha” é costurado em tecidos da década de 80, numa ação sem pretensões e longe das reflexões inerentes ao patriotismo. Tendo em conta o cinema de hoje, é pena que tenhamos que nos contentar com tão pouco. Ver Rambo a ser somente a aniquilação fabricada pelo Estado norte-americano é reduzir todo um legado a nada. Fica a continência... seguida pela retirada.

"Os videoclubes morreram!"

Hugo Gomes, 04.07.19

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Recentemente, Dave Bautista repudiou a ideia de entrar na saga "Fast and Furious” sob o pretexto de apenas “preferir entrar em bons filmes”. Ironicamente, chega às nossas salas um "desmentido".

Vale a pena recordar que filmes como “Escape Plan: The Extractors” eram lançados exclusivamente para mercado "direct-to-video" como forma de progredir no circuito dos videoclubes e nos seus nichos. Como os tempos mudaram, os videoclubes “morreram”, o mercado do "home video" está pelas ruas da amargura e o "streaming" está aí à porta a entregar-nos propostas mais aliciantes, sente-se que este filme de John Herzfeld vem ocupar um lugar não lhe pertence por direito: a sala de cinema. A verdade é que “Ghost Story” ou "Disobedience" (para nomear alguns exemplos recentes e gritantes) foram "despachados" para o "video-on-demand", enquanto que “Escape Plan: The Extractors" chega com o seu direito privilegiado de projeção. Porém, isso são outras histórias e nada disto importa agora para a qualidade do filme.

Falemos então dele: sob fórmulas de evasão prisional, a saga "Escape Plan" começou em 2013 como um pretexto para reunir as estrelas de ação Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger. Era um produto que apelava mais pelo "star system" do que propriamente pela ideia não tão criativa que se apresentava, o que não impediu que surgisse um segundo tomo, datado de 2018, com Stallone a repetir o papel e tendo como novo parceiro Dave Bautista.

Ambos regressam agora para este protótipo de ação que condensa apenas os requisitos mínimos narrativos e imaginativos. Exibindo toda uma seriedade ou pretensão dramática que evita que o filme avance por territórios "camp" ou simplesmente escapistas, mesmo que o seu desenvolvimento não seja capaz de complexidades ou sintomas do género. E acrescenta uma pose sedutora para com o mercado chinês… quem diria? Não há nada de grave em “Escape Plan: The Extractors". Não é este tipo de produções "paraquedas" que são o atual “cancro” da indústria. E tendo em conta a qualidade do seu desempenho, Sylvester Stallone demonstra que tem a perfeita noção do projeto em que se insere. Se não havia fé nisto, queriam o quê? Milagres!?

Resquícios da Guerra Fria no ringue …

Hugo Gomes, 27.12.18

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Estamos em 2018 com uma nova geração, mas devemos partir para 1976 num tempo em que nos deparamos uma Filadélfia decadente, negligenciada e mergulhada em toda uma violência social.

Aí surgiu Rocky Balboa, pugilista de quinta categoria sem classe nem elegância no combate desportivo. Para alguns existe nele potencial, porém, fica-se pelas promessas porque vindo de um circuito pobre como esse, juntamente com a sua falta de ambição, longe nem sequer é considerado objetivo. Balboa é um verdadeiro underdog, até então passivo no seu próprio ambiente. Nesse mesmo ano, outro pugilista surge em frente aos nossos olhos, Apollo Creed, ele é o campeão por direito e, como tal, os desafios tornaram-se escassos. Como forma de marketing (visto que o boxe é um desporto cada vez mais em função disso), os publicistas decidem organizar um combate ao acaso, procurando fora da sua categoria, escolhendo, da mesma forma, um lutador da divisão abaixo.

O resultado caiu na escolha de Rocky. A história, toda a gente conhece, ou pensa conhecer, é bem diferente do que realmente aconteceu. Efeito Mandela? É. Rocky não venceu o combate com Apollo, o filme apenas celebrou a sua oportunidade, nada mais que isso, resultando num hino ao orgulho, acima das vitórias materializadas, o que foi redimindo nas sequelas que seguiram. Mas voltando a 1976, o público torcia pela personagem de Sylvester Stallone depositando nela um estandarte de luta entre classes, a resistência perante elites e a busca pelo “sonho americano”, traduzido nas origens nunca ocultadas por Rocky, ou The Italian Stallion.

Assim chegamos a 1985, com um quarto filme instalado no seu próprio contexto temporal, a Guerra Fria, obviamente cedendo a maniqueísmos evidentes. O conflito entre duas nações emprestado no combate corpo-a-corpo entre dois pugilistas, de um lado o “americano” Rocky sob as promessas de vingança (Apollo Creed foi morto no ringue pelo seu adversário) e do outro o orgulho soviético Ivan Drago (interpretado por Dolph Lundgren). À partida, esta sequela musculada e esteticamente vibrante serve de apoio para esta continuação do bem-sucedido spin-off onde Creed, filho do falecido Apollo, atesta-se como um campeão mundial, contando com o agora reformado Rocky no canto do ringue. E é então que o passado persegue. Ivan Drago regressa, apresentando o seu filho (o lutador Florian Munteanu), constantemente treinado como um cão de guerra, para uma luta a favor da estima perdida.

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Mesmo retornando aos ecos da Guerra Fria, que por sua vez nunca abandonaram Hollywood, “Creed 2” apresenta-se como um determinado jogo de legados tendo como o boxe a mais romantizada das suas catarses. Mas algo falha aqui, e não mencionamos a falta que Ryan Coogler faz na direção, um realizador sobretudo tecnicista que atribuiu no filme de 2016 um brilho que se poderia ter esgotado na pré-produção (o substituto Steven Caple Jr. falha na narração, mas solidifica a espetacularidade), até porque recuperar Stallone e a sua mais querida personagem após a melancólica despedida de 2006 (poemas másculos e triviais convertidos a um soneto motivacional) torna-se num gesto ingrato e oportunista. Enfim, o que aconteceu com os novos desafios de “Creed” é que não nos deparamos com o velhinho reconto da ascensão. A personagem de Michael B. Jordan (possivelmente um dos carismáticos atores da atualidade) encontra-se no topo, favorecido, frente a um némesis criado com um só objetivo, vindo de um ambiente que Rocky tão bem partilha em 1976. A juntar a esta equação, a relação frívola com o pai (porta aberta para epifanias de paternidade).

Com isto, vai-se desencadear o seguinte: o espectador apercebe-se que “Creed 2" embica numa jogada de patriotismos escondidos com teorias “batidas” da conspiração embutidas, ao invés de manobrar as emoções impostas no primeiro round. Resultado, caímos no desnecessário para todo um legado, com Sylvester Stallone a servir de gancho para ambos os franchises, e um filme corriqueiro para com a sua receita de eleição. É sim, uma história de ascensão … ou será antes de (re)ascensão, prometendo às audiências um reencontro entre gigantes (a primeira partilha de ecrã entre Dolph Lungdren e Stallone está ao nível das conversas de café entre De Niro e Pacino em “Heat”, de Michael Mann), uma desconstrução do estigma yankee a russos (reprovado) e toda uma teia de relações quebradas e restauradas (o foco devia estar apontado ao inimigo ao invés do protagonista sem nada a perder).

Mas no fim, é isso mesmo: promessas, jabs e uppercuts. Um campeão insuflado.

O genuíno conto underdog

Hugo Gomes, 11.05.17

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Como acabar o domingo da melhor maneira? Rever o primeiro e original Rocky (a "verdadeira" continuação surgiu 30 anos depois).

O tango / pugilista cinematográfico que veio redefinir o conto do "underdog" para o grande público e não só. Há que constatar que para além dos elos emocionais, da ascensão do proletariado contra um sistema capitalista de "fachada", metaforizado num combate que demora a chegar, John G. Avilden compôs um autêntico retrato do quotidiano de uma Filadélfia em decomposição (poderíamos estampar aqui o Springsteen e o seu Streets of Philadelphia), um camada à deriva de uma América pós-Vietname.

Obviamente, fora isto, e querendo não entrar em "filosofares" de segunda, Rocky, filme e personagem, são bombas sentimentais do catano!