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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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"Elas Fazem Filmes", e fazem mesmo!: Mostra de realizadoras segue pelo país fora através da MUTIM

Hugo Gomes, 18.09.24

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Frágil como o Mundo (Rita Azevedo Gomes, 2001)

Arranca hoje (18/09) a mostra itinerante “Elas Fazem Filmes” - uma colaboração entre a associação MUTIM (Mulheres Trabalhadoras das Imagens em Movimento) e a Cinemateca Portuguesa, com o apoio do ICA. A mostra parte da “casa-mãe”, o Museu do Cinema, com uma sessão dupla: Cães que Ladram aos Pássaros, curta-metragem de Leonor Teles, e a segunda longa-metragem de Monique Rutler, “Jogo de Mão”, cineasta a ser redescoberta, e prossegue com a ambição de chegar a 14 cidades de todo o país até julho de 2025, trazendo uma coleção de obras, célebres e algumas esquecidas que merecem uma nova apreciação, todas dirigidas por mulheres - cineastas portuguesas que desafiam o cânone ou oferecem uma um novo olhar sobre a História do Cinema Português.

A mostra inclui fragmentos de Barbara Virginia, indiscutivelmente a primeira mulher realizadora em Portugal, com “Três Dias sem Deus” (dos 102 minutos, só restam atualmente 25), a inaugural produção portuguesa a competir no Festival de Cannes. Inclui também as primeiras obras de Rita Azevedo Gomes (“Frágil Como o Mundo”, 2001), Manuela Viegas (“Glória”, 1999) e Margarida Gil (“Relação Fiel e Verdadeira”, 1987), documentos históricos de Raquel Soeiro de Brito (“Erupção Vulcânica dos Capelinhos”, 1958) e de Ana Hatherly (“Revolução”, 1975), animação (trabalhos de Laura Gonçalves, Regina Pessoa e Alexandra Ramires) e documentário (Catarina Mourão, Cláudia Varejão ou Susana de Sousa Dias), entre outros. Um verdadeiro “espectáculo de variedades”, uma montra polivalente de filmes cujo único elo comum é o facto de terem sido conduzidos, concebidos e produzidos através do trabalho árduo e dedicação de mulheres.

O MUTIM disponibilizou-se a responder a algumas questões do Cinematograficamente Falando… não só sobre o ciclo itinerante, como também sobre as projeções e ativismos que “Elas Fazem Filmes” pretende alcançar, bem como sobre a natureza e a estrutura do coletivo. Mariana Liz, professora e co-autora do livro “Realizadoras Portuguesas: Cinema no Feminino na Era Contemporânea”, e Marta Fernandes, distribuidora e programadora [Midas Filmes], aceitaram o desafio, e respeitando o espírito do movimento, falaram em nome de todas, e não apenas uma. Assim, o MUTIM assume uma entidade coletiva e própria neste informativo diálogo. 

Qual foi o impulso inicial para dar vida à mostra “Elas Fazem Filmes” e quais os obstáculos enfrentados ao longo do processo de curadoria e produção?

Desde a sua criação em Abril de 2022, que a MUTIM promove sessões de filmes realizados por mulheres, sessões que contam com debates e a presença sempre que possível de realizadoras ou membros da equipa e de outras profissionais que possam discutir os filmes. As sessões começaram em Lisboa, em parceria com o Goethe-Institut, e mais tarde passámos também a promovê-las no Porto, em conjunto com a Casa das Artes. O ano passado e depois das conclusões do estudo do meio sobre “A Condição da Mulher nos Sectores do Cinema e Audiovisual em Portugal achámos que devíamos criar uma iniciativa que nos permitisse promover o cinema feito por mulheres em Portugal, mas também discutir a nível nacional e com os espectadores as conclusões a que o estudo chegou. As mulheres ganham menos, ocupam menos cargos de chefia, tem mais entraves à progressão da carreira, são vítimas de discriminação de género, assédio, racismo. 

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Jogo de Mão (Monique Rutler, 1983)

Relativamente aos entraves, o apoio que conseguimos do ICA, sendo fundamental para levarmos a cabo a mostra, foi, infelizmente, inferior ao solicitado e por isso não nos permitirá ir a tantas cidades como ambicionávamos. E no processo de programação, existiram também filmes que gostaríamos muito de ter incluído, mas que não foi possível por uma questão de inexistência de cópias disponíveis ou por questões de direitos. 

A mostra reúne cineastas de diferentes gerações, de géneros como também de movimentos artísticos. Como se deu a seleção dos filmes e de que modo acreditam que essa diversidade de perspetivas traduz o panorama do cinema português à luz das mulheres?

A programação da mostra “Elas Fazem Filmes” foi, como aliás todo o processo desde a procura de financiamento até à produção em curso, um trabalho colectivo, feito a muitas mãos. Queríamos apresentar uma programação inédita que permitisse ser um ponto de partida para reflectir sobre o cinema feito por mulheres em Portugal. E para isso era fundamental apresentar filmes de cineastas de diferentes gerações, a trabalhar em diferentes géneros cinematográficos de forma a que pudéssemos ter uma diversidade fértil de olhares e estabelecer diálogos entre filmes e realizadoras. Quisemos ter o máximo de géneros presentes, ter animação, documentários, documentários mais experimentais, aproximações ao fantástico e ao terror, ao filme etnográfico, à ficção científica. Mostrar que o cinema feito por mulheres em Portugal é muito variado e rico. E ajudar a desmontar preconceitos que existam relativamente ao cinema português e especificamente ao cinema realizado por mulheres. 

A colaboração com a Cinemateca Portuguesa, nomeadamente no que toca à digitalização de filmes, foi um ponto essencial para a concretização deste projeto. Como vêem o impacto dessa parceria na preservação e disseminação da obra cinematográfica de mulheres portuguesas?

É um trabalho imprescindível. Parte dos filmes que iremos mostrar só é possível fazê-lo graças a este trabalho da Cinemateca. Seria muito difícil exibir fora de Lisboa e da Cinemateca muitos dos filmes que programamos. É possível fazê-lo porque existem hoje cópias digitais. É preciso ter sempre presente a questão do acesso. Quando, no passado, outras cidades reivindicavam o direito a ter uma Cinemateca, estavam a pedir a descentralização. É claro que o acesso a cópias em 35mm é sempre difícil e por questões de preservação pode ser limitado. Com a digitalização, a circulação torna-se possível e os filmes passam a ser programados mais facilmente, salvando-os de uma invisibilização a que eram sujeitos por uma questão de suporte. Mas é um trabalho que tem de continuar a ser feito, e deve ser defendido e promovido, porque continuam a existir muitos filmes por digitalizar. 

A MUTIM defende uma maior equidade no sector cinematográfico e audiovisual. Na vossa opinião, que transformações mais urgentes precisam de acontecer para garantir uma verdadeira representatividade das mulheres no meio?

Há várias medidas que podem ser postas em prática e que contribuíram não só para uma maior representatividade das mulheres, mas também uma maior igualdade do setor do cinema e audiovisual em Portugal. Por exemplo, a MUTIM defende o estabelecimento de parcerias com instituições públicas, como a

Comissão para a Igualdade de Género, no sentido de explorar sinergias ao nível do aproveitamento de políticas que tenham impacto no nosso sector, e na sociedade de forma mais lata. Inspirando-nos no que já acontece em outros países europeus, propomos também que se implementem, nos concursos públicos de apoio ao sector, incluindo os do ICA, majorações nos projetos que cumpram critérios de representatividade de género e nos projetos que tenham como criadores e/ou chefes de departamento pessoas racializadas. 

Para além disto, defendemos a atribuição de um valor monetário extra a produções que cumpram 50%/50% ao nível da paridade de género na constituição das suas equipas e respetivas direções de departamento; e a atribuição de um valor monetário extra para a seguinte produção de produtora que continue a cumprir o critério dos 50% / 50% na composição de género das equipas. No que tem a ver com composições de jurados de prémios e financiamentos ao setor, é muito importante não só ter paridade, mas também formar as pessoas no sentido de combater o unconscious bias do sector e diminuir os estereótipos das candidaturas. Dar aos jurados Inclusion Checklists para acompanhar a leitura dos projetos pode também ser útil se contemplado no regulamento, e prevendo a atribuição de pontos extra na avaliação aos projetos que os cumpram. 

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Três Dias sem Deus (Barbara Virgínia, 1943)

Finalmente, recomendamos que seja posta em prática uma avaliação interna contínua sobre representatividade de género e racial, sendo que, na sequência do nosso estudo, acreditamos que ganhar consciência anual dos dados factuais que compõem ou não a diversidade das produções e das narrativas é um primeiro passo fundamental para a construção de um setor mais diverso e menos desigual. Aliada a esta visão, propomos também o estabelecimento de metas percentuais de representatividade e consequente aplicação de medidas para as concretizar.

De que forma a mostra “Elas Fazem Filmes” procura fomentar uma reflexão crítica sobre a imagem e o papel das mulheres no cinema português, tanto no conteúdo narrativo como nas oportunidades de participação?

Todas as sessões da mostra terão uma conversa / debate no final que contará com as realizadoras, profissionais mulheres que integraram a equipa técnica e artística dos filmes apresentados e associadas da MUTIM. E tentámos organizar as sessões de forma a que duas realizadoras de gerações diferentes pudessem conversar sobre as semelhanças e diferenças nos desafios de filmar nas suas gerações. Ao convidar não só realizadoras a falar sobre o filme, mas também outras profissionais, queremos sublinhar o trabalho da criação de um filme como um trabalho colectivo e valorizar todas as profissionais que para nele trabalham. Como já foi dito, queremos também que associadas da MUTIM estejam presentes para discutir as conclusões do estudo do meio, porque falar das conclusões do estudo é o primeiro passo para a mudança. 

A interseccionalidade tem sido um pilar nas discussões da MUTIM. De que modo este princípio influenciou a escolha dos filmes e como têm procurado dar palco a mulheres de diferentes contextos sociais, raciais e geográficos?

É algo que temos sempre presente e que tentamos cumprir o máximo possível e como tal influenciou parte das escolhas que fizemos de programação. Sabemos que as dificuldades que as mulheres enfrentam no cinema e no audiovisual são ainda maiores quando falamos de mulheres fora dos centros urbanos ou de mulheres imigrantes, racializadas ou trans. O nosso trabalho tem obrigatoriamente de passar por ajudar a eliminar essas barreiras.

A mostra vai passar por várias cidades do país. Como esperam que a itinerância contribua para a receção das obras e para a criação de novos públicos, especialmente fora dos grandes centros urbanos?

Quando começámos a pensar a mostra, pareceu-nos crucial que não fosse mais uma mostra que se centrasse unicamente nos grandes centros urbanos, até porque já organizávamos sessões regularmente nas cidades de Lisboa e do Porto. Tendo em conta que é muito mais difícil aceder a cinema português fora das grandes cidades, e mais ainda a filmes realizados por mulheres, achámos desde o início que a itinerância e levar estes filmes ao máximo de cidades possível seria uma necessidade. Mas mais que mostrá-los, os filmes serão acompanhados pelas realizadoras e por associadas da MUTIM porque queremos que se estabeleça um diálogo com os públicos, queremos ajudar à formação de públicos para o cinema português, mas também ajudar ao debate sobre as questões de género. E tentaremos em todas as cidades por que passarmos e com a ajuda dos nossos parceiros locais fazer um trabalho junto do público escolar, trabalho que nos parece de extrema importância.

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Para mais informação sobre a mostra ver aqui

"Os nossos filmes servem como arquivo ambulante": Susana de Sousa Dias e Ansgar Schäefer em conversa sobre "Viagem ao Sol"

Hugo Gomes, 09.01.24

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Viagem ao Sol (2021)

É através dos olhos de uma criança, ou melhor, crianças que delineiam as memórias de um país, a essa relação, junta-se o estrangeiro, o estranho e o inquietante de um regime silenciosamente operando nas sombras. Falamos do caso das “crianças austríacas”, enfants da Segunda Grande Guerra, “resgatadas” pela Cáritas portuguesas e levadas para Portugal como parte de uma estrutura propagandística. Um país como o grande refúgio, os “brandos costumes” como a paz alcançada, porém, as crianças relataram anomalias nesse Paraíso, desde um miserabilismo conformado, ao analfabetismo predominante e o provincianismo religioso como estandarte de um regime. Essas crianças, brancas, muitas delas loiras, graciosas e de olhos azuis, a figura perfeita e angelical desta “Viagem ao Sol”.

Trata-se do novo filme de Susana de Sousa Dias, realizadora e investigadora, responsável pelo escrutínio de um tempo de “sótãos e caves” mantidas em segredo, o século XX lusitano, aqui, unida a Ansgar Schäefer, revelam uma história longe dos nossos olhares mas mantida e conectada através de olhares. 

Viagem ao Sol”, documentário de viagens de arquivo e relatos captados por essas outrora “crianças”, um projeto transversal marcando presença nas salas de cinema, incentivando a curiosidade. Histórias que muitos não contam, mas que a dupla deseja, sobretudo, torná-las acessíveis ao comum dos mortais. Uma biblioteca ambulante. 

Segue uma conversa com os realizadores e produtores, sobre esta viagem às “cores”, segundo um dos narradores, e das Histórias à portuguesa que o século XX ainda nos quer ocultar.

Como nasceu este projeto? Pelo que entendi tem uma grande relação com os constantes trabalhos do Ansgar, em que se baseiam nos êxodos, os ecos da Alemanha nazi para Portugal?

Ansgar Schäefer: Pois, é exatamente isso que estava a mencionar. Este projeto está relacionado com o meu trabalho de investigação, que se concentra nos refugiados judeus provenientes do território anexado pela Alemanha nazi. Na minha pesquisa, deparei-me com informações que indicavam a existência de crianças vindas da Áustria, o que, do ponto de vista histórico, não fazia sentido, já que não há registos de crianças a chegar a Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Na verdade, não havia crianças refugiadas em Portugal nesse período. Posteriormente, descobrimos que a situação não ocorreu durante, mas sim após a Segunda Guerra Mundial. Assim, surge uma contradição entre os factos históricos e as afirmações das pessoas. No entanto, dado que esta narrativa envolvia várias pessoas, havia algo subjacente a essa história. Só mais tarde que compreendi que a diferença crucial estava no tempo, ou seja, não durante a guerra, mas sim no pós-guerra.

E, além disso, é importante porque a ideia do refugiado da guerra foi também utilizada para a propaganda do Estado Novo. Ou seja, o Estado Novo fechou as fronteiras aos refugiados judeus e, posteriormente, usou essa situação a seu favor. A ação era promovida e organizada pela Cáritas para mostrar que Portugal era um país que oferecia refúgio, calma e tranquilidade às crianças que sofriam com a Guerra. Assim, tornou-se uma ação propagandística bastante eficaz nesse aspecto, pois alegadamente alinhava numa ideia de Portugal como o único porto seguro, quase um paraíso.

Susana de Sousa Dias: Nessa altura, pensamos em realizar um projeto sobre isso. Para mim, seria uma espécie de imersão nesse mundo dos refugiados que vieram para Portugal. Haviam muitos deles, e começamos a discutir várias questões, o que despertou a nossa curiosidade para aprender mais sobre o assunto. Isso foi há bastante tempo, e depois nunca mais pensamos nisso, não é verdade? [dirigindo-se para Ansgar] Entretanto, envolvemo-nos em outros projetos, e foi apenas em 2016, ou talvez em 2015, que retomamos a esta ideia.

AS: Também tivemos a sorte de entrar em contacto com a Embaixada da Áustria.

Como conseguiram chegar a estas “crianças”?

AS: Como disse, tínhamos contato com a Embaixada da Áustria, e eles, de facto, tinham preparado uma exposição ou um evento semelhante, no qual percorriam várias escolas e abordavam o tema. Haviam compilado uma base de dados com informações de várias centenas de pessoas, e entre essas estavam as tais “crianças austríacas”. Assim, através dessa organizada base de dados, eles podiam fornecer os contatos de determinadas pessoas. Essas, por sua vez, ajudaram-nos bastante. Na Áustria, conseguimos estabelecer contacto com outras pessoas através delas. Portanto, o que acontece é que muitas destas “crianças” encontram-se regularmente em várias cidades. Elas reúnem-se em Viena e mantêm contacto regular entre si. Existe uma certa ligação, quase como uma rede.

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Viagem ao Sol (2021)

Como os veteranos de guerra!

AS: Sim! Exato! Como os veteranos.

E tendo em conta aquilo que é transmitido pelo filme, há também essa definição de refugiado de guerra que foi usada pelas crianças austríacas. Também deu a sensação de que, como mencionaram, elas foram utilizadas pela propaganda do Estado Novo, mas também foram retiradas do seu espaço na Áustria, naqueles escombros, para serem trazidas para cá, com o objetivo de promover uma certa imagem positiva do nosso país. O que o vosso filme apresenta é bastante interessante, especialmente o olhar delas sobre o nosso país, que é uma perspetiva única, um olhar diferente. A história sobre Fátima, que achei maravilhosa, é um exemplo desse olhar de alguém que não compreende completamente a veneração, aquele provincianismo. Quando estavam a recolher estas narrativas e relatos, de certa forma, estavam a criar uma narrativa dentro do filme?

SSD: Sim, o filme cria sempre uma narrativa. Quer dizer, há sempre uma história que é proposta pelo mesmo. Porque nós tínhamos a opção de abordar este episódio de múltiplos pontos de vista. Aliás, pensámos muito nisso e tivemos abordagens completamente distintas.

AS: O que demorou muito tempo.

SSD: Exactamente. E depois? Isso também é uma descoberta, ou seja, o quê? O que é que os materiais nos estão a dar, digamos assim. O que é que os testemunhos, que depois são muito ricos, não é verdade? O que é que as imagens de arquivo querem dizer? O que é que a fotografia transmite? O que é que a própria substância nos está a dar? Houve um momento em que decidimos organizar o filme segundo a perspetiva da criança. O que é que a criança viu na altura em que estava lá? Ou seja, não tanto o adulto no presente, porque seria outra abordagem, não é? Ver como é que as pessoas são hoje, como mantêm as relações com os irmãos, dado que os pais de acolhimento já não existem. Portanto, ir ao presente para ver o que sobrou disso, e não, nós decidimos ver como é que o passado chegou ao presente, dando especial atenção precisamente a esse olhar infantil.

E é como disse, é muito interessante. De repente, começámos a perceber que havia um olhar. Essas pessoas viram muitas ‘coisas’, e é muito interessante compreender o que alguém vê quando não sabe qual é o regime político, qual é a população que está presente e o que aquilo revela. E depois, claro, o filme constroi, ou seja, já há uma história, mas há uma forma específica dessa história ser contada. E nós seguimos esse filme, basicamente.

AS: Sim, no fundo, o que contamos aqui é um outro olhar sobre o Estado Novo, um olhar diferente. Não é um olhar exterior, e isso é que é interessante, de facto, porque eles veem. Mas não, não se ouvem. Eles tomam posição, têm uma perspetiva própria.

SSD: Por exemplo, uma delas diz que não ficou chocada porque não sabiam ler nem escrever. Então vai ensinar pelo menos uma pessoa a escrever o próprio nome.

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Susana de Sousa Dias e Ansgar Schäefer na antestreia de "Viagem ao Sol" (2021) na Cinemateca

E sobre a questão do analfabetismo, também muito acentuado no vosso filme, porque há uma dessas crianças que relata não ir brincar com os “meninos lá de fora” porque são todos analfabetos. 

AS: Não é que não deseja, não pode. Não é permitido brincar porque são analfabetos. Estes detalhes, podemos dizer, revelam as várias facetas daquele regime, isto não se consegue ler em livros. O que significa? Há uma estratificação social muito forte, muito acentuada mesmo. De facto, uma criança não pode brincar com as crianças da sua idade que estão lá fora e estão a centímetros de distância, porque simplesmente não sabem ler nem escrever, isto para uma criança é violentíssimo; está então condenada a estar sozinha, tendo a companhia do gato, ou do cão, e lá fora ver um “monte de crianças” do qual não se pode sequer aproximar. 

SSD: São estes pequenos detalhes que nos dão uma perspetiva diferente. Formam um retrato.

Podemos considerar também um relato de um povo conformado com os próprios "brandos costumes". No filme, há um episódio, penso eu, que aconteceu na noite de Natal, em que uma das meninas encontra o rapazinho apenas vestido com uma camisa que não chegava ao umbigo. Ele pegou na mão dela e, como tentasse acalentar a sua dor, disse “pobrezinha, tu és das meninas austríacas que fugiram da Guerra”. A menina ficou chocada com esse miserabilismo. Ou seja, este retrato de um país reside na “luz obscura”, seguindo a senda que Susana de Sousa Dias tem prosseguido nos últimos tempos com os seus filmes, como o já referido "Luz Obscura" (2017) ou "48" (2010), que expõe um outro lado do regime. Histórias não ditas nem contadas. Falo por mim, pois quando estudava História enquanto criança, o Estado Novo era apenas uma menção. Por exemplo, havia alguém chamado Salazar, uma ditadura que durou 40 anos, 25 de Abril e acabou. É uma narração feita num pulo.

AS: Isso reflete-se nos "bons costumes"? Acho que não. Acredito que existem séculos de opressão básica, talvez desde os tempos da Inquisição. A questão é que não havia interesse, já que o povo culto não era incentivado à instrução. Por isso, o grande ponto não é esse. O Estado Novo era algo criminoso, mas não foi culpado por tudo nesse aspeto. É mais uma continuação e uma perpetuação. A continuação da miséria imposta pela ignorância, por assim dizer.

SSD: Mas o Estado Novo promoveu isso de forma extremamente violenta. Não se podia estudar a partir de um certo ponto, se queriam realmente manter as pessoas na ignorância.

AS: E essa é a grande diferença. Em países como a Áustria, por exemplo, o acesso à informação é cultivado. Nesse aspecto, as crianças têm que aprender a ler, escrever e fazer contas. Além disso, como mencionou, a escola existia, mas as crianças tinham que trabalhar por questões sociais e porque os pais não tinham posses para enviá-las para a escola. Quando havia trabalho, precisavam trabalhar. É um sistema complexo, e a influência da Igreja também desempenhava um papel significativo, como é evidente nas imagens e detalhes ligados a Fátima.

SSD: Sim, mas no fundo, tudo converge. A expressão "povo de brandos costumes" é interessante porque é uma questão que surge frequentemente. No entanto, isso não significa que seja um povo reprimido, que não pode ou que não lhe é permitido estudar e pensar. Ainda hoje, vemos reflexos disso no ensino em Portugal. A falta de pensamento crítico é um problema significativo que ainda persiste. Basicamente, os 48 anos de ditadura, com os anos de negociação que se seguiram, causaram danos consideráveis que ainda estamos a tentar superar mesmo agora, em democracia. É um processo que levará algum tempo.

E é muito interessante essa questão dos manuais escolares, que continuam a perpetuar muitas destas ideias e conceções.

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Fordlandia Malaise (2019)

Gostaria de lhe fazer um questão muito pertinente, pelo facto de você ser alemão e estar radicado aqui, em Portugal [Ansgar Schäefer]. Na Alemanha, em termos de ensino de História nas escolas, como é que eles abordam a Segunda Grande Guerra e consequentemente o Terceiro Reich? Como é que vocês abordam essa parte da História?

AS: O próprio Estado alemão incentiva a divulgação de informações sobre o nacional-socialismo. Aí não há dúvida. Qualquer projeto, qualquer escola que queira realizar uma iniciativa desse tipo encontra sempre financiamento disponível. Eu mesmo, em conjunto com colegas da Universidade Nova, organizei uma exposição sobre os trabalhadores forçados portugueses na Alemanha nazi. Recebemos apoio do Estado alemão. Normalmente, para essas iniciativas, há verbas disponíveis. Não há muito que se possa criticar nesse sentido.

O Estado, quero dizer, o governo em si, apoia sempre essas iniciativas. Até porque há facções políticas que não concordam com isso, mas é outra questão. No entanto, a política do Estado é sempre fomentar a investigação e o conhecimento sobre nós.

Nós portugueses, por exemplo, a Guerra Colonial é muito deixada de lado.

AS: É o nosso próximo filme. [risos]

SSD: Aliás, a Guerra Colonial durou 30 anos. Pouco se falou, e depois foi o Joaquim Furtado com a sua série - “A Guerra” -, que de repente começou. É porque também tem a ver com o facto de que foram os militares, e, oposição à Guerra Colonial, que “fizeram” o 25 de Abril

AS: Agora voltando novamente para a Alemanha. Eu acho que a grande nódoa na história de Portugal é a guerra colonial, tal como o Holocausto é na história alemã. E o Holocausto tinha que ser debatido na Alemanha. Porquê? Porque os americanos e os ingleses, os franceses, a comunidade judaica, todos obrigaram os alemães a aceitar este passado. Ou seja, é uma pressão vinda de fora, não foi por iniciativa dos alemães. “Vocês têm que confessar isto.” “Vocês devem reconhecer o vosso passado nazi, racista e criminoso.” Foi algo imposta exteriormente. 

A própria população normalmente quer esquecer. É o típico.

SSD: Sim, isso é interessante que estás a dizer, porque passa-se aqui a mesma coisa. Quer dizer, o mito do lusotropicalismo foi extremamente poderoso e continua atual.

AS: Mas já existia antes de Salazar, só que fora fomentado por ele. 

SSD: Sim, sim. Precisamente com propaganda. E é uma coisa que ficou até os dias de hoje. Eu fico sempre espantada por ver jovens que continuam a achar que nós fomos os bons colonialistas e que não há racismo em Portugal. Quer dizer, temos movimentos como o Black Lives Matter e toda esta dimensão, e mesmo assim … e mesmo as pessoas que vêm das ex-colónias. Porque no fundo é preciso olhar para isto, o que é muito problemático ainda hoje. Aliás, basta ver toda a polémica envolta do museu. Esta ideia do Museu dos Descobrimentos é inacreditável! Pois era da Descoberta, e deixou de ter a Descoberta. Como é que se quer fazer um museu com esta designação? Quer dizer, não se aproveita esta conjuntura para de facto fazer um museu que desmonte e que mostre todas as facetas e que dê todas estas questões a pensar, nomeadamente o caso da escravatura. De facto, há muito trabalho a fazer aqui.

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Viagem ao Sol (2021)

Fala-nos desse projeto sobre a Guerra do Ultramar.

SSD: Foi filmado em Angola. A ideia veio aqui do Ansgar … não sei se posso dizer assim … mas eu roubei-lhe o projeto. [risos]

AS: Já estou habituado. [risos]

SSD: E esta é de realização minha o que não impede que depois não façamos outros, aliás nós trabalhamos sempre juntos, seja enquanto produtora, realização, enfim, ou em mais funções. Estamos também a fazer um filme também na Amazónia

A segunda parte do “Fordlandia Malaise” (2019)?

SSD: Exato, é a segunda parte. Eu fiz em imagem, ele [Ansgar] foi assistente de imagem. Ele fez o som, eu fui assistente de som. Ele foi produtor, eu fui assistente de produção. Portanto cruzando trabalhos. 

Fomos filmar a "fazenda", que era uma fazenda modelo colonial e é impressionante aquilo que começamos a descobrir. Posso dizer que é um dos relatos mais terríveis que eu ouvi em toda a minha vida, em termos do que se passou em Portugal e daquilo que eu conheço e conheço muito. E posso dizer isto, porque estive nos arquivos. Temos estado há anos a investigar e foram relatos que ultrapassaram tudo aquilo que nós ouvimos até hoje, é de outra dimensão. E, portanto, é um filme que procura precisamente ser uma peça, nós que consideramos os filmes como pequenas peças, e não ‘coisas’ fechadas, tentamos que seja uma contribuição para abrir algo, nem que seja uma brecha. É qualquer coisa do conhecimento do que se passou e que continua a perpetuar no nosso presente, ou pelo menos, que o vai “contaminando”. 

É o ato de revelar essa História, que está “tapada”, ocultada de nós.

AS: É também uma corrida contra o tempo. Quando estas pessoas morrerem, já não temos os relatos, aliás, os nossos filmes servem como arquivo ambulante.

SSD: Mais uma biblioteca ambulante. Uma das pessoas que mais entrevistámos, um combatente guerrilheiro dos Movimentos de Libertação, ele dizia que nós éramos uma biblioteca ambulante. É através da palavra que transmitimos.

De certa forma, também encara o seu cinema como uma espécie de arquivo para o futuro?

AS: Sim, basicamente criamos o arquivo. Ou seja, é uma coisa triste, mas efetivamente é a vida, é que desde que fizemos as entrevistas, várias pessoas que participaram no filme já faleceram. Portanto, isto é uma realidade difícil, especialmente num documentário.

SSD: Sim, vamos constituindo um arquivo e sobretudo de testemunhos orais

É sabido que muitos dos relatos de “Viagem ao Sol” serão transformados em podcast. Poderiam partilhar mais sobre esse projeto e como planeiam realizar isso, considerando que muitos dos relatos estão em alemão?

AS: O podcast permite-nos fazer algo que não podemos realizar no filme. Já experimentamos isso com um episódio-piloto, e, surpreendentemente, funcionou muito bem. As vozes alemãs falam basicamente uma ou duas frases no máximo, depois passam para a voz portuguesa. Isso é algo comum na Alemanha, onde a dobragem tornou-se uma cultura. Qualquer ‘coisa’ chega-nos dobrada, os filmes que via mais novo eram todos dobrados. Eu via os westerns clássicos, com cowboys a falar alemão, e até os índios falavam alemão. [risos].

Apesar de eu ser cético em relação a isso, fiquei impressionado com o bom funcionamento dessa abordagem no podcast. Até possibilita a utilizar relatos que não foram utilizados no filme.

SSD: Ou seja, todas as histórias …

AS: Sim, todas as histórias.

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Viagem ao Sol (2021)

SSD: Somos uma equipa muito pequena, e todos nós trabalhamos em várias coisas. Atualmente, as pessoas responsáveis pelo podcast são o Mário Espada e o Nikolaus de Macedo Schäfer, que estão a concebê-lo de forma cinematográfica, com uma abordagem sonora interessante que funciona muito bem. Inicialmente, teremos seis episódios, mas planeamos transformá-lo numa série. Esta decisão surgiu porque, ao fazer um filme, estamos a mostrar apenas a ponta do iceberg, e pela primeira vez, decidimos explorar mais a fundo. Além disso, é uma forma de motivar as pessoas, e elas estão a apoiar esta iniciativa.

Na antestreia na Cinemateca, surgiram muitas perguntas após a exibição do filme, e grandes partes delas, por exemplo, serão respondidas no podcast

E quanto à sonoridade no filme? Sei que foi da autoria de Dídio Pestana, o qual tive o prazer de conversa na promoção do seu "Sobre Tudo Sobre Nada", mas gostaria de saber se vocês estiveram envolvidos na criação e conceção desta sonoridade, que causa um certo efeito de distância em relação a estas histórias, que premeia a sua longinquidade? 

SSD: Sim, foi bastante discutido. A questão do som num filme é fundamental, absolutamente crucial. Nós, com o Dídio, conseguimos um sistema que nos permitiu montar os materiais sonoros. Em vez de ele criar uma composição e depois inseri-la no filme, ele propunha materiais e nós íamos montando com esses materiais. Este é um trabalho fundamental de articulação entre imagem, som e palavra, onde tudo precisa de acontecer simultaneamente. Isso implica um trabalho específico em termos de composição sonora, e nesse sentido, resultou muito bem. O Dídio avançava, e depois precisávamos de sons específicos. Perguntávamos a ele o que tinha disponível e o que queria propor. Ele fornecia-nos os seus materiais, e nós, por nossa vez, fornecíamos os nossos a ele, e assim a composição foi se formando através num processo contínuo, e muito demorado.

“Fiel ao espírito independente”: as novidades do 14º Indielisboa, segundo Mafalda Melo

Hugo Gomes, 02.05.17

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Mais um ano, mais uma edição do Indielisboa. Para sermos mais exatos, o festival lisboeta com especial dedicação ao cinema alternativo e independente vai para o 14º ano de existência. A melhor forma de celebrá-lo é apresentar-nos outra rica seleção, desde as habituais retrospectivas, novidades, experiências e uma das maiores competições de filmes nacionais da História do evento. São seis longas-metragens, desde nomes prontos para saírem do anonimato até o regresso de veteranos, tais como Jorge Cramez, que segundo Mafalda Melo, uma das programadoras do festival, “é uma infelicidade não filmar mais”.

 

Quem disse que não havia Cinema Português?

Foi sobre esse signo lusitano que arrancou a nossa conversa com a programadora, que afirma, devidamente, que é sob a língua portuguesa que a 14ª edição terá o seu pontapé de saída. Sim, “Colo”, o novo filme de Teresa Villaverde, presente na competição do passado Festival de Berlim, terá a honra de abrir mais um certame, criando um paralelismo com a tão rica Competição Nacional: “É um ano feliz, aquele que sempre poderemos abrir com um filme português

Mas voltando ao ponto de Cramez (“Amor, Amor”), o retorno do realizador ao formato da longa após dez anos de “Capacete Dourado”,  é “uma confirmação do seu talento”, que se assume como forte candidato da Competição Nacional e Internacional, no qual também figura. E isto sem  desprezat o potencial dos outros cinco candidatos ao Prémio de Melhor Filme Português: “Coração Negro”, de Rosa Coutinho Cabral, “uma ficção dura, de certa forma ingénua e verdadeira”, o regresso de André Valentim Almeida ao trabalho “sob a forma de filme ensaio” em “Dia 32”, a aventura de Miguel Clara Vasconcelos na ficção em Encontro Silencioso, que remete-nos ao delicado tema das praxes universitárias, “Fade into Nothing” de Pedro Maia, “um excelente road movie” protagonizado por The Legendary Tiger Man, e, por fim, “Luz Obscura”, onde Susana de Sousa Dias persiste no “registo documental em tempos da PIDE”.

Em relação à competição de curtas-metragens, Mafalda Melo destaca algumas experiências neste formato, entre as quais o nosso “Urso de Ouro”, “Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante, assim como Salomé Lamas (“Ubi Sunt”), José Filipe Costa (“O Caso J”), Leonor Noivo (“Tudo O que Imagino”) e André Gil Mata (“Num Globo de Neve”). Ou seja, apesar de serem filmes de “minutos”, nada impede que sejam “impróprios” para grandes nomes da nossa cinematografia e “uma seleção bastante consistente”.

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Tudo o que Imagino (Leonor Noivo, 2017)

 

A Emancipação dos Heróis

Para Mafalda Melo, o que une os dois Heróis Independentes deste ano é o seu espírito marginal: “Quando falamos de Cineastas Independentes, quer do Paul Vecchiali como do Jem Cohen, não pelas mesmas razões, nem pelas opostas, são dois cineastas verdadeiramente independentes.

Jem Cohen é provavelmente o mais fundamentalista a receber este título de “Herói”. O nova-iorquino “quando começou a filmar, há cerca de 30 anos, precisou só da sua câmara e ter ideias para fazer filmes. Foi assim que ele trabalhou e continua a trabalhar.” Uma carreira diversificada, que vai desde o documental à música, ao ensaio até à pura experiência que não limita a sua cinematografia, com orçamentos “baixíssimos” até a micro-equipas, um verdadeiro “sentido de independência”. O Indielisboa irá dedicar-lhe um extenso ciclo, incluindo o seu mais recente filme, “Birth of a Nation”, uma visita a Washington no dia da tomada de posse de Donald Trump: “um filme onde encontramos aquilo que sempre encontrámos na sua filmografia, uma ligação emocional às coisas, aos espaços e aos sítios. Um gesto político, silencioso, mas igualmente agressivo”.

No caso de Vecchiali, “a sua independência garantiu-lhe um lugar à margem das manifestações artísticas da sua época.”. Longe da nouvelle vague, por exemplo, o outro Herói foi ator, realizador, produtor, um homem voluntariamente marginalizado dos eventuais contextos cinematográficos que foram, no entanto, surgindo. Como produtor, Vecchiali mantinha-se fiel ao “espírito do realizador e da obra”. Tal fidelidade resultou na sua produtora, a Diagonale, onde os realizadores usufruíram da mais intensa liberdade criativa, tendo apenas como condição respeitar o “orçamento imposto”.

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Paul Vecchialli

 

Uma Família Cinematográfica

Os métodos de liberdade concebidos por Paul Vecchiali fortaleceram a ideia de “família cinematográfica”, um círculo partilhado pelo Indielisboa que aposta sobretudo na crescente carreira de muitos dos seus cineastas. Melo sublinhou com curiosidade, o regresso constante de muitos autores premiados, como por exemplo das secções de curtas, ao festival com novos projetos entre mãos. É a família, esse revisitar, que alimenta a ideia de que um festival é sobretudo mais que uma mera mostra de filmes, um circuito de criadores e suas criações.

Nesse sentido, o 14º Indielisboa conta com três realizadores anteriormente premiados nas secções de curtas, “com filmes seguríssimos que só apenas confirmam os seus já evidenciados talentos”. Quanto a outros convidados, Mafalda Melo destaca a presença dos dois Heróis Independentes, dos realizadores das duas grandes Competições (Nacional e Internacional) que terão todo o agrado de apresentar as suas respectivas obras e ainda Vitaly Mansky, um dos documentaristas russos mais aclamados.

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Viejo Calavera (Kiro Russo, 2016)

 

Mantendo-se Internacionalmente Competitivos

São 12 primeiras, segundas e terceiras obras que concorrerão pelo cobiçado prémio. Uma seleção rica, quer em temas, nacionalidades e estilos. A programadora refere novamente Cramez, um português a merecer destaque numa Competição que esteve várias edições fora do alcance do nosso cinema, e ainda as provas de Kiro Russo (“Viejo Calavera”), Song Chuan (“Ciao Ciao”), Eduardo Williams (“El Auge Del Humano”) e a produção brasileira “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans. “Todos estes filmes são descobertas e têm em conta”, acrescentou.

A destacar ainda a união de Lucien Castaing-Taylor e Véréna Paravel, dois investigadores da Sensory Ethnography Lab, de Harvard, que conduziram em 2013 o grande vencedor do Indielisboa, “Leviathan”, agora remexendo no onirismo do letrista nova-iorquino Dion McGregor.

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Free Birds (Ben Wheatley, 2016)

 

O Inferno continua no Indie

Mafalda Melo foi desafiada a falar da crescente secção Boca do Inferno, dedicado ao cinema de género e de temáticas ainda mais alternativas, sem mencionar a sensação de “Grave” (“Raw”), o filme de canibalismo de Julia Ducournau, que vai mantendo um registo de desmaios, vómitos e saídas repentinas por parte dos espectadores, por onde passou.

Respondendo ao desafio, a programadora falou, incontornavelmente, de “Free Fire”, o mais recente trabalho de Ben Wheatley (“Kill List”, “Sightseers”), “uma espécie de Cães Danados da nova geração”. Brie Larson, Cillian Murphy e Armie Hammer são os protagonistas. Mas foi em “I Am Not a Serial Killer” que se sentiu um maior fascínio: “Um pequeno grande filme sobre um jovem de tendências homicidas que descobre que Christopher Lloyd, o Doc do “Regresso ao Futuro”, é um verdadeiro monstro. Uma obra geek, mas de um humor negro inacreditável.

O russo “Zoology”, “outro pequeno grande filme, sobre uma mulher que descobre que lhe está a crescer uma cauda, não colocará ninguém desapontado”. Estas entre outras “experiências bastante distintas” que alimentaram esta cada vez mais procurada secção.

 

Director’s Cut: entre Zulawski e Herzog

Dois eventos esperados para cinéfilos são a exibição do filme “maldito” de Andrzej Zulawski,On The Silver Globe”, e “Fitzcarraldo”, de Werner Herzog. Em relação a Zulawski, “estamos muito satisfeitos por fazer parceria com a White Noise, como resultado iremos exibir uma recente cópia restaurada” de um filme incompleto devido à decisão da época do Ministério da Cultura polaco de vir a comprometer questões politicas e morais.

Quanto a “Fitzcarraldo”, a sua projeção foi motivada por outra projeção, a da curta de Spiros Stathoupoulos, “Killing Klaus Kinski”, que durante a rodagem do tão megalómano filme,propôs a Herzog o assassinato do ator Kinski de forma a restabelecer a paz.    

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On The Silver Globe (Andrzej Zulawski, 1988)

 

Redescobrir o Português subestimado

Ainda no Director 's Cut, está agendado um encontro com Manuel Guimarães, o cineasta que tentou incutir o neorrealismo no cardápio cinematográfico português, mas que hoje tornou-se numa figura esquecida e constantemente subestimada. O Indielisboa passará O Crime de Aldeia Velha, uma história sobre inquisições e superstições, que dialogará com o filme de Leonor Areal, “Nasci com a Trovoada”, um olhar atento à figura e os motivos que o levarão a tão triste destino – a falta de reconhecimento.

 

Indiemusic ao Luar!

Uma das secções mais habituais do Indielisboa terá um novo fôlego. O Indiemusic abrirá em paralelo com a reabertura do Cineteatro Capitólio/Teatro Raul Solnado. Serão sessões ao ar livre com muito cinema e música como cocktail. A mostra terá início no dia 5, com a projeção de “Tony Conrad: Completely in the Present”, o documentário que olha o legado incontornável do “padrinho” dos Velvet Underground.

 

Um festival a crescer!

Ao longo de 14 anos, o Indielisboa tem se tornado um festival cada vez mais “acarinhado por parte do público”, o que corresponde a mais espectadores, mais seções. Mas para Mafalda Melo, o “Indie não se fechou, mas sim expandiu fronteiras e ao mesmo tempo manteve-se fiel ao seu espírito independente. Conseguimos ao longo destes anos uma mostra esperada dentro deste circuito, uma plataforma para a descoberta. E é isso que temos mantido, esta evolução gradual ao longo dos anos, o dever de apresentar cineastas e filmes que as pessoas desconhecem.”

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Tony Conrad: Completely in the Present (Tyler Hubby, 2016)

 

O Indielisboa acontecerá no Cinema São Jorge, Cinema Ideal, Cinemateca Portuguesa Museu do Cinema, Cineteatro Capitólio e a Culturgest, a partir do dia 3, prolongando-se até ao dia 14 de maio.