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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A Educação da Morte

Hugo Gomes, 01.02.25

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Lidar com a morte não é uma essência exclusivamente humana, acredita-se que os elefantes, por exemplo, choram pelos seus mortos e os recordam através de alguns rituais testemunhados, mas é na consciência da nossa própria mortalidade que nos diferenciam do restante Reino Animal. Contudo, esses motivos propícios à melancolia não nos são inatos – aprendemo-los, ou melhor, vivenciamo-los. A forma como encaramos a morte, refletindo sobre ela, reagindo ou ritualizando a sua passagem integra um processo de crescimento e amadurecimento, representando em muitas culturas o rito definitivo de entrada no mundo adulto. Mas como ensinar a morte? Como transmitir esse conhecimento desde tenra idade?

Na nossa sociedade ... ocidental para sermos exatos ..., a morte tornou-se banalizada, permeando os meios de comunicação e as suas diversas plataformas: o audiovisual transborda dela, os videojogos não se sustentam sem o seu toque – por vezes quase lúdico – e as histórias que nos são narradas exaltam-na; daí nascem heróis e mártires, enquanto a religião converte esse estado no seu lar de fé. No cinema, a morte também se faz presente – ora dissimulada, noutras suavizada da sua iminente violência –, e o ceifeiro autocensura-se, semeando, assim, a semente de uma consciência. Quem não sentiu o trauma da perda da mãe em “Bambi” durante a infância? Evidentemente, um marco geracional. Da mesma forma, a Pixar recorre a esse artifício para intensificar a carga emocional, em contraposição à esquadria do cinema de super-herois com multiversos à mistura para arrancar a consequência da morte, fazendo dele uma espécie de conforto na banalização.

E é nesse contexto de banalização – imerso no boom tecnológico e sociológico proporcionado pelas redes sociais – que surge “Death Education”, curta-metragem do ainda jovem Yuxuan Ethan Wu, concebido num mundo pós-Covid, cuja morte se espectacularizou no mediatismo dos dias conturbados. Inspirado pela iniciativa de um professor de secundário que anualmente conduz os seus alunos a entrarem em contacto com a morte de vários desconhecidos [“sem nome”], durante o Dia da Limpeza dos Túmulos (Festival Qingming), festividade chinesa que homenageia os falecidos, e voluntariarem-se em cargos fúnebres. Wu encontrou neste ritual a curiosidade que o levou a criar um documentário imbuído de sentimento semelhante. Por meio de um manifesto observacionalista (quase wisemaniano, daí evidenciar a sua "escola", americana convém salientar, enquanto documentarista), interroga como os jovens, na sua plena flor, podem confrontar a morte, possivelmente acostumados à sua vulgarização.

O que impulsiona um professor a incitar os seus alunos a demonstrar um sentimento tão genuíno como o luto, o respeito e a despedida fúnebre? Seria um simples trabalho de casa ou, quiçá, uma semente semeada para futuras gerações, nutrindo uma empatia não só pelos vivos, mas também por aqueles que deixam este mundo e mergulham no desconhecido? Ou, ainda, pretende transformá-los numa plateia memorialista, recordando “quem” ninguém mais relembra – um isolamento que persiste mesmo após a morte? Há toda uma educação a ser observada neste ato, e “Death Education” emerge dessa inquietação … nunca fornecendo respostas definitivas, ao invés disso alimentando a curiosidade – tal como o realizador, cujo apetite o conduziu à criação de um filme. Por vezes, são esses pequenos detalhes que levam os documentaristas a serem documentaristas por inteiro.

Filme visualizado no contexto de Sundance Film Festival

Menino ou menina? Não, cápsula!

Hugo Gomes, 07.08.23

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A fertilidade como ato político. O útero como palco de batalha. Próxima fronteira: a maternidade.

"The Pod Generation", o regresso ao distópico e ao transumanismo de Sophie Barthes, iniciado pelo conceitual "Cold Souls" e pausado na paragem ocasional no romance de Gustave Flaubert ["Madame Bovary" com Mia Wasikowska], é um futurismo projetado como dissertação político-social, começando pelo afastamento da humanidade de suas raízes naturais, seja pela Natureza propriamente dita, seja pelo elo orgânico que codifica a nossa existência animalista, entre elas, o tópico central da intriga, a fecundação.

Neste episódio à la "Black Mirror" (termo normalizado para classificar possíveis vidências da posteridade), seguimos um casal que planeia expandir a família e opta por aceitar o programa numa clínica de fertilidade sintética, ou seja, fecundar através de uma cápsula artificial, livrando assim o corpo da mulher das transformações que isso acarreta, da dor de parto e, sobretudo, da responsabilidade acrescida, dependendo desta forma de uma empresa para administrar o seu "rebento". Numa das passagens do filme, o casal-protagonista (interpretado por Emilia Clarke e Chiwetel Ejiofor) ao sair da referida clínica depara-se com um protesto de mulheres em relação ao negócio desta, clamando por partos naturais como gestos de emancipação feminina (a experiência de mulher a validá-la como tal). 

"The Pod Generation" segue essa ideia base (aquela cena determina o discurso da metragem), assim como o contraste do casal (ela mais dependente da maquinaria da sua modernidade, ele preservando uma ligação do Homem para com a terra que o gerou) para nos servir um exercício de reflexão quanto a elementos triviais e familiares, obviamente, e em jeito moral, optando pelo sentimento maternal (ou paternal) numa hipotética sociedade fria, mecânica e crente da inteligência artificial (aqui em voga com a normalidade das normalidades), em que o “cordão umbilical” é transfigurado como escassa vitamina para uma comunidade doente. Uma Humanidade que não sonha e com isso não imagina, não cria, apenas move em função dos seus instintos primordiais. Uma disfunção (e nunca encarada como tal) mencionada com cinismo num passeio pelas creches futuristas. 

Desta forma, Barthes parte do ponto de partida, naquela imagem da sua estreia em 2009, com Paul Giamatti agarrado a um grão-de-bico o qual serve como (decepcionante) representação da sua alma, os seus “entorses” existencialistas retirados como apêndice. Em "The Pod Generation", é o parto, esse avanço individual ou coletivo, um "mal" social a ser erradicado para um facilitismo à nossa passagem neste mundo, porém, como todos os facilitismos gerados, o capitalismo será sempre a razão para a sua eficácia ou controlo. Neste caso, interpretando um invisível antagonista aos moldes tradicionais e familiares que herdamos quase geneticamente.

Perdidos em Marte

Hugo Gomes, 10.06.23

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A eleição de Bolsonaro foi o que de melhor aconteceu ao cinema brasileiro nos últimos anos”, ouvido numa tertúlia cinematográfica, daqueles serões embebidos em álcool, petiscos e noites prolongadas em conversas entrelaçadas em volta de filmes, factos e disputa de opiniões (a imperatividade de uma só ‘verdade’). Neste caso, a frase polémica é momentaneamente argumentada (não vá ela ser deslocada do seu próprio contexto) do seu automático peso com que “cai” entre o grupo. 

Bolsonaro e as suas políticas de asfixia à produção audiovisual levaram a que este mesmo cinema, fora dos wannabes do mainstream (Globo produções, “gíria” brasileira), a assumir o seu caráter de denúncia. Contudo, este cinema não surgiu somente com o triunfo do bolsonarismo no decretado Poder, eles sempre haviam existido, só que é em Bolsonaro que se depararam (por fim!) com um materializado antagonista, um vilão com face e “tentáculos”, uma imagem pelo qual pudesse realmente rebelar, ou melhor, resistir (RESISTÊNCIA, como bem gritou, de punho erguido a produtora Sara Silveira em Berlim de 2019). Devido a esta luta contínua, entre cineastas e políticos desinteressados e apenas motivados pelas suas agendas, entre um Brasil humanamente desgostoso e uma plataforma determinada a atribuir voz a minorias, mudas e silenciadas por políticas intrínsecas. Agora, Bolsonaro tornou-se um fantasma, um país assombrado pelo seu vulto, o que restará do cinema brasileiro para além da sua guerrilha neste mandato Lula permanece uma incógnita. 

Mas antes de ‘brincarmos’ às vidências, recuemos no tempo e “joguemos” de cabeça a um dos últimos filmes dessa vaga anti-Bolsonaro - “Marte Um” de Gabriel Martins - candidato brasileiro ao Óscar em 2022, uma escolha improvável até porque a obra comporta-se como um exercício passivo perante essas adversidades políticas-sociais (o realizador e argumentista trabalharia neste filme desde 2014, Bolsonaro seria a atualização durante do seu processo criativo). A sua introdução nos contextualiza ao pressuposto, Bolsonaro venceu e daí surge uma “nova era”, no seu seio, uma família (típica, apesar de tudo) persiste nas suas “ruelas”. Em “Marte Um”, a política é subjacente, a crítica é lançada para segundo plano, mais como um marco temporal, priorizando assim as inquietações de cada um dos membros da família-protagonista, negros de classe média baixa e com alguns “espinhos” cravados. A sua introdução, possivelmente os seus primeiros 10 minutos, deixam em antemão um percurso pelas mais variadas “causas” associadas aos movimentos de esquerda, só que passados esse “cumprimento”, Martins dissipa qualquer dependência às mesmas lides, o filme vinga (e não é pouco), por um ingrediente apenas, a sua extrema sensibilidade. 

É em oposição ao Brasil da sua contemporaneidade que a sensibilidade sobressai neste episódio familiar, na procura de um espaço, não somente um lar, mas de uma epifania que possa salvar estas mesmas personagens da “prisão” que o país descortinou ser e que reflete nas adversidades das suas respectivas vidas. Não é por menos que todas as personagens procuraram refúgio na mudança, seja numa eventual estação espacial em Marte, numa carreira futebolística, numa evasão ao “lugar mais barato” ou de uma apartamento vazio, longe do Mundo, longe de tudo, onde os "náufragos" se entregam de corpo e alma ao desejo sem recriminação. Belíssima sequência essa, carnal e não só, prazerosa brincadeira com melânia e luzes (ou a ausência dela) convertendo corpos em iluminações naturais. 

Digamos que “Marte Um” parte de uma “catástrofe” (poderemos discutir política, mas inegavelmente foram os 4 anos menos empáticos no Brasil dos últimos anos) para se instalar como um filme de comunidade, de abraços apertados e pedidos, de sonhos ainda requeridos. O Brasil pode sonhar, Marte está ao virar da esquina, metaforicamente falando. O recomeço é óbvio.

Nova Iorque, dentro de horas

Hugo Gomes, 22.03.23

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Mais do que uma peregrinação ao mito, o género tem-se convertido em um constante debate na nossa sociedade, igualmente emancipando-se da consciência da orientação sexual. O cinema, muito dele aliás, alicerçou-se ao fervor da ideia, com vários a desafiar através das suas próprias concepções, uma ginástica e, por si, a diluição da questão de género, como por exemplo Bertrand Mandico (realizador assumidamente não-binário, um dos rostos do ‘Manifesto da Incoerência’) que executou brilhantemente em 2017 no sexualmente febril “Les Garçons Sauvages”. 

Mas outros não ostentam tamanha criatividade em trabalhar os géneros e distorcê-los perante as convenções cinematográficas, grande parte deles e infelizmente saídos de uma determinada escola à lá Sundance têm optado a via do panfleto, mensagens escancaradas na hipótese de “converter” um mundo para essa visão, sem sequer pensar nos cariz sedutor ou nas possibilidades, ora criativas, ora narrativas, que o cinema poderá trazer. Tem sido esse tipo de filmes que proporcionam certos ódios (diversas vezes mensurados) de alguns intelectuais e cinéfilos aos chamados “filmes de agenda”, quiçá sugestivo e redutor título que condena apenas e específicas agendas e não outras. No caso de “Mutt”, também ele saído dessa “tendência apropriada do famoso festival americano” e estreado na Europa através do Festival de Berlim (tendo recebido uma Menção Especial na secção Generation 14plus), a ótica é outra, pertinente e à sua maneira honesta. 

Vuk Lungulov-Klotz, realizador de origens chilenas e sérvias, e que se identifica como trans (aliás a sua carreira orbita sobre esse tema), recorre em 24 horas na vida de Feña (o ator de género neutral Lio Mehiel), homem-trans em plena transição que reside em Nova Iorque. Neste episódio quotidiano, o protagonista aguarda a chegada do seu pai, vindo do Chile, uma conservador “fantasma do passado” que o próprio terá que “esgrimar”, para além de ter reencontrado o seu ex-namorado na anterior “noite de copos”, e a acrescentar à equação o aparecimento da sua irmã mais nova que procura nele conforto familiar. “Mutt” coordena esta trajetória de auto-descoberta numa centrada malapata citadina, ao jeito dos irmãos Safdie, um choque entre acasos e infortúnios que irão culminar num preenchimento pessoal do seu protagonista, sem este se aperceber da sua epifânica jornada. Porém, a desilusão será o destino amassado, nada de repentinamente revelador nascerá daqui, os acidentais trilhos guiarão-lhe ao nada, a recompensa não mora aqui. 

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Lungulov-Klotz não reduz Feña ao vitimismo, nem sequer o banha na condescendência com que muitos retratam a minoria, e muito menos no privilégio cinematográfico (Rúben Alves, estou a apontar para ti), esta personagem é humana até à quinta essência e prova disso é a ambiguidade moral com que “cerra os punhos”, ora transversal nas constantes recaídas e ao mesmo tempo demonstrando resiliência em encontrar soluções que o valha, mesmo que “desenrascadas”, aos seus temporários obstáculos narrativos, mas, mais que isso, é a constatação da sua natureza naquela que é uma das mais subtilmente cruéis desconversas do recente cinema norte-americano: “Eu não te odeio por seres trans, mas sim por seres uma ‘besta’”.

Não podemos culpar o autor desta frase, o realizador não o permite, até porque em matéria de maniqueísmos, não é o padrão da pessoa que o condiciona para uma das “trincheiras morais”, e sim a sua experiência, dentro ou fora do seu género. Por um lado, podemos identificar-nos com essas “bestas”, encarar Feña como um revoltado de uma adolescência expirada (tentando lidar com a sua própria maturação enquanto ‘enfrenta’ a transformação), ou um desencontrado na sua compreensão. O que está entendido é o evidente carinho de Lungulov-Klotz pelo seu Feña (possivelmente há muito do realizador na sua criação) o leva a inseri-lo numa Nova Iorque sem personalidade.

Contudo, “Mutt” funciona como exercício tragicómico aliado à Lei Murphy e tem o trunfo de não se vender pornograficamente à mensagem [leia-se causas], até porque qualquer um consegue-se identificar com as dores do protagonista. Porque ao longo das nossas vidas, em algum momento, já nos sentimos deslocados do nosso lugar (no caso dele, é um “corpo” que não consegue interagir e isso traz uma pendor abstrativo à representação do “nosso lugar”).

Com ou sem sexo, o corpo é um ato político

Hugo Gomes, 05.02.23

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A badalada fórmula de “boys meets girl” (ou “girl meets boy” para equilibrar as perspectivas) recebe um “twist” em “Slow”, a segunda longa-metragem da lituana Marija Kavtaradze. Uma confissão, ora despejada descontraidamente num momento pré-íntimo - “sou assexual” - coloca-se como obstáculo numa relação que cobiçava a prosperidade.

Essa “bomba” declarada parte dele, Dovydas (Kestutis Cicenas), levando uma reação inicialmente incrédula por parte de Elena (Greta Grineviciute). Ambos tentam lidar com esta interrupção do eventual desejo sexual, a carnalidade que poderia servir de motor à consumação desta relação, porém, é através dessa distância (o que não resume a uma frieza abordagem na obra), de que são encontrados novos atalhos à infértil-recepção. Ela, dançarina, utiliza o corpo como manifesto, libertação espiritual das suas afecções, ou neste caso, falta delas, enquanto que ele, intérprete gestual, o corpo é uma ponte de compreensão e emissão, é por vias dele que sentimentos são incentivados ao contrário da sua “companheira” que parte de um dialeto interior para exterior. “Slow” expressa-se na interação de ambos, na sequência das suas “artes”, a alternativa ao lascivo ou a naturalidade com que os seus velcros corpóreos se comunicam.

Kavtaradze experimenta um romance com tudo para falhar e render-se ao campo da comédia, só que os tempos são outros, a ridicularização ao foro da sexualidade é um campo minado com cuidados redobrados para o traspassar. Ora, tentamos abordar a identidade sexual para longe do tom da complexidade e o encaixamos na normalidade do receptivo quotidiano (e quiçá, senso comum), por outro, através de uma sociedade menos dada aos desejos, assexuado no sentido frívolo da suscitação de fantasia, o filme recorre a outras alternâncias para indiciar a tão ausente sexualidade. Seja na performance de Elena ou na assertividade com que os gestos de Dovydas sintonizam-se com os diálogos “falados”, o corpo é aqui, não só um objeto de deleite sexualizado, mas um objeto politizado.

O que “Slow” discursa, é que “sexo” enquanto ideia está inerentemente presente na nossa sociedade, sem o talhar à vulgaridade, ou melhor, à fácil consumação do mesmo.

 

*Filme vencedor do Prémio de Realização, na secção World Cinema, da edição de 2023 do Festival de Sundance

 

E quem toma conta da "babysitter"?

Hugo Gomes, 12.10.22

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Monia Chokri, novamente de humor sardónico, cronista, e negro como o bréu, nesta sua segunda demanda na realização, revela-se a um episódio em reluzente absurdo que engloba “masculinidade tóxica” e a “culpa masculina” em sociedades ocidentais. “Mais um!?”, pensaram muitos (e muitas digamos), porém, o enredo da atriz (bem reconhecida numa grande parte do cinema de Xavier Dolan) virada realizadora (e que mesmo assim faz aqui “perninha” na atuação), coloca-se nos dois campos das demandas de preservação feminina, ora “desmascarando” e desconstruindo masculinidades, ora ridicularizando a conscientizada apropriação desses remorsos. 

Três anos desde “La femme de mon frère” [primeira longa-metragem que abriu a Certain Regard de Cannes em 2019], Chokri usa “Babysitter” (baseado numa peça de Catherine Léger) como uma fantasia desvirtuada do seu conceito, a sexy e jovem ama (Nadia Tereszkiewicz, que contracenou, em Portugal, com Catarina Wallenstein no desastroso “Selvagem”, do veterano Dennis Berry), objeto desejável e de fácil consumação no universo pornografico é aqui a enzima solicitada para uma relação distanciada pela monotonia matrimonial, com os seus innuendos sexuais e do vislumbre da frecha que separa a fabulação do ordinário, “criatura” distorcida que cumplicita com a autora no alinhamento satírico e absurdista. 

A tal babysitter assume-se como totem para limiar as arestas desta “distopia”. Chokri aproveita-se do momento e deleita-se na crónica social sem nunca ceder a puritanismos, evidentemente esse feminismo alicerçado não mora aqui. Contudo, é um exercício estético, cínico, sublinha-se, que torna os seus alvos em meras caricaturas, perfeitamente afogadas nos pretensiosismos artísticos. Ou seja, há intenção, mas nunca a sua verdadeira emancipação.

Fronteiras de sangue

Hugo Gomes, 09.12.15

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Nós sabemos o mal que isto faz a vocês. Mas somos pobres“, justifica um membro de um cartel de drogas a Matthew Heineman nos primeiros momentos deste “Cartel Land” (“Terra de Cartéis”). Esta tentativa de “branquear” os atos que praticam poderá levar nestes precisos segundos a inúmeros espectadores a torcer pelo seu lado, como se a pobreza fosse automaticamente sinónimo de sobrevivência, e esta como uma via amoral para visíveis soluções. Mas Heineman, que atua aqui como operador de câmara (cuja coragem será mais tarde evidenciada) e realizador, não se encontra interessado em esboçar lados imbatíveis, ou construir desde a raiz um documentário de propaganda maniqueísta, ao invés disso aposta numa longa “batata quente”, narrando acontecimentos paralelos nas fronteiras do México, cujo único propósito é a luta aos carteis. Sim, a desses homens que inicialmente proclamavam a sua pobreza como inibidor de culpa.

Cartel Land” funciona ainda como uma espécie de cinema de guerrilha, cuja verdadeira rebelião encontra-se no seu protagonista, Heineman, que tenta revelar factos que muitos apenas conhecem da romantização cinematográfica. Mas mesmo filmando o real, o nosso realizador não deixa de ser poético visualmente. Um desses exemplos é nos momentos que sucedem o primeiro encontro com os traficantes, aqui sob as imagens da fronteira intercaladas com um discurso obviamente maniqueista, mas citado com uma emoção credível por um vigilante americano decidido a combater e patrulhar os carteis com as suas próprias armas. A linguagem determina o Bem e o Mal segundo este “vingador”, mas “Cartel Land” faz destas palavras não as suas, partido logo para outra ação: a sul do México, mais precisamente na região de Michoacán, onde um grupo de populares formam uma força de autodefesa para também eles expulsarem este “cancro”.

Heineman consegue nas mais variadas histórias glorificá-las e ao mesmo tempo humilhá-las, perante a ambiguidade desta luta, funcionando assim também como uma crítica política ácida, envergada somente pela citação dos seus atores. Para além disso, o realizador tem o dom de depositar nesses momentos uma carga dramática dignamente cinematográfica, essa mesma ênfase que porventura funcionará como um manipulador emocional e um embelezamento da violência por si retratada. “Cartel Land" é assim um documentário sem medo da aproximação, e obviamente sem receio do grafismo e do explícito; é uma realidade injetada no ecrã com o realizador presente nas situações-limite.

Contudo, o único grande defeito deste documentário é que em momento algum tenta transcender as suas fronteiras, ou seja, as acusações politicas permanecem bem internas, neste caso, dentro do território mexicano, sem nunca apontar o dedo noutra direção. Uma direção que, por exemplo, “Sicario”, o filme de Denis Villeneuve sobre o narcotráfico, seguiu pujantemente.

Em nota de curiosidade, Kathryn Bigelow, a realizadora de o oscarizado “The Hurt Locker” e “Zero Dark Thirty”, encontra-se creditada na produção executiva, sendo facilmente identificável neste “Cartel Land” os atributos que a fascinaram.