“Art will give you crowns in heaven and laurels on Earth, but also, it will tear your heart out. Art is no game! Art is as dangerous as a lion's mouth. It'll bite your head off.”
De “coming-to-age” com paixões cinematográficas ao barulho, o “inferno” anda abarrotado. Recentemente presenciamos Kenneth Branagh, Paolo Sorrentino, de certa maneira Abdellatif Kechiche e, futuramente ainda teremos Vicente Alves do Ó [com o ainda em produção “Malcriado”], cada um com o seu “Cinema Paraíso”, porém, as propostas não faltam, uma tentativa encontrada para falarem de si próprios através do cinema com conversa direta para com o cinema, a sua paixão e por fim, a função que os acompanhará até se tornarem realizadores feitos. Biografias ou mistelas ficcionais, são remontagens ao redor do seu umbigo, uns mais fascinantes que outros, certamente, mas que não deixam de ser tendências que qualquer um “tropeça” enquanto ambição, egotrip esbarrada na tela para ostentação mundial. Fellini abordava tais campos no seu zênite intitulado de “8 ½” (1963), uma carta-vanitas sobre os seus tramas, os seus devaneios, as suas projeções enquanto autor que solenemente acreditava ser. Todos desejam o seu meio, de um jeito ou de outro, e essa senha calhou a Steven Spielberg.
Por isso fica a questão, o que poderá Spielberg trazer a esta já prescrita fórmula em “The Fabelmans"? Talvez nada e ao mesmo tempo tudo, até porque em matéria de Cinema possivelmente não haja mais nada para inventar e simultaneamente ainda existe bastante a explorar. O que aconteceu é que nesses retornos ao passado, o Amor, seja ao ecrã e mais que tudo à projeção - essa luz crepuscular - prevalece como a ferramenta essencial para o efeito rodopiante do filme.
Spielberg fala sobre esse caso adúltero para com o seu quotidiano através dos olhos de uma criança, ansiosa, que na sua inaugural ida a uma sala de cinema, uma experiência resumida como “O Maior Espectáculo do Mundo” (poderia inserir uma alusão do meu afecto, mas estou realmente a mencionar o filme de Cecil B. DeMille [“The Greatest Show on Earth, 1952”]), é lhe despertado uma obsessão constante em replicar as imagens que tanto lhe fascinaram. Nesse gesto de reprodução nasceu um “hobby”, por sua vez, automaticamente dispensado como tal (“Can you stop calling it a hobby?”), se tornou numa determinação, numa patologia, numa corrompida droga (“We're junkies. Art is our drug.”). Incompreendido, porque este Fabelman (consideremo-lo num pseudónimo do próprio Spielberg) depara na sua arte de criar e de amar a película numa comunhão e um conforto que encurte distâncias, não as geográficas, mas as afetivas.
Na órbita do cinema, do seu centro, da sua vórtice, encontram-se relações quebradas ou fraturadas por razões ainda por descobrir, contudo, as suas figuras, peças centrais, pavoneiam como razões próprias - o pai que projeta os seus sucessos, deixando o seu filho sombreado pelo seu seu vulto (um sempre subestimado Paul Dano) e a mãe anestesiada por uma artificialidade de "pronto-e-esquecer" em conexão com os seus fracassos pessoais (uma competente Michelle Williams no seu habitual registo). Desiguais, esses exemplos de progenitores, e essa mesma inconsciência pesa numa balança familiar, desequilibrando-a, exaltando um lar disfuncional e uma família assombrada pelos seus demónios interiores.
“The Fabelmans” é uma obra pessoal, no sentido em que esse intimismo segue a direito numa catarse, é a História de Spielberg encaminhada para um divã e submetido a uma terapia. De um jeito ou de outro, o realizador comete o pecado de muitos artistas em expor intimamente e emocionalmente numa narrativa orgulhosa em mergulhar nos dois tons, não separando-se da sua aura autobiográfica nem da aura fantasiosa. Nesse campo, “The Fabelmans” não diverge dos seus congêneres, a história mantém-se nos seus parâmetros com uma excepção: Steven Spielberg demonstra o quão exímio é enquanto contador dessas mesmas e de como aproveitar o Cinema e as suas alicerçadas ferramentas nesse sentido. Assim, como o protagonista figurado, cuja câmara é um órgão de manipulação da realidade e da perspectiva, ou até uma alternativa à sua desmoronada vida (a interpretação é deixada a cada um), subjuga-se à sua sensibilidade recorrendo à tela - a esse mundo que o apaixona e o motiva a viver - para induzir um diálogo encantado e por vezes cruel consigo mesmo.
“When the horizon is at the top, it's interesting. When it's on the bottom, it's interesting. When it's in the middle, it's boring as shit! Got it?”, a lição que Spielberg guardou incessantemente e que aqui deixou-nos como um epílogo, um incentivo à decifração de “The Fabelmans” - o que importa não é bem a natureza da sua história, mas sim como a relatar, neste caso e adequadamente, como a filmar. E é por esse fim que Steven Spielberg afasta-se dos demais, através das suas peculiaridades.