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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Harry Belafonte (1927-2023)

Hugo Gomes, 25.04.23

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"He was 17, I was 18, we kind of looked at Jesse and called him slow, today you'd call him mentally retarded. They claimed Jesse raped and murdered a white woman by the name Lucy Fryer. They put Jesse on trial, and he was convicted by an all-white jury, after they deliberated for only *four* minutes. I was working across the street at the shoeshine parlor, and after the verdict, the mob grabbed Jesse, put a chain around his neck and dragged him out of the courthouse. I knew I had to hide... where I was, the shoe parlor had a window up in the attic, and I could see the crowd, they marched Jesse through the streets, they stabbed him, and beat him, and finally in a bloody heap, they held him down in the street - and cut off his testicles ... Police and city officials were out there watching him, they cut off his fingers, and threw coal oil all over his body. They lit a bonfire, and raised and lowered him over these flames over and over, and over again... The man, a photographer by the name of Gildersleeve, he came and took pictures of the whole thing, those pictures were later sold as postcards." BlacKkKlansman (Spike Lee, 2018)

Cannes 2021: recomecemos fresquinhos para mais uma temporada

Hugo Gomes, 18.07.21

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Dou por terminada mais uma edição do festival, desta marcado pelas imensas saudades que tinha deste ritmo e da quantidade de sexo que a Competição ostentou nesta edição. Normalidade, não foi bem o que tivemos, mas o gosto de proximidade foi deveras revitalizador.

Com 36 filmes vistos e somente 12 entrevistas executadas com realizadores e atores como Ryusuke Hamaguchi, Nanni Moretti, Ari Folman, Tim Roth, Viky Krieps, Louis Garrel e Adèle Exarchopoulos (mais uma vez) e uma Palma de Ouro concretizada a “Titane”, o OVNI da Competição que confirmou a visão de Spike Lee em apostar num cinema arrojado, moderno e de género, fora dos conformismo que muita cinefilia apresenta, a 74ª edição de Cannes mostrou que a Sétima Arte permanece viva e vista em grande tela, em contradição às declarações precoces da sua morte, agravadas pela pandemia e pela expansão dominante do streaming.

Assim, deixo a minha lista de 10 filmes (marcantes diria eu) nesta Seleção, quer Oficial, quer secções paralelas (sem ordem de preferência):
 

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A Hero (Asghar Farhadi) – Competição
 

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Drive My Car (Ryusuke Hamaguchi) – Competição
 

218600966_10219717303819979_2221912876172221315_n. Julie (en 12 chapitres) / The Worst Person in the World (Joachim Trier) – Competição

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La Civil (Teodora Mihai) – Un Certain Regard
 

218772960_10219717303339967_1525778472785753653_n. Onoda, 10 000 nuits dans la jungle (Arthur Harari) – Un Certain Regard 

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Mi Iubita, Mon Amour (Noémie Merlant) – Sessão Especial

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Rien à foutre (Julie Lecoustre e Emmanuel Marre) – Semana da Crítica
 

219407939_10219717304219989_4367070920732744759_n. Stillwater (Tom McCarthy) – Fora de Competição

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Titane (Julia Ducournau) – Competição
 

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Tre Piani (Nanni Moretti) – Competição

Da 5 Bloods: Farewell, Vietnam!

Hugo Gomes, 14.06.20

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Há uma América que grita revoltosamente. Há uma América que sangra desalmadamente. E há uma América que não é uma América de todo. Spike Lee é sempre contemporâneo e simultaneamente prega os sermões do arco-da-velho até porque a América que ele fala não é mais do que a América que muitos lhe impõem. Não é a sua América de todo.

Da 5 Bloods caminha em jeito de desconstrução de subgéneros enraizados num imaginário importado. A Guerra nunca foi santa, nem pincelada em somente tons de branco e preto. A Guerra, essa, é um estado alternado que invade e entranha-se em nós até ao nosso último suspiro. E até mesmo ela não trata os homens por igual, ostracizando-os nas suas desigualdades, nas hierarquias vincadas e nas discriminações estruturadas.

Da 5 Bloods é isso, exposto para nunca mais esquecer, com Lee a exorcizar o passado como prosa da nossa atualidade. Convenhamos aqui abordar um bélico de homens feitos, com a masculinidade em último reduto e a camaradagem como via do fragilizado estado de alma. Aquilo, que falhou redondamente em Miracle at St. Anna (2008), é atingido [bullseye] com a sua agressividade característica, até porque em Spike Lee nada é deixado ao acaso. Tal como o escritor norte-americano, Philip Roth, tudo é político. Então porque Da 5 Blood não iria ser? Mais precisamente, que filme de guerra não o seria, de todo, enquanto ensaio político?

Como fizera em muitos “joints” anteriores, o cineasta recolhe as imagens sacras de um cinema estabelecido e ensinado à exaustão … lembram-se das indiretas a The Godfather em She Hate Me (2004)? Pois bem, preparem-se para a resposta trocista a Marlon Brando e o seu eternizado “The horror... the horror...” em Apocalypse Now (1979), através de “madness ... oh madness”. Aliás, a Loucura é o sintoma pré-morte dos velhos guerreiros, o devaneio que os leva à rendição ou à condenação, por meio, aqui levado ao extremo, de um preciso e febril Delroy Lindo.

A reunião de quatro veteranos na caça de um tesouro residido na selva vietnamita ao lado dos restos do seu nunca esquecido camarada (um “santo padroeiro” vivido em flashbacks reduzidos aos 16mm e sob um artificialismo como statement anti-rejuvenescimento à lá Scorsese), é um ataque desesperante em todas as frentes por parte de um Spike Lee de punho fechado proclamando #blacklivesmatter.

É a Guerra, dirão alguns, a fim de justificar a revolta injetada nesta satirização de um género, só que a batalha é longe do tropicalismo do Vietname, hoje refém do seu estatuto de resort turístico para velhos combatentes. O palco … esse - os EUA - a América que diz ser de todos, mas o qual Spike Lee e o seu leque nunca fizeram, realmente, parte.

O renascimento de uma Nação

Hugo Gomes, 05.09.18

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Fora as questões de cinematografia, convém referir que nos anos 90, e não há tanto tempo assim, Spike Lee era visto como uma espécie de caricatura de um certo fundamentalismo afro-americano, nesse sentido, um filme como “Malcolm X” correspondia com exatidão à sua natureza. Com a passagem para o novo século, Lee foi de certa forma ostracizado pela indústria, como tal, tentou integrar-se perante projetos fora das suas amenas águas. Filmes como “Inside Man” e até mesmo o esquecível remake de "Oldboy" eram encarados como tarefas de subsistência perante uma Hollywood que definitivamente o desprezava. Não somente a sua figura, mas como evidenciava um inerente racismo e colonialismo no seio desta “utopia cinematográfica”. A América, porém, não mudou em paralelo com o circuito de Lee, apenas revelou os seus demónios interiores, sendo que, tendo em conta os tempos que vivemos, sentimos na obrigação de pedir clemência ao realizador, que se assumiria não mais, nem menos, que um subestimado messias sociopolítico.

Em “BlacKkKlansman”, Spike Lee subverte o caso real de Ron Stallworth (um detetive afro-americano que infiltra-se na sede do Ku Klux Klan, em plena década de 70) para abordar uma América de hoje, sob os enfeites dos movimentos trumpistas e da expansão extrema-direita. O filme soa a projeto antigo, com o cineasta a indiciar força de vontade para espelhar os seus profundos dilemas, entre os quais a repugnância por “The Birth of a Nation”, de D.W. Griffith, e pelo retrato exposto em outro clássico norte-americano, “Gone with the Wind”. Como sabem, Spike Lee sempre fora um apoiante à censura do incontornável filme de Griffith (incontornável no sentido da História Técnica e Narrativa do Cinema), sendo que nos seus anos enquanto estudante de Cinema protestava incendiariamente à inclusão da obra nessa História centenária. Como trabalho de graduação, Lee respondeu, literalmente, com “The Answer" (1980), onde transformou o filme com mais de três horas de duração numa metragem de 10 minutos.

E desse ‘Answer prolongado em toda a sua obra (mesmo as ditas contas industriais que se resistiam aos seus dilemas) chegamos a “BlacKkKlansman”, o qual somos correspondidos, por fim, ao seu ácido e por vezes urgente ativismo. Em tempos que filmes politizados à direita se convertem em êxitos sem precedentes (de “American Sniper” a quase tudo composto por Berg / Wahlberg), uma obra inteirada nas questões raciais e sociopolíticas que evadem todo um sistema bajulador da bandeira estrelada, assume-se, como diria os yankees, num must-see.

Mesmo sob um humor matreiro a ser confundido com os tons coenescos (por aqui aposta-se influência de Jordan Peele, realizador de “Get Out” reivindica a produção deste “BlacKkKlansman”), deparamos com um Spike Lee em estado de fúria, libertador do seu enclausuramento cinematográfico o qual encontra neste curioso ficheiro policial um pretexto para prosseguir o seu discurso. É sim, um filme de demagogia política centrada no seu alvo, visto que o realizador nunca exerce de maneira igualitária os mesmos julgamentos perante organizações tão opostas e igualmente propagadoras de ódio (os Black Panthers de um lado, a terem como punição um sermão ao de leve, e os Ku Klux Klan a ser ridicularizados … sublinha-se … deliciosamente ridicularizados). Esta desigualdade é tão própria de Spike Lee, mas assumimos “BlacKkKlansman” como um filme do seu tempo (precisamente o nosso), cujo objetivo principal requer toda a nossa e merecida atenção.

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Spike Lee dirige Adam Driver e Topher Grace em “BlacKkKlansman” (2018)

Mas é nesses signos de “The Answer”, que o filme tende por vezes cair num discurso incansavelmente reacionário, e propício à imagem dos mais recentes movimentos que anseiam apagar obras inteiras perante o seu conteúdo temático. “The Birth of a Nation”, é assim, a vítima da fúria de Lee, despachada para novas gerações como um somente “filme inconsequente e irresponsável” da História cinematográfica, ao invés de salientar a sua importância na linguagem da mesma. É óbvio que datado como se encontra, a obra de Griffith é uma tenebrosa e indigesta visão de um Mundo fabulista, idealizado por alguns loucos (e não são poucos), mas sem a existência desta controversa peça não existiria, estruturalmente, este “BlacKkKlansman”. Talvez estejamos a cair em conversas de sensibilidades puras ao invés de construirmos uma consciência exata e racional. Contudo, o debate de obra acima do autor / conteúdo tem mais que se diga e não iremos centrar-nos nestas questões perante um filme como este. “BlacKkKlansman” encontra firmeza nas suas palavras e atos, é uma produção vingativa, mas sabiamente vingativa que se reencontra constantemente. E por mais defeitos que possamos apontar a Spike Lee, nunca iremos acusá-lo de incoerência nesse mesmo discurso.

O realizador regressa naquilo que poderemos afirmar como um dos seus melhores trabalhos dos últimos anos, conseguindo reunir um elenco capaz e vigorosamente carismático (desde o achado que é John David Washington, filho de Denzel Washington, até ao caricatural Topher Grace na pele do infame David Duke) e providenciando momentos de um cinema estruturado e tecnicamente expressivo (a reunião com os Black Panthers revela-se num onirismo aludido e metaforizado). Confirma-se, Spike Lee continua a demonstrar sangue na guelra.