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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Takes Berlinale 2025: cada um com o seu Mundo

Hugo Gomes, 09.03.25

Paul

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Denis Côté refere-se ao mundo ansioso e depressivo sob o nome de Paul, partilhado por este homem canadiano imerso nas mesmas anomalias sociais. Porém, ao contrário dessa sociedade que se verga e prestigia elementos depreciativos e corrosivos, decide enfrentá-los através de um altruísmo simbiótico. Cleaning Simp Paul, como é tratado nos recantos da internet, confronta a sua condição com um ato de submissão: voluntaria-se para limpar casas de dominatrixes ou mulheres fetichistas, que o recompensam com outros devaneios sadomasoquistas e uma passividade onde a humilhação é apenas construção social.

Côté acompanha as jornadas deste homem disposto a tratar-se, como uma doença algures entre o terminal e o incurável, e é no seio destas mulheres, que procura uma vontade de ser útil e, nessa utilidade, encontrar uma noção de existência que muitos perseguem. Por vezes, roça territórios voyeuristas, “Paul” [o filme] parece buscar o choque na discrição, descortinando manias e fantasias materializadas, à semelhança de Ulrich Seidl na sua incursão pelas caves austríacas. Mas aqui, o confronto com a confortabilidade do convencionalismo torna-se na sua arma de arremesso.

As intenções de Paul [quer o filme, quer o protagonista] permanecem difusas, mas importa lembrar que a Humanidade nunca foi uma equação exata—não se reduz a fórmulas nem a matemática. Há por lá algo mais… inexplicável. Um documentário que conecta formatos, sempre atento às novas linguagens para lá da tela, ou, neste caso, das telas—fazendo desse vício intrínseco e virtual a sua fonte de inspiração.

Secção Panorama



L'Incroyable femme des neiges

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Apropriando-se do título de uma obra anterior de Sébastien Betbeder, “Marie et les naufragés” (filme que contava com o futebolista Eric Cantona no elenco), podemos dizer que “L'Incroyable femme des neiges” carrega um sentido de naufrágio, de afundamento e deambulância pela corrente.

Tragicomédia com Blanche Gardin novamente envolvida em peripécias existencialistas (recordamos o seu personagem em “Tout le monde aime Jeanne, de Céline Devaux), apresenta-nos uma aventureira que, após uma sucessão de encontrões e impasses na vida, parte para a Gronelândia em busca de uma criatura mitológica—algures entre o espírito divino e o Homem das Neves. Ela refere a aura sagrada desta entidade como a de um ser invisual, e de que forma os povos indígenas da região encontram a importância no não-visto do que somente naquilo que o olho humano capta. Agora, se há um valor oculto em “L'Incroyable femme des neiges”, teríamos de procurá-lo na imensidão da neve ou nos gags que roçam a violência e o embaraço. O que importa é que a personagem de Gardin é de difícil empatia e escassas simpatias, mas não nos devemos restringir à nossa reconhecibilidade, porque é no difícil entendimento das suas devoções e dilemas que somos desafiados a penetrar num filme que, como já debitei, oscila entre o naufrágio e o salva-vidas.

É que de existencialismos disfarçados de “autoajuda” e epifanias o cinema já se encontra saturado, e as avalanches desses temas, tal como as nuances deste novo filme de Betbeder, não ajudam em nada. Diríamos, então, que se trata de um spin-off mais lamechas do seu “Le Voyage au Groenland” (2016).

Secção Panorama



Sorda

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Através da sua anterior e homónima curta-metragem, “Sorda” (2021), Eva Libertad encontrou a continuidade para explorar na sua primeira longa, seguindo os trilhos do casal Ángela/Dário—ela, surda-muda; ele, ouvinte—que, para consolidar a relação, decidem aventurar-se na maternidade/paternidade. Porém, a criança nasce ouvinte, o que dificulta o vínculo afetivo com Ángela, empurrando-a para um magnetismo quase autodestrutivo.

Com “Coda”, esse esquecível vencedor do Óscar (remake do igualmente e exageradamente meloso “La Famille Bélier”), a popularizar um formato familiar requintado nos streamings desta vida, Sorda [longa] não ostenta essa apaziguação ou amenização dos dramas humanas, o concentra em dilemas e interações inconclusivas que, já no segundo ato, encontra uma razão de existência com um belíssimo ensaio sensorial, o qual a perspetiva sonora de Ángela. A sua surdez, o seu mundo familiar e de um emudecimento confortável. Talvez seja nesse efeito que o filme adquire a sua emancipação estilística face ao drama convencional—ainda assim, uma convencionalidade plena, sustentada por atores (Miriam Garlo é uma tour de force) com vida para mostrar.

Secção Panorama

 

Fwends

Após o seu estimado trabalho com “Peeps” (2019), curta que retratava duas crianças a deambular por um centro comercial, a australiana Sophie Somerville mantém uma postura de imposição de um cinema que sopra na direção do vento. Aqui, tudo soa espontâneo, natural, como meras pedestrialidades, aliás, é nas caminhadas sem destino que “Fwends” vibra na sua compostura.

Duas amigas, separadas por quilómetros e quilómetros, agendam um fim de semana de conexão em Melbourne, o sprint constante do lufa-lufa serve de "conversa em dia", enquanto as atrizes (Emmanuelle Mattana, Melissa Gan) percorrem uma cidade que as abraça ao ponto de proclamar-se personagem própria. Nada há de estranho neste naturalismo: Richard Linklater já explorava tais causas nos primeiros “Before” (“Sunrise” e “Sunset”) e, muito antes disso, Jean-Paul Belmondo convencia Jean Seberg para um dos seus golpes “amorosos” (“À Bout de Souffle”, 1960), ou a narrativa nunca pausada na descida pela avenida em “Adieu Philippine” (Jacques Rozier, 1962). Somerville, por sua vez, fascina-se com essa espécie de "cinema de rua", embebido na ocasião e no acaso, transformando essa movimentação na sua entrada de pés juntos para uma introspeção quase autoficcional.

Fwends” é, na forma, essa alma viva e natural, enquanto, na teoria, um filme que se desenha a partir de uma amizade disfuncional – disfuncionalmente normalizada. Uma crónica sobre uma sociedade que se entende mais narcisista, acelerada e, paradoxalmente, distante, mesmo que a tecnologia dite o contrário: um mal-estar fingido, talvez. Um fim de semana onde as diferenças confrontadas nada mais servem senão à mera banalização. Eis um pequeno filme sobre pequenos, mas igualmente grandes, assuntos.

Secção Fórum

Sophie Somerville e as amizades distantes em "Fwends": "o espaço onde filmamos molda sempre a forma como a história é contada"

Hugo Gomes, 15.02.25

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Um fim-de-semana em Melbourne é tudo o que, de momento, estas duas amigas de longa data, afastadas geograficamente, têm. O reencontro levará as duas a dialogar sobre os seus anseios, problemas e confidências, sem perceberem que a distância entre elas não é apenas uma questão de local, mas algo mais profundo do que imaginam. Filmado na cidade que as acolhe, a realizadora australiana Sophie Somerville aventura-se na sua primeira longa-metragem sem perder rasto do registo explorado em “Peeps” (2019), a sua valorizada curta-metragem sobre duas meninas no interior de um centro comercial. Aqui, temos duas jovens e a cidade como terceira e crucial personagem, num divagar pelas dores de uma geração e pela nossa suposta conectividade, com humor, acidez e subtileza.

Fwends”, a sua inaugural longa, estreia na secção Forum do Festival de Berlim e o Cinematograficamente Falando... teve o privilégio de conversar com a realizadora sobre o projeto e os futuros trabalhos que "caminham" lado a lado.

Esta é a sua primeira longa-metragem, portanto, gostaria de saber quais foram os desafios que teve de lidar ao passar do universo das curtas para longas?

Embora tenha sido a minha primeira longa-metragem, mantive-me num micro-orçamento. Por isso, em vez de a encarar como uma grande mudança, tratei-a quase como uma curta, só que extendida. Trabalhámos com a mesma comunidade com a qual já tinha feito os meus curtas e encontrámos uma forma de produção que nos permitiu manter os custos baixos. No fundo, não foi uma transição para o modelo tradicional de produção, aquela com semanas de rodagem — tivemos apenas 10 dias e depois fizemos alguns complementos adicionais.

Referiu o orçamento reduzido do filme. Acha que essa limitação ajudou a capturar a autenticidade das relações retratadas na história?

Sim, sem dúvida. Trabalhar com um baixo-orçamento significou que tínhamos uma equipa muito pequena, o que criou um ambiente bastante intimista no set. Isso proporcionou uma experiência de grande proximidade e colaboração, além disso, as protagonistas - Emmanuelle [Matana] e Melissa [Gan] - já tinham uma química incrível fora das câmaras. Davam-se muito bem de forma natural, e isso transpareceu no filme de maneira muito autêntica. Tivemos muita sorte nesse sentido.

E como escolheste estas duas actrizes? Como chegaste até elas?

Bem, trabalhei com a Melissa num curta-metragem que fiz há alguns anos. Já a Emmanuelle encontrei-a no Instagram. Ela também vive em Melbourne e tinha amigos em comum comigo. Portanto, ambas eram locais e parte do nosso círculo de contactos [risos].

Gostaria de falar um pouco sobre o tema da amizade, pois no seu filme a natureza dessa amizade é, sem dúvida, o coração da história. No seu diretor 's statement, presente no press kit, refere que “Fwends” representa a amizade feminina moderna. De certa forma, podemos encarar o filme como um retrato das dinâmicas afetivas da sua geração? Como vê esta evolução, não apenas na amizade entre mulheres, mas também na amizade de modo geral, num mundo cada vez mais global e tecnológico?

Parte do motivo pelo qual fiz este filme foi a forma como, enquanto jovens, podemos sentir-nos muito sós. Mas há algo profundamente curativo em passar tempo de qualidade com alguém que realmente nos conhece – a verdadeira versão de nós, não uma fachada.

É difícil generalizar sobre a amizade de forma abrangente, e sobre a amizade entre mulheres em particular, mas o que mais me motivou foi a vontade de criar uma espécie de carta de amor à amizade. Queria mostrar o quão essencial é preservar as relações, especialmente à medida que vamos crescendo e perdendo o contacto com pessoas que, apesar de não terem nada em comum connosco, dão cor e leveza à nossa vida. De certa forma, o filme tenta explorar essa ideia.

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As personagens do filme têm essa amizade de longa data, mas devido a um hiato, deixaram de partilhar os mesmos interesses ou pontos de vista, ou seja, deixaram de ser aquelas pessoas cuja amizade inicialmente juntou. Há também um pequeno conflito na narrativa: a sensação de que nenhuma delas quer realmente ouvir a outra. Cada uma quer falar sobre si própria, mas ninguém quer escutar a próxima. Sentimos que o filme executa uma subtil crítica a esta atual sociedade? Tornamo-nos mais egocêntricos, quem sabe, mais … narcisistas?

Sim, percebo o que queres dizer... Acho que, durante as filmagens, o que mais me interessava era essa ideia de que, quando encontramos alguém, mostramos primeiro uma espécie de camada superficial, quase como uma performance. E depois, com o tempo, essa camada vai-se desfazendo. O que adoro em “Fwends” é precisamente poder ver esse processo acontecer em tempo real, à medida que as personagens se vão aproximando e aprofundando a relação.

Não sei se consigo comentar ou generalizar sobre o narcisismo dos tempos actuais, mas, sim, as redes sociais e o mundo digital incentivam-nos a pensar em nós próprios como as personagens principais das nossas histórias. Esse pensamento acaba por influenciar muito a forma como nos vemos e como interagimos uns com os outros.

Isso é um ponto interessante! No seu filme há duas protagonistas e, ao longo da história, há quase uma disputa sobre quem é, de facto, a personagem principal. No fundo, percebemos que não há um verdadeiro protagonista – somente essa disputa silenciosa.

Sim, exactamente! Foi isso que tornou o processo tão divertido. Criámos estas personagens que, de certa forma, vivem essa luta interna, e penso que todos nós sentimos um pouco isso – acreditamos que somos o centro do nosso próprio enredo e, por vezes, isso pode tornar-nos um pouco cegos, demasiado presos à nossa própria experiência do mundo.

Seguindo agora para o cenário. Melbourne desempenha um papel significativo no filme. De que forma a cidade influenciou a abordagem, o estilo e até a própria narrativa de “Fwends”?

Há alguns anos, fiz um curta-metragem com uma abordagem semelhante, filmado num centro comercial [“Peeps”]. Foi um processo muito ao estilo guerrilha, com um olhar mais observacional, recorrendo a lentes longas e a zooms. Com “Fwends”, percebi que queria fazer o mesmo, mas numa escala maior – sair de um espaço fechado, como a do centro comercial, e prosseguir numa cidade no seu todo.

Melbourne, especialmente a zona do CBD [central business district], é relativamente pequena e pode-se percorrê-la a pé de uma ponta a outra. Então, a ideia foi estruturar a rodagem como um percurso pela cidade, movendo-nos de um local para outro e filmando ao longo do caminho. Grande parte do filme foi filmado por ordem cronológica, o que permitiu que houvesse uma progressão muito natural – as personagens deslocavam-se fisicamente, e isso espelhava-se na narrativa.

Quanto à influência da cidade no cinema... nunca tinha pensado muito nisso! Mas acho que, no fundo, o espaço onde filmamos molda sempre a forma como a história é contada.

Talvez seja um reparo um pouco pretensioso da minha parte, mas ao ver o seu filme, não pude deixar de me recordar de alguns títulos da Nouvelle Vague francesa, como “Adieu Philippine” de Jacques Rozier ou “À bout de souffle” de Jean-Luc Godard. Nessa época, era bastante comum – e até inovador – ver as personagens a dialogarem enquanto caminhavam pelas ruas, com a ação filmada em plano-sequência, em contraste com a decupagem tradicionalmente utilizada em Hollywood.

Sim, definitivamente. Sou fã desse movimento, adoro esses filmes! Sem dúvida, fiquei muito inspirada por essa abordagem e pela filosofia do cinema francês, de simplesmente pegar na câmara, ligar e ser espontânea. Há uma grande dose de espontaneidade no filme também.

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Acredito que os escritores escrevem, de uma maneira ou doutra, sobre eles próprios, da mesma forma que os cineastas também o fazem. Portanto questiono, no caso das personagens, será que elas são, de alguma forma, representações da própria realizadora? Qual das duas personagens – a de Emmanuelle ou a de Melissa – te parece mais próxima de si, ou com qual se identifica mais?

Sim, essa é uma pergunta interessante, porque a resposta está sempre a mudar. Quando estamos a escrever um guião, normalmente há sempre uma personagem que sentimos ser mais "nós", e depois a outra acaba por ser o contraponto, quase o oposto, para criar um contraste. Penso que, em diferentes fases da minha vida, já fui ambas as personagens, e talvez a verdade seja que, quando escrevemos personagens, elas acabam por ser pequenos fragmentos de nós próprios. Damos-lhes uma forma, e depois fazemos com que elas discutam entre si, como se fossem duas partes de nós.

Talvez seja cedo para perguntar isto, mas tem algum novo projeto em mente? Deseja continuar no universo das longas-metragens? Quais são os teus planos para o futuro?

Eu e o meu produtor [Carter Looker] estamos a desenvolver um guião para um projeto com um orçamento muito maior. Queremos mesmo filmá-lo na Austrália, e vai ter sete personagens muito complicadas, com vidas igualmente complicadas, todas a colidir ao mesmo tempo. Vai ser… bem, não sei o quanto posso revelar, mas vai ser um desafio, com certeza. Muitas personagens, muita complexidade.