Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

À espera dos trópicos ...

Hugo Gomes, 09.02.25

1738756884625_1000x0666_0x0x0x0_1738756899050.jpg

O tom labiríntico com o qual Sandro Aguilar confere aos seus filmes (refiro-me, numa óptica das suas longas-metragens – as curtas pertencem a um universo distinto, possivelmente mais experimental se pensarmos nisso atentamente) leva o espectador “às escuras”. A atenção é convocada, mas, acima de tudo, revela-se a capacidade semiótica para conectar os dotes e decifrar o puzzle assumido com precisão por estas obras. 

Em “Primeira Pessoa do Plural” não se distancia nem desafia essa lógica; pelo contrário, o que se observa é uma combinação mesclada de géneros (e épocas, sendo o 'cinema mudo' um horóscopo confirmado pelo próprio maestro) que o realizador pretende implementar neste universo, trazendo consigo um hiato febril de um casal burguês (os maneiristas Albano Jerónimo e Isabel Abreu), após a toma das vacinas necessárias para uma antecipada viagem aos trópicos. Encontra-se nele uma esquisitice que evoca os primeiros trabalhos de Lanthimos – sobretudo com Jerónimo, desde o instante inicial, munido de um passa‐montanhas branco, comporta-se como um predador animalesco na sua enclausura doméstica. “Primeira Pessoa do Plural” promete extrair, da crise desse matrimónio, algo higiênico, embora tropece nas diretrizes sociais, formalidades e cordialidades, revelando um ar de surrealismo delirante, sem jamais banalizar os trilhos narrativos.

Aguilar afasta a escuridão e abraça a plasticidade emancipada deste retrato – não só visual, mas igualmente orientado para uma performance de “faz de conta”. Há, assim, uma farsa entranhada na seriedade, por vezes derretida no tórrido humor. Nesse aspecto, aproxima-se do atual cinema “faz-por-ti-mesmo” de João Nicolau, que o próprio Aguilar tem vindo a produzir, e, pelo meio, oferece brindes à altura do cinefilismo como de Aki Kaurismaki (“The Man Without a Past”, sobretudo) ou de uma alusão quase felliniana a uma burguesia alienada, entretida na “caça aos gambuzinos”. Esta (minha) citação a “la Dolce Vita” não decorre do acaso, das últimas sequências, já no resort, filmado num artificial em Itália, onde, novamente sem perceber a causa, Jerónimo, levantando-se na praia, exibindo um ar abananado e despreocupado, tentando com isso sorrir à boleia da memória de Marcello Mastroianni nesse ato final do tal Fellini de coração.

Aguilar brincou às cinéfilas com o seu novo joguete seu novo joguete com direito a banhos de sol,, enquanto o espectador, perversamente, permanece embebido nas suas próprias trevas. O desafio surge no pós… e daí poderá realmente nascer um filme de apreço – ou não.

Atravessemos o "Pedágio": uma conversa com Carolina Markowicz

Hugo Gomes, 13.06.24

170127392965676149d3288_1701273929_3x2_md.jpg

Pedágio (2023)

Seguimos o caminho casa-pedágio / pedágio-casa sob o olhar cínico e, em certa parte, caricatural de Carolina Markowicz nesta sua segunda longa-metragem - “Pedágio” - uma co-produção luso-brasileira que aborda as terapias de conversão gay praticadas pelas igrejas pentecostais sob um mote de “high moral ground”. Aqui, o ator português Isac Graça nos é apresentado como o pastor deste “circo” montado na hipocrisia moral, signo humano que a realizadora perpetua ao longo da sua obra de passo acelerado. “Pedágio” (2023), designação brasileira para portagem, chega aos nossos cinemas, um ano depois da sua estreia no formato longa com “Carvão” (2022), também sobre aparências e ambiguidades morais, o qual repete a sua protagonista, Maeve Jinkings.

Carolina Markowicz passou por Lisboa para apresentar o seu mais recente trabalho em sessões especiais, algumas delas ligadas à programação do Indielisboa, festival que sucede à sua estreia mundial nas telas de Toronto e San Sebastian. Nessas andanças, arranjou um breve tempo para conversarmos sobre o filme e a sua periferia. Fica o aviso … alguns “pedágios” foram atravessados aqui. 

Quero começar com o ínicio de tudo. Sobre “Pedagio”, de onde surgiu a ideia para o filme? 

A ideia do filme surgiu de uma certa inquietude que tinha em entender pouco... No Brasil, há uma cena política muito forte, cheia de escárnio para com a população LGBT, que é absolutamente surreal, protagonizada por pessoas que detém muito poder na nossa sociedade. Por exemplo, houve uma ex-ministra dos Direitos Humanos [Damares Alves], que agora é uma das senadoras mais votadas, que afirmou num vídeo que as crianças não podem ter bonecas da “Frozen”, porque é lésbica.

Também, um dos deputados mais votados do Congresso, de um dos maiores estados, colocou uma peruca verde e fez um discurso anti-população trans. Outro pastor, também deputado, com um grande quórum de votos, começou referir os sinónimos dos seus órgãos genitais. Ou seja, acontecimentos ridículos, patéticos, e que inacreditavelmente não descredibilizam essas pessoas. Sempre tive muita inquietude em entender como é que essas pessoas não são colocadas no ridículo onde deveriam estar. É simplesmente inacreditável; não conseguia acreditar que alguém comprasse, ou pior ainda, acreditassem no que eles estão a pregar, e eles mantêm e até aumentam os lugares de poder onde se encontram. 

Como também, a ideia nasceu do turbilhão disso tudo, porque para mim - por mais que, obviamente, os lugares tenham esse conservadorismo flutuante, essa polarização - as pessoas estarem preocupadas com a sexualidade alheia é tão anacrónico. Estamos em 2024 e isso é tão presente. Então, acho que essa grande questão não só brasileira é também mundial …

E isso está a aumentar …

Exato. Além disso, existem as bolhas mais progressistas, só que, com tantos problemas reais no mundo, as grandes “procupações” é se alguém está a ter relações sexuais com homens ou com mulheres. Todos esses elementos contribuíram para uma grande sopa de ‘coisas’ importantes, portanto, pretendia colocar isso no filme e retratar com uma certa ironia essas pessoas que são levadas demasiado a sério. E daí surgir esta história, desta mãe e deste filho. 

Na verdade, para mim, o personagem principal do filme resume-se nessa relação, que é problemática, como qualquer relação normal, mas também sem demonizar essa mãe, que é o produto de uma sociedade que lhe ensinou que o filho deveria ser de determinada maneira. Como tal, ela acha que fez algo errado.

Carolina-Markowicz-Foto-de-Carlyle-Routh.webp

Carolina Markowicz / Foto.: Carlyle Routh 

Essa questão da relação gostaria de abordar novamente, porque para mim também foi uma característica muito acentuada no seu filme. Mas voltando ao tema central do “Pedágio” … vamos apontar o “coração” do filme nas chamadas terapias de conversão. Experienciou, ou foi atrás da existência dessas terapias no Brasil? Como elas funcionam? Qual o seu modo de operar?

Sim, fui. Pesquisei muito, falei com muitas pessoas, visitei muitos lugares, li muito a respeito, etc. Contudo, o filme não retrata essas terapias de forma literal, com a violência que realmente ocorre, não tinha a intenção de fazer um filme sobre a violência que acontece, que provoca coisas horríveis, inclusive suicídios, situações realmente muito graves e negativas. A minha ideia não era retratar uma violência gráfica nessas pessoas. Não era o que pretendia. Queria virar a câmara para o ridículo de quem pratica isso, de quem acredita nisso, por ser absurdo alguém achar que tem o poder ou que deveria procurar algo como tivessem a combater uma doença.

Queria entender e pesquisar, mas o meu objetivo nunca foi reconstruir elas são, literalmente, no sentido da seriedade e gravidade delas. Mas, sim, abordar essa ideia de terapia de conversão, que é algo que vivemos diariamente no mundo. Um político ou um presidente [Jair Bolsonaro] dizer que preferiria ter um filho preso que a um filho gay, ou uma pessoa qualquer com uma peruca verde a fazer declarações ridículas sobre o que é ser homem ou mulher, é algo que enfrentamos e que estamos a lidar diariamente.

… ou até mesmo dentro de casa.

Sim, até mesmo dentro das nossas casas. 

É que nesta relação, falo obviamente da mãe, é todo um espelho dessa sociedade - “Não, você tem que aprender homem” - ou a tentativa de arranjar qualquer trabalho que seja correspondente à imagem masculina.

Exatamente. 

Mas essa questão das terapias de conversão, algo que você mencionou, é que captou o ridículo da situação. No entanto, os relatos que temos, especialmente vindo dos Estados Unidos, são de uma violência, seja psicológica ou física, indescritível. O que você retratou é o ridículo dessa idealização; nós rimos daquilo.

Exato. Nós rimos da ideia de terapias de conversão, sem negar o facto de alguém querer mudar algo que você é, é bastante violento. E também como você disse, já temos muitas obras que mostram isso, portanto não queria trabalhar em algo que já tivesse visto, e quanto à violência, bem sabemos que é, não havia necessidade de sublinhar mais. 

A minha intenção era ter um outro tom ... Porque o humor é também violento de uma certa maneira. Por vezes é mais efetivo até do que reiterar algumas coisas, então, colocar essas pessoas nesse lugar ridículo, tanto de quem faz aquilo quanto de quem acredita, parece ser mais interessante enquanto linguagem. Não estava interessada em fazer mais um filme sobre cura gay, e mostrar alguém em sofrimento, queria revelar o quão ridículo e absurdo é alguém querer mudar alguém ou fazer alguém sofrer por essa pessoa ser gay? Para mim, essa era a questão mais interessante a ser abordada.

Gostaria também de perguntar porque, e como, escolheu a mesma atriz com quem havia trabalhado em "Carvão", Maeve Jinkings, e se há planos de colaboração numa terceira longa-metragem no futuro?

A concepção dos dois filmes meio que se cruzaram, e foram feitos em tempos muito próximos. Comecei a escrever o "Carvão" em 2016 e, sei lá, um ou dois anos depois, prossegui para o "Pedágio". Quando comecei a escrever a primeira longa, já imaginava o papel pensando nela, quando segui para a segunda, também pensava na Maeve, mas não queria que fosse a mesma protagonista; queria visualizar outra pessoa, mas não consegui.

684d534bedc74189484bba52c6e398b30a20845ba563a0256c

Carvão (2022)

O que aconteceu ao certo é que ela já estava integrada no “Carvão”, depois seguiu-se a produção do “Pedágio” que seria filmado ainda antes da pandemia, só que conta da mesma, e consequentemente as questões de orçamento, etc, toda essa situação fez com que o filme não pudesse ser filmado no período pretendido, foi uma reviravolta louca. Nesse momento, ela ficou vinculada ao "Pedágio", assim como "Carvão". Não conseguia parar de visualizar ela enquanto Suellen [protagonista de “Pedágio”]. Então, liguei para ela um dia e disse: "Cara, tenho uma coisa para te falar. Sinceramente, eu não queria te fazer este convite, mas vou ter que fazer. Você leria o roteiro? Porque não paro de te imaginar como essa personagem, mas não queria ter a mesma pessoa protagonizando os dois filmes, porque são duas mães. Os filmes são muito diferentes, mas são duas mães."

Ao qual respondeu: "Nossa, eu não me incomodo nem um pouco”. Fez uma piada, “não me incomodo nem um pouco de repetir diretor, não sei o quê." Aí ela leu e amou o guião. A partir daquele momento, quando começamos a conversar sobre a personagem, passou a ser impossível tirá-la da minha cabeça. Já a tinha convidado, e ela passou a estar vinculada a "Pedágio" também. Isso foi antes de filmar "Carvão". 

Filmamos "Carvão", foi ótimo, a nossa parceria foi incrível. A relação, o entendimento da linguagem, foi realmente muito incrível a relação que construímos profissionalmente. Três meses depois, filmamos "Pedágio", e já tínhamos uma relação de confiança e entendimento artístico muito forte.

Não sei se ela vai fazer os próximos filmes, mas ela é uma atriz muito capaz. Penso, assim como na Aline Marta, que fez os dois filmes também, fazendo a enfermeira em "Carvão" e a amiga dela em "Pedágio", são atrizes muito boas, com uma sintonia artística para comigo, o que me fascina. Consigo enxergar nelas as novas vidas que criarão quando as vemos no cinema. Então, não sei dizer especificamente se ela vai ou não fazer, mas possivelmente, ela, Aline, Camila Márdila, Pedro Wagner, Thomás Aquino, atores que gosto e com quem já trabalhei e que gosto muito de trabalhar, repetiria sem dúvida. Ela, com certeza, é uma delas.

Pelo visto funcionou, tendo em conta o curto prazo entre a produção dos dois filmes, em "Carvão" tem uma postura mais "bicho do mato", enquanto "Pedágio" assume uma personalidade completamente diferente. 

Mas o que é interessante nesta relação entre mãe e filho [interpretado por Kauan Alvarenga, o qual trabalhou com a realizadora na curta “O Órfão”, em 2018], é que, em momento algum, encontramos uma epifania, uma consolidação ou redenção, aquele momento chave que a partir daí “tudo correrá bem”.

Por exemplo, falando em conversão, recordo de um filme norte-americano com a Nicole Kidman, “Boy Erased” [de Joel Edgerton], onde existe um momento em que a sua personagem faz com nós espectadores simpatizamos, ou perdoamos ela. Em “Pedágio”, sabemos o que a mãe está a fazer ao seu filho, e ao mesmo tempo percebemos que o filho também não demonstra grandes sentimentos para com ela Aqui, a relação é um eterno work in progress, o que a torna mais verdadeira e humana.

Diferente desse filme que mencionaste, que apresenta uma linguagem que, sinceramente, não corresponde à minha visão nem às histórias que me cativam, pois penso que se trata de enredos que, de certo modo, ficam por resolver. Penso que uma relação de tamanha complexidade é algo subtil e, simultaneamente, um eterno trabalho em progresso. Esta relação é um constante trabalho em desenvolvimento, não é algo que se resolve numa epifania, como disseste, onde tudo magicamente se acerta ou desmorona. Eles são mãe e filho e, acima de tudo, amam-se. Isso fica claro em vários momentos, como quando o namorado dele pergunta: "Por que precisas da tua mãe se não dependes dela?" E ele responde: "Porque a amo." É algo que nem ele próprio consegue explicar totalmente, mas que está lá.

Por exemplo, no final do filme, quando estão juntos e ela olha para ele, não é um olhar de orgulho, mas também não é fácil perceber exatamente o que o olhar transmite.

Para mim, é assim: esta história vai continuar. Como vai continuar? Se ela vai aceitar, se não vai, existe um processo, e é esse processo que me interessa, porque acredito que é isso que humaniza os personagens. É verdade: discutimos com alguém, ficamos chateados por algum motivo, ou amamos alguém, e isso precisa de tempo para assentar, para compreender, para nos habituarmos, ou não. Faz parte das nossas relações esses altos e baixos, esses caminhos por vezes tortuosos, que nem sempre resultam num final resolvido e feliz.

pedagio-5-1.jpg

Pedágio (2023)

Há momentos em que ela diz, até ao seu namorado, que ama o filho e que faz tudo por ele. Então, vou focar-me muito nessa dinâmica, porque acredito que essas pessoas veem aquilo como uma doença.

Sim, também acredito que essas pessoas veem aquilo piamente como uma. Elas são ensinadas a pensar assim, são produtos de uma sociedade que lhes inculca que, se não tiverem um desempenho social perfeito, há algo de errado com elas. Sendo uma mãe que criou e está a criar um filho, qualquer erro é atribuído a ela.

Penso que isso, aliado a várias pequenas ‘coisas’ do dia a dia, como os colegas de trabalho a gozar, cria um sentimento de sensibilidade forçada. Esse sentimento, que é o que move as pessoas, é muito forte, é quase como se ela fosse uma outsider numa sociedade onde todos seguem normas e se encaixam em papeis pré-estabelecidos, reconhecidos e entendidos como corretos. Cada um tem o seu lugar.

Portanto, para ela, aquilo é um ato realmente bom pelo filho. Ela acredita que está a consertar o filho e, consequentemente, a sua própria vida, para que não seja mais julgada como uma pessoa que falhou. Sim, é uma sequência.

E a Igreja, nomeadamente as pentecostais evangélicas, no Brasil, tem contribuído para isso.

Com certeza, não quis estabelecer especificamente que tipo de igreja era. A ideia também foi trazer um pastor diferente, que não fosse aquele pastor mais velho, com cultos tradicionais que já vimos várias vezes, e sem caracterizar exatamente que igreja é essa. Mas, claramente, é uma igreja pentecostal.

Não me refiro apenas aos evangélicos. Todos os religiosos conservadores têm questões com a homossexualidade e a maioria deles condena-a. Existem algumas frentes de igrejas evangélicas que são dissidências muito esparsas e específicas, com outro ponto de vista, mas no geral, contribuem para o conservadorismo, o preconceito e a violência, porque o resultado disso não é só a ridicularização ou os insultos, mas uma violência física real. O Brasil é um dos países que mais mata a população LGBT+ no mundo, então essa questão é muito forte.

A igreja, os pastores, e o que pregam, com certeza, contribuem muito para que isso continue a ser uma prática na sociedade. E não se pode colocar a culpa apenas na religião evangélica, mas ela é mais proativa e tem uma disseminação muito grande entre as pessoas.

Como também no Brasil, essas igrejas estão muito associadas ao poder político …

Exatamente. Os pastores praticamente determinam quem será eleito, pois instruem os fieis a votarem apenas em certas pessoas. Está tudo muito interligado com o conservadorismo. Mesmo que alguns políticos sejam mais progressistas, muitas vezes não podem se posicionar como tal, pois correm o risco de perder o eleitorado de uma certa parcela da população, que é orientada por esses pastores. É uma loucura!

Além disso, há políticos que não são progressistas de fato, mas precisam manter uma postura conservadora para garantir o apoio dessa base influenciada pelas igrejas. Essa dinâmica perpetua um ciclo de conservadorismo e preconceito, dificultando ainda mais a mudança social e a aceitação de questões como a diversidade sexual e de gênero.

Falando apenas do pastor evangélico, gostaria de abordar a presença de Isac Graça, pois, tal como mencionou anteriormente sobre a questão do ridículo destas terapias, o papel do ator parece contribuir nesse sentido. Além disso, gostaria que falasse sobre a sua entrada no projeto: foi um exigência da coprodução portuguesa [O Som e Fúria]?

Entendi, não foi um pedido de jeito nenhum, foi uma escolha totalmente artística. Inclusive, até uma semana antes de começar as filmagens, eu estava procurando atores no Brasil, mas não conseguia visualizar exatamente como seria aquele pastor. Eu não queria apenas repetir um tipo de personagem que já havia visto antes. Estava um pouco desesperada em busca de uma luz.

Foi nesse momento que o Luís Urbano [produtor da O Som e Fúria] e a Karen [Castanho, produtora da Biônica Filmes] me apresentaram a possibilidade do Isac. Achei que fisicamente ele poderia representar algo entre pastor e coach. A persona dele era muito interessante e então conversei com ele a respeito do papel. Ele entendeu-o perfeitamente, desse pastor como alguém que realmente acredita naquilo que faz, para quem não há nada ridículo. Para ele, é uma tarefa muito séria, muito eficaz, e o faz pelo bem da Humanidade …

170122333265669ba442582_1701223332_3x2_md.jpg

Pedágio (2023)

Ele trata tudo como uma pseudociência …

Totalmente, para ele é uma ciência. Essa seriedade me fascinou junto com a persona dele, foi como se algo clicasse na minha mente, e por isso convidei o Isaac para fazer o filme. Mas não foi uma imposição de coprodução de forma alguma.

Algo que observei, tanto em "Carvão" como de forma mais pronunciada em “Pedágio”, é o facto de muitas personagens adotarem um discurso moralista em relação às outras, revelando-se moralmente hipócritas. Temos o exemplo da colega da Suelen [Aline Marta] e a sua relação com o adultério, isso também se aplica à questão da mãe e, possivelmente, ao próprio pastor. Não sei se isto é claro, mas há uma sugestão de que o pastor também seja gay.

Assim, gostaria de perguntar se há uma intenção deliberada de destacar essa hipocrisia moral nos seus filmes.

Sim, sem dúvida. Isso é um dos elementos que mais me interessa no tipo de cinema que faço e que desejo fazer, o de questionar essa hipocrisia inerente a todos nós, em diferentes graus. Considero isso uma característica humana fascinante. As ações que tomamos, as palavras que dizemos e os papeis sociais no qual somos obrigados a desempenhar, muitas vezes de forma violenta, são temas que também exploro em "Carvão".

A questão religiosa também é crucial, onde em nome de Deus, tudo parece ser permitido, inclusive as maiores violências. Tal cria um paradoxo profundo e irónico. Portanto, vejo um espaço rico para explorar a hipocrisia humana.

Lembro-me de uma ocasião especial durante a apresentação de "Pedágio" em Roma, que ilustra bem esse tema. Estávamos com um guia turístico pela cidade, e ela contava a história de uma ponte antiga em Roma, adornada com pequenos monumentos que representavam a cabeça de um papa da época, ou algo do género. Não sei exatamente qual era o papa, mas sei que as pessoas que estavam construindo a ponte se desentenderam. Então, para castigar aqueles que estavam brigando, o papa, que acreditava que as pessoas deveriam entender-se e não ceder ao conflito, mandou cortar a cabeça dos dois. Depois, contratou novas pessoas para continuar a construção da ponte.

Isso para mim é simbólico, diz tanto sobre a psique humana, sobre o poder de julgar, de ser o arauto, o bastião da sabedoria, podendo decidir sobre o bem e o mal, e ainda assim cometer atos de maldade. É tão inocente, de certa maneira. 

E quanto a novos projetos? Senti durante a nossa conversa o avanço de algo …

Estou a escrever um novo projeto, que também será uma coprodução portuguesa. Estou muito feliz com isso, pois adoro o Luís Urbano, que se tornou um grande parceiro, e sou apaixonada por Portugal. Adoro estar aqui!

Este novo projeto será uma história que aborda as ironias da vida, agora focada numa família rica de São Paulo. O enredo começa com a descoberta de uma filha ilegítima após a morte do patriarca, desencadeando uma série de eventos na família e na empresa desta. É uma história com humor ácido e drama, ou melhor, um verdadeiro drama com toques de humor ácido.

Estou a desenvolver este projeto e vou até ao Porto para o segundo módulo do Torino Script Lab, que estou a frequentar. Enfim, este é o meu próximo projeto. Espero ter o argumento concluído até ao final do ano e estou ‘super’ entusiasmada com isso.

Ciclo «Câmera-Corpo» na Culturgest: pela lente ergue-se a janela para o mundo indígena

Hugo Gomes, 04.04.24

10.jpg__2000x1200_q85_crop_subsampling-2_upscale.j

Na rodagem de "A Flor do Buriti" (João Salaviza & Renée Nader Messora, 2023)

Arrancou hoje (04 de Abril), a primeira edição do Câmera-Corpo”, ciclo promovido na Culturgest, em Lisboa, com “perninha” com o Festival Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte, do outro lado do Atlântico [Brasil], e motivado com a estreia de A Flor do Buriti” da dupla Salaviza e Nader Messora. Trata-se de um ciclo que decorrerá em dois dias com ambições de despertar a curiosidade lusa sobre o cinema-indigena e lançar-se no debate sobre, para além das estéticas, a sobrevivência destes povos e a preservação do seu modo de vida. 

Tendo curadoria de Daniel Ribeiro Duarte e Júnia Torres, esta última dando a honra ao Cinematograficamente Falando … de descortinar a mostra e a sua órbita, fica, para além do gesto a resistência não como grito mas como existência numa cinematografia que deseja, em todo o caso, ser emancipadora. 

Gostaria que me falassem sobre a génese deste projeto e como se desenvolveu a parceria com o forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte?

O forumdoc.bh é um festival que há 27 anos exibe filmes indígenas, sendo pioneiro nesta difusão e divulgação.  

Em 2023 fizemos o lançamento do belo e importante filme “A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader, em sessão comentada com a presença dos realizadores e dos argumentistas indígenas do povo Krahô. Foi um momento muito forte e bonito na programação. Deste encontro no Brasil partiu a ideia de realizarmos em Portugal, junto à estreia deste trabalho uma pequena mas significativa mostra das produções de diversas etnias que vem fazendo do cinema um modo de expressão valioso e um veículo de fortalecimento cultural, num movimento estético especialmente relevante para o documentário no Brasil.

Quais são os principais objetivos que esperam alcançar com esta mostra?

Difusão e valorização de um novo modo de fazer cinema, com novas perspectivas,  linguagens e abordagens que amplia o protagonismo autoral cinematográfico e colabora para a relação entre povos diversos e entre indígenas e não-indígenas. Esperamos que uma maior visibilidade internacional possa colaborar politicamente para a manutenção, emancipação e permanência dessas culturas com o seu modo especial de se relacionar com o Outro e o que chamamos de natureza.

yvy-pyte-coracao-da-terra-meio-amargo-capa-1024x57

Yvy Pyte - Coração da Terra (Alberto Alvares & José Cury, 2023)

O que pode dizer sobre os filmes seleccionados?

Os filmes selecionados compõem um conjunto que procura mostrar trabalhos contemporâneos,  realizados nos últimos anos, com abordagens e estratégias fílmicas heterogéneas que vão de filmes mais etnográficos ou melhor, auto-etnográficos até filmes de experimentação formal, como vídeo-performance. Mas todos eles com recados importantes sobre os (civilização ocidental) limites ambientais, sociais, etc. São amostras de modos de vida diversos e mais ricos, como acreditamos. 

E em relação aos convidados?

O convidado principal desta Mostra será o cineasta Guarani, Alberto Alvares, um dos mais reconhecidos e atuantes realizadores indígenas em atuação no Brasil. Tuparay, seu nome Guarani, faz um filme muito pessoal e autobiográfico que a um só tempo é muito subjetivo e autoral e alcança as grandes questões pelas quais atravessam os povos indígenas no Brasil, assim como nos faz refletir sobre questões humanas gerais e existenciais. É o lançamento, fora do Brasil, na sua mais recente longa-metragem. 

Temos também Renee Nader e João Salaviza para comentarem o seu intenso e extenso trabalho de mais de uma década com o povo Krahô, comentando no dia 5, filmes autorais dos seus companheiros de realização nas Aldeias na região da Amazónia. 

Pesquisadoras e pesquisadores interessados e que já conhecem a produção dos cinemas indígenas também aceitaram os nossos convites para participarem, e estamos muito felizes com essa adesão.

Tencionam continuar com este ciclo no futuro, ou consideram-no como um evento único por enquanto?

Sim, a ideia é estabelecer possibilidades de continuidade nesse movimento para formar um público para estes filmes também em Portugal. A periodicidade permitirá também acompanhar o desenvolvimento dessa nova e inovadora cinematografia, pois a proposta é mostrar a produção contemporânea. 

still1-b.jpegEssa Terra é Nossa! (Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu, Roberto Romero, 2020)

Como encaram o trabalho de João Salaviza e Renée Nader Messora com o díptico krahô dentro do contexto do cinema indígena?

É um trabalho extremamente interessante pois incorpora elementos da cosmologia e da estética krahô nos filmes que são inteiramente atravessados por tais linhas de força e de potência. Desse encontro, surge uma nova perspectiva para o cinema do Real, que se constroi para além dos limites entre a ficção e o documentário, essa divisão, ou essas categorias e géneros fílmicos deixam de fazer sentido. É um modo de produção muito especial pelo nível de profunda relação, conhecimento e respeito com o coletivo indígena parceiro na realização. O que reflete numa proposta formal muito singular, que amplia os conceitos e as formas de se fazer cinema.

Não querendo estragar a "magia"", mas gostaria que explicassem a escolha do nome para o ciclo - "Câmera-Corpo" - e como os corpos dos indígenas são, maioritariamente, representados no cinema enquanto corpos políticos.

Os cinemas indígenas, assim no plural para respeitar ou responder à diversidade de povos que o realizam, mas também, evidentemente a sua bem-vinda heterogeneidade e complexidade formal, são cinemas do corpo, do gesto, das florestas, dos espíritos e não somente das palavras humanas.

Incorporam relações inter-espécies. A câmara funciona como uma extensão do corpo, do olhar, participa dos acontecimentos diários e rituais, dança, caça, compartilha mundos e modos de existência muito diferentes dos nossos. Permite-nos uma imersão nestas diversas cosmologias. A câmara é a flecha que luta e também o cesto que recolhe e guarda memórias fundamentais.

Cantar para os espíritos reunir ...

Hugo Gomes, 20.03.24

005_min_26e4f56a9a.webp

(...) talvez tenha sido o que mais me emocionou, que vocês, tu João e tu Renée, tenham deixado para trás o antropológico, tenham deixado para trás o etnográfico,entregando-nos a condição humana, deixando-nos simplesmente perante a vida, que é observada, que é olhada e também amada.

Paz Encina, “Passagens” / Edições Batalha Centro de Cinema

 

Aproveitando a deixa da realizadora paraguaia de “Eami”, assumidamente amiga deste casal-cineasta, lanço-me naquilo que tanto me fascinou neste “A Flor do Buriti”, e que já havia sido sugerido em “Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”: o convite e completa submersão num mundo que não é o nosso, sem estranhezas e sem pedagogias de qualquer espécie. Assim, começamos pela noite escura, envolvida numa fogueira sob cânticos ancestrais. Há um chamamento, ou talvez premonição, perto daquela intimista festividade: uma grávida na angústia das suas dores, natural como é assim dito para acalmar a “pobre criatura”. Mais afastado desse círculo, um bando de crianças depara-se com um animal estranho no seu território: um bovino, o símbolo de uma civilização, como os seus integrantes adoram apelidar em prol de uma superioridade modernista, que estes Krahôs pouco ou nada desejam conhecer. Uma praga, ou antes uma espécie invasora anexada a outra com iguais fins. Com este prelúdio, damos de cara à espectralidade que nos aguarda sossegadamente.

A Flor do Buriti”, que conta com a escrita de um dos membros da comunidade indígena (Henrique Ihjãc Krahô), e filmado em 16mm, assume a urgência de um arquivo memorialista, dando palco a estes protagonistas na partilha das suas interações, das suas dores, tragédias com que vivem, ou no medo que os habita. Talvez seja longe do seu costume, mas difícil testemunhamos um sorriso nas suas faces, soam-nos, não “criaturas” tristes, mas indivíduos conformados com a sua fatídica existência no mundo moderno, ora indesejável nestas lides do progresso e das políticas daquele Brasil que declara posse das suas vidas.

E é nessa existência que Salaviza e Messora encaminham invisivelmente, é o tratado do indígena, não uma extração de recordações e de passados que mereciam estar confinados nas profundezas, é o seu simbolismo, como o mundo parece-lhes ou como a fauna e a flora lhes encaram. Resistência e resiliência, transcendências e onirismos terrenos, como os Krahôs acreditam que os seus sonhos são apenas pedestridades da sua alma e como a morte, esse fim, não é mais que uma passagem. Os espíritos permanecem com eles, comunicam e deixam-se ser comunicados, dançam e cantam, a noite torna possível essa tradução, rompendo dimensões e barreiras impostas pela sobrenaturalidade, esse ditame ocidentalizado que coloca numa caixa tudo o que desconhece.

019_copia_min_af919ba22a.webp

A Flor do Buriti” bebe dessa naturalidade à sobrenaturalidade, o que já estava indiciado na obra anterior, mas leva-nos mais agreste, mais familiarizado (e pudera). Porém, há um contágio, um resquício nessa civilizacionalidade no percurso destes “índios”. Perante as “portas escancaradas” deixadas pelo Governo de Bolsonaro, o par que se destacou, partindo em direção a Brasília, percorrendo um Brasil contaminado pelos cantos e sermões evangélicos (prova viva de colonização) ou da mentalidade de vaqueiro e tudo o que isso acarreta, manifestando-se por um lugar desapropriado, desfeito, desvinculado, são indígenas de tribos várias, que de punho erguido, solicitam um estatuto deveras naquele país multicultural.

Neste último ato, como havia acontecido no “Chuva’” ("Krahô? Não. O teu nome de Branco?", como nunca esquecer aquele golpe de realismo sob comentário social), Salaviza e Messora lançam “farpas”, consolidam a sua experiência e cometem o seu ativismo possível, o seu gesto político, perfeitamente sincronizado com o zeitgeist e com as vontades desses seus protagonistas, é o retiro da realidade que nos impôs, a realidade dos “Krahô”.

Após a fuga, o tal movimento de protesto, as heroínas no palanque prometendo mundo e fundos numa luta, sem questão, desigual, voltemos ao “mato dos Krahôs”, aos seus rituais, à sua oralidade contada, partilhada envolto de cicatrizes e calos, e deixemos enraizar entre eles. O filme leva-nos a isso, a permanecer com eles, sem com isso nos tornarmos iguais, e por sua vez, sem nunca ceder a um olhar de estranheza, “estrangeiro” acrescentamos àquela comunidade. Não se trata do “selvagem conquistado”, mas antes disso do “espectador amestrado”. Uma viagem para além do terreno, do político, de uma dimensão que nós desconhecemos com força. O olhar dos Krahôs!

 

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro

Em sombra, em luz, em som magnífico

Caetano Veloso

Como ver a “Índia por um canudo” ...

Hugo Gomes, 06.05.23

India_still_2-1.jpeg

Karen (Denise Fraga) deseja estabelecer um tipo de contacto espiritual com a cidade de Lisboa, um refúgio à sua melancolia, e para isso contrata os serviços de guia turístico-histórico de Tiago (Pedro Inês), especializado, pouco ortodoxo, e ainda assim de jeitos metódicos. Na primeira digressão pela capital portuguesa, a brasileira Karen deslumbra-se com a fachada do Teatro de São Carlos, sob os anúncios da ópera de Giuseppe Verdi - “La Forza del Destino” -, dirigindo-se ao seu guia com a hesitante contestação - “É a ópera?” - no qual é recebida com tamanho desprezo pelo mesmo - “Lisboa é uma cidade feita de muitas revoluções, vou falar de alguns, mas digo-lhe já que das ‘fachas’ não falo…”. 

Com isto, “Índia”, a primeira longa-metragem de Telmo Churro, esclarece ao nosso espectador o tipo de figura que este protagonista será, um “Ramiro” de Mozos doente, “esquerdinado” e agressivo-passivamente embargado na sua própria tragédia. A tragédia de não se revoltar, ou metamorfosear para algo acima da mortal e inútil carapaça, da mesma forma que Lisboa manifestou ao longo da sua “existência”. Nisto chegamos à "Índia", através de um invisível caminho marítimo, nas caravelas velejadas e conduzidas nos sugeridos azimutes da Rosa dos Ventos, aqui, Churro, o escritor e editor tão lá da casa da produtora “O Som e a Fúria”, se tem definido como um farol estético e temático do cinema de Miguel Gomes, sobretudo, ou do já mencionado “Ramiro” de Manuel Mozos (a referência não foi ao calhas). O Adamastor de uma Lisboa “afundada” num estado de graça saudosista e em plena fase de negação, mística e detentora de uma veia cínico-fabulista. 

Digamos que é a cidade de João César Monteiro sem o seu espírito de irreverência, sem a sua perversão e ocultismo cinéfilo, são os “rebentos”, as vagas e vagens deixadas e semeadas em terra de ninguém, contudo, se Miguel Gomes criou nos embarques da África Colonial ou dos ditos e feitos à lá Sherazade um sinónimo seu, e do outro, Mozos, figura patusca, algo zeitgeist de um cinema paralelamente projetado e idealizado, Churro revela-se incapaz de emancipar dos seus colhidos frutos. Não por estas tormentas condenar “Índia” à perfeita inutilidade, é um filme de espaços, não físicos, e sim temporais, onde cada ideia se amontoa na outra, consequentemente criando num alinhar de tendências e criatividades inutilizadas pelo seu ego. 

Se ficamos encantados com Karen, essa personagem evadida do seu próprio espaço, comunicando com a ausência como Nanni Moretti fizera nos últimos tempos, por outro, sentimos esvaziados com a ridicularidade com que Tiago se assume. Em teoria, são maçãs do mesmo ramo, figuras lidando com o seu próprio desterro, mirando Índia por um canudo”, essa sua respectiva idealização de felicidade, nem que seja temporária. Karen consegue, com serenidade e tréguas com a sua tragédia, enquanto que Tiago, a sua inquieta e inconsolável dor o enquadra no perfeito caos. Em “Índia”, Churro persiste num filme visto e revisto quanto aos seus graus técnicos e processuais, sendo que no fundo uma história, ou antes, uma alegoria é encenada e relida à luz das idiossincrasias.  

 

Ele está a contar uma história?”

“Acho que sim … mas eu não estou entendendo nada.”

“Quer que lhe vá explicando.”

“Não deixa, isso já está passando.

Um Scrooge de nome Aleixo

Hugo Gomes, 21.12.22

Untitled_1.1.3.jpg

Por minha vontade, pode virar tradição, mesmo que a palavra Cinema seja empregue de modo intermitente aqui. 

Não foi bem expressão da minha autoria, esta, à atribuição de um cariz religioso, mas recordo, após a questão simplória - “gostaste?” - lançada por um dos representantes do filme, respondi de imediato com um “Bruno Aleixo é família”, até porque o rabugento urso (ou ewok, invocando a sua primeira aparição) tem me acompanhado nas mais diferentes plataformas. Uma personagem fecundada pela imaginação de João Moreira e Pedro Santo em 2008, inicialmente nicho numa improvisada "série televisiva", popularizado até se tornar numa marca própria, ou até mesmo um universo partilhado (televisão, webséries, rádios e agora cinema), Bruno Aleixo persistiu numa comédia chico-esperta, bem aportuguesada, rodeada de figuras pitorescas que compõem uma mitologia própria e mais que identificável. 

Se bem sabemos, que é um fenómeno dito português, com poucas inspirações para o mercado internacional (mesmo com a “perninha” dada no Brasil onde arrecada os seus adeptos), um segundo filme, desta feita abraçando (ou não) o espírito natalício, Aleixo apodera-se da velha fórmula do Scrooge, esse conto de natal à lá Dickens, despindo-o de qualquer fidelidade aos seus inabaláveis termos morais, mas sem desdenhar essas mesmas atitudes. Assim sendo, ao invés de fantasmas, alegoricamente e literalmente falando, são flashbacks na vida do protagonista, da infância (ou melhor, das infâncias) até à sua fase adulta, sem esquecer do futuro como derradeira epifania, a persistir como marcadores no enredo reduzido a um extenso gag

Curiosamente, tal como funcionara no filme anterior e inaugural, é nessas brechas narrativas que a criatividade formal ou estética se manifesta - se em 2019 seguíamos de género em género em busca de um filme algures - com o “O Natal do Bruno Aleixo”, cada episódio memorial transcreve numa forma animada, e sob diferentes criadores (João Alves, Pedro Brito, Bruno Caetano, Rafael da Silva Hatadani, Jorge Ribeiro), conjugando uma pequena banda de um mundo tão negligenciado como talentoso que é a animação portuguesa. 

Portanto, não há que ser mesquinhos, Bruno Aleixo é em todo o caso um dos melhores exemplos de comédia transcrita no cinema português, e não por uma “unha negra”, é por grande distância … principalmente de atropelamentos rurais que “deliciam”, inexplicavelmente, públicos.

Na noite de Lisboa, nem todos os filmes são pardos

Hugo Gomes, 28.02.22

tumblr_nwuapozEJK1tus777o3_1280.png

The State of Things / O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982)

Lisboa, menina e moça, ou será antes, Lisboa, madura e experiente? Quem me conhece, sabe bem do meu fascínio para com a capital. No entanto, não vou fazer disto uma ode à cidade que me viu nascer ou dos pontos “altos” e umbilicalmente turísticos que levam, e muitos, a encontrar deleite nas paisagens banhada do rio Tejo (ouve-se em "língua estrangeira" a denominação Tagus, um ser corrente e mítico, ou lá o que seja). A cidade com que me apaixonei e que cada vez mais me leva a procurar nela uma razão para permanecer nesse estado de encantamento, contrariando o “destino” que parece relembrar das impossibilidades do mesmo, é a mesma cidade “pintada” em muito do cinema mais crítico sobre da região, aquela sem medo de demonstrar a sua decadência mergulhada em noites soturnas, uma reunião de criaturas errantes e mal-amparadas prontas para aquele “copo” duradouro no balcão contínuo e estendido em cantos do Galeto, ou do sempre resistente (ou será “resiliente”, essa palavra em voga?) Cais Sodré, a agora ruela rosada situada a poucos metros das margens “ribeirinhas”. 

Uma noite de bons vivants, ou assim pensam ser, de perversos ou simplesmente incompreendidos que penetram nos peepshows de becos, “vejam, mas não tocam”, ou dos esquecidos, amargurados, os solitários vencidos pela derrota que olham com tamanho pessimismos à bebida servida à sua frente. A noite de Lisboa não é mágica, mas é saudosista por tempos áureos, o qual nunca existiram, apenas perpetuam como lendas inconformistas entre os “trovadores de tasca”. O cenário em desenvolvimento e de expansão em “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963), com Rui Gomes e Isabel Ruth perdendo no seu interior - por entre labirintos de árvores em jardins de refúgio a salões de dança (num travelling único que desde a sua prova nunca mais o esqueci) - e cuja incompatibilidade de ambos leva o protagonista a procurar companhia numa cidade noturna cuja sua divulgação era impedida pelos altos-órgãos (“uma afronta à boa moral lisboeta”, imagino que pensaram desta forma). 

Mais tarde, nos últimos sopros do Estado Novo, essa Lisboa é capturada por personagens sem eira, nem beira, pontuadas pelas sardas de Maria Cabral como distrações para a sua crise existencial na “modernidade” levada da breca em “O Cerco” (António da Cunha Telles, 1970) ou do jovem curioso que resiste ao sedentarismo extraindo desse quotidiano falsos-profetas e Dulcinéias sem brilho em “Perdido Por Cem” (António-Pedro Vasconcelo, 1973), essa primeira longa-metragem contagiada pelos tiques da fervorosidade da Nouvelle Vague conservava uma noite sem dormidas, de encontros imediatos e espontâneos entre teatros à beira da ruína, residenciais de urgência para noctívagos sob o cuidado de um João César Monteiro de cerveja na mão e de jogos de póquer ilegais na companhia de Paulo Branco, aquelas apostas anteriormente acordadas em salões de bilhar. 

Thumbnail.png

Perdido por Cem (António-Pedro Vasconcelo, 1973)

Já na década de 80’, nos seus primeiros passos, Lisboa cedente à sua autodestruição, ilustrava-nos uma noite de atrasos culturais perfeita para “quem parou no tempo”, ou que devaneia com o inatingível. “Kilas, o Mau da Fita”, obra de sucesso de José Fonseca e Costa, título escorraçado pelo crítico da altura [Augusto Seabra], cercava ainda mais essa cidade cinzenta, de sex appeal pacóvio e de brandos costumes fingidos por uma libertinagem de moda. Os fura-vidas ou o típico alfacinha absorvido pela tentações de uma "metrópole" de bairrismo evidente e dos locais vincados não como passagem, mas de “segundas casas”. De braços abertos para receber os “fugitivos do dia” e aprisioná-los nos seus vícios. Esta capital caberia num dos êxitos da banda "Táxi" - “Sozinho” - onde a noite é mais que uma noite, uma cidade na camada de outra cidade, com os habitantes alternativos, hábitos alternativos e habitações alternativas, e a manhã indesejada porque nela pronuncia-se o fim de uma Lisboa oculta para o renascimento da Lisboa de postal.

Os “estrangeiros”, de certa forma, captaram esse “fado” proeminente, seja o escape de Wim Wenders ou de Christine Laurent, por entre rodagens e ensaios (“The State of Things”, “Vertiges”) respetivamente, os bares de cheiro a mofo soam abrigos para almas perturbadas, ou da transformação da cidade-portuária num porto imaginário onde marinheiros anseiam conhecer a sua derradeira sereia, em “A Cidade Branca” (Alain Tanner, 1983). Lisboa, o resgate de todos os pecados do mundo entranhados numa só arquitetura, com o Café Império, orgulhoso do seu vazio e ao mesmo tempo dos ocasionais clientes que aguardam sem vez, uma imagem imortalizada numa outra primeira metragem, “O Sangue” (Pedro Costa, 1989). "Sabes qual é a maior invenção do Homem?", a pergunta é feita repetidamente, do meu lado respondo Lisboa, sem sucesso. A década de 90 instalou-se, o encantado desencanto não vinga mais, a marginalidade revelou um outro tipo de “criaturas”, “leprosos” que servem como avisos por parte dos nossos pais para que as noites tivéssemos. Lisboa mudaria nestes anos e no fim dos mesmos, abrindo para a multiculturalidade e para o capital de outras coordenadas, o turismo em máximo expoente da ação. Paulo Abreu elaborou no seu ensaio docuficcional - “Alis Ubbo” - uma cronologia a essas metamorfoses, realçando a anterior “menina e moça” como uma resistente entre épocas. 

thumbs.web.sapo.io.jpg

Ramiro (Manuel Mozos, 2017)

Mas a noite, essa mesmo, regressou ao seu estado de desencanto, obviamente orbitando nos arredores dos eventos promovidos de uma cidade-modelo Time Out. Um público “fiel” aos “comícios improvisados” no interior do Galeto,dois dedos de conversas” que se alargam para imperiais e snack-bar de horas “ordinárias”. Um público fiel aos últimos redutos do Cais’, observando a sua juventude a fugir por entre os seus dedos, ao mesmo tempo que mentaliza o término dessa longa noite, de lábios aquecidos enquanto saboreiam um pão com chouriço. Um público fiel à última sessão do Nimas, após a projeção percorrem a Avenida do 5 de Outubro procurando o “cantinho aberto” para prosseguir a tertúlia cinematográfica, até porque são nessas mesmas noites que nascem as melhores dissertações sobre o Cinema, aquelas histórias ocultas ou as revelações sinceras, tudo isso acompanhado por aquele hambúrguer pós-meia-noite e da imperial tirada ao sabor da praxe. 

Esta é a Lisboa que muitos preservam, que dialogam em segredo e em código, e que lamentam pelas drásticas mudanças, aquele fecho ou figura sucumbida, a noite de outrora cada vez para lá da miragem. Essa mesmo, convertida em não-lugar nas mãos de Bruno De Almeida (“Cabaret Maxime”, 2018), ou na passividade rústica a mercê do seu desaparecimento em Ramiro de Manuel Mozos, aliás, o homem, que talvez por outra via, pensa em Lisboa como um território cinematográfico [“Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista”, 1994], e através dele recita os seus mais requintados contos. Ou será antes, pontos de vista?

Miguel Gomes: "faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer"

Hugo Gomes, 24.08.21

image (1).jpg

Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro

Em todo o nosso encontro, Miguel Gomes fez questão de sublinhar que “Diários de Otsoga” não é um filme totalmente seu, de forma a invocar a presença da companheira e correalizadora, Maureen Fazendeiro, na nossa conversa. “Peço desculpa, a Maureen não pôde estar presente, teve que tomar conta da bebé.

Possivelmente, ao lado do legado deixado por Manoel de Oliveira e do entusiasmo mundial por Pedro Costa, Gomes é dos nossos realizadores mais internacionais, conquistando lugares nunca antes “navegados” por portugueses com filmes bem distintos como “Tabu” ou o projeto epopeico de “As Mil e uma Noites”. Porém, comigo é mais que isso tudo: é um pai babado.

Apresentado na Quinzena de Realizadores do último Festival de Cannes, “Diários de Otsoga” é marcado por um gesto, o de desafiar um confinamento e a interrupção de projetos e o de dar asas à criatividade, contando com uma equipa entre o profissional e o familiar. Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro tinham um filme em mãos, não sabiam ao certo que futuro poderia reservar esta aventura, mas o futuro também estava entre eles. Para além da rodagem, uma criança vinha a caminho, uma preocupação, uma dádiva ou uma outra dedicação.

O filme foi somente secundário, e mesmo assim prioritário. Ainda que para nós, espectadores, “Diários de Otsoga” tenha sido um filme, para Miguel Gomes foi mais que isso.

Queria começar esta conversa por questionar o significado do título.

Otsoga é Agosto ao contrário. Eu e a Maureen estávamos para sugerir um outro título - “Pura Vida” - porque a estrutura do movimento do filme, digamos, começa num território mais convencional (um beijo ou um início de um triângulo amoroso) e vai abrindo até chegarmos à possibilidade de que se está a fazer um filme. Vemos os técnicos, os atores e o filme, a cada dia que passa, podemos ver mais a vida a tornar-se cinema e não tudo fruto de um universo puramente cinematográfico como indicavam os primeiros momentos do filme. Resumidamente, tudo isto seria para chamar-se de “Pura Vida”, mas a certa altura a Maureen referiu que o título a fazia lembrar uma marca de água mineral, por isso abandonamos algo que à partida era ‘foleiro’.

Otsoga nasceu numa praia. Estava concentrado nas palavras cruzadas, até que de repente, talvez por sugestão das mesmas, uma charada de letras e palavras, perguntei o seguinte: “Se nós filmarmos em agosto em modo diário, e numa narrativa invertida (a essa altura já estava decidida essa estrutura), então que tal se invertêssemos o título?” E naquele momento escrevi Otsoga e isso fez sentido. Foi assim que obtivemos o título.

Ou seja, sabiam que o filme ia ser rodado e até mesmo estreado no mês de agosto?

Isso também já estava combinado. Havia a questão da Maureen estar grávida, com o nascimento previsto para fim de outubro ou início de novembro, portanto não podíamos filmar nos últimos dias da gravidez. Então tivemos que arranjar uma altura muito antes do parto, numa rodagem que fosse rápida, então a solução foi agosto.

Em conversa com a atriz Crista Alfaiate, ela revelou-nos que o filme nasceu de um gesto de “temos que filmar de qualquer forma”, por oposição ao confinamento e à paragem de projetos que a pandemia provocou.

A primeira visita que fizemos após o fim do primeiro confinamento foi à Crista. E falámos sobre a situação. Recordo-me dela confessar que estava a receber, naquela altura, os apoios da Segurança Social, e também de nos ter elucidado sobre a situação de vários colegas, alguns dos quais não recebiam rigorosamente nada e outros apenas 50 euros mensais. Foi exatamente na mesma altura em que o Ministério da Cultura responsabilizava a Segurança Social, ou seja, ninguém resolvia o problema nem sequer se assumiam culpas, e nós [artistas] estávamos indignados com todo este rol. Sendo que este filme nasceu de uma iniciativa de “dar trabalho”.

Talvez tenha sido esse gesto, possivelmente não de uma forma racional, que levou a que o filme apresentasse uma comunidade de cinema, porque é quase um manifesto ao facto de um sector estar a ser negligenciado pelo Estado, que sacudiu as suas responsabilidades. Nós não podíamos remediar. Nessa altura estávamos empenhados e envolvidos com outras pessoas do cinema em pedir um fundo de emergência para o sector, que era algo que já existia noutros países, onde vários projetos ficaram igualmente paralisados mas onde mesmo assim se conseguiram implementar fundos de emergência para auxiliar os técnicos e os atores, muitos deles sem trabalho. Estávamos a lutar por isso, mas infelizmente tal nunca aconteceu. A única possibilidade que nós tínhamos era este projeto, numa escala muito reduzida visto que o filme obteve um orçamento muito limitado e não concorreu ao ICA nem seguimos os canais de financiamento normais para produzir filmes na Europa.

E se concorressem ao ICA...

Não havia tempo sequer…

1658610769561.jpg

"Diários de Otsoga" (2021)

Sim, mas se concorressem como apresentariam o projeto? Para o ICA é preciso apresentar um rascunho do projeto e visto que “Diários de Otsoga” é um filme livre e sem guião definido, como o fariam?

Pois, ia ser complicado. Porque a ideia era precisamente reunirmo-nos, que era algo que nos faltava (a pandemia afastou-nos, quer física quer espiritualmente), e realizar um filme que nascia da nossa partilha de um tempo, que era o tempo daquela rodagem. Se apresentássemos o projeto, ele teria que ser diferente e isso trairia o pretendido, até porque chegámos aquela casa com “folhas em branco”, possivelmente com três ou quatros apontamentos. Havia a convicção e o desejo de poder surgir um filme a partir da nossa experiência naquela casa em tentar criar um filme, e isso torna-se um assunto dentro do próprio filme - a história de uma rodagem de um filme. E pensando desta maneira não o conseguiríamos fazer através dessa aplicação aos fundos do Instituto de Cinema.

O seu filme traz-me à memória aquela frase batida de Jacques Rivette, de que “os melhores filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem”?

Exato, íamos fazendo o filme e integrando nele aquilo que ia sucedendo. Algumas coisas com relevância nas nossas vidas, outras fruto do quotidiano. No fundo, é um filme que nasce de uma dor de dentes ou do “vou dar banho aos cães, por isso esta cena deveria estar no filme”, coisas assim. E o “Diários de Otsoga” fez-se dessa maneira, sendo que é preciso desconfiar um bocado daquilo que aparece nos filmes. Ou seja, por um lado o filme tem um lado de espelho da nossa experiência de intimidade naquela casa, na medida em que íamos escrevendo o filme quase sem o saber, mas por outro lado é um objeto de ficção, o espelho é sempre deformado e não é um reflexo absoluto da realidade. A meu ver, é uma ideia um pouco ingénua de que tudo o que está neste filme é a fabricação do próprio filme.

O Miguel e a Maureen apresentam vários desafios ao longo do filme, ao espectador e a vós próprios. A começar pelo beijo que em tempos pandémicos era quase assunto tabu, e a questão do tempo jogado pelo filme - falo obviamente da escolha da borboleta e do marmelo que vai apodrecendo ao longo do ecrã, elementos que brincam com a inversão temporal da obra. 

Bem, estamos a falar de coisas diferentes. O beijo foi das poucas ideias iniciais que trouxemos para casa como um desafios às regras COVID, e como inventámos este método, este modelo de produção que era o de estarmos isolados naquela casa, e como tínhamos um diário invertido que começava pelo último dia de rodagem e terminava no primeiro, poderíamos contornar os perigos de uma cena de beijo, filmando-a no último dia mas montando-a ao contrário.

Quanto à questão da borboleta e do fruto: é que o fruto é, basicamente, um marcador de tempo. Se me perguntares do que se trata do filme, posso ter várias respostas, mas uma delas é que é um filme sobre o tempo, no sentido, em que o facto de o tempo estar invertido o torna numa propriedade própria do cinema, o de manipular a natureza do tempo e desfazer a linearidade da vida. Igualmente é um filme sobre o tempo, porque dos 22 dias que passámos, o espectador nunca conta com verdadeiras surpresas, uma vez que “Diários de Otsoga” não trabalha em termos narrativos para constantes mudanças ou revelações de argumento mas vai mudando de uma forma mais próxima do decurso normal do tempo, ou seja o filme é praticamente estável.

Talvez seja só um momento em que percebemos, por fim, que se trata da rodagem de um filme, mas de resto nada ou pouco altera o nosso percurso. E é aí que entra o fruto, porque é à luz do tempo que aquele fruto altera, ele não é intacto ao tempo. A olho nu nada altera, mas voltando àquele mesmo fruto de três em três dias poderíamos constatar e registar as suas alterações. No fundo, o fruto é o medidor do tempo do filme, e precisávamos disso aqui, em contraste com o que pouco alterna na ação do filme. Mas entre o princípio e o fim de “Diários de Otsoga”, tudo muda. Entre uma festa e outra, há uma grande alteração, percebemos o filme de uma maneira diferente e percebemos isso com a estrutura do tempo.

Já as borboletas, elas são efémeras. Mas a ideia surgiu com a própria natureza da herdade que albergava imensas gaiolas e animais como pavões, galinhas, papagaios, e até havia um canil, e nós queríamos uma construção, que com a montagem iria gradualmente desaparecer. Foi a Maureen que surgiu com a ideia do borboletário.

Existe um momento do filme, em que o Miguel e a Maureen se ausentam da rodagem, deixando o trio de atores (Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro) a assumirem o cargo de realizadores. Segundo a Crista Alfaiate, foram três bobines. Confirma?

Já não me recordo quantas bobinas eram, mas havia ali um limite… é capaz de ter sido três, julgo que era isso que tínhamos diariamente programado para gastar. Era a média. Como somos democráticos, achámos que eles tinham por direito as mesmas oportunidades que nós próprios tínhamos enquanto realizadores. E se nesse dia não íamos realizar, porque não dar a vez a eles? Por isso demos-lhes a mesma quantidade de película que usávamos por dia.

209783770_1012699492814825_5592524354861523078_n-1

"Diários de Otsoga" (2021)

Sem mencionar a equipa de técnicos, com grande parte dos quais já tinha trabalhado, no campo dos atores, Crista Alfaiate e Carloto Cotta são faces familiares na sua filmografia mas João Nunes Monteiro ("Mosquito") é quase como um extraterrestre neste seio “familiar”.

Pois, a personagem dele é um bocado extraterrestre… Enfim, o Carloto e a Crista já tinham trabalhado comigo e juntos no “As Mil e uma Noites”, por isso já se conheciam bem. Quanto ao João Monteiro, nunca tínhamos trabalhado com ele, foi-nos recomendado por várias pessoas e vimos algum do seu trabalho, e ele acaba por ter um lado desprotegido, é aquele tipo que não consegue pregar um prego [risos]. Ele tem aquele lado mais frágil, o que funciona como um bom contraponto com o lado, um bocado mais bruto do Carloto, e portanto estávamos convencidos que ele poderia dar mais qualquer coisa para aquele triângulo, um lado que poderia ser interessante.

Repescando as questões iniciais da nossa conversa, é um facto que a pandemia lhe “parou” dois projetos. O que é feito deles? Acredita que vai regressar a eles?

Claro. Temos sempre essa esperança. Penso que um deles é mais possível que o outro. “A Selvajaria" será rodado no Brasil e é importante que seja filmado no exacto local onde decorreu a Guerra de Canudos, mas é um filme muito pesado em termos de produção, com muita figuração, técnicos e portanto vai acontecer um ajuntamento de gente, que é impossível neste exato momento. Imperativamente tem que ser rodado no Brasil, porque o livro [de Euclides da Cunha] é sobre aquele lugar e sobre aquelas pessoas, seria batota filmá-lo num outro lugar. Quero ser fiel aquela comunidade, muitos deles descendentes dos sobreviventes da guerra. Não posso trair o meu filme. O que tem acontecido é uma renegociação com os financiadores, porque o projeto está altamente financiado, para que possamos adiar as rodagens para uma altura mais adequada.

E o outro, “The Grand Tour”, é um filme de estúdio mas que não é leve em termos de produção e em figuração. Mas como é em estúdio, possivelmente conseguiremos arranjar uma maneira / solução.

É um facto que o Miguel recorre facilmente a coproduções. Sente de alguma forma que isso é uma solução para o escasso financiamento ao cinema português por parte do seu instituto?

As coproduções são necessárias para reunir uma certa quantidade de dinheiro para concretizar determinados projetos. Este é o meu quinto filme, e é a meias, não é totalmente meu, portanto digo que não tenho um número suficiente de filmes para ter uma estatística ou um plano geral.

Mas no caso do “Diário de Otsoga”, como referiu, não usufruiu de nenhum apoio estatal ou do Instituto. É possível contornar essa fonte orçamental?

Eu faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer. E por vezes, para os fazer, é preciso coproduções. Surgiram vários debates, muitos deles históricos ocorridos nos anos 90, de como seria a estratégia de produção em Portugal. Discutia-se menos filmes mas com orçamentos superiores ou menos dinheiro mas um número maior de filmes. Acrescentando nisto tudo que há um subfinanciamento crónico no cinema português. Fui defensor, e julgo que deverei sê-lo, de um maior número possível de filmes. Sou contra a ideia, que acho que está estabelecida, de 600 mil euros de teto máximo de financiamento do ICA para uma longa-metragem, e mesmo assim produz-se muito pouco. Julgo que são 10 a 11 longas produzidas em Portugal por ano.

Tendo em conta esse teto máximo, eu para conseguir concretizar os meus projetos recorro a outras formas de financiamento sem ser o ICA. Essa é a solução, não só para Portugal mas para a Europa e até mesmo fora dela, para financiar filmes de produção mais pesada. Mas gostaria de salientar que este filme, apesar do seu orçamento, não é menos ambicioso que um “As Mil e uma Noites”. Os filmes não se medem pelos seus orçamentos.

Falando com Crista Alfaiate, a musa confinada de Miguel Gomes e de Maureen Fazendeiro

Hugo Gomes, 17.08.21

descarregar.jpg

Impossibilitado de levar avante os seus projetos por causa da pandemia, Miguel Gomes e a sua companheira e cineasta Maureen Fazendeiro fecharam-se numa herdade com uma equipa e três atores em agosto de 2020 para procurar a cerne de todos os “filmes de confinamento”.

Diários De Otsoga”, o resultado, tem um pouco de tudo: absurdismo, experimentalismo e estética. É uma obra em permanente busca do seu espírito, sem nunca perder a sua liberdade, recebida com inúmeros elogios após a apresentação na secção paralela “Quinzena dos Realizadores” da mais recente edição do Festival de Cannes.

No caso de Miguel Gomes, este desafio cinematográfico foi também um reencontro com Crista Alfaiate, atriz que há poucos anos figurou num lugar de destaque nas “crónicas do país triste” de “As Mil e uma Noites”: ela foi Sherazade, não por um dia, mas por três filmes.

Agora é ela própria num filme ao lado de Carloto Cotta e a revelação de “MosquitoJoão Nunes Monteiro, onde se revela uma artesã do improviso, da experimentação e, sobretudo, da liberdade artística.

Antes de mais, gostaria que me explicasse como surgiu a ideia para este projeto e como o integrou?

O Miguel tem mencionado um encontro específico - a primeira vez que saíram de casa [depois do confinamento] - em minha casa e a do Rui Monteiro [técnico de iluminação]. Aí conversámos sobre a impossibilidade de se realizar espetáculos, de teatro - como é o meu caso e do Rui - e de cinema, como era o caso do Miguel, que tinha duas produções paradas. Nessa conversa surgiu uma ideia contracorrente, uma motivação resumida como "temos que, imperativamente, fazer um filme". Contornar esta impaciência, esta realidade, esta fatalidade, em suma, esta pandemia. Partimos para dentro desta casa, todos nós testados, e tendo em conta o tempo, embarcamos nesta viagem sem um guião estabelecido.

Ou seja, este é um filme totalmente dependente do improviso?

Existe muita 'coisa' planeada, nomeada a estrutura trazida pela Maureen e pelo Miguel, mas no geral o filme foi movido pela improvisação, tendo muito sido escrito ao longo do processo de rodagem. Respondendo à pergunta, sim, houve uma experimentação ao longo desta produção, mas estabeleceram-se balizas para o que se propunha.

Então, o que poderemos considerar real e que é ficção no “Diários de Otsoga”?

Acho mesmo que o interessante do filme é o de não ter a perceção do que é real e o que foi simplesmente encenado. É algo que deixamos no ar, para que o espectador pense no que realmente está a ver, até porque a mecânica do mesmo é exposta. A maneira como se filma, a equipa que filma e até mesmo a localização da câmara. Este jogo, que é uma certa manipulação por parte da Maureen e do Miguel na sala de montagem, e não só, é conceção da estrutura, é interessante e é estimulante ficar-se com dúvidas. Ou seja, uma resposta para uma dessas perguntas é que não responde ao que se pretende.

Nesse sentido, podemos considerar o filme como docuficção?

Diria que é mais... ficção. Mais do que docuficção.

A narrativa de “Diários de Otsoga” é inversa. Houve um convencionalismo na rodagem ou tudo se baseou na sala de montagem?

Poderemos dizer que foi uma rodagem convencional, porque seguimos à luz do diário, mas ao mesmo tempo não o foi, até porque estávamos todos na mesma casa, sem guião preparado, ou seja, pensávamos somente naquilo que iríamos fazer no instante, no seguinte. Não havia um cronograma rígido.

descarregar (1).jpg

Tendo com conta a sua experiência com o realizador na trilogia “As Mil e uma Noites”, sentiu estar num filme do Miguel Gomes ou da Maureen Fazendeiro?

Há “inputs” no filme que são muito diferentes. Aliás, tudo isto é uma combinação de duas fixações. Para já, a diferença é filmar com um realizador e o de filmar com dois realizadores. E depois há obsessões distintas, que na minha perspetiva, se juntaram muito bem. Ou seja, não existem particularmente ‘coisas’ que possamos apontar e afirmar que “isto é do Miguel e isto é da Maureen”. A construção da obsessão dos dois está muito... como diria... ligada. Também a grande diferença é que este filme está carregado da vida deles. A sua vida conjunta. No fundo, “Diários de Otsoga” é a vida de um casal e a chegada de um bebé que interfere nesse processo de criação e de realização. Tivemos que mudar todo o processo para que Maureen pudesse acompanhar as filmagens e, ao mesmo tempo, cuidar do seu bebé. Ela foi a única que pôde sair da casa – para a ecografia e nesse dia o Miguel teve que acompanhá-la –, o que alterou automaticamente toda a trajetória do filme, deixando nós [atores] a tomar conta e a continuar. Tudo muda, até mesmo a informação trazida deste casal “contamina-nos”, porque estávamos todos confinados e juntos.

Sobre esta emancipação do ator em relação ao filme e apropriando-me de uma frase do Carloto Cotta: esse dia foi um “desperdício de fita”?

Gastámos três bobines... só naquele dia! [risos] Filmamos várias cenas, grande parte não chegou à montagem final. Posso adiantar, por exemplo, que fechamos o diretor de fotografia, Mário Castanheira, na gaiola dos pássaros. Mas apesar de tudo isto, não acredito que tenha sido um "desperdício" de fita. Pelo processo, pela liberdade que tínhamos, pela proposta e sobretudo pela possibilidade de lançar três bobines para a mão de um trio de atores e de uma equipa e esperar para ver o que realmente acontece. Aconteceu neste filme, porque o Miguel e a Maureen estavam abertos a tais propostas, e tendo em conta que tínhamos em mão um projeto sem guião predefinido, nos deram possibilidades para integrar a experiência. O gesto foi o de “o que podemos retirar dos nossos dias” e nisso resultou uma provocação. Para nós, foi incrível sermos realizadores por um dia.

Visto que “Diários de Otsoga” é um filme sobre confinamento e, logicamente, de pandemia, como vê este cenário no vosso trabalho enquanto atores? Ou melhor, enquanto trabalhadores no ramo?

Aqui [França] já foi anunciado que, para aceder às salas de cinema, será necessário um certificado ou um comprovativo de teste negativo. Portugal possivelmente seguirá o mesmo caminho, o que será uma grande “facada” ao sector, não só para o cinema mas também para a cultura em geral. Esta medida será como “cortar as pernas” ao percurso destes projetos. E como vejo isso? Trágico. Simplesmente trágico, porque influencia a vida em todo o sentido. Não levará o trabalho ao seu máximo potencial e ao seu expoente de visualização. E já era assustador quando nos deparávamos com os números de cinema português, e ainda mais de teatro. Eram péssimos. E os orçamentos? Nem vale a pena mencionar isso. E só de pensar que não haverá algum tipo de retorno e alguns projetos nem irão arrancar. Isso afeta o nosso trabalho e a nossa vida.

O streaming como ser uma alternativa para o vosso trabalho? Tem sido anunciada a criação de algumas produções nacionais em plataformas como Netflix ou HBO.

Pode ser uma alternativa de trabalho, mas não será uma solução para a produção nacional. O filme continua a querer ser visto na sala de cinema, com a qualidade que se quer e a qualidade que se tem. E com os tempos e duração específica de cada produção. Normalmente existe uma tendência de formatação e globalização, para que isto caiba num catálogo de streaming, mas que não é de todo a mesma ‘coisa’ que cinema de autor. Falo de cinema de autor, porque é aquele cinema que solicita o seu invariável tempo e a sua linguagem, e que não corresponde a um público-alvo ou a uma etiqueta do catálogo.

Fitas, borboletas e dias de desespero

Hugo Gomes, 25.07.21

2211863.jpg-r_1280_720-f_jpg-q_x-xxyxx.jpg

Ame-se ou odeie (é bem verdade que na última opção continua dependente a uma vincada ideologia de como o cinema português deve ser produzido e “consumido”), Miguel Gomes já estabeleceu o seu lugar na nossa cinematografia como dos mais ambiciosos realizadores da nossa praça, como também dos mais internacionais (apenas equiparado a Pedro Costa ou o legado deixado por Manoel de Oliveira).

Com a sensação que foi “Aquele Querido Mês de Agosto”, a aclamação unânime de “Tabu”, uma canção que ressoa nos cantos e recantos do passado colonialista, o pretensiosismo discutido das “crónicas de um país triste” numa recitação de um clássico intemporal literário – “As Mil e uma Noites” – e as promessas de um projeto ainda maior intitulado de “Selvajaria”, Gomes, em plena pandemia, retorna numa trajetória contra-maré, não somente narrativamente, e sim produtiva. 

Co-realizado com a sua companheira Maureen Fazendeiro (“Sol Negro”), “Diários de Otsoga” é a cerne dos filmes de confinamento, um verité de um método de construção e igualmente de desconstrução, o qual dois realizadores e a sua respetiva equipa barricam-se numa herdade com o intuito de concretizarem o seu filme. O “filme”, esse mal-amparado MacGuffin, é a tese em elaboração de como o cinema poderá se comportar perante as drásticas mudanças sociais que condicionam o seu processo criativo, sem nunca envergar pela limitação desse quadrante, pelo contrário, a ausência e a indisponibilidade de recursos. 

Carloto Cotta (presença repetente na filmografia de Gomes), Crista Alfaiate (descoberta do realizador em “As Mil e uma Noites”) e a revelação de “Mosquito”, João Nunes Monteiro (com o desafio de distorcer a sua própria imagem) são os atores desta inversa metamorfose (em paralelização com o borboletário e do marmelo em decomposição que serve de núcleo e de termostato a esta “história”) criada em constância pelos realizadores. Aprimorado por momentos humorísticos, satíricos para com o processo fílmico (basta verificar o ponto alto em que os atores comandam o filme, “que desperdício de fita” exclama Cotta) e de puro burlesco, a veia que Gomes parece ter herdado de João César Monteiro, “Diários de Otsoga” funcionam como um exercício labiríntico de devaneios e de busca inspiracional no seu formato de aparentado caos. 

Só que, e falando na língua de Miguel Gomes, o filme é marcado com uma regressão à génese [“A Cara que Mereces”], onde verificamos novamente o fascínio pelos inventários e do cinema regulamentado pelas suas estabelecidas e rígidas regras. Ou seja, há mais controlo nesta exibida “desarrumação” do que supostamente exibe.