Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Nicolas Cage, o homem "escroto" na febre de Sion Sono

Hugo Gomes, 18.02.22

MV5BMDY3YjdlNDItZjgyZS00MWFjLTllOTgtOTZiZDNkZjU0MD

É possível encontrar um filme tresloucado no meio do caos acidental de “Prisoners of Ghostland”, uma espécie de "sukiyaki" (prato nipónico em que  as pessoas se servem a si mesmas à medida que os ingredientes são cozinhados) com Nicolas Cage como cabeça de cartaz, prometendo a loucura e o devaneio no meio de uma salganhada visual. É curioso este cruzamento entre um Japão feudal com o Oeste americano mais o imaginário pós-apocalípticos, um cenário de colocar o espectador “às aranhas” num enredo em constante perturbação neurológica.

Para objetos estranhos e com o seu quê de excentricidade, Sion Sono não é nenhum estranho, há que espreitar os seus “Why Don’t you Play in Hell?” (2013) ou “Tokyo Tribe” (2014) para entender o quanto de desvairado este universo pode ser, e mesmo assim, segundo o próprio conterrâneo, contemporâneo e amigo de longa data, Takashi Miike, é um dos únicos a cometer "cinema japonês adulto” nesta atualidade. Não vamos refletir profundamente nessas declarações, mas deve-se entender que estamos a vivenciar tempos em que uma Marvel Studios reina “box-offices” com tamanha naturalidade e impondo com isso uma certa seriedade narrativa e forçada e inabalável continuidade como modelo de sucesso industrial. Com isso, a violência inconsequente (aqui com alguns limites, deve-se salientar tendo em conta o seu autor) em contexto de inserções camp ou meramente “sillies” parece ter transladado para outras faixas etárias, para gerações em que este escapismo ainda faz algum sentido no seu menu de “entretenimento”.

Prisoners of Ghostland” é na sua melhor forma um filme à imagem do espírito livre e multifacetado do realizador, isto, se fosse realmente um projeto à sua altura. Sabe-se que Sion Sono sofreu de um ataque cardiovascular ainda antes da rodagem, atrasando-a por um ano, o que fez com que Nicolas Cage sugerisse mover a produção para o Japão de forma a que o realizador evitasse deslocações cansativas. Mesmo em terras do Sol Nascente, um realizador debilitado mais os “habituais” controlos criativos que Hollywood (e seus derivados) tem sobre autores importados resultaram aquilo está à vista de todos, um filme espectral que paira no térreo, um claro apoio incondicional na estética que resiste a um argumento escavacado e intrinsecamente esquizofrénico (entre “Mad Max” a “Escape from New York” passando por “The Hills Have Eyes”, a ‘coisa’ torna-se por vezes inarrável e indescritível).

No centro desta barafunda sem estribeiras, existe Nicolas Cage, como o sempre excêntrico ator que imprime a sua, ainda estudada, personalidade nos filmes que se alista. Um misto de aquétipo de arcaico "action man" (homens de poucas palavras e de virilidade em valores máximos, mesmo quando perde um testículo) com uma caricatura do mesmo, uma personagem que tão bem poderia sair de um imaginário pueril e juvenil. Nicolas Cage show para alguns, um Sion Sono light para outros (sabendo que para quem é adepto do seu cinema, a dieta não é solução).

«Roman Porno»: Ainda há muito desejo para consumir ...

Hugo Gomes, 03.07.20

41a1ed8e-0d41-11e7-9af0-a8525e4e6af4_image_hires.j

Anti-Porno / Anchiporuno (Sion Sono, 2016)

Com toda a dedicação, prosseguimos para terceira parte do ciclo “roman porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), a estratégia de produção dos estúdios Nikkatsu nos anos 70 para conseguirem superar a decadência da indústria da altura, no Espaço Nimas. Chega-nos a vez do quarto filme da série Angel Guts: Red Porno (Tenshi no Harawata: Akai Inga, 1981), de Toshiharu Ikeda, e o não consensual, Anti-Porno (Anchiporuno, 2016), de Sion Sono.

 

 - DE "TRIPAS-CORAÇÃO” COM O DESEJO NÃO-RETRIBUÍDO -

A adaptação de uma série manga de Takashi Ishii de caráter erótico/pornográfico algo repreensivo e perverso que explora os limites da violência sexual (mais exatamente a violação) e o "exploitation artístico" encontrou lugar na tela sob a coordenação do realizador Chūsei Sone pela Nikkatsu. Tornou-se num dos mais rentáveis da galeria “Roman Porno”, ainda que roçasse no limite deste movimento artístico e no dos chamados “pink films” dos estúdios rivais (as produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo, normalmente de consumo inferior).

Este “Red Porno” (“Tenshi no Harawata: Akai Inga” / “Angel Guts: Red Porno”) assume-se como o quarto desta série cinematográfica, após estas fantasias terem passado para a mão de Noboru Tanaka (o mesmo de Noites Felinas de Shinjuku (“Mesunekotachi no yoru”), em 1979. Toshiharu Ikeda (1951 – 2010) foi o realizador escolhido para levar a cabo este capítulo que nos remete para uma jovem vendedora de centro comercial, Nami (Jun Izumi), que após ter aceitado ser capa de uma revista de cariz lascivo, vê-se perseguida por um fã obsessivo.

Sob a luz das lentes das consciências atuais, indiscutivelmente que a série "Roman Porno" é difícil de digerir e este filme não foge a regra: “Red Porno” debate-se constantemente no limiar da violência e do sexo, da criminalidade e da sensualidade, na passividade e na profunda e realizada perversão. É sobretudo um filme de agressivos pulsares de desejo, mas filmados como a tenra fantasia (quente, húmida, lubrificada e imunda).

Seja como for, “Red Porno” não nos atinge somente pelas imagens, equilibrando entre o sugestivo e a carnalidade possível (tentando sempre contornar os censores apertados, e dessa forma “trocista” para com um ainda proibido “In the Realm of the Senses" / “Ai no korîda”, que Nagisa Oshima fez em 1976, homenageando-o numa das cenas), mas como também pela sua apetência sonora. Através dos escorridos sons, do estalar suave e ecoante dos dedos e dos objetos penetrados, grande parte deles deixados à nossa fértil imaginação.

Os sentidos fazem parte desta viagem ao nosso íntimo mais depravado, por entre perseguidores passivos que projetam violações imaginárias ou as "ingênuas donzelas” (os “anjos” do título que remexem neste conceito de purezas, aparentemente, impenetráveis), a sonoridade complementa a ala criminosa.

Vísceras de Anjo: Red Porno” funciona como uma obra a caminho do limite deste território “roman porno”, espelhando em nós a determinação do voyeurismo e os fetiches levados da breca por aí suscitados. Talvez Ikeda tenta com a popular e tabu manga identificar o desejo feminino, nas suas fronteiras mais libertinas e inquestionavelmente submissas. E curiosamente, nisso também um diálogo convergente e semi-antípoda para com Michelangelo Antonioni e o seu (com uma diferença de um ano) “Identificazione di una donna” / “Identification of a Woman” (1982).

MV5BNTY3MGZmNTQtYTk2OS00Y2NjLWE5ODUtOGU1YjQwMmIwMm

Angel Guts: Red Porno / Tenshi no Harawata: Akai Inga (Toshiharu Ikeda, 1981)

 

- A PORNOGRAFIA ROMÂNTICA ESTÁ ULTRAPASSADA -

Assinado pelo muito popular e transgressivo cineasta nipónico Sion Sono (“Suicide Club”,TAG”), “Antiporno” faz parte da série de homenagem ao legado da Nikkatsu e é o menos consensual desse grupo. Também o mais reflexivo para com o movimento o qual enverga: mais do que um mero exercício meta, embute em certas veias "brechtianas" [relativo ao dramaturgo e poeta Bertolt Brecht], no querer revelar e assumir-se automaticamente como uma farsa narrada perante o espectador.

Aqui, Kyôko (a tão adequada “over-the-top Ami Tomite, uma das atrizes fetiches de Sion Sono) é uma jovem de alma artística e de um ego fraturado, mas igualmente assombroso, que procura intensamente, durante uma caótica entrevista, desvendar o elo do seu foro criativo e simultaneamente da sua sexualidade, uma ação que acaba por se revelar na rodagem de um filme ao estilo “roman porno”. Após esta passagem de realidade, os papéis invertem-se: Kyoko não é mais do que uma jovem inexperiente, uma aspirante a atriz, engolida por outros em consequência da sua presença esmorecida. Aqui, ela é uma jovem que se confronta com a ideia de sexo na sociedade que íntegra, que ora é, segundo os sermões do pai, uma obscenidade ou é um gesto natural a merecer ser reivindicado em todas as frentes.

“Quero tornar este corpo em algo obsceno!”, suplica a certa altura Kyôko perante o realizador e equipa de "casting" do filme que irá integrar, demonstrando qual a sua básica e aparente noção de emancipação: revelar-se como objeto sexualizado perante ao mundo! Em “Antiporno”, nota-se que existe uma exaustiva invocação e tratamento “male gaze” (palavra hoje em voga que se resume à sexualidade sob o prisma do desejo masculino) que, simultaneamente, é satirizado e caricaturado ao serviço de um instabilizado malabarismo de realidades e com isso, percepções (as personagens não escondem o facto de que são observadas por nós, espectadores). Trata-se de uma crítica biforme e irreverentemente ingrata para com o rótulo de "homenagem" ao "Roman Porno", uma dissecação e revisionismo de todo um ciclo, expondo as suas fragilidades enquanto cinema na vanguarda, à boleia da nossa modernidade.

O artifício dimensional perpetuado por “Antiporno” (simbolizado, que no seu todo, por um lagarto preso na garrafa, o fatal conformismo pela sua realidade) anula qualquer perversão obtida do exercício sexual, revelando-se um trabalho-tese que finaliza todo um gesto produtivo. Depois deste filme, acreditamos que as vontades (se existissem) de ressuscitar o “roman porno” nos nossos dias não serão mais do que meros devaneios oriundos de homens saudosistas, presos a um passado cada vez mais longínquo.

Com o cineasta Sion Sono, o sexo muda de holofote, altera a sua exposição, o seu consumismo e sobretudo o seu olhar e os olhos pelo qual se direciona. O que sobra é a cultura do seguidismo, da veneração dos corpos e a constante batalha campal em salvaguardar o sexo como a divina arte.