Anti-Porno / Anchiporuno (Sion Sono, 2016)
Com toda a dedicação, prosseguimos para terceira parte do ciclo “roman porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), a estratégia de produção dos estúdios Nikkatsu nos anos 70 para conseguirem superar a decadência da indústria da altura, no Espaço Nimas. Chega-nos a vez do quarto filme da série Angel Guts: Red Porno (Tenshi no Harawata: Akai Inga, 1981), de Toshiharu Ikeda, e o não consensual, Anti-Porno (Anchiporuno, 2016), de Sion Sono.
- DE "TRIPAS-CORAÇÃO” COM O DESEJO NÃO-RETRIBUÍDO -
A adaptação de uma série manga de Takashi Ishii de caráter erótico/pornográfico algo repreensivo e perverso que explora os limites da violência sexual (mais exatamente a violação) e o "exploitation artístico" encontrou lugar na tela sob a coordenação do realizador Chūsei Sone pela Nikkatsu. Tornou-se num dos mais rentáveis da galeria “Roman Porno”, ainda que roçasse no limite deste movimento artístico e no dos chamados “pink films” dos estúdios rivais (as produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo, normalmente de consumo inferior).
Este “Red Porno” (“Tenshi no Harawata: Akai Inga” / “Angel Guts: Red Porno”) assume-se como o quarto desta série cinematográfica, após estas fantasias terem passado para a mão de Noboru Tanaka (o mesmo de “Noites Felinas de Shinjuku” (“Mesunekotachi no yoru”), em 1979. Toshiharu Ikeda (1951 – 2010) foi o realizador escolhido para levar a cabo este capítulo que nos remete para uma jovem vendedora de centro comercial, Nami (Jun Izumi), que após ter aceitado ser capa de uma revista de cariz lascivo, vê-se perseguida por um fã obsessivo.
Sob a luz das lentes das consciências atuais, indiscutivelmente que a série "Roman Porno" é difícil de digerir e este filme não foge a regra: “Red Porno” debate-se constantemente no limiar da violência e do sexo, da criminalidade e da sensualidade, na passividade e na profunda e realizada perversão. É sobretudo um filme de agressivos pulsares de desejo, mas filmados como a tenra fantasia (quente, húmida, lubrificada e imunda).
Seja como for, “Red Porno” não nos atinge somente pelas imagens, equilibrando entre o sugestivo e a carnalidade possível (tentando sempre contornar os censores apertados, e dessa forma “trocista” para com um ainda proibido “In the Realm of the Senses" / “Ai no korîda”, que Nagisa Oshima fez em 1976, homenageando-o numa das cenas), mas como também pela sua apetência sonora. Através dos escorridos sons, do estalar suave e ecoante dos dedos e dos objetos penetrados, grande parte deles deixados à nossa fértil imaginação.
Os sentidos fazem parte desta viagem ao nosso íntimo mais depravado, por entre perseguidores passivos que projetam violações imaginárias ou as "ingênuas donzelas” (os “anjos” do título que remexem neste conceito de purezas, aparentemente, impenetráveis), a sonoridade complementa a ala criminosa.
“Vísceras de Anjo: Red Porno” funciona como uma obra a caminho do limite deste território “roman porno”, espelhando em nós a determinação do voyeurismo e os fetiches levados da breca por aí suscitados. Talvez Ikeda tenta com a popular e tabu manga identificar o desejo feminino, nas suas fronteiras mais libertinas e inquestionavelmente submissas. E curiosamente, nisso também um diálogo convergente e semi-antípoda para com Michelangelo Antonioni e o seu (com uma diferença de um ano) “Identificazione di una donna” / “Identification of a Woman” (1982).
Angel Guts: Red Porno / Tenshi no Harawata: Akai Inga (Toshiharu Ikeda, 1981)
- A PORNOGRAFIA ROMÂNTICA ESTÁ ULTRAPASSADA -
Assinado pelo muito popular e transgressivo cineasta nipónico Sion Sono (“Suicide Club”, “TAG”), “Antiporno” faz parte da série de homenagem ao legado da Nikkatsu e é o menos consensual desse grupo. Também o mais reflexivo para com o movimento o qual enverga: mais do que um mero exercício meta, embute em certas veias "brechtianas" [relativo ao dramaturgo e poeta Bertolt Brecht], no querer revelar e assumir-se automaticamente como uma farsa narrada perante o espectador.
Aqui, Kyôko (a tão adequada “over-the-top” Ami Tomite, uma das atrizes fetiches de Sion Sono) é uma jovem de alma artística e de um ego fraturado, mas igualmente assombroso, que procura intensamente, durante uma caótica entrevista, desvendar o elo do seu foro criativo e simultaneamente da sua sexualidade, uma ação que acaba por se revelar na rodagem de um filme ao estilo “roman porno”. Após esta passagem de realidade, os papéis invertem-se: Kyoko não é mais do que uma jovem inexperiente, uma aspirante a atriz, engolida por outros em consequência da sua presença esmorecida. Aqui, ela é uma jovem que se confronta com a ideia de sexo na sociedade que íntegra, que ora é, segundo os sermões do pai, uma obscenidade ou é um gesto natural a merecer ser reivindicado em todas as frentes.
“Quero tornar este corpo em algo obsceno!”, suplica a certa altura Kyôko perante o realizador e equipa de "casting" do filme que irá integrar, demonstrando qual a sua básica e aparente noção de emancipação: revelar-se como objeto sexualizado perante ao mundo! Em “Antiporno”, nota-se que existe uma exaustiva invocação e tratamento “male gaze” (palavra hoje em voga que se resume à sexualidade sob o prisma do desejo masculino) que, simultaneamente, é satirizado e caricaturado ao serviço de um instabilizado malabarismo de realidades e com isso, percepções (as personagens não escondem o facto de que são observadas por nós, espectadores). Trata-se de uma crítica biforme e irreverentemente ingrata para com o rótulo de "homenagem" ao "Roman Porno", uma dissecação e revisionismo de todo um ciclo, expondo as suas fragilidades enquanto cinema na vanguarda, à boleia da nossa modernidade.
O artifício dimensional perpetuado por “Antiporno” (simbolizado, que no seu todo, por um lagarto preso na garrafa, o fatal conformismo pela sua realidade) anula qualquer perversão obtida do exercício sexual, revelando-se um trabalho-tese que finaliza todo um gesto produtivo. Depois deste filme, acreditamos que as vontades (se existissem) de ressuscitar o “roman porno” nos nossos dias não serão mais do que meros devaneios oriundos de homens saudosistas, presos a um passado cada vez mais longínquo.
Com o cineasta Sion Sono, o sexo muda de holofote, altera a sua exposição, o seu consumismo e sobretudo o seu olhar e os olhos pelo qual se direciona. O que sobra é a cultura do seguidismo, da veneração dos corpos e a constante batalha campal em salvaguardar o sexo como a divina arte.