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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Beyond the Canon 2024: participação

Hugo Gomes, 20.04.24

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Aus dem Leben der Marionetten / From the Life of the Marionettes (Ingmar Bergman, 1980)

Como um suplemento à "polémica" lista da “Sight & Sound”, a "They Shoot Pictures, Don't They?" selecionou vários profissionais da área do cinema, incluindo alguns críticos (fui um dos convidados, fazendo parte da "seleção oficial") para participar no "Beyond the Canon", uma enumeração de alguns dos melhores filmes que estiveram de fora das escolhas da igualmente canónica lista que deu vitória a "Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles", de Chantal Akerman.

Aqui está a lista aqui, e aqui as minhas escolhas pessoais (com uma ressalva: não votei em "Before I Go" de Chris Evans, e sim em "Before We Go" de Jorge Leon, mas não foram primeiros nem serão, certamente, os últimos a cometer tal lapso).

O Drama, a Tragédia, o Horror, a Jeanne Dielman ...

Hugo Gomes, 04.12.22

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Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1975)

O problema incutido nas listas coletivas encontra-se na reação posterior. Existe uma crença neste tipo de forças mútuas como se uma verdade inabalável, um absolutismo, se tratasse. Recordo, há um par de anos, no virar de uma década completada, um top correspondente por parte do Cahiers du Cinéma, no qual elegia a série “Twin Peaks: The Return” como o filme marcante de dez anos de cinema, curiosamente, lugar que, estranhamente, coube a uma produção televisiva. Porém, a lista revelou-se fruto dos seus colaboradores, statements ou mensagens à parte, cada um pôde ler como bem apeteceu, mas na realidade é que após a divulgação foram muitos os que contestaram as escolhas num radicalismo puro e pior, colocaram em causa a reputação da revista de cinema. A resposta de muitos surgiu nas formas de listas individuais e pessoais, uma hipocrisia de quem condenava um trabalho de muitos.

As listas são o que são, meros “apanhados”, mero resultado democrático, e talvez essa contestação cada vez mais violenta de uma, seja um reflexo das nossas sociedades que se tem mostrado mais polarizadas, viventes de um período pós-verdade, ou será antes, embate de “uma” verdade contra a “outra” verdade (a verdade de cada um, vulgarmente declarado e citado por aqueles que pouco acreditam na mesma). Essa “violência” surge agora na forma de outra revista, a “Sight and Sound” da BFI, e a sua célebre eleição de “Melhor Filme de Sempre”. Título ambicioso, embora nele haja um certo simbolismo quanto à mesma. O processo é um inquérito feito através de uma seleção de críticos internacionais, cada um deles escolhendo dez títulos para que depois disso a magia seja feita. Desde o início desta atividade já esteve no topo, “Ladri di Biciclette" de Vittorio Di Sica, “Citizen Kane” de Orson Welles e por último “Vertigo” de Alfred Hitchcock. Um neorrealista italiano e dois pertencentes à Hollywood clássica tiveram em mãos a faixa de “Melhor Filme de Sempre”, um trio que dá lugar a um quarteto, porque aí entrou uma nova triunfante: “Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles” de Chantal Akerman

E num estalar de dedos, as reações fizeram-se sentir, de um lado quem celebrou a representatividade, “mulher feminista e queer”, promovendo causas e ativismos acima da arte (pois bem, mesmo sendo ambas, Chantal Akerman nunca pretenderia ser reconhecida desta maneira). Enquanto, do outro lado da barricada, como cães de Pavlov, rugindo e rasurando, acusando com a pretensão de “wokismo” e ideologias, sem perceber que até as suas vozes operam em regimento de uma. Um cenário polarizado, um cenário divisório, longe daquilo que poder-se-ia celebrar, o Cinema. Não se deve queimar Welles, Hitchcock nem Di Sica por não corresponderem a um mundo idealizado, ou simplesmente representarem um outro, cada vez mais distanciado (contraditoriamente, Orson Welles mantêm-se mais moderno que muito do cinema hoje produzido, e “Vertigo” num dos mais influentes de sempre), nem a oposição, o de “fechar portas” a "newcomers". 

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Citizen Kane (Orson Welles, 1941)

Jeanne Dielman”, datado de 1975, representa um outro nome de Cinema, não o de “ser realizado por uma mulher”, antes disso, um anti-enredos aristotélicos, um anti-academista, um anti-Hollywood, um anti-agenda, um “esculpindo o tempo”, com um quotidiano capturado não ao serviço de uma ficção novelesca (“Queriam o quê? Novela”, entra, mentalmente, em cena João César Monteiro!), mas ao experimento do Cinema como expressão visual. Chantal Akerman tornaria, e hoje mantêm-se, num dos nomes charneiro do “slow-cinema” (termo que considero abjeto porque nele “nasceram” muitas nulidades artísticas, convenhamos sublinhar). Hoje é impossível não encontrar os seus “rebentos”, os seus “filhos” e “filhas”, o seu Cinema, o que resta dele, encontra-se atualmente ao virar de cada esquina e citando Herman José, “essa prostituta de esquina que se dá pelo nome de Vida”, ninguém tenha tido a mesma capacidade de a emoldurar cinematograficamente como Akerman a fez nas suas mais diversificadas estâncias e em “Jeanne Dielman”, o quotidiano é uma “bitch”.

Mas porquê “Jeanne Dielman” agora? Fácil de responder, um conflito geracional e com cada vez mais novos críticos no poll, de diferentes regiões geográficas, no qual reflete as divergências quanto ao cinema influente de cada nacionalidade. Certamente, e possivelmente, daqui a diante os filmes serão mais recentes (em 2012, um filme de ‘41 foi destroçado por um de ‘58, e dez depois, surge-nos uma obra com mais 16 anos de diferença, um espaço até menor entre “Citizen Kane” e “Vertigo”), mais extraviados do cânone anglo-saxonico (e atenção, Chantal Akerman é, acima de tudo, canónica). Haverá mais uma abertura para o cinema fora dos grandes polos. Quanto à falência à crítica apontada como razão desta escolha … realmente, a crítica de cinema encontra-se numas piores fases da sua existência, e poderíamos prolongar, mas continuo a mencionar que Roger Ebert tem muita culpa no cartório pelo binarismo, banalização e espetacularização. São outros tópicos.

Portanto, num momento em que a valorização ao storytelling (um sintoma do sistema algorítmico das novas "majors", as plataformas de streaming) tem sido imposto a milhões, “Jeanne Dielman” chega-nos com o título de “Melhor Filme de Sempre” para mandar uma mensagem ao Mundo, “o Cinema não serve só para historietas, também pode inquietar”. O resto, essas reações, são apenas ideologia (pró e anti, radicalismos que afastam a Sétima Arte da sua interminável demanda).