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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O amanhecer violento

Hugo Gomes, 06.07.22

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Sharunas Bartas impressiona-me pela construção de verdadeiros "presépios", neste caso - em “In the Dusk” (“Na Penumbra”) - o nosso jovem protagonista (o poeta Marius Povilas Elijas Martynenko), o guia para esta jornada que o lituano irá nos centrar em mais de duas horas, “penetra” na casa de um dos vizinhos, cujas marcas de violência alimentaram a sua curiosidade. Nela, é possível verificar um corpo caído, lamentado por uma anciã em pranto (supomos, e muito bem, ser a sua decadente progenitora), uma criança e uma mulher em farrapos, violentada, que segundo consta por três “conhecidos”. O seu marido tornou-se num dano colateral de uma possível traição. Contudo, é a entrada deste “estranho” vizinho perante aquele cenário de devastação, rústico iluminado por um luz fria que entra sem aviso para envolver a "casualidade''. Bartas filma os interiores como ninguém, atribuindo-lhe uma igual aura de martirologia e de bênção, um engodo para o que aí vem. Não é por menos que as obras mais célebres do realizador decorrem maioritariamente no interior de habitações (“Three Days”, “The House”), fazendo delas verdadeiras cápsulas do tempo. Em relação a “Na Penumbra”, o tempo pós-violência decorre a velocidade cruzeiro, dando tempo ao protagonista inspecionar e em conjunto com o espectador perceber que “furacão” aí passou.  

Porém, “Na Penumbra" revela-se mais do que um jogo de interiores, é uma contemplação não ao panorama em vista, nem sequer num gole de tempo e como operá-lo, mas um atentar aquilo que as personagens dizem, uma às outras, Bartas convida-nos a sentar e a escutá-las. Depois do elogiado Frost (filme que atualmente se apresenta a nós numa pertinência a merecer uma revisita), acentua esse modo de subsistência em cenários de guerra. A verdade é que estamos em 1948, Lituânia perdeu-se nos tentáculos da União Soviética, as tropas de resistência refugiam nos gélidos bosques a fim de se organizarem militarmente, enquanto as forças estalinistas “visitam capelinhas atrás de capelinhas” com intuito de recolher o dízimo ou punir os “traidores da Pátria”. Em cenários como este, o reforço bélico ostenta como mote, ou espectacularidade cinematográfica, “Na Penumbra", por sua vez, solicita o seu devido tempo para que as personagens confessem os seus medos, angústias, anseios ou nos “vendem” o “seu peixe propagandístico", a verdadeira ação acontece no que é dito e não somente no que é gesticulado, abrutalhado ou revelado, mesmo que o conflito chega-nos gráfico para nos encher como anti-clímax à sua contemplatividade. 

Sharunas Bartas compôs o seu conto de guerra, marcando uma coincidente atualidade aos nossos temas de café, porém, o faz num pessimismo, num desprezo para com as suas personagens, talvez por saber em antemão, o nefasto destino que as reserva. Esse desapego é de uma aparente crueldade … mas é assim mesmo, em tempos de guerra não se limpam armas.

Falando com Sharunas Bartas: "A Guerra reflete o pior da raça humana"

Hugo Gomes, 03.03.18

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Frost (Sharunas Bartas, 2017)

Poderia ser uma descida ao Inferno em jeito de Dante, mas não. Frost” (“Geada”), o novo filme do lituano Sharunas Bartas, é o encontro com uma Ucrânia pós-Maidan, a revolução de 2014 que indiciava um novo capítulo na História desse país, mas cujas promessas não chegaram a se cumprir. Aqui, somos confrontados com um cenário devastado em que o medo impera e a hipocrisia dos protegidos mistura-se com um ativismo sem resolução, não faltando ainda militares forçados a combater na sua pátria na forma de uma resistência.

Estreado na última Quinzena de Realizadores, “Frost” chega por fim aos cinemas portugueses. Um filme frio, calculista e delicado que tenta incentivar o debate no espectador acima de tecer a sua própria ideologia. O Cinematograficamente Falando … falou com o realizador sobre alguns pontos fulcrais deste projeto.

Nos primeiros minutos do filme, o protagonista procura o termo “Maidan” na internet, o qual o levará a algumas imagens do homónimo documentário de Sergei Loznitsa. De certa maneira, “Frost” é uma (des)romantização da romantização atribuída à insurreição de Kiev?

Se estou certo, está a presumir que “Frost” desmistifica a revolta decorrida em Kiev? O dito romance nesse tipo de eventos só pode ser produto de imaginação. Não existe romantização ali.

Jornalismo não é mais uma vocação, tornou-se numa oportunidade”. Aqui temos um comentário sobre a própria condição do jornalismo de Guerra assim como do chamado jornalismo participativo, onde cada um pode criar a sua própria informação. A revolução de Kiev conduziu a essa “fabricação informativa”? E como esta citação exemplifica a gradual transformação do protagonista?

O jornalismo que opera nesses chamados “lugares críticos” é, obviamente, diferente. Uns resistem e arriscam as suas vidas para nos mostrar a realidade para o resto do Mundo, outros convertem-se em “vendedores desse material”, de uma maneira algo cínica. O protagonista nada sabe daquilo que presencia num país que não é o seu, a Ucrânia. Por isso, ele terá que escolher no que quer acreditar.

Se o protagonista tende a apresentar tendências jornalísticas ao longo da narrativa, é verdade que esta jornada intrínseca entra em paralelismo com o seu trabalho enquanto realizador. Será “Frost” a sua peça ficcional de jornalismo?

Não. Não consigo encontrar um paralelo aqui. Julgo que não seria correto definir “Frost” como uma peça ficcional de jornalismo. É somente uma jornada à Ucrânia devastada.

Nos seus filmes, é claro a existência de uma delicadeza estética. Em “Frost” é sugerido um abandono dessa mesma “delicadeza” em prol de um comentário sociopolítico. Tem receio que por momentos o seu filme seja propício a causas propagandistas?

Não acredito que este filme possa servir para tais causas, até porque em “Frost” nunca faço uma declaração direta. Nunca me posiciono em nenhum lado concreto.

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Sharunas Bartas 

Curiosamente, "Frost" é um dos poucos filmes que vimos recentemente em que não existe uma “demonização” cega  do papel do militar. Contudo, as questões de patriotismo encontram-se inseridas nos seus discursos.

A Guerra é em todos os cenários um demónio, no qual se reflete o pior da raça humana. Conquistamos, destruímos e detemos (à força) melhores territórios, etc. Infelizmente, quando olhamos para a História deparamos com uma guerra prolongada. Nós compreendemos esses “demónios” e tentamos eliminá-los. O que não sei é até quando isso acontecerá definitivamente.

Como decorreu o casting?

Como sempre, dispensamos muito tempo a procurar atores e não-atores, que queiram trabalhar nas ditas condições. Muitos que integram o filme são “não profissionais”. Nós fazemos sempre o casting “on the road” (durante a jornada), até porque atuar é no geral expressar sentimentos ou emoções para outra pessoa, para outras sociedades. Não é nada de sobrenatural para todos nós.

Quanto ao envolvimento de Vanessa Paradis no projeto?

Vanessa é para além de uma excelente pessoa, uma ótima atriz, que foi capaz de improvisar e sentir as diferentes situações que ela experienciou anteriormente, e ao mesmo tempo ser capaz de se envolver neste processo de atuação com tamanha devoção. Ela foi o coração deste projeto.

Esta jornada por uma Ucrânia dividida e constantemente ameaçada enriqueceu-lhe como pessoa da mesma forma como realizador? Como vê esse atual cenário e como o Cinema poderá ser uma ferramenta na revelação das mesmas?

É certo que existe uma  guerra não declarada a acontecer na Ucrânia. A situação é crítica e, obviamente, tal experiência enriqueceu-me. Cada dia, cada mês, isso incutia algo no meu coração. O Cinema é diverso, como sabemos. Existem filmes analíticos, documentários, alguns que levantam problemas, outros questões do panorama social e depois os que procuram respostas. Nos meus filmes, o que tento fazer é desvendar experiências na vida de alguém. Somente isso.

Quanto a novos projetos?

Sinceramente, eu nunca falo de projetos em estado tão precoce. Peço desculpas.

"Frost": uma fria viagem pela fronteira do conflito

Hugo Gomes, 27.02.18

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Para poder dialogar com este “Frost”, a mais recente longa-metragem do lituano Sharunas Bartas, necessitamos revisitar um outro filme, “Maidan”, de Sergei Loznitsa. Ao contrário de Bartas, o bielorrusso é, como evidente na sua filmografia, um provocador ideológico que se concentrou na multidão do Kiev, em fevereiro de 2014, a fim de traçar uma catarse romântica ao movimento insurgente que ali despoletou. É óbvio que mesmo sendo a nós apresentado imagens captadas dos eventos e tumultos que sucederam, essa fascinação pela força em massa a relembrar os hinos cinematográficos de Sergei Eisenstein possuía um carácter algo tendencioso quanto à natureza deparada neste cenário.

Frost” parte inicialmente dessas imagens, dessa “romantização” para responder, não no sentido concreto, mas subversivo, ao que acontecera à Ucrânia pós-Kiev, como ela sobrevive ou resiste à sua devastadora divisão e à ilusão do sonho de massas. Sharunas Bartas utiliza tal visão profética para induzir-se como uma espécie de macguffin, não um objeto, mas um destino que levará o seu par de protagonistas “on the road”. Pelo caminho, o filme vai adquirindo um certo gosto pelo cinema de contemplação, onde os cenários ecoam como silenciosos testemunhos do que se avizinhara e Bartas é meticuloso, paciente e submisso a tais jornadas na vastidão. A ficção, a distância encontrada num casal que espera-se ressurgir com a força de outrora, funciona como uma metaforização da dita fragmentação ucraniana, porém, este coming-to-age “terapêutico” vai sendo destituído para segundo plano da mesma forma que o filme vai atingido um outro patamar, o da reportagem.

Se é certo que Bartas não anseia criar um documentário puro ou a invocação do chamado cinema verité que Loznitsa havia manifestado no seu olhar à praça, “Frost” abandona a sua caloricidade ficcional para embarcar num gélido registo de jornalismo participativo. Mas primeiro, existe o estágio, um prolongado workshop retalhado em diálogos ocasionais e frases soltas. Os nossos protagonistas reúnem-se com jornalistas e personagens de carácter aburguesado a meio do seu caminho, de forma a recolher as ferramentas necessárias para a investigação. “Primeiro vemos o lado Ucrânia”, refere um desses “instrutores”, farpas lançada a muito da perspetiva ocidental que descortina maniqueísmos nas manifestações Maidan e pós, como posição fundamentalista e radical ao lado russo (com a disputa da Crimeia à cabeça).

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Podemos até garantir que no cinema, não existe tal coisa que é a ambiguidade política pura, mas Bartas frisa a curiosidade como veículo a tal, o espectador será a projeção moralista e político-ideológica do resto da estrada. E é então que “Frost” enviesa o seu lado jornalístico e abandona por completo as personagens à sua sorte, e novamente citando os seus anteriores “instrutores” – “Jornalismo não é mais uma vocação, tornou-se numa oportunidade” – o lituano oportunista tende em iniciar a sua própria inquirição, a informação de um jornalismo democrático dos tempos que decorrem. Assim, o filme emancipa-se do comité road trip para envergar a linguagem da reportagem, abordando através do material alcançado, questões como o patriotismo e a militarização (neste último ponto fugindo da inevitável demonização).

E ao assumir-se como um cinema-reportagem, uma docuficção sem discursos evidentes de género, Sharunas Bartas condena a sua narrativa e deixa em suspenso a imunidade das suas personagens-criação. Um dos casos em que o lado documental engloba por completo qualquer ambição ficcional, trazendo à tona nos últimos minutos a delicada estética pelo qual o realizador nos deliciou em filmes como o tarkovskianoTry Dienos” ou “Few of Us”, encerrando num belíssimo plano-zénite, onde a geada acaba por cobrir os olhares curiosos oriundos do outro lado – nós enquanto espectadores.

De certa forma, “Frost” enchem-nos com essas duas realidades, aludindo ao discurso da francesa Vanessa Paradis, a única estrela embutida no projeto, onde o amor e a tristeza integram o mesmo universo. Nesse sentido, é de esperar que o Cinema como motor de historietas e o jornalismo na busca da sua própria verdade, coexistem num mesmo e pleno seio.

Dicotomia do amor/ódio em tempos de guerra

Hugo Gomes, 22.02.18

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Para todos aqueles que me apelidam de "rezingão do Cinema", aviso já que este ano tem-se mostrado vital para a minha "fé". Sharunas Bartas e o seu Frost enchem-me com um amor tão triste, e uma tristeza tão amorosa em relação ao conflito pós-Maidan. Crítica e ambiguidade politica, assim como a quebradiça condição do jornalista em tempos de Guerra (e porque não, aos tempos do jornalismo participativo que se vive), são alguns dos calafrios que trespassam a nossa "espinha".

Agora fica a questão: onde anda Vanessa Paradis e o seu capucho?