Um barco chamado desejo
Neste quarteto amoroso - três irmãos enfeitiçados por uma “ninfeta de rio” - o rio Amazonas, essa grande porção de água que serve de fronteira “imaginária” a diferentes nações, é matéria de Tragédia Grega, como o próprio realizador [Sérgio Machado] afirma nas suas notas de intenção, mas, apropriando-se ao local, à cultura e, ao cliché da importação, bem poderia ser a raiz de uma telenovela brasileira (sem negativa conotação aqui).
Inspirado num pequeno romance de Milton Hatoum, um dos mais aplaudidos dos escritores brasileiros contemporâneos, “O Rio do Desejo” é um retorno “refrescante” ao romantismo que o cinema brasileiro é capaz de emanar, pausando assim nos movimentos revoltados ou temas sociais estampados que “conquistaram” festivais de todo o Mundo. Não com isso negando o lado politizado na obra de Machado (visto o seu círculo criativo não ser desprovido disso, Walter Salles e Karim Ainouz consolidam a circunferência), até porque, segundo o escritor norte-americano Philip Roth, “tudo é político, até o ato de lavar os dentes é um gesto político", seguindo essa lógica, evidenciamos "statement" nas descidas e subidas pelo rio, para além da miragem ao natural e a espontaneidade da mesma, da imprevisível “dança” dos pássaros até ao magnetismo que a selva (sublinhamos a fotografia de Adrian Teijido), dominante nas suas margens, apela.
O cinema encontrado em Machado é um cinema de vislumbre que traz, subtilmente, uma mensagem de preservação, não somente ecológica, como também multicultural, e o faz, não com discursos diretos, mas pelas imagens captadas, pela jornada que o filme revela e como um rio, contorna, sem nunca seguir em direção à pretendida aventura. Poderia ser um novo “Fitzcarraldo” de Werner Herzog (o barco fluvial invoca essa espiritualidade das dimensões humanas em contraste com a imponente Natureza), essa influência como sinal divino, ou poderia seguir pelo cinema narcotráfico ou tropico-criminal, mas a “coisa” é companheira da vida, tudo é uma passagem, uma história que fica é que é posteriormente recontada como experiência de café.
Em “O Rio do Desejo”, o coração é mantido em sigilo de tragédia, o espectador o sente desde a sua primeira “faísca”, quando o “conto de fadas” arranca com uma falsa-cápsula de felicidade. Sérgio Machado encara o seu público como experiente, a ingenuidade não mora aqui, e muito menos neste Brasil húmido e febril, as juras de “finais felizes” ou neste caso de “noites de foda adentro” são meras ilusões que antecipam a morbidez. É também um filme de atores, esses, que pelos intervalados espaços tentam imprimir a sua carga psicológica, a sua fantasia, o seu desejo ardente e por vezes mutilador. Rômulo Braga, homem de capa viril e de interiores despedaçados, não acredita na morte (nem ele, nem Elon), a “cabeça” deste elenco condenado ao efêmero sonho, e no centro do eventual quadrado circunscrito, Sophie Charlotte, a sereia ribeirinha, o boto da luxúria revelada na mais infeliz das mulheres, devido à sua constante dúvida no seu querer. Mas é por ela, que mais compaixão tecemos, até porque a certeza é inimiga da nossa existência. Nascemos a questionar, até mesmo os nossos sentimentos.
Somos apenas fiéis ao rio, à sua corrente, assim como o Cinema que "flutua" nas suas águas que se dá pelo nome de narrativa, formal ou informal. Seja Jean Renoir, seja Apichatpong Weerasethakul ou até Pedro Costa, o rio é mais que paisagem é o estado líquido das suas personagens, das suas relações, das suas emoções, que pouco perduram, ao contrário dessa representação. Sergio Machado providenciou a sua ida, a aventura acontece nas margens.