Só espero que os russos amem os seus filhos (e os seus filmes) ...
Russian Ark (Aleksandr Sokurov, 2002)
O que está a acontecer perante os nossos olhos é horrível, mas peço-vos que não cedam à loucura. Não devemos julgar as pessoas pelos seus passaportes. Devemos, sim, julgá-las pelos seus actos”. Sergei Loznitsa falou e pelos vistos ninguém quis ouvir o cineasta bielorrusso (tendo em conta o processo em marcha de “higienização russa” no estado das artes, nomeadamente no espectro cinematográfico).
Numa guerra, é “normal” seguir-se por uma via de oposição contra o “outro” fora da somente matéria bélica, dando o exemplo da Segunda Guerra Mundial, a propaganda vindo dos americano que “pintavam” o nipónico, esse inimigo que partilhavam o Oceano Pacífico, como a “criatura nefasta" possuidora de todos os males da Humanidade. Era visível essa caricatura nos seus medias e nas vinhetas cinematográficas que mais tarde transpuseram para a narrativa cinematográfica em geral. Mesmo após a rendição dos japoneses, a "japanofobia" mantinha-se em solo americano anos após anos, e quanto à representação audiovisual, a prejudicial caricatura convertia-se numa outra ainda mais vincada. Perdendo a sua aura ameaçadora, o que restava era a ridicularização.
A "russofobia", por outro lado, não se resume em somente caricaturar um povo (o cinema norte-americano encarregou-se disso nestes anos todos), mas sim inibi-lo da sua existência cultural. Tendo em conta as imagens divulgadas pelos órgãos de comunicação, aquele povo não estão totalmente alinhado com as ideias e agressões “putinescas”, o qual é lhes depositado esperança de cessam do conflito, mas enquanto isso segue-se a todo o gás, um "boicote" a toda uma produção cultural daí gerada. Cortes abruptos aos filmes russos em festivais e prémios, uma sanção cúmplice a outras sanções financeiras que tem como âmbito “parar” essa Rússia não consensual, medidas que são só possíveis perante os avanços da globalização. Mas quais são as implicações desses atos? Loznitsa falou exatamente disso na sua declaração; o sufoco de “vozes” interiores e críticas das políticas de Putin, e ainda mais, dos dissidentes como é o caso de Kirill Serebrennikov (“Leto”, "Petrov's Flu”), e uma possível mitigação de um cinema politizado e possível dentro de um sistema financeiro que concentrava uma atitude anti-estereótipos (Putin não é a Rússia, Russia não é Putin).
Ivan The Terrible (Sergei Eisenstein, 1944)
O que será deles? Manteremos o combate à Rússia colocando em cheque a sua própria cultura? A verdade é que esta manifestação já está a evidenciar algumas medidas e precauções; um curso académico italiano sobre Dostoievski cancelado, num ciclo em homenagem ao escritor de ficção de científica Stanislaw Lem [polaco] na Filmoteca de Sevilha testemunhou a substituição do programado “Solaris” de Andrei Tarkovsky pela versão de Steven Soderbergh, a pressão no meio académico para suprimir qualquer referência cultura russa (literatura, cinema, música) das diferentes cadeiras (“O que será da História de Cinema sem Vertov?”) e, talvez insignificante mas igualmente preocupante, o silencioso desaparecimento de filmes russos do muito consultado Top 250 do site IMDB. Sabendo que esta Guerra, que poderá culminar numa Mundial ou quem sabe numa Nuclear, é um ataque aos Direitos Humanos, disso não há dúvida nem contestação (trata-se de um país invadido por um país invasor), mas entristece-me que este movimento de asfixia e de preconceito em tempos onde o politicamente correto e o cancelamento cultural são realidades (não confundir este fenómenos com estas duas manifestações) poderá ter consequências futuras no legado cinematográfico. Sejam na produção das obras do amanhã, seja nas relações das próximas gerações com o património russo.
O que será de nós sem Eisenstein e outros soviéticos que tanto nos ensinaram o poder da montagem? O que será de nós sem o tempo esculpido de Tarkovski? O que será de nós sem as teias de poder examinadas por Sokurov na sua tida quadrilogia? O que será de nós sem o mais poderoso retrato anti-guerra que o cinema alguma vez filmou? Sim, falo de Elem Klimov e o seu “ Come and See” (1985). O que será de nós? Aliás, antes de responder a todas estas questões, estaremos insensíveis só pelo facto de estarmos a pensar nelas?
“I don't subscribe to this point of view
Believe me when I say to you
I hope the Russians love their children too
We share the same biology, regardless of ideology
But what might save us, me and you
Is if the Russians love their children too”
Sting - Russians