Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Só espero que os russos amem os seus filhos (e os seus filmes) ...

Hugo Gomes, 04.03.22

1_e9qjHqvozKDC_8tJBuHsQg.jpeg

Russian Ark (Aleksandr Sokurov, 2002)

O que está a acontecer perante os nossos olhos é horrível, mas peço-vos que não cedam à loucura. Não devemos julgar as pessoas pelos seus passaportes. Devemos, sim, julgá-las pelos seus actos”. Sergei Loznitsa falou e pelos vistos ninguém quis ouvir o cineasta bielorrusso (tendo em conta o processo em marcha de “higienização russa” no estado das artes, nomeadamente no espectro cinematográfico). 

Numa guerra, é “normal” seguir-se por uma via de oposição contra o “outro” fora da somente matéria bélica, dando o exemplo da Segunda Guerra Mundial, a propaganda vindo dos americano que “pintavam” o nipónico, esse inimigo que partilhavam o Oceano Pacífico, como a “criatura nefasta" possuidora de todos os males da Humanidade. Era visível essa caricatura nos seus medias e nas vinhetas cinematográficas que mais tarde transpuseram para a narrativa cinematográfica em geral. Mesmo após a rendição dos japoneses, a "japanofobia" mantinha-se em solo americano anos após anos, e quanto à representação audiovisual, a prejudicial caricatura convertia-se numa outra ainda mais vincada. Perdendo a sua aura ameaçadora, o que restava era a ridicularização. 

A "russofobia", por outro lado, não se resume em somente caricaturar um povo (o cinema norte-americano encarregou-se disso nestes anos todos), mas sim inibi-lo da sua existência cultural. Tendo em conta as imagens divulgadas pelos órgãos de comunicação, aquele povo não estão totalmente alinhado com as ideias e agressões “putinescas”, o qual é lhes depositado esperança de cessam do conflito, mas enquanto isso segue-se a todo o gás, um "boicote" a toda uma produção cultural daí gerada. Cortes abruptos aos filmes russos em festivais e prémios, uma sanção cúmplice a outras sanções financeiras que tem como âmbito “parar” essa Rússia não consensual, medidas que são só possíveis perante os avanços da globalização. Mas quais são as implicações desses atos? Loznitsa falou exatamente disso na sua declaração; o sufoco de “vozes” interiores e críticas das políticas de Putin, e ainda mais, dos dissidentes como é o caso de Kirill Serebrennikov (“Leto”, "Petrov's Flu”), e uma possível mitigação de um cinema politizado e possível dentro de um sistema financeiro que concentrava uma atitude anti-estereótipos (Putin não é a Rússia, Russia não é Putin). 

image.jpg

Ivan The Terrible (Sergei Eisenstein, 1944)

O que será deles? Manteremos o combate à Rússia colocando em cheque a sua própria cultura? A verdade é que esta manifestação já está a evidenciar algumas medidas e precauções; um curso académico italiano sobre Dostoievski cancelado, num ciclo em homenagem ao escritor de ficção de científica Stanislaw Lem [polaco] na Filmoteca de Sevilha testemunhou a substituição do programado “Solaris” de Andrei Tarkovsky pela versão de Steven Soderbergh, a pressão no meio académico para suprimir qualquer referência cultura russa (literatura, cinema, música) das diferentes cadeiras (“O que será da História de Cinema sem Vertov?”) e, talvez insignificante mas igualmente preocupante, o silencioso desaparecimento de filmes russos do muito consultado Top 250 do site IMDB. Sabendo que esta Guerra, que poderá culminar numa Mundial ou quem sabe numa Nuclear, é um ataque aos Direitos Humanos, disso não há dúvida nem contestação (trata-se de um país invadido por um país invasor), mas entristece-me que este movimento de asfixia e de preconceito em tempos onde o politicamente correto e o cancelamento cultural são realidades (não confundir este fenómenos com estas duas manifestações) poderá ter consequências futuras no legado cinematográfico. Sejam na produção das obras do amanhã, seja nas relações das próximas gerações com o património russo. 

O que será de nós sem Eisenstein e outros soviéticos que tanto nos ensinaram o poder da montagem? O que será de nós sem o tempo esculpido de Tarkovski? O que será de nós sem as teias de poder examinadas por Sokurov na sua tida quadrilogia? O que será de nós sem o mais poderoso retrato anti-guerra que o cinema alguma vez filmou? Sim, falo de Elem Klimov e o seu “ Come and See” (1985). O que será de nós? Aliás, antes de responder a todas estas questões, estaremos insensíveis só pelo facto de estarmos a pensar nelas? 

 

“I don't subscribe to this point of view

Believe me when I say to you

I hope the Russians love their children too

We share the same biology, regardless of ideology

But what might save us, me and you

Is if the Russians love their children too”

Sting - Russians 

 

Hoje regressei à Praça de Kiev ...

Hugo Gomes, 24.02.22

imagem_imagem_maidan_5_ok.jpg

image-w1280.jpg

Maidan-protestos-na-Ucrânia.jpg

0181797.jpg

A importância de ver filmes em sala é fundamental! Recordo, 2014, Culturgest, em pleno Doclisboa, "vivi" a revolta civil da praça de Kiev através da câmara wisemaniana de Sergei Loznitsa. Não estive lá e ao mesmo tempo estive. Talvez seja "culpa" da minha atração pelo coletivo, esse imaginário trazido pelo cinema revolucionário e propagandista soviético que desde cedo converteu-se no meu signo cinematográfico, que possibilitou as vibrações resultantes daquela massa humana, ou o timbre de "arrepiar a espinha" com que cantavam, em uníssono, o hino ucraniano. Aquela praça nunca mais foi a mesma. O filme, agora revisto, em pequeno ecrã através da Filmin Portugal, não recuperou essa revivência, essa sintonização com aquelas imagens, com aqueles sons, com qual música de rua, popular e com lugar cativo naquela imensidão. Sim, revi porque a atualidade me colocou aquelas imagens novamente na minha mente. Precisava de captar essas sensações, essa experiência, mas não importa, as imagens estão lá, mas 2014 já passou. Vivemos agora 2022 ... com as incertezas que isso traz.
 
Enquanto isso, repesquei também o meu antigo texto sobre "Maidan" de Loznitsa, escrito após a sua estreia festivaleira em Portugal.

"Maidan": julgados em praça pública

Hugo Gomes, 24.10.14

Maidan-protestos-na-Ucrânia.jpg

O bielorrusso Sergei Loznitsa regressa ao cinema documental após um hiato que consistiu no trabalho de duas longas-metragens de ficção (“My Joy”, “In the Fog”). O seu retorno dá-se com o mediatismo dos tumultos da Praça de Kiev (Maidan como é chamada), que decorreram entre dezembro de 2013 a fevereiro de 2014, conduzindo ao exílio do Presidente da Ucrânia, Yanukovych. Este é um documento visual, recontado por uma câmara estática e isento de qualquer discurso político, mesmo que o cineasta demonstra em demasia um certo afecto pela causa popular sem questionar as ambiguidades das suas exigências. O que assistimos em cerca de 130 minutos de filme é um portento de imagens expressivas que evidenciam as diferentes fases de uma manifestação, começando por um comício digno de uma "Festa do Avante", até desesperada, e de certa forma triunfante, revolta popular.

Um conflito que é marcado pela densidade emocional que Loznitsa tece na sua edição e selecção de imagens, onde os discursos dos ativistas conduzem o espectador a uma consolidação com os manifestantes de Kiev e a música evocada por estes, convertem-se automaticamente em elipses arrepiantes (o hino da Ucrânia revelou-se simbiótico com o papel cinematográfico de Maidan). Contudo, este é um filme observacional e experiencial (há quem lhe traça um vertente wisemaniana) o qual não se espera um teor crítico nem investigação ao tema, apenas uma recolha de uma câmara infiltrada que testemunha e que aufere às audiências um lugar de primeira fila no centro dos fortes ventos de mudança e a abertura de um novo capítulo, ainda longe do desfecho, da História da Ucrânia.

De certa forma, Sergei Loznitsa aludiu na praça de Kiev o cinema soviético de Eisenstein, onde o colectivo como uma personagem destemida, mártir dotado de sacrifícios para um bem comum (evitando a transformação epifânica do cinema de Pudovkin, visto falarmos em mestres soviéticos). Apesar de não existir grandes reflexões sociais neste retrato vivo, não é difícil ficar impressionado com a força destas imagens.