Battleship Potemkin (Sergei M. Eisenstein, 1925)
Odessa, 1905, uma multidão festeja o “heroíco” tumulto num dos couraçados a poucos metros da costa do Mar Negro. Pairam brisas de novos tempos, novas ideias, novas revoluções que possam por fim colocar homens e mulheres lado a lado, de maneira equivalente. No entanto, ouve-se um disparo (o silêncio encarrega-se de aludir ao som do fuzil), a guarda ao serviço do Czar rompe furiosamente e mecanicamente pela multidão, que pela escadaria abaixo foge dos iminentes castigos de insurreição. Homens fardados que se alinham, degrau a degrau, disparando sobre homens, mulheres e crianças. E sob o cenário de horror, a tripulação do couraçado triunfante decide recorrer aos pedidos de ajuda dos habitantes de Odessa. O barco de guerra lança a sua fúria sobre terra, com objetiva mirada ao majestoso teatro da cidade, o quartel-general das forças czaristas. Neste momento, uma sucessão de imagens ocorre, um leão de pedra adormecido, repentinamente acorda e demonstra o seu temor pela derrota.
Soviéticos ao poder!
Ato célebre e eternizado da obra-prima de Sergei M. Eisenstein (1898 - 1948) - “O Couraçado Potemkin" ("Battleship Potemkin", 1925) - a apropriação de um evento real que encontrou no cinema a sua transposição. Difícil mesmo é o de separar a História desta parte de história cinematográfica. “Aquilo que passou pelo cinema e foi por ele marcado, já não pode entrar noutro sítio”, afirmação de Jean-Luc Godard na sua série “Histoire(s) du Cinéma”, 60 anos depois da primeira projeção oficial do filme de Eisenstein. Ainda hoje, a escadaria de Odessa, imortalizada na obra e que nenhuma relação teve com o verídico motim, é curiosidade turística aos estrangeiros-passageiros, provando que Lenin tinha razão em apostar na “mais jovem das artes” para servir de porta-voz à sua implantada ideologia. E a cena descrita anteriormente é uma prova desse estandarte visual que o cinema assumiu, a transcrição e tradução da História, atribuindo-lhe uma conotação desejada e para essa “maquineta” operar, uma engenharia teve que ser aprimorada e aperfeiçoada.
Eisenstein, fervoroso estudioso da montagem, da sua causa e efeito e das possibilidades da mesma, revelou-se num dos importantes peões para a luta do bolchevismo cinematográfico, à escola soviética que se avançava nas (re)invenções narrativas e nas interações destas para com o espectador. Os seus filmes perduram, “O Couraçado Potemkine” é tido como o apogeu do cinema soviético, a experiência feliz (dentro de muitos dos seus fracassos e filmes incompletos) tido pelo cineasta (chamaremos assim para o definir do restante). Mas não fora o único pedestre dessa instituição, do outro lado, também endereçado à Causa, está Vsevolod Pudovkin (1893 – 1953), “camarada” que nos apresentou outras ferramentas doutrinais envolvidas em grandes narrativas e epopeias humanas. Entre os seus inúmeros trabalhos, conta-se a sua intitulada “trilogia bolchevique” – “A Mãe” ("Mother", 1926), “O Fim de São Petersburgo” ("The End of St. Petersburg", 1927), “Tempestade sobre a Ásia” ("Storm Over Asia", 1928) - que permanecem como exemplos reconhecíveis de um movimento cinematográfico por excelência.
Mother (Vsevolod Pudovkin, 1926)
Kuleshov no centro da ação
Para ambos, as imagens fílmicas encarreguem-se de ser palavras, e a combinação destas [por via da montagem], assumem como frases de uma língua à parte, denominada de cinema. Eisenstein e Pudovkin demonstraram destreza em exercitar e empregar o “Efeito Kuleshov”, quer nas suas obras publicadas, quer nas suas obras realizadas e montadas. Elaborado pelo cineasta e um dos fundadores da primeira escola de cinema do Mundo, Lev Kuleshov, o efeito consistia em demonstrar o poder e as possibilidades da montagem no que refere a dar um significado no usos da justaposição, ou seja, uma imagem sozinha não possuía mais do que a sua denotação, e em sequência com outra assumiria assim uma outra leitura (possivelmente dependente da percepção e cognoscibilidade do espectador).
No famoso exercício, foi juntado, por exemplo, um plano de um homem inexpressivo [o ator Ivan Mosjoukine] e de seguida a imagem de um prato de sopa, que por sua vez atribuíam a ideia de fome à tal “personagem”. Coloca-se novamente a imagem do homem, e uma criança dentro de um caixão como par, o significado torna-se outro, o de pesar ou tristeza. Por último, e deixando intacto o sujeito, é a vez de uma mulher preencher a ligação, e nesse sentido tudo altera, não é de fome nem de lamento, mas de desejo. Curiosamente os alunos, perante este exercício, teceram elogios à performance do ator.
Eisenstein e Pudovkin partiram com o exercício em grande escala, tentando com isso socorrer as imagens aos seus pretendidos propósitos, um “enchimento” ao subconsciente do espectador. Se o primeiro acrescenta às imagens de motim com o abate de gado em “A Greve” ("Strike", 1925), já o segundo emana a revolução com paralelismo de imagens primaveris no clímax de “A Mãe”. Eisenstein exaltou a violência na violência do seu filme, e colocando em subtexto o gado no matadouro com a relação das forças czaristas para com os manifestantes, enquanto que Pudovkin referiu ao sacrifício da classe operária e dos prisioneiros de regime como o início de uma Primavera que toma o lugar do longo Inverno, uma revolução à porta.
As diferenças que os unem
Agora, o que o diferenciou dos dois mestres encontra-se na tipologia dos velcros das suas idênticas ideias. Para o filósofo Gilles Deleuze (1925 - 1995), a escola soviética foi importante para a fundamentação da sua longa tese da imagem-movimento, pelo que em relação à instituição e aos dois autores em geral, referiu assim no seu “Cinema 1: A Imagem-Movimento”:
“Se é possível falar de uma escola soviética de montagem não é porque os seus autores se assemelham mas ao contrário, porque diferem na concepção dialética que lhes é comum, estando cada um deles em afinidade com tal ou tal lei que a sua inspiração recria.”
Eisenstein repescava e trabalhava eventos reais numa escala grandiosa, e como tal dirigia-se no coletivo. Na sua trilogia revolucionária - “A Greve”, "Couraçado Potemkine", “Outubro” (October, 1927) - não encontramos personagens, apenas arquétipos, figuras-simbólicas para o avanço dos eventos. Ausência de heróis a solo, só o povo, a comunhão, e a união são, sim, atos heróicos, contra a vilania das forças contrarrevolucionárias. No cinema de Pudovkin, por sua vez, a narrativa avança com uma personagem, que vai desenvolvendo ao longo da narrativa, a sua epifania está na entrega total das ideias comunistas, seja essa a via de reencontro entre a mãe e o seu filho em “A Mãe”, o camponês que se apercebe das forças capitalistas que corrompem a sua moral, em “O Fim de São Petersburgo", ou o mongol atraiçoado pelos brancos que segue no apelo de Moscovo, em “Tempestade sobre a Ásia". Por outras palavras, o cineasta esteve interessado na progressão da consciência.
October (Sergei M. Eisenstein, 1927)
Contudo, Eisenstein, mesmo assumindo a sua grandiloquência (o seu “cinema de atrações”), teoricamente pregava a força da primeira grande imagem. “Uma imagem que seja verdadeiramente um indício, que funcione como um indício” teria dito o realizador a Mikhail Romm, para a edição de abril de 1970 da Cahiers du Cinéma, no âmbito de como conduzir-se num projeto fílmico, e como apresentar a mensagem neste, optando por planos-pormenores que resultam em simbólicos atalhos às tramas dramáticas ou psicológicas dos filmes. Para Deleuze, Eisenstein teria pensado nas botas em “Tempestade sobre a Ásia” de Pudovkin, o momento em que um soldado inglês de botas engraxadas evita o lamaçal na direção dos areais onde irá executar o prisioneiro mongol, depois do fuzilamento, atravessaria de modo derrotado (“desonrado”) a lama havia evitado.
“E é esse o processo mais geral da obra de Pudovkin: seja qual for a grandeza do meio apresentado, São Petersburgo ou as planícies da Mongólia, seja qual for a grandiosidade da ação revolucionária a cumprir, vai-se sempre de uma cena em que os comportamentos revelam um aspecto da situação para outra cena, cada uma delas marcando um momento determinado da consciência e conectando-se com as demais para formar a progressão de uma consciência que se torna adequada ao conjunto da situação revelada.” Deleuze.
O segredo está na montagem e o que fazer com ela
Se Pudovkin inteirava-se numa equação de quantidade e de qualidade, Eisenstein, mesmo entendendo a sua dialética, posicionava-se na oposição. Julgava, e possivelmente com razão, que teria criado uma nova forma - “uma forma com transformação” - a criação de novas unidades nas suas imagens. Deleuze menciona a sua inserção de imagens indiretas, imagens essas que relação alguma tinham com a ação central, entre os exemplos está a famosa intercalação do gado abatido e os violentos protestos “contidos” pelas autoridades. Ao contrário, do gelo que quebra como sinal de uma Primavera a arrebitar, que bem poderia interagir, paralelamente, com o “abraço de morte” daquele reencontro entre mãe e filho no filme de Pudovkin [“A Mãe”], ambas as ações diluem numa só (por via da "montagem poética" que passarei a explicar), a figuração de Eisenstein nos seus filmes é plástica, ou como como Deleuze afirma, chegando mesmo a ser “teatral”, e assumem como apêndices metafóricos à ação, causa-efeito, dos seus filmes. Os leão acordados pela munição de Potemkin mencionado no primeiro parágrafo deste artigo expõe um dos expoentes máximos dessa "metaforização" imposta no cinema de Eisenstein.
O também teórico e crítico de cinema, Marcel Martin (1926 - 2016), enunciou no seu livro, “A Linguagem Cinematográfica” ["Le Langage Cinematographique"], os diferentes tipos de montagem, tendo os seus propósitos, as suas vontades e o registo significativo atribuído. O autor referiu ter sido crucialmente influenciado pelas obras publicadas dos dois referidos cineastas. Assim, ele indiciou a montagem ideológica (criadora de uma ideia), montagem metafórica (o qual podemos incluir as referidas cenas dos filmes de Eisenstein), a montagem poética (Pudovkin entra nessa definição), montagem alegórica, montagem intelectual (Eisenstein é novamente exemplificado), montagem rítmica (musical ou decorativa), montagem formal (um jogo de oposição formais e visuais) e montagem subjetiva (na primeira pessoa).
The End of St. Petersburg (Vsevolod Pudovkin,1927)
Martin construiu esta taxonomia, afastando-a das nomenclaturas trazidas por Pudovkin e Eisenstein. O realizador de “A Mãe” traz para “cima de mesa” as seguintes definições: paralelismo (o seu filme e a referida presença da Primavera como exemplo), simbolismo (o significado trazido pelas imagens do matadouro na “A Greve” de Eisenstein), sincronismo, antítese e o motivo principal. No caso de Eisenstein, com prestígio por parte do próprio Martin - “segundo a minha opinião, proporcionou a melhor tabela de montagem, porque ela comporta (ainda que a sua leitura seja um pouco difícil) todos os tipos de montagem, dos mais elementares aos mais complicados" - reconhece as seguintes montagens: métrica (baseada no comprimento dos planos), rítimica, tonal (baseada na ressonância emocional do plano), harmónica (baseada na dominante afetiva ao nível da totalidade do filme) e intelectual.
Esta listagem, mais tarde “higienizada” e categorizada por Martin, que funcionaria como a moderna taxonomia da montagem cinematográfica, as frases dessa língua partilhada por Eisenstein e Pudovkin, que se dá pelo nome de Cinema, mas distanciamos por dialéticas divergentes. Esta foi o sumo da escola soviética, a consciência de um poder semiótico das imagens em movimento, ao serviço de fins políticos, que mesmo assim redefiniram e abriram portas a um cinema posterior e igualmente ardente.
Ambos os autores pegaram em experiências “griffthianas” (referente ao realizador norte-americano D.W. Griffith que do outro lado do Oceano pratica o cinema progressista, que definiu a narrativa / montagem paralela e estabeleceu o grande plano para uso dramático) e as transformaram numa arte intelectualizada capaz de movimentar milhões em direção a uma utopia. Uma utopia falhada, como bem sabemos, mas, inconscientemente, reafirmaram-se numa outra união, a cinematográfica.
Desejo voltar aos modos de montagens de ambos, aos seus filmes e à dialética imposta.