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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

“Perseverança” no título, perseverança na vida. Serge Daney e o seu livro-testamento.

Hugo Gomes, 16.08.24

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Pode a crítica de cinema ser também íntima? Desconstruímos a perpétua imagem de fanfarrão, soturno e quase misantropo que a cultura pop tem “pintado” com pinceladas agrestes, ou a automatização que nos Estados Unidos nos facultou como “mero cargo”. Pois bem, Serge Daney, um dos mais influentes nesta arte — e se é que podemos chamar de arte o exercício de pensamento sobre os filmes (claro que sim!) — é um desses estandartes do pensamento e da emoção, coabitada no mesmo quadrante, sendo que a Sétima Arte se une à sua pessoalidade e vice-versa. 

Escritor da revista “Cahiers du Cinéma”, tendo dirigido-a entre 1973 e 1979, passando depois para o jornal “Libération”, onde produziu alguns dos seus celebrizados textos, entre os quais uma estabelecida comparação entre ténis, outra das suas paixões, e o cinema [ver o filme-ensaio-documentário de Juliet Faraut, L’Empire de la Perfection de 2018], e em 1991, realizando o seu desejo de uma “crítica lenta”, dotada no lirismo e sem concessões editoriais, com a revista “Trafic: Revue de cinéma”, projeto que acompanhou até à sua “despedida” prematura aos 48 anos de idade, vítima do HIV (inconvenientemente, esse destino fatídico também lhe conferiu uma aura trágica e mítica). Daney revelou-se ao longo das gerações como uma lenda urbana de uma certa nata crítica-intelectual, dos seus filmes e impressões, dos seus ensinamentos e ideias, das suas gravuras emocionais. Hoje, podemos encontrar nesta sociedade, e principalmente em Portugal, onde tinha afinidades e afetividades, alguns “filhos e primos” de Daney.

Em 2005, editado pela Angelus Novus, é lançado um conjunto de textos provenientes da pena de Daney, intitulado “O Cinema que Faz Escrever”, no qual se incluem os amores a Paulo Rocha e o tão debatido texto “Travelling de Kapo”, o seu último escrito, que, aliás, tem a honra de abrir este “Perseverança”, com edição da The Stone and the Plot (nota: tendo em 2020 publicado uma versão portuguesa do completíssimo livro de Donald Richie, “Ozu”). Ao longo de 140 páginas, acompanhamos Daney numa derradeira entrevista a Serge Toubiana, publicada originalmente em 1994, dois anos após a sua morte. 

Este triste fado envolve a conversa, dividida em tópicos que mapeiam a alma órfã, incompreendida e viajada de Daney: da busca pelo pai, fantasiosamente induzido pela sua família como uma voz pontuada nas telas, à defesa da televisão, passando por um certo cinema francês, a viagem a Hollywood atrás das dinastias clássicas e a desilusão ao deparar-se com a indiferença com que essa indústria trata os filmes e seus mestres como produtos comuns. Há ainda a marginalização dos movimentos pós-Maio de 68 e as suas viagens, sempre acompanhadas por um postal de visita, uma tela fora da tela, um cinema fora do seu espaço natural. Em tom confessionário, Daney revela-se e descodifica-se num gesto sem julgamentos nem autocensura, transparece a sua homossexualidade, abordando a cru, e deixando escapar a sugestão de um “mercado sexual” que frequentava, por exemplo, nas suas idas e voltas pelo território indo-pacífico, ou na morte incrustada em alguns dos seus discursos, antevendo uma última flecha de luz. 

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Há aqui algo de mortuário, como se desse corpo despejasse toda a sua energia, memorialista e ritualística, num tom de testamento. Bem sabido é que, na altura, já sob os primeiros sinais de uma morte anunciada, ambicionava escrever um último livro, longe do registo de críticas selecionadas e coletadas, possivelmente uma obra autobiográfica com título escolhido – “Perseverança”. Como bem sabemos, o livro não se concretizou, mas o jornalista Toubiana, transparecendo um tributo ao idealista, concede esta transcrição sob o nome projetado. “Perseverança” não é um livro sobre cinema e, fechando-se nesse círculo, não é teoria nem tese; é um objeto de prova de que o cinema tem gente dentro, que vive e respira cada frame e de como a cinefilia se apresenta como um continente imaginário, ora individualista, ora coletivo. Conhecemos Daney, esse tão importante crítico da segunda século XXI, e na sua companhia “ouvimos” as suas preces, o outro Daney, intimista e carnal, sem com isto desassociar-se ao Cinema.

A tradução portuguesa é de Luís Lima, anteriormente encarregado de trazer ao nosso mundo editorial os amores e devaneios de outro crítico amado, que virou cineasta em toda a sua força, François Truffaut (“Os Filmes da Minha Vida”, Orfeu Negro, 1ª edição 2015). O produtor, e amigo, Paulo Branco é autor do posfácio.

Godard, o passador

Hugo Gomes, 13.04.23

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Entretien entre Serge Daney et Jean-Luc Godard (Jean-Luc Godard, 1988)

Hoje, consigo reproduzir procedimentos intelectuais ou discursos próximos dos seus - enfim, próximos do Godard daquele período, uma vez que não sei realmente onde está agora. Sem dúvida que há, no gozo de alguém como ele, uma parte que não é comunicável. A respeito de Godard, Jacques Rancière usou o termo passador. O passador é aquele que reserva para si o gozo da última palavra. Há então uma forma de competição e será cada vez maior para se chegar a ser o último. Godard é, talvez, o último grande cineasta, e eu talvez seja o último crítico a tê-lo feito com … Este orgulho que consiste em querer representar um estado terminal ou uma memória lendária é difícil de passar socialmente; deve haver uma espécie de contradição, um constrangimento duplo, onde colocamos as pessoas e que explicaria, efectivamente, que são absolutamente incapazes de …

- Serge Daney entrevistado por Serge Toubiana  [Fevereiro, 1992], publicado sob o título "Perseverança" (edição portuguesa, com tradução de Luís Lima, publicado pela The Stone and the Plot)

Amar os avós que não nos amam

Hugo Gomes, 10.03.23

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Rue de l'Estrapade (Jacques Becker, 1953)

“Não há muito tempo, estava eu a ver a “História Parisiense" [“Rue de l'Estrapade”], de Becker, na TV por cabo, e não conhecendo bem Jacques Becker, senti-me um pouco envergonhado, pois ele terá sido o único cineasta que, na altura da minha saída da infância, amou a juventude dos actores franceses de então, esses jovens como Daniel Gélin e Louis Jourdan ou Anne Vernon, que tinham tudo para ser os primeiros jovens a estrelar no pós-guerra. Pois, nada disso aconteceu. Não sei o que se passou, mas, dez anos depois, ainda antes da Nouvelle Vague, os cabeça-de-cartaz do cinema francês eram novamente os monstros sagrados de entre as guerras: Fernandel, Gabin, Fresnay, Brasseur, Noël-Noël. Portanto, o que o cinema francês estava a oferecer a uma criança francesa, como eu, eram os seus avós, o vovô e a vovó, decerto fantásticos, mas bastantes amargurados e anti-jovens. Era preciso amar a forma como eles não nos amavam!”

- Serge Daney entrevistado por Serge Toubiana  [Fevereiro, 1992], publicado sob o título "Perseverança" (edição portuguesa, com tradução de Luís Lima, publicado pela The Stone and the Plot)

Uma cadência obstinada

Hugo Gomes, 17.02.23

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Albert Préjean e François Rosay em "Jenny" (Marcel Carné, 1936)

O cinema, essa arte paradoxal, privilegiada, diferente de todas as outras. O cinema, lugar dos pais mortos, desaparecidos, ausentes para uma ou duas de cinéfilos por vir. E eu só posso ser o mais obstinado, amarrado à própria “história” como um molusco ao rochedo.”

- Serge Daney entrevistado por Serge Toubiana  [Fevereiro, 1992], publicado sob o título "Perseverança" (edição portuguesa, com tradução de Luís Lima, publicado pela The Stone and the Plot)

Pelo retrovisor ...

Hugo Gomes, 11.01.23

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Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976)

“Há uma imagem que me agrada muito, que é a do espelho retrovisor. Há um momento - chamemos-lhe envelhecer, morrer - em que é melhor olhar para o retrovisor. Porque, em suma, podemos ver nele tanto a imagem do nosso passado quanto a forma como essa imagem é modificada por todos os presentes, que já nem sequer espreitamos, e que nos caem dos olhos como palimpsesto efêmero, “dromoscópio”. Contentamo-nos em olhar para trás, para as sobras no retrovisor, para aquilo com o que esse presente se parecia.”

- Serge Daney entrevistado por Serge Toubiana  [Fevereiro, 1992], publicado sob o título "Perseverança" (edição portuguesa, com tradução de Luís Lima, publicado pela The Stone and the Plot)