O Cinema Marginal reclama o grande ecrã. Arranca o 4º Outsiders - Ciclo de Cinema Independente Americano
"Ghostlight" (Kelly O'Sullivan & Alex Thompson, 2024): filme de encerramento
Cinema Independente ou Cinema Marginal Americano? Ambas as designações parecem fundir-se numa só vertente: o cinema americano fora do glamour, longe dos orçamentos mastodônticos e, muitas vezes, distante dos elencos estelares que garantem distribuição e divulgação. Este ano, Sean Baker, um dos protagonistas da independência americana nos últimos tempos, ergueu quatro estatuetas da Academia, incluindo as de Realizador e Filme, discursando sobre a importância deste seu cinema sempre em luta. A vitória ecoou, mas poderá ter embatido numa parede, pois, longe do brilho de “Anora”, muitas obras continuam a resistir para alcançar um resíduo de luz, e isso não mudará com palavras em palco.
Criado há quatro anos, Outsiders - Ciclo de Cinema Independente Americano surge com um propósito claro: revelar autores e filmes que, de outra forma, escapariam ao olhar da cinefilia portuguesa. De 11 a 16 de março, no Cinema São Jorge [Lisboa] serão apresentados doze filmes de produção independente, este ano centrados na relação com o “outro”. Mas qual “outro” é que falamos?
O Cinematograficamente Falando... solicitou ao programador Carlos Nogueira não apenas uma justificação, como também um guia para esta edição—uma mostra sem competição, onde o Cinema (com C grande, se faz favor) se exibe em plena liberdade. Há ‘velhotas’ em ação, caçadoras de fantasmas, Shakespeare improvisado e até bolinhos da sorte, cinema americano na margem, mas igualmente no centro do mundo.
O festival Outsiders, para além das interpretações que possam ser feitas da sua programação e seleção, sempre assumiu o propósito de ser uma resposta à ineficiência da distribuição nacional. É correto encarar o Outsiders dessa forma?
Prefiro ver o Outsiders como um complemento. Nos últimos anos assistimos a uma transformação radical da distribuição, com o surgimento em força das plataformas de streaming, e a sobrevivência difícil das salas. Os festivais e as pequenas mostras convivem, melhor ou pior, com esse rebuliço, mas também eles têm as suas prioridades ou não têm a capacidade de suprir as falhas da distribuição comercial. É aí que entra o Outsiders.
Ainda no seguimento da questão anterior, antes de falarmos da programação e dos destaques desta 3ª edição: porque é que filmes como “Thelma” (filme de abertura deste ano) ou “Ghostlight” não tiveram qualquer tipo de distribuição em Portugal (seja em sala, VOD ou streaming), apesar da boa recepção e do destaque no seu país de origem?
As razões parecem misteriosas, mas, na verdade, há explicações para isso: o cinema independente não tem a vida facilitada à nascença, tem de lutar para entrar nos circuitos de distribuição. A redução drástica do número de salas provocou um afunilamento das estreias comerciais e é inevitável que os filmes que não têm uma distribuidora major fiquem para trás. Os canais de streaming compram frequentemente por atacado, sem grande critério.
Light from Light (Paul Harrill, 2019): exibido no dia 12 de Março
Um dos pontos fortes do Outsiders é a vinda de um realizador ou autor independente que, muitas vezes, é esquecido, ignorado ou simplesmente desconhecido pelo público português, incluindo a cinefilia e a elite cultural. Como é feita a escolha do convidado? No caso de Paul Harrill, o realizador desta edição, o que nos pode dizer sobre ele e o que poderá acrescentar à cinefilia portuguesa?
A escolha do convidado é muitas vezes fruto do acaso. Depois de algumas hesitações iniciais, acabámos por optar pelo modelo de ter apenas um convidado que não só apresenta e debate com os espectadores o seu ou os seus filmes, como também dá uma masterclass. Até agora tivemos muita sorte com os convidados escolhidos (que variaram entre o "consagrado" cineasta indie Joe Swanberg, o jovem prodígio Jack Fessenden e o "segredo bem guardado" Patrick Wang), que mostraram grande disponibilidade para interagir com a audiência e participar nas actividades do festival.
Este ano teremos mais uma revelação para o público português: Paul Harrill, cineasta de Knoxville (Tennessee), que vem construindo discretamente há mais de dez anos uma obra notável, centrada em personagens insatisfeitas e em busca de si próprias, que por vezes encontram a paz, mesmo que temporária, na religiosidade doméstica. O seu cinema não podia ser mais diferente daquilo a que estamos habituados a identificar como o cinema indie.
Este ano, com a vitória de “Anora” nos Óscares e o discurso de Sean Baker, intensificou-se a discussão sobre o cinema independente americano. Como programador de cinema desta estirpe, acredita que este reconhecimento pode “abrir portas” a mais filmes independentes, ou o triunfo da estatueta acaba por desvalorizar a sua condição marginal?
Não, infelizmente. É verdade que o cinema independente espreita às vezes pelas portas entreabertas dos Óscares (“Moonlight”, “Anora”...) e de outras festividades dos "grandes e poderosos", mas são epifenómenos de curta duração.
Na sua nota de intenção, referiu que a seleção de filmes deste ano debate a visão do “outro” – ou melhor, dos “outros” que compõem os EUA. Considerando o atual panorama político do país e o caminho que se prevê para o futuro, como é que esses filmes abordam os “outros” e as suas relações dentro dessa realidade?
Este ano, o tema do "outro" impôs-se muito cedo, no início da fase de selecção. Os primeiros títulos que me surgiram pareciam reflectir, de alguma maneira, determinadas preocupações da América actual, como o controlo da imigração, a luta das minorias, ou os inimigos no interior. Daí que me tenha parecido interessante centrar o ciclo deste ano na procura dos "outros" que estão na origem dos medos contemporâneos.
Acredita que estes filmes ganharão uma nova vida dentro da cinefilia portuguesa depois de passarem pelo Outsiders?
Acredito que haverá descobertas surpreendentes; muitos dos filmes são primeiras obras e o público mais atento ficará com curiosidade em seguir a obra futura de alguns dos realizadores. Tal como numa exposição, em que as obras são expostas pela afinidade que têm entre si, as pessoas ganharão em ver mais do que um filme, uma vez que há paralelismos que se estabelecem e muitos dialogam entre si.
"Ingrid Goes West" (Matt Spicer, 2017): dia 14 de março
"Fremont" (Babak Jalali, 2024): dia 15 de março
"Thelma" (Josh Margolin, 2014): filme de abertura
Quais são as ambições futuras para o Outsiders?
Gostaria que o Outsiders consolidasse o seu lugar como uma mostra que faz a diferença no panorama dos festivais nacionais. Estou satisfeito com o seu modelo presente (filmes inéditos, relativamente recentes, selecção com curadoria, presença de um convidado) e não vejo a necessidade de grandes transformações.
A principal ambição é que ele chegue a um público mais vasto. O crescimento que tivemos no ano passado faz-me acreditar que estamos no bom caminho.
Toda a programação poderá ser consultada aqui