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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Anderson City

Hugo Gomes, 23.06.23

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Por que é que a personagem dentro da personagem de Jason Schwartzman queima a própria mão no grelhador? Questionando o imaginário autor, porta-voz do narrador, aqui interpretado por Edward Norton, que responde, sem grande alarido, com a procissão da sua criada narrativa. O “não entender”, não pode, nem deve, ser visto como uma desculpa, seguimos então em frente com o relato. “Asteroid City” cai entre nós como uma “bomba”, um tiro às tendências que resguardam estes tempos em que o streaming e a falsa-sensação televisiva (séries que já não são televisão, nem nunca serão) estabeleceram uma relação tóxica com o espectador, forçá-lo à reger pela continuidade, tudo para este factor e nada contra esse factor. 

No cinema, tal feito acarreta nas audiências - fasquias, realismo e o senso do mesmo, prevalecem - deixando a estética, essa, desvanecida, vilipendiada como uma distração, uma maquilhagem ao vazio, ao oco e fútil. Ora bem, vazio não é o que deparamos no cenário desértico desta fictícia Asteroid City, antes disso, uma farsa, um filme a compor-se frente aos nossos olhos, ou diríamos mesmo (utilizando a velha glória teatral “O Mundo é um Palco”, neste caso, aperfeiçoando à sua realidade cinematográfica, “O Mundo é um Cenário”), a ser encenado no nosso horizonte. Tudo está aparentemente “organizadinho”: a mise-en-scène nos trincos (que saudades deste aprumo, que parece não ter lugar no dito “cinema moderno”), os planos conjunto a brindar os olhares, os gestos meticulosamente planeados em cadência dos movimentos de câmara, subtis e sintéticos, os atores reduzidos a bonecos em prol de inventário debitado e materializado. 

Contudo, os andaimes estão expostos, entendendo à sua funcionalidade de apoio para a eventual construção, o narrador surge-nos no lugar errado e à hora errada, a desconstrução que dá lugar a um pseudo-making off, um formato de tela que nunca se decide e igualmente estabelece regras nas suas dimensionalidades, tudo na literalidade, há que entreter a audiência sem que esta acredite no que vê. De alicerces revelados, Wes Anderson prova que na fantasia das suas fantasias, criar nunca se resume a “storytelling”, criar, artisticamente falando, é igualmente compor, rebuscar, decifrar, esconder, revelar ou até “pintar”, quadros elaborados para deleite, seja do autor, seja do espectador. Um show de mecanismo e virtuosismo, perfeccionismo e calculismo, a essência do cinema andersoniano. Porém, como o próprio expressou, contra “copycats” e mimetização AI; não é da estética, visualmente desferida, o qual resume o seu cinema, o vazio à pouco invocado como centro formal, é um atalho para a plagiaria, o cinema de Anderson fala com ele próprio e dialoga entre si, aliás, é disso que são feito os autores de cinema, e nós, perante um deserto, precisamos mais de autores. 

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Isto para insinuar que me perdi em Asteroid City (no bom sentido, é óbvio), e igualmente senti-me enganado após deparar com o embuste que a cidade é, uma criação dentro da criação, um matrioska que Anderson desculpa o seu cinema. É uma peça a fazer-se de peça, a alavanca narrativa para entrarmos em alter-egos e cunhas. Essa, Asteroid City, é um sonho vindo dos que não conseguem dormir, uma alternativa, realidade talvez ou sintética provavelmente, onde estas historietas à sombra dos testes nucleares são relatos de avatares jubilantes, o “body double” referido pela diva caída Scarlett Johansson após o relance de um corpo desnudado (o de não saber se é o dela ou de uma dupla leva-nos à natureza do filme, onde o que se parece não é, e o que é não é o que se parece).

Portanto, podemos dizer que tudo não passa de uma brincadeira, um hobby concretizado, decorativismo gritarão muitos, saindo desfraldados da sala, acompanhadas por acusações de “repetição” estilística, sedentos pelas narrativas A a B, ou da realidade que nos abraça, desejando vê-las representadas nos nossos medias. Sim, “Asteroid City” é um cinema-romântico, o romantismo de que a tela é uma porta para lá das leis físicas do nosso dia-a-dia, de novos olhares e novas fragrâncias. Wes Anderson apresentou-nos desde sempre uma espécie de “casinha das bonecas”, um cinema farsolas, trocista, ingenuamente cruel e com, acima de tudo e acima do resto, familiar. Sim, há um conforto familiar nesta sua estranheza e “Asteroid City” possui pé firme nesse mesmo “vale”. 

Terminou! A música anuncia o final, de costas voltadas para o proto-vilarejo que empresta o nome à película, os créditos finais começam a rolar, um papa-léguas, curioso pássaro testemunhante das peripécias ali fabricadas, balança no ecrã, fazendo ”pirraças” a quem vai gradualmente saindo da sala. Aos que ficam, a sua dança vitoriosa vira recompensa. Não quero abandonar este filme, não consigo de todo abandoná-lo. Rastaparta ao realismo!

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Uma Víuva (nada) Alegre!

Hugo Gomes, 30.06.21

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Num momento em que os fãs estão enviuvados da personagem Natasha Romanoff (Scarlett Johansson), que tal mal tratada foi durante este longo franchise, ‘cai-nos’ uma aventura-a-solo meio caricatural (russos e mais os associados estereótipos pregados em Hollywood) meio negra (aliás o mais sombrio desta indústria disnesca) da tardia emancipação desta “action woman”. “Black Widow” entrega-nos aquilo que nos foi prometido e ainda deposita-nos alguma esperança quanto à linha de montagem criada pela Marvel Studios. Não vos vou mentir, possivelmente é dos melhores capítulos deste universo partilhado, o mais independente quanto à forçada continuidade, o mais solido no seu enredo e acima de tudo, a mais concebida heroína deste mesmo universo. Depois há a versátil Florence Pugh e o seu sarcasmo semi-adolescente e aquilo que considero, automaticamente, das melhores ‘coisas’ que vi nesta marvelesca saga (que já dura 13 anos) … um arrepiante e energético genérico ao som de Smell Like Teen Spirit …. Obrigado Cate Shortland!

Os novos soldados da Guerra das Rosas

Hugo Gomes, 10.12.19

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Não é novo o tema do divórcio para Noah Baumbach. Já fez parte da sua consagração num retrato autobiográfico em “The Squid and the Whale” (2005), onde espelhava a separação dos seus pais em meados de 80 e nas manifestações que tais atos desencadearam numa estrutura familiar e afetiva, aparentemente sólida.

Passados 14 anos e com uma mão cheia de trabalhos derivativos na comédia "mumblecore" e em abordagens de maturidades tardias, o realizador regressa ao estado terminal de relação em mais um espelho. Apesar do próprio negar, há quem encontre contornos pessoais deste “Marriage Story” no seu divórcio real com a atriz Jennifer Jason Leigh em 2010. São traços que reconhecemos na personagem encarnada por Scarlett Johansson, atriz que finalmente encontra no universo do realizador a sua emancipação, o reencontro com a maturidade, e Adam Driver como uma "persona" fingida do próprio autor. Estas são as peças centrais de uma batalha jurídica que serve apenas de fachada para um verdadeiro embate emocional, a do desgaste de uma relação que vem provar que nada dura para sempre, nem mesmo a ilusão do sacrifício romântico.

Convém sublinhar que o hiato de mais de uma década entre “The Squid and the Whale” e “Marriage Story” nos revela um realizador em transgressão quanto à sua posição em relação ao mundo à volta. Antes, era o passado que se instalava como uma tela a ser preenchida  e um realizador que exorcizava os pecados dos seus pais como seus, culpabilizando-os quanto à sua formação. Agora, Baumbach assume finalmente a figura paternal, responsabilizando-se pelas falhas que antes apontara. É a sua passagem à maturidade que tanto procurara e ostenta-a com com a classe de um homem que se despe cada vez mais, deixando o minimalismo exposto à vista de todos.

Visto como um dos favoritos aos Óscares, "Marriage Story" é um filme sobre atores, erguido por atores e motivado numa relação de atores com atores em que Baumbach apenas fornece o material para as suas composições enquanto materializa a "distância", literal em cada espaço, como uma apologia de uma persistente falha comunicacional. Marido e mulher já não falam, não se tocam, não evidenciam o seu afeto. É com planos gerais dos diferentes cenários que observamos essa trégua silenciosa, Adam Driver num canto, Scarlett Johansson no outro. A aproximação será porventura a mais furiosa das batalhas campais, uma troca verbal que despoletará o pior destas personagens e o melhor destas atuações (Adam Driver é, sobretudo, explosivo).

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Obviamente que ficamos bem servidos com o leque de secundários (Ray Liota, Alan Alda, Wallace Shawn e Laura Dern, maravilhosamente a reflorescer na indústria após ter sido submetida a banhos "lyncheanos" em “Inland Empire”), mas é pelo que (ex)casal protagonista que descobrimos um semi-inventário da natureza desgastada das relações. O que existe depois do “felizes para sempre”?

A carente negociação de carícias é já um dos estandartes do cinema de Baumbach, a sua afirmação como homem superado e feito, como artesão das ligações embutidas entre homens e mulheres e o trabalho cúmplice com os seus atores. "Marriage Story” é isso mesmo, a evolução teatral que se revê em códigos antigos e consumidos, hoje desprezados cada vez numa Sétima Arte que se vangloria pela sua aproximação ao realismo formal e essencial (o que não inclui, claro, o género dos super-heróis).

Há quem ainda aponte ares do cineasta sueco Ingmar Bergman no seio deste diálogo de planos (basta ver as comparações com “Cenas de um Casamento”) ou até mesmo na perspetiva emocional destas personagens. Contudo, a verdade é que tudo aqui ecoa como uma preservação dos mais puros métodos de cinema, o simples trabalho de atores. E nisso, por mais apontamentos e anotações que possamos fazer, é um mérito que não poderemos tirar a Noah Baumbach.

A queda do cinema americano?

Hugo Gomes, 28.03.17

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Bem-vindos à queda do cinema americano, e não, nada tem a haver com as controvérsias de whitewashing, a escolha de Scarlett Johansson para interpretar uma cyborg. Não, simplesmente o que vemos nesta adaptação de uma adaptação de uma manga da autoria de Masamune Shirow, é o requisito de lugares-comuns e dos truques primários que tanto minam o cinema para as massas oriundos dos grandes estúdios americanos.

Já a primeira conversão do material original para cinema, uma animação estilizada de Mamoru Oshii, funcionou como um quebra-formulas daquilo que poderia no entanto suscitar. É ficção científica da futurista, com pinceladas fortes de Phillip K. Dick e, sob linguagem cinematográfica, influenciada por clássicos como “Metropolis” e “Blade Runner”, que orquestrava uma narrativa anti-clímax, sugestiva e sobretudo cerebral. Onde irão as nossas particularidades enquanto seres humanos num mundo completamente à mercê do robótico? E as questões da inteligência artificial? E do “uncanny valley“? Estas tendências são debatidas em quase tudo o que se designa  ser ficção científica “astuta“.

Sim, o filme tinha esses propósitos de servir mais como uma reflexão ao serviço da animação, do que se apresentar como o enésimo arquétipo de ação animada, e a esquecida sequela (“Innocence”, 2004) prolongou essa fantasia filosófica de um futuro à vista.

Porém, eis que surge a lavagem de Hollywood, um produto com claras pretensões de agradar os fãs do original e adeptos dos chamados “blockbusters inteligentes“, mas que se perde perante as suas ambições. O porquê? Por que todos os ingredientes que transformaram “Ghost in the Shell” em mais do que um mero fruto da industrialização, são esquecidos e trocados por equações homogéneas daquilo que tanto abunda no entretenimento mainstream. Diria que este “Agente do Futuro” (lembraram-se de traduzir para português) é um embrião do cada vez mais formulaico cinema de super-heróis, trocando a dita filosofia por enredos de vingança, o sugestivo pelo explícito, e o cerebral pelo códigos primitivos do bem entreter (salienta-se ainda o maniqueísmo básico).

Scarlett Johansson é a nossa heroína, meio Lucy, meio "Viúva Negra” da Marvel, que se movimenta pela narrativa como uma “boneca de prontidão exata para a ação". A sua Major é demasiado emocional, frente às crises existenciais da versão animada. Tudo o resto, exceto o ocasional “Kitano Show” [Takeshi Kitano a assumir o controlo a meio da fita], é uma réplica prolongada, e segundo eles atualizada, que apenas jura fidelidade ao visual da obra de 1995. São estes raros pontos de contato que fazem salivar os ditos fãs, mas por aqui grito em pleno pulmões: “It’s a trap“.

Talvez uma premonição de como este “Ghost in the Shell” iria falhar (se bem que se espera, mesmo assim, que faça sucesso nas bilheteiras, até porque Scarlett Johansson já faz parte do star system) é a época em que os dois filmes surgem. A versão de Mamoru Oshii surgiu em 1995 e foi uma das influências para “The Matrix” dos Wachowski, e esta versão de Rupert Sanders (com “Snow White and the Huntsman” no currículo) surge numa altura em que quase todo o entretenimento cinematográfico encontra-se contagiado pelo referido frenesim cyberpunk. Resultado, apenas chuva em terra molhada.

"Lucy In The Sky With Diamonds"

Hugo Gomes, 28.08.14

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Nos tempos que correm, de Luc Besson não se espera “grande” coisa, muito menos algo alegadamente astuto como este “Lucy”, mas para entender este “out of box” dos blockbusters de Verão devemos recuar uns “valentes” anos e nos afastarmos do cinema.

Em 1973, uma equipa de arqueólogos, que buscava artefactos sobre a origem humana na Etiópia, deparou-se com um fóssil de um hominídeo, na altura desconhecido para o Mundo, bastante mais antigo que os fósseis descobertos até então. Semelhante a um chimpanzé, mas com o crânio muito mais desenvolvido, os cientistas teorizaram que esta nova espécie possuiria um intelecto superior ao do referido primata. Os ossos ainda evidenciavam algo mais surpreendente: este animal conseguiria caminhar “erecto”, uma posição que ditou para sempre a evolução do Homem, fazendo com que largássemos as florestas arborizadas e caminhássemos pelas vastas savanas. 

O leitor de momento estará a perguntar qual a relação entre este facto com o filme protagonizado por Scarlett Johansson. Bem, esse mesmo hominídeo, tendo em conta os ossos da pélvis, era uma fêmea e curiosamente foi baptizada de Lucy. Reza a história que na altura da sua descoberta se ouvia no leitor de cassetes o single “Lucy in a Sky with Diamonds” dos Beatles. Pois bem, Lucy foi a “Eva da Ciência”, a primeira Mulher descoberta e a sua relevância para o conhecimento de onde viemos e como chegamos até aqui é crucial. Agora no mundo cinematográfico, Lucy será a primeira mulher, se não personagem, a atingir os 100 % de uso cerebral, de acordo com especulações científicas e pelo bom nome da sci-fy, um ridículo “what if” que surpreendentemente se torna num produto munido duma inteligência experimental e ao mesmo tempo lúdica.

Assim, iniciamos com a sequência de um primata a “matar” a sua sede num lago, nesta altura o cinéfilo apanhado de surpresa identifica tal cena com uma similar na incontestável obra-prima de ficção científica de Stanley Kubrick, “2001: A Space Odyssey”. Porém o leitor já deve aperceber e tendo em conta a longa divagação desta crítica que tal animal é Lucy, o dito hominídeo fêmea, o filme encarrega-se mais tarde de identificar a criatura, mas entretanto somo apresentados à nossa Lucy, uma vistosa Scarlett Johansson que, nos primeiros minutos, tem a difícil missão de entregar uma maleta de conteúdo desconhecido a um sujeito numa redacção de hotel em Taiwan [uma piscadela de olho ao mercado asiático].

Neste momento o espectador sente que algo não está bem e que depressa acontecerá o inevitável, um dispositivo que nos guia automaticamente ao enredo da fita. Luc Besson aufere assim ansiedade e ritmo a esta sequência inicial, usando uma montagem intercalar: enquanto Lucy se aproxima do seu alvo, as imagens de uma gazela a ser encurralada por uma chita intervêm sem aviso, invocando a memória das experiências executadas pelos cineastas russos (vêm à memória Sergei Eisenstein e a sua “A Greve” (“Strike), a constante mudança entre conflitos de sindicatos e a matança do bovino).

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Depois do enredo principal ter então arrancado, Morgan Freeman entra em ação em modo discursivo, introduzindo o espectador à premissa do filme, os ditos controlos cerebrais e suas consequências (ou dádivas). Como é óbvio a narração de Freeman é carismática, confortante e acima de tudo sábia, ele é o “gamekeeper” deste ensaio futurístico. Escusam de negar, a verdadeira intenção de “Lucy” foi apresentada muito antes do filme ser visto: quer no poster ou trailer, as condições do contrato deste novo produto de Besson é um exercício de possibilidades e nada mais. A capacidade de assistir ao próximo passo da evolução humana obviamente não passa de uma sugestão cinematográfica ou da teoria do mais fértil e imaginativo geek, mas o filme sabe “controlar” essa vertente e criar um espectáculo visual e por vezes narrativo.

Em segundo plano, são convocados todos os elementos dignos do já estabelecido cinema de Luc Besson: os tiroteios, lutas corpo-a-corpo, perseguições e, como não poderia faltar, uma França vista pelos olhos dos americanos. Ingredientes que tão bem sabem à “reinvenção bessoniana”, mas em doses menores e facilmente doseáveis. Mas “Lucy” prevalece como uma “ovelha negra” dentro desse mesmo rebanho, um filme pouco original que acaba por se tornar numa vistosa e desafiante fantasia científica. Por fim vale a pena salientar Choi Min-sik, visto no excelente “Oldboy” de Park Chan-wook , um arrepiante e magnético “vilão de serviço”, um complemento frenético com uma sedutora e fria Johansson.

Uma vontade voraz de alienar

Hugo Gomes, 07.05.14

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Existe um tipo de planta carnívora, do género Nepenthes, que atrai pequenos animais, como insectos e pássaros, através das suas folhas coloridas, fazendo com que estes “escorreguem” e fiquem aprisionados na sua “bolsa”, toda esta imersa de um suco rico em enzimas digestivas. Tais enzimas gradualmente desfazem a criatura aprisionada. Essas plantas vêm à lembrança neste “Debaixo da Pele” (“Under the Skin”), onde Scarlett Johanson é um(a) alienígena que se disfarça de mulher e que atrai os homens (somente) para uma armadilha mortal usando os dotes do seu curvilíneo corpo.

Baseado num conto de Michel Faber, este é um filme que tinha tudo para se tornar no próximo “sci-fi flick”, mas nas mãos de Jonathan Glazer torna-se num simulacro ao realismo. Nunca uma “invasão” do Outro Mundo se tornou tão credível e ao mesmo tempo tão sexy, acentuando a luxúria numa atmosfera conseguida. O ambiente, com o auxílio de uma banda sonora ocasionalmente minimalista de Mica Levi, transmite-nos o arrepio na espinha em simbiose com uma sensualidade agonizante. Glazer completa o quadro com uma mise-en-scenè que por vezes parece delineada para um videoclipe.

Depois de uma meia hora interessante e naturalista com uma Scarlett Johanson nunca vista, sob um olhar frio e cortante, “Debaixo da Pele” dá um “valente trambolhão” após a revelação da premissa, verdade seja dita, que demora demasiado a arrancar, para depois incidir-se numa intriga meramente existencialista. Nisto despe-se do seu anterior naturalismo quase documental e assenta-se numa narrativa contemplativa, finalizado por um final carente de um verdadeiro climax.

“Debaixo da Pele” funciona muito mais do que um mero exercício de ficção científica. Aliás, Scarlett Johansson lidera aqui uma critica à extrema relevância do sexo na nossa sociedade e o realçar do lado animal no ser humano. Apesar das suas limitações, eis uma das mais fresca e intimista proposta do cinema de ficção científica do ano. Pelo menos, mesmo com os seus “calcanhares de Aquiles”, magneticamente faz-nos querer regressar.