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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

À espera dos trópicos ...

Hugo Gomes, 09.02.25

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O tom labiríntico com o qual Sandro Aguilar confere aos seus filmes (refiro-me, numa óptica das suas longas-metragens – as curtas pertencem a um universo distinto, possivelmente mais experimental se pensarmos nisso atentamente) leva o espectador “às escuras”. A atenção é convocada, mas, acima de tudo, revela-se a capacidade semiótica para conectar os dotes e decifrar o puzzle assumido com precisão por estas obras. 

Em “Primeira Pessoa do Plural” não se distancia nem desafia essa lógica; pelo contrário, o que se observa é uma combinação mesclada de géneros (e épocas, sendo o 'cinema mudo' um horóscopo confirmado pelo próprio maestro) que o realizador pretende implementar neste universo, trazendo consigo um hiato febril de um casal burguês (os maneiristas Albano Jerónimo e Isabel Abreu), após a toma das vacinas necessárias para uma antecipada viagem aos trópicos. Encontra-se nele uma esquisitice que evoca os primeiros trabalhos de Lanthimos – sobretudo com Jerónimo, desde o instante inicial, munido de um passa‐montanhas branco, comporta-se como um predador animalesco na sua enclausura doméstica. “Primeira Pessoa do Plural” promete extrair, da crise desse matrimónio, algo higiênico, embora tropece nas diretrizes sociais, formalidades e cordialidades, revelando um ar de surrealismo delirante, sem jamais banalizar os trilhos narrativos.

Aguilar afasta a escuridão e abraça a plasticidade emancipada deste retrato – não só visual, mas igualmente orientado para uma performance de “faz de conta”. Há, assim, uma farsa entranhada na seriedade, por vezes derretida no tórrido humor. Nesse aspecto, aproxima-se do atual cinema “faz-por-ti-mesmo” de João Nicolau, que o próprio Aguilar tem vindo a produzir, e, pelo meio, oferece brindes à altura do cinefilismo como de Aki Kaurismaki (“The Man Without a Past”, sobretudo) ou de uma alusão quase felliniana a uma burguesia alienada, entretida na “caça aos gambuzinos”. Esta (minha) citação a “la Dolce Vita” não decorre do acaso, das últimas sequências, já no resort, filmado num artificial em Itália, onde, novamente sem perceber a causa, Jerónimo, levantando-se na praia, exibindo um ar abananado e despreocupado, tentando com isso sorrir à boleia da memória de Marcello Mastroianni nesse ato final do tal Fellini de coração.

Aguilar brincou às cinéfilas com o seu novo joguete com direito a banhos de sol, enquanto o espectador, perversamente, permanece embebido nas suas próprias trevas. O desafio surge no pós… e daí poderá realmente nascer um filme de apreço – ou não.

O elogio lusitano à HBO Portugal

Hugo Gomes, 06.02.21

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Alguns filmes disponíveis no catálogo: “A Religiosa Portuguesa” (à esquerda), “Cartas da Guerra” (ao centro) e “O Fatalista” (à direita)

Sem descurar da Filmin Portugal e a sua progressiva colheita de cinema português, até porque a plataforma é direcionada a uma fasquia de espectadores habituadas a estas andanças, gostaria de salientar o trabalho que a HBO Portugal tem tido na divulgação do nosso burgo cinematográfico. Aqui, entrando numa outra liga de plataformas, daquelas promovidas pelas operadoras e com um catálogo apetecível ao comum dos mortais, o canal criado e denominado de “Made in Portugal” reúne séries de produção nacional e uma pequena mostra da nossa cinematografia. Mesmo que pequena, esta “amostra” é importante para situar e possivelmente criar novas audiências para o nosso universo audiovisual, seja por engano nos seus “binge watchings” ou na instintiva curiosidade.

Se bem que as vozes de desaprovação aos principais streamings dão conta da escassez dos clássicos ou cultos fundamentais na cinefilia (basta verificar a substituição à lá Netflix de muitos dessas histórias por produções próprias completamente alinhadas com a linguagem da empresa), a HBO tem, por sua vez, apostado no tal buffet nacional, o que poderá, a certa altura, ser fundamental para a “reeducação” de públicos (em aspas porque é uma palavra facilmente identificável com causas propagandistas ou lobotomias). E num momento em que a cinefilia bate e debate-se sobre o papel das plataformas na reestruturação dos nossos hábitos de consumo de filmes, a iniciativa à moda portuguesa poderá servir-nos como uma espécie de Cavalo de Tróia, fulcral para criar laços entre os espectadores, até então desligados, para com o cinema “seu”, ou como quiserem – “nosso”.

E não falamos de produção acessíveis, muitas delas integradas a dita ala “cinema comercial” (enquanto nós não ultrapassamos essas duas trincheiras, nunca seremos uma indústria), como as experiências de realização do ator Diogo Morgado (“Malapata”, “Solum), ou os veteranos António-Pedro Vasconcelos (“Parque Mayer”, “Call Girl”), Joaquim Leitão (“A Esperança Está Onde Menos se Espera”) e Luís Galvão-Teles (“Dot.Com”), mas também, a nosso dispor, uma ementa mais requintada e de paladares mais excêntricos.

Recentemente, mais dois se juntaram à coleção, ambas produções de Paulo Branco – “O Fatalista”, de João Botelho, e o reencontro entre a atriz Ana Moreira e a cineasta Teresa Villaverde em “Transe”. E explorando o quadro geral, há muito para (re)descobrir, desde os aclamados e premiados trabalhos de Miguel Gomes e Marco Martins até aos desafios de “A Zona” de Sandro Aguilar, o xamânico “Até ver a Luz” de Basil da Cunha (rodado na Reboleira) ou o eclético “A Religiosa Portuguesa”, de Eugène Green.

Muitos deles filmes invulgares nas “modas” de muitas novas gerações. Pessoalmente, a quem me lê deixo algumas sugestões desse mesmo catálogo, o cada vez mais apreciado Linhas Tortas”, de Rita Nunes, que aborda a nossa dependência e necessidade de refúgio nas redes sociais e “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, que com base nas cartas de António Lobo Antunes vem desmistificar o belicismo de Ultramar.

À HBO, uma continuação desta iniciativa, porque nem sempre o streaming é uma logística de extração.

Sandro Aguilar: a narrativa não é a prioridade

Hugo Gomes, 27.09.18

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A Zona (2008)

Dentro do seu Universo, o Cinema (que mais?), Sandro Aguilar poderá dividir-se em duas personalidades. A primeira, enquanto produtor, com uma excecional contribuição nos obriga a nossa eterna gratidão, sendo também um dos fundadores do O Som e Fúria, produtora que nos últimos anos tem apostado em algumas mais consagradas e elogiadas obras da nossa cinematografia (Tabu, Mil e uma Noites ou Cartas da Guerra, só para mencionar alguns). Mas a personalidade que vos falo é outra, enquanto realizador, um culminar de uma paixão em correspondência de uma visão de Cinema e nesse aspeto, Aguilar exibindo o seu “diploma”, tem vindo a consolidar uma ideia de narrativa, aliás, criando com isso a sua própria natureza de autor (bem poderia ser uma terceira personalidade).

Contam-se mais de 14 curtas-metragens e, atualmente, duas longas, num currículo que interliga-se, experimenta-se e motiva as mais diferentes reações. Falamos de um realizador sobretudo tecnicista, sem com isso alegar a sua vertente académica. Aguilar desfaz todas essas rígidas regras, assim como a convencionalidade da própria narrativa. Por outras palavras, não cabe a si recriar “telenovelas” (mencionando os rasgos irados cometidos por João César Monteiro no seu particular episódio de 2000), o realizador compõe sensações (eis um cinema sobretudo sensorial).

Mas para chegar aqui, teve que experimentar. Experiências … experimentalismos … ou somente encorajamentos para um encontro com o seu “eu” artístico, de forma a atingir o momento exato de Mariphasa, esta sua segunda longa-metragem, cuja a forma nos leva, inegavelmente, ao núcleo do seu universo. A obscuridade deste filme, quase que deixa o espectador, literalmente, às “escuras”, é uma prolongação do seu trabalho imposto em A Zona. Em ambos os casos, o cenário é somente uma sugestão, cuja ideia de tal é alargada, expandida até se tornar numa metáfora visual, ou diríamos antes, na estrutura do seu enredo codificado

Em A Zona, a sala de espera de um serviço de urgências, aquela área de compartilhamento da inquietação e o desespero, da coexistência da dor, incide para fora das quatro paredes. Essa dor tem um rosto, no caso do modus operandis de Aguilar, têm gestos e movimentos. Já em Mariphasa, onde assistimos a um primor técnico (destaque para a fotografia de Rui Xavier e da sonoplastia trabalhada por Miguel Cabral e Tiago Matos), a atmosfera é a cânone de um “não lugar”, a cave onde pesadelos são armazenados, sem saber ao certo como estas materializam. Não é por menos que neste universo, a povoação é monstruosa … vá, monstros com “cara de Homem” … que buscam, cada um deles, à sua maneira, a redenção, assim como o título explicitamente suplica para a compreensão (mariphasa, nome atribuído à planta-antidote do Homem-Lobo na sua versão de ’35).

Em seu jeito, quase aludido a esse cinema de buscas algo labiríntico, Sandro Aguilar procura um “Santo Graal” nesse seu Universo, provavelmente o tão cobiçado estatuto de autor, provando ser capaz de figurar lado-a-lado dos autores o qual os filmes produz. O futuro ditará, mas tendo em conta o visto e revisto nestas duas longa-metragens, temos formato e voz. A afirmação vem depois.  

Texto publicado no blog da Filmin Portugal (ver aqui)

"Mariphasa": tornar a escuridão amiga do espectador

Hugo Gomes, 22.02.18

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Em entrevista ao C7nema, o argumentista Tiago Santos (colaborador habitual dos filmes de António-Pedro Vasconcelos), especificou o medo de um certo cinema português no simples ato de contar uma história (com isto dificultando o trabalho de argumentista no mercado cinematográfico nacional), obviamente alicerçado com outros problemas fundamentais.

Em “Mariphasa”, a segunda longa-metragem de Sandro Aguilar, o enredo é algo coexistente com a ambiência de um filme que envia o espectador, literalmente, a um mundo às escuras, ao invés de se assumir na imperatividade do guião. Fragmentado e envolvido num eterno jogo de mistério, Aguilar, exercitado após 14 curtas, uma longa, e claro, um trabalho excepcional na produção nacional, envolve-se numa obra em que os cenários se alargam infestando toda uma suposta clareza narrativa.

Contudo, e talvez repescado a sua primeira longa de estreia, “A Zona”, onde um simples lugar passa automaticamente a um não-lugar e sucessivamente a um estado de alma, em “Mariphasa” esse ciclo de passagens é desfasado por uma tendência de codificação. O espectador não possui nenhum alicerce, é somente atentado em seguir o percurso até ao fim, abraçando essas trevas, essa experiência, ou renegando todo este efeito, da mesma forma que o desconhecido se converte num medo mortalizado.

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Confessamos que neste trabalho de Sandro Aguilar há todo um esforço conjunto por todas as partes, desde a fotografia [admirável] de Rui Xavier, até à sonoplastia aliada desta atmosfera tenebrosa (Miguel Cabral e Tiago Matos) e obviamente um elenco empenhado em atribuir vida a estas personagens em cacos, do ponto vista argumentativo. É cinema sensorial, isso sim, damos a mão à palmatória ao realizador (também autor do argumento), mas dentro desta panóplia de sensações, um território povoado por monstros em busca da sua respetiva redenção (o próprio título é a palavra-chave de toda esta conversa, mais precisamente por invocar a planta-antídoto à maldição do Homem-Lobo na versão de 1935), existe uma venda que o impede de se tornar mais do que o mero exercício técnico.

Em “Mariphasa” nada é gratuito, aliás, nada é dado como adquirido, há que merecer o filme, mesmo que o resultado seja mais próprio que universal.