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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Falando com Sandra Faleiro: "Inspiro-me em muita coisa, tudo à minha volta me inspira"

Hugo Gomes, 07.11.24

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Estamos no Ar, primeira incursão de Diogo Costa Amarante (finalmente!) ao formato de longa-metragem, é uma comédia sobre solidões e aparentes soluções a esse mal comum numa reunião de três personagens, de diferentes gerações, mas pertencentes à mesma família. No seio familiar, dito desta maneira, encontramos Fátima, mulher frustrada com o seu isolamento corporal e sexual, atormentada pelo rato que se pavoneia pela casa em todas noites, e delirada pelas fantasias sexuais que o vizinho transmite. Personagem, essa, encorporada pela Sandra Faleiro, de carreira extensa no palco, ora reconhecida por várias gerações em seriados televisivos, mas que tem pouco a pouco conquistado lugar no cinema português. Após “A Herdade, “Estamos no Ar” é o novo desafio para brilhar na grande tela. 

O Cinematograficamente Falando … conversou com a atriz sobre esta experiência, sobre a sua Fátima e essas tais dores.

Começo pela questão da génese deste projeto, aliás de como chegou a “Estamos no Ar”?

Um convite do Diogo [Costa Amarante]. Imediatamente disse que sim após ler o argumento.

Recordo uma entrevista no qual refere que o grande impulso para entrar neste filme, não foi a personagem em si, mas da “poética de Costa Amarante”.

Sim, quer dizer, a personagem é maravilhosa, mas foi mesmo o guião que me conquistou. Aquelas três personagens que se conectam com outras, que, por sua vez, estão unidas pela solidão. Há uma melancolia que atravessa o filme e, ao mesmo tempo, uma ternura inerente, tudo isso embrulhado num certo sentido de humor.

Ainda bem que mencionou a solidão porque estamos perante um filme sobre solidão e as suas diferentes nuances, cada uma destas personagens sente-se só e procura “curar-se” de alguma forma. Curiosamente o “Estamos no Ar” decorre numa cidade, um poço multi-populacional e atulhado de gente, que entra em contradição com o senso de “estar só”. Podemos dizer que o ser humano é um ser naturalmente só?

Sim, pode acontecer em qualquer lado. Este filme tem essa concepção da cidade – quando ele filma os prédios em volta da piscina, cria uma espécie de muralha de asfalto que isola aquele local, ou até mesmo os figurantes, tão automatizados, tão alheios. E o filme passa-se, em grande parte, durante a noite, com essa pulsação própria, e mesmo entre encontros e desencontros, aborda a nossa natureza humana, o facto de sermos todos seres solitários, quer seja na cidade, quer seja em qualquer outro lugar. “Estamos no Ar” transmite essa solidão de uma forma muito bonita.

Há um elemento muito entranhado na nossa sociedade, que é a farda, que Diogo Costa Amarante parece reparar e há sua maneira desconstruir. Há toda uma pulsão sexualizada nesse elemento, e isso tem influência na sua personagem.

Neste caso, o da minha personagem, Fátima, a farda representa uma certa segurança, como porto de abrigo, uma proteção. No caso do Carloto [Cotta], é mais kinky [risos], uma fantasia. 

E depois temos o rato, um animal de contornos metafóricos.

O rato apela a esse lado mais obscuro, a uma sexualidade escondida. Acho que, neste caso, ela é uma mulher um pouco tolhida — não diria reprimida, porque considero essa palavra um pouco forte — mas, de facto, tolhida pela vida. Está numa fase de procura por si própria e, ao mesmo tempo, sente esses impulsos sexuais, dos quais também recua. O rato representa precisamente essa sexualidade e essa repressão que ela tem e que não chega a desenvolver.

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Durante “A Herdade” de Tiago Guedes, abordou Catherine DeNeuve como inspiração para a sua personagem …

Sim, como figura ...

Em “Estamos no Ar” inspirou-se em alguma outra figura? 

É uma miscelânea, digamos. Ao longo de várias fases da vida, vamos juntando pedaços das nossas histórias, dos amigos, de mim própria, de outros atores e até de pinturas. Inspiro-me em muita coisa, tudo à minha volta me inspira.

Ou seja, habitualmente traz algo de seu às suas personagens …

Sou sempre eu [risos], não há grande volta a dar. É o meu corpo, a minha voz, é como filtro, encaixo e interpreto as personagens. Em cada uma delas, estou sempre eu [risos].

Com “A Herdade” entrou em pleno no cinema português e agora com “Estamos no Ar” adquire o protagonismo que o filme seja de três narrativas entrelaçadas, mas mesmo é a sua história o centro e o nó das de Carloto Cotta e Valerie Braddell. Gostaria que me falasse deste percurso no cinema português.

Não me considero uma atriz de cinema português [risos]. Até porque faço pouco; como há pouco cinema, acabo por fazer pouco. Se houvesse mais, possivelmente faria mais cinema.

Mas tem o desejar de fazer mais?

Claro, ainda este ano trabalhei com Paolo Marinou-Blanco em "Sonhar com Leões", e com o Simão Cayatte [“A Queda”], mas foram pequenas participações, o que me fascina mesmo são estes mergulhos profundos que o cinema tem. Possuem uma linguagem completamente diferente do teatro e da televisão, exige outro registo de trabalho, o que agrada imenso porque tem outro filigrana, é como se tivéssemos uma lupa sobre nós. É outra linguagem ... é claro que gostava de fazer mais, mas não tenho grandes ilusões ou ambições nesse sentido. Vou deixando fluir, acontecer, não ficar ansiosa se não fizer. 

Tenho ouvido aqui e ali, detalhes e notas sobre “Sonhar com Leões”, inclusive uma colega sua [Joana Ribeiro] falou-me um pouco desse filme.

É uma comédia negra, cómico-trágica sobre a eutanásia, sobre o desespero que é o das pessoas estarem em sofrimento e levanta estas questões pertinentes, como também aborda os oportunistas, e mais uma vez, é sobre a solidão.

“Sonhar com Leões”, assim como “Estamos no Ar”, são ambas comédias. Gostaria que me falasse sobre a sua relação com o género, ou tom digamos, e as suas dificuldades. 

Adoro fazer comédia, agora, as dificuldades de o fazer, julgo que me comédia devemos sempre procurar uma verdade, se não fica desinteressante. O importante da comédia é a capacidade de rirmos de nós próprios. Quando é só "bonecos", é treta ...

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Pegando na questão da comédia, lembro que vi uma peça em que era a protagonista - “O Livro de Pantagruel” - uma encenação de Ricardo Neves-Neves, em que o humor, negro e sarcástico, e igualmente politizado estava presente. Esta volta para referir aquele que é o seu habitat natural, o teatro. E até porque recentemente contracenou com António Mortágua numa adaptação do “Um Eléctrico Chamado Desejo” de Tennessee Williams.

Sim, foi encenado pelo Bruno Bravo. O teatro será sempre a minha casa; foi onde comecei, e sinto sempre a falta de o fazer. É um lugar de procura, de autodescoberta, e, enquanto continuar a ser assim, fico satisfeita. Mas, na realidade, também preciso de outras 'coisas', de outras realidades.

… e daí, o Cinema estar na equação?

Sinceramente, não tenho a possibilidade de escolher e controlar a minha carreira. Vou apenas “andando" e tento aproveitar o que vai surgindo. Tenho tido sorte, porque têm aparecido projetos distintos e variados, mas, na verdade, não tenho como dizer que sim ou que não ou escolher meticulosamente o que vou fazer — em Portugal isso é praticamente impossível. A maior liberdade de escolha que tenho é quando enceno, nas peças que decido montar e assim por diante, porque, como atriz, o que acontece é o que vai sendo sugerido.

Julgo que foi em entrevista para o Teatro São Luiz que a Sandra Faleiro falou da sua insegurança e como ela funciona como seu mote para avançar e abraçar os desafios.

Tem a ver com um lado obstinado, de me desafiar e de tentar ultrapassar obstáculos — mas acho que, de uma forma ou de outra, todos nós fazemos isso. O trabalho de ator exige muito e requer uma grande disponibilidade; é desgastante e, ao mesmo tempo, maravilhoso. Também traz à superfície todos aqueles fantasmas que temos, as inseguranças, as dúvidas. Todos temos que lidar com isso constantemente.

Só para terminar, gostava que falasse sobre os seus novos projetos, seja em que plataforma for.

Vou entrar numa nova peça com o Ricardo Neves-Neves, que estará no Teatro Trindade em dezembro, e também vou voltar a trabalhar com a Cristina Carvalhal. E pronto... este ano continua assim, mais um ano muito teatral.

Estamos com Sandra Faleiro!

Hugo Gomes, 27.05.24

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Muita comparação com as primeiras comédias negras almodovarianas têm sido reunidas num consensual coro, da mesma forma que o encosto de Sandra Faleiro à magnética presença da diva do pastiche Carmen Maura. Contudo tentaremos abandonar por momentos essas vibes, que de certo correspondem a influências, e foquemos neste “Estamos no Ar”, o salto cumprido de Diogo Costa Amarante (“Cidade Pequena”) ao reino das longas, numa comédia dramática com o seu quê queer, mas sobretudo envolto numa atriz a merecer mais destaque que estes ventos lhe dão. Sim, ela mesmo, Sandra Faleiro. 

A sua personagem tem tanto de figura aportuguesada e moderada, oprimida pelas cânones sociais ainda em vigor, como também rasgada pela tentação, essa fantasia ardente que reacende com faros tradicionais, ou seja, a farda repescada enquanto afrodisíaco do desejo sexual. Mulher de meia-idade, de seios fartos e cirurgicamente operados como doce chamariz ao(s) seu(s) vizinho(s), um pela boa conduta de vizinhança - um trabalho de lavandaria aqui e acolá como satisfação de necessidades - e do outro lado da janela em modo “Rear Window” encavalitado com a perversão de “Peeping Tom”, o flirt pelo desconhecido quando o Tinder é somente visto como engate pouco discreto. 

Ela, sim, a nossa vedeta cinematográfica, aliás, de vários palcos, como pudemos “ver” [sendo o teatro nicho nestas lides] enquanto canibal sarcástica e de seduções nata em “O Livro de Pantagruel”, com encenação de Ricardo Neves-Neves. Há um elemento ultra-sexualizado na sua presença voluntariamente insonsa, como subjugada aos tabus da sua mente e as possibilidades deste prolongar delírios de coitos e abraços imaginários, mas é mesmo esse interior vandalizado, ou melhor, invadido que a acarreta-lhe medo. Um rato passeia alegremente no seu domicílio, roedor que provoca náuseas e insónias à personagem de Sandra Faleiro, sendo essa criatura uma representação animalesca do seu espírito pregado ao poder das suas sexualizadas projecções. 

Estamos no Ar” é um filme sobre sexo, respirando e suando por todos os esporos, revelando-se na sua essência uma ousadia como golpe desferido ao relato dos “bons costumes” à português de mandar. Entre Carloto Cotta ocultando a sua homossexualidade por entre fardas “emprestadas” (a identidade por via da vestimenta) e de Valerie Braddell (atriz que esteve em alta na curta “As Sacrificadas” de Aurélie Oliveira Pernet) a servir de peculiar viuva que na dominância do seu luto, solicita o corpo da sua melhor amiga para uma experiência quase frankensteniana, a de reavivar o seu falecido marido: personagens à deriva da sua sexualidade fragilizada detidas por uma sociedade que lhes dita como comportar. 

Diogo Costa Amarante engendra a ratoeira de estéticas neon, de sonhos febris em esverdeadas luzes frias, e concretiza um mosaico à lá Beleza Portuguesa, o que se esconde, ou que escondemos nos nossos “refúgios”, sejam físicos [corpo e imóvel], sejam mentais e sentimentais? Porém, a sua conjugação de histórias repartidas não é de todo fluída, demasiado fragmentadas, como curtas em separação de bens que se reúnem em equivocadas e embebidas festas na combustão do álcool e de preservativos nos bolsos para alguma ocasião. Mas, no seu coração, no seu centro, deparamos com uma atriz que aos seus 50 anos ostenta a sua redescoberta “flor da juventude”. Estamos com Sandra Faleiro!

Grândola, Vila Morena

Hugo Gomes, 25.04.20

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Uma das mais fortes e recentes menções sobre o 25 de Abril no Cinema Português, é aquela demonstrada em A Herdade, onde as personagens interpretadas por Albano Jerónimo (João) e Sandra Faleiro (Leonor) cada vez mais temendo pela preservação do seu paraíso embatem-se num inesperado “milagre” no escuro breu da noite, após saírem de um improvisado “refúgio das velhas tradições”. A rádio ligada transmite sonoridade o qual nunca tinham ouvido antes, ao mesmo tempo em que as chaimites “peregrinas” cruzam-se nos seus caminhos. A partir daqui, é história feita, nada seria como dantes, nem mesmo Portugal, país sufocado pelo seu estado de estagnação, regressaria à inicial forma.

Tiago Guedes abordou os fantasmas desse país em ruína, o seu interiorizado patriarcado presente na gestão de uma terreno alegórico às causas e devaneios sociopolíticos, girando envolto à decadência do seu rei no seu pequeno “castelo”, o senhor da ilha que o cerca do exterior antagónico e que o faz ser grande durante a sua verdadeira pequenez. A Herdade é um filme sobre essas cicatrizes que adquiram uma força de negação perante novos ventos populistas. Um conto do passado com ecos no nosso presente.

Que "cinema português" habita na "A Herdade"?

Hugo Gomes, 15.09.19

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As vozes mais otimistas mencionam “A Herdade” como um culminar de décadas de um cinema que sempre se distanciou do seu público, quer pelo (seguindo o senso-comum) panorama autoral algo umbiguista, quer pelas tentativas de aproximação, que resultaram numa espécie de amadorismo, não apenas no sentido técnico e estético, mas também semiótico. Não tentaremos aqui reduzir todo o cinema nacional a uma “barriga de aluguer” para esta produção certeira de Paulo Branco, nem indicar o filme-encomenda de Tiago Guedes como o exemplar seminal: "A Herdade" é um filme litoral, nem tanto à terra (pelos traços do facilitismo e comercialidade tendenciosa), nem tanto ao mar (dando a liberdade total ao seu autor).

Joga pelo seguro de uma forma confiante e, acima de tudo, não menosprezando a sua natureza – a de estar inserido no cinema português. Talvez seja por isso que esta história que atravessa gerações ostenta um trabalho invejável quer na "mise-en-scène" por vezes idílica, quer nas cartilhas político-sociais que enriquecem o ambiente envolto deste conto moralista e metafórico no qual o seu protagonista, João (um Albano Jerónimo de garra) se insere com estranheza. Tiago Guedes, realizador que tem desafiado o estigma com o culto de “Coisa Ruim” (co-realizado com Frederico Serra, 2005) ou do atípico (e não para todos os paladares) “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas” (2019, com estreia futura nas nossas salas), incorpora essa segurança, planificando esta trama, que facilmente cairia em contornos novelescos, através de um acordo com o memorialístico da cinefilia profunda.

O "travelling" que não quebra na boda, como o duelo de recordações e saudosismos enterrados no salão de baile de “Il Gattopardo" de Luchino Visconti, ou o jantar de família onde o fervor patriarcal será embatido, espelham em certas ocasiões um classicismo digno dos padrões cénicos de uma Hollywood hoje preservada nas nossas raízes (destaque para a fotografia de João Lança Morais).  Tiago Guedes configura toda uma obra ditada pela excelência e perversão do seu guião, ao mesmo que se concentra em distribuí-las por uma narrativa igualmente visual e virtuosa para o olhar.

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A única “erva-daninha” em toda esta colheita encontra-se em departamentos limitados que não se conseguiu contornar, nomeadamente o sector da caracterização e maquilhagem, que evidencia anomalias para envelhecer as personagens. Ou no dispositivo entranhado "à lá Eça Queiroz", que atrasa mais o ritmo do que o dinamiza. Seja como for, apesar das semelhanças, a nível estrutural e na convergência do argumento, “A Herdade” supera o seu afastado primo e pastelão “The House of the Spirits” / “A Casa dos Espíritos” (a Argentina filmada no Alentejo por Billie August) graças à familiaridade com os elementos que joga e pela regulamentação da sua pomposidade para os nossos devidos encaixes.

Contudo, voltando a afirmar, Tiago Guedes constrói um filme de respeito na nossa cinematografia, que faz boa figura perante produções maiores da indústria internacional. Um conto que desmonta o patriarcado num tom de passividade crónica, detido por uma linguagem que venera o cinema universal.