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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O sacrifício de um cervo sagrado

Hugo Gomes, 29.03.24

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Com um percurso brindado com premiações - sendo a mais notável o Óscar conquistado na categoria de Melhor Filme Internacional, tendo algumas nomeações longe de serem desmerecedoras, como a de Melhor Filme e Realizador - Ryusuke Hamaguchi enfrenta agora o seu próximo grande desafio-dilema: ceder-se à luz do ouro da estatueta americana ou renegar essa escalada numa aposta... como diriam os Monty Python, "agora, algo completamente diferente". E foi isso que aconteceu, seguindo pela última via, invertendo a marcha como realizador de “world cinema”.

Para pernoitarmos em "Evil Does Not Exist", é importante entender o percurso e a sua preparação. O projeto iniciou-se através de um convite da compositora Eiko Ishibashi, que após a colaboração em "Drive My Car" (essa consagração de Hamaguchi), propôs ao realizador um trabalho visual que acompanhasse a sua nova partitura. O resultado foi "Gift"; porém, irrequieto criativamente, o autor expandiu essa mesma metragem-acompanhamento, adicionando diálogos, um enredo para além do visual, germinando assim a obra que nos deparamos. Embora com as suas transformações, mantém-se como um «filme mudo» na sua essência, que como o seu protagonista Takumi (Hitoshi Omika), mantém uma dependência espiritual para com o seu monte, a sua natureza, o ecossistema aí ameaçado pelo futuro empreendimento de “glamping” (glamour + camping).

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O filme abre-nos com esse espírito, o convite do realizador (e compositora) ao espectador, a proposta para que se olhe para o céu, este, “refugiado” por entre ramos e ramificações das copas das árvores que compõem este mítico bosque, um refúgio para o que aí virá, quer para o protagonista, para o espectador, ou para com a cadência bucolista. Não tão depressa, visto que a contemplação está na duração de uma passagem de créditos, chegamos a Takumi, homem aparentemente solitário, aproveitando o riacho para fornecer água a uma modesta casa de udon no vilarejo ali perto. E como bem percebemos, é um ritual, um episódio do seu quotidiano a roçar ao eremítico. O espectador, mais uma vez, é "convidado" a ficar-se pelos trajetos do transporte à fonte, apenas para que o som de um disparo, vindo do outro lado da montanha, assim informa Takumi, interrompa pacificamente a estadia do nosso protagonista (estrondo a soar como delimitador de atos, ou pré-avisos de “maldades” não declaradas). A natureza é aqui o mote, o tempo, a sua paciência, calma como uma meditação induzida, levando-nos a um estado de quietude permanente.

Até à chegada do aparente antagonista - uma vez mais o uso do “aparente”, dando conta que se trata de um trabalho sobre engodos e aparências, e nunca de conformações fáceis - o filme reage a um confronto ecológico e umas quantas fintas pelo caminho que subvertem a expectativa do espectador, que por sua vez sente-se traído pelos inúmeros “convites” feitos até então. Pois bem, até ao seu “aparente” clímax (peço-vos para que esta seja a última utilização de tal adjetivo), o espectador facilmente sairá decepcionado, mas será mesmo por culpa do filme, de Hamaguchi ou do aparente storytelling? (menti-vos não foi? Nem no crítico dá para confiar) Indico três motivos para nos sentirmos assim, e por sua vez, sairmos deslumbrados pela acidez reservada no recheio deste "bombom".

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A primeira, o facto de Hamaguchi não ser igual a si próprio, e ao mesmo tempo ser, ou seja, de natureza errática, nunca reproduzindo uma fórmula - mesmo que haja um trajeto que as une, e essa seja a comunicação e a sua árdua tarefa de a manter a um nível estático - a esse campo podemos apontar influência do seu professor, Kiyoshi Kurosawa. Segunda razão, a dependência do espectador atual pela imperatividade do chamado e por vezes limitado storytelling, da razão de tudo e de todas coisas na perceptibilidade dos mesmos, o que farão eles sem essa dominância? Estarão sozinhos na deriva, ou nadarão para encontrar a sua “terra à vista”? E terceiro e último ponto, aquela reviravolta, será ela um gesto de oportunismo que defronta as definições de maniqueismos nos dias de hoje, ou melhor, será a gravidade do ato invalidado pela nobreza da causa? Não se trata de ecologia enfiada a “goela abaixo”, antes a filosofia por detrás dessa fachada ecológica, o Humanismo e a sua natureza animalesca, atada com nós de marinheiro a imagens-alegóricas e fantasmagóricas, cervos, esses espíritos “niponizados”, feridos e ameaçados, em defesa não só da sua vida, como também do pequeno Império que os detém. 

Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.

Avista-se amadurecimento ...

Hugo Gomes, 18.03.24

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Ryusuke Hamaguchi a não desiludir, demonstra-se "bicho-carpinteiro", a não dar o dito pelo dito, nem se vergar por uma única fórmula. Um realizador que me chegou com elogios exagerados com doppelgangers e “horas felizes” tem amadurecido, os louvores ornamentam-lhe a cabeça desde que girou uma certa "Roda Fortuna", agora, com este passeio silvestre e místico onde  natureza humana manifesta-se mas não cede a bicolores, saímos encantados com algo simples, mas igualmente complexo ... portanto, façam uma boa viagem!

Os Melhores Filmes de 2022, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 28.12.22

Em 2022 pude constatar a queda anunciada do cinema norte-americano, por mais que se tente rechear as nossas salas comerciais com produções à lá Hollywood, pouco ou nada saem deles para além de fórmulas, refilmagens sob selos de novidades, produtos direcionados ao streaming e super-heróis com fartura (demonstrando a sua regra equacional a servirem para universos partilhados).

Num ano em que “Avatar” chega com a soberba atitude de experiência de sala, um “Top Gun”, outra aguardada sequela, abre caminho por via do físico a possibilidade sensorial em sala, isto num ano em que a Academia decidiu promover um filme de streaming (“CODA”, que num estalar de dedos caiu no esquecimento). Se existe filme de Hollywood a merecer destaque neste ano, então Maverick e Tom Cruise (de difícil desassociação) levam a medalha. Porém, também foi o ano em que Michelle Yeoh pode finalmente brilhar nas terra-yankee graças ao frenesim entre o parvo e de genial que fora “Everything Everywhere All at Once” de Dan Kwan e Daniel Scheinert, ou das memórias cinéfilas de Spielberg em “The Fabelmans”, ou do terror de mãos dadas para com o seu legado cinematográfico - “Nope”, de Jordan Peele e “X” de Ti West

Mas este 2022 a congregação de 10 filmes foram para mim difíceis, o que automaticamente me deixa agradado com o turbilhão de novas vozes e novos movimentos que florescem por este Mundo fora, do Japão ao Irão, da França à Suíça, da Noruega ao México, da Coreia do Sul a Portugal. E falando em território nacional, destaco 12 meses recheadas em variadas e diversificadas produções; o rural novamente motor de inspiração ("Alma Viva”, “Restos do Vento), um João Botelho livre e fluido (“Um Filme em Forma de Assim”) e uma surpresa na realização (“Revolta”), já em temática de festivais [ainda sem estreia comercial], as questões identitárias e geracionais com deslumbre encanto ("Périphérique Nord”, “Super Natural”, "Frágil", “A Visita e um Jardim Secreto”, “O Que Podem as Palavras"), mas apesar desse leque de possibilidades, a minha escolha nacional cedeu à melancolia, à incerteza, ao fim da juventude retratado no misterioso “28 ½” de Adriano Mendes

Segue os dez filmes do ano, segundo o Cinematograficamente Falando e respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) 28 ½

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“Doloroso, é verdade, de igual forma que deparamos com a nossa impotência perante o “mundo em cacos” o qual tentamos ignorar - a sequência do comboio, o momento mais hitchcockiano que o nosso cinema português já produziu (e não por decorrer no interior de uma carruagem, mas pelo trabalhado “suspense” oferecido a um espectador com conhecimento suficiente, por exemplo, de que a personagem de Anabela Caetano tem destreza física e experiência para lidar com tão incomoda situação). E são estas constatações, este peso concentrado que nos faz duvidar de tudo e de todos. Perdemos a inocência, fiquemos só a aguardar pelo inesperado, com a fé de este “incógnito” resgate-nos deste estado de existencialismo passivo.” Ler crítica

 

#09) La Civil

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“Por entre guerras de cartéis, Mihai espelha uma descida infernal de uma “inocente”, um mero dano colateral, que cuja contaminação com este ambiente a transforma numa espécie de impiedoso anjo da vingança. Tudo isto lido entrelinhas, de câmara à mão, orbitando de volta à ação e sugerindo mais do que expondo. “La Civil” escapa dos lugares-comuns pela sua imposição de poder, descortinando as vozes silenciadas de uma disputa moral.” Ler crítica

 

#08) A Hero

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“Através deste “regalo”, somos induzidos a um confronto entre razões e uma proposta de desconstrução arquitetónica (cada com a sua perspetiva) à definição de “herói”, o indivíduo máximo da moralidade na sociedade. O retorno ao Irão é propício a esses dilemas, uma sociedade “estranha” aos olhos ocidentais opera como uma distopia possível sobre as mais variadas questões morais e éticas. Como tal, “A Hero” é uma “caixinha” de tópicos para um debate pós-sessão, e Farhadi feliz para que isso aconteça.” Ler crítica

 

#07) In Front of your Face

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“E aí está o trunfo deste enésimo filme, um Hong Sang-soo amadurecido, elegante e delicado na sua estética (sem com isso ceder a “makeovers” radicais), que nos fala sobre vida, morte e promessas vencidas e embebidas em álcool, por sua vez de “pinga envelhecida", sem nunca descrer da sensibilidade desses mesmos temas, com quem encara o encerramento já visível do outro lado da esquina. Deste lado o cético que testemunhou um milagre, pequeno mas que basta, num cinema que sempre fora mais preocupado em alimentar o seu culto do que verdadeiramente interrogar as suas próprias emoções.” Ler crítica

 

#06) Onoda, 10 000 nuits dans la jungle

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O Cinema é também memória, não em jeito memorialista e intimista, mas antes de uma lembrança do que esta arte foi e do percurso percorrido até à sua presente forma. Embora “Onoda” seja uma produção atual, é um filme hoje impraticável pelas mais diferentes razões. Não se trata de resumir ou mencionar gestos de outros e de distantes tempos, Arthur Harari persiste numa vinheta histórica para aludir ao “coração das trevas”, abraçando a selva como a mais eterna inimiga dos Homens. Tropicalismo? Exotismo? Nada disso, esta floresta que albergará os últimos resíduo de uma Guerra desvanecida assume-se como uma armadilha, um labiríntico cativeiro, onde o tempo estagnou num cruel sigilo e a carne está predestinada à sua regressão natural. Harari cumpriu, onde muitos falharam, o de trazer de volta um Cinema físico, protetor da sua herança e com ela a possibilidade de avançar “mato a dentro”. 

 

#05) Azor 

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““Azor”, primeira longa-metragem do suíço Andreas Fontana, marcou presença na edição de 2021 da Berlinale na secção Encounters, um thriller assombroso que tece um universo que bem poderia ser extraído dos enésimos “filmes sobre Máfia” ou dos gestos calculados e maturados de Costa-Gavras. Aqui, nesta Argentina dos anos 80, sem nunca condicionar a um evento histórico preciso, o silêncio é de ouro e a meticulosidade poderá garantir a nossa sobrevivência nesta descida ao inferno capital.” Ler entrevista ao realizador

 

#04) Un Monde

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“Não olhemos para as crianças como um poço de inocência, mas antes como “peregrinos” que desbravam “novos mundo”, claramente “novos” diante dos seus respectivos olhos, e é esse “mundo, a palavra transportada do título original (“Un Monde”) que Laura Wandel concretiza um tratado experiencial num biótopo a nós familiar, e igualmente distante.” Ler entrevista com a realizadora

 

#03) Vortex

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O tempo destrói tudo”. Gaspar Noé "pavoneou" esse lema ao longo da sua filmografia, todas elas indiciadas no ato de provocar. Enfim, o tempo ameaçou destruir, até porque Noé, perante uma  hemorragia cerebral que o quase levou às “portas da morte”, desliga-se dos aspectos xamânicos e místicos, ou da crueldade exaltante em ira, que testemunhamos nos seus filme para se partir numa claustrofobia formal e existencial. Protagonizado por Dario Argento, demonstrando-se decadência física (ontem, um “maestro” do terror, hoje, uma vítima do terror pendular da sua expirável “carcaça”), “Vortex” veste-se de negrume desumano, discreto, e acutilante a um quotidiano vencido, corpos arrastam-se e mentes dilaceram perante o voraz apetite do tempo. Em jeito de “split-screen”, amantes que depois do seu coro distanciam, mais e mais, até que os vestígios do seu último sopro temporariamente instalam-se nos lençóis usados. Morte, fim, nada de digno, nada de romântico, Gaspar Noé parece saber do que fala.

 

#02) The Worst Person in the World

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The Worst Person in the World” é de uma manobra arriscada em pleno século XXI que é o de dar uma oportunidade a estas mesmas personagens de recontar as suas vivências, e demonstrar que ainda há espaço para elas, sem as glorificar ou as vitimar. No fundo, aquela pessoa “horrível”, a “culpa europeia branca sentada no sofá”, é um fruto social que revolta-se silenciosamente contra esses parâmetros. Ler crítica

 

#01) Drive My Car

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“Poderíamos dizer tanta “coisa” sobre “Drive My Car”, poderia e posso, mas é ao terceiro visionamento que percebo, emocionalmente, a cerne de toda aquela palavra (Hamaguchi contou-me o quanto a palavra se tornou no motor do seu Cinema) não está na conquista dos sentimentos, mas as tréguas para com as nossas mágoas, aquilo que nos endurece perante um “mundo em chamas”. Talvez o meu "refúgio de cartão” esteja no Cinema, como disse em tempos, este parece comunicar comigo, ou é somente a manifestação do seu lado zeitgeist, e nós não somos tão “especiais” assim. Conforme seja a verdade absolutista, um facto é que “Drive My Car” vive entre nós, é um filme do nosso tempo projetado para quem olha para ele com desconfiança.” Ler Texto

 

Outras menções: Everything Everywhere All at Once, Nope, Top Gun: Maverick, Memory Box, Flee, The Girl and the Spider

Oscars 2022: o Cinema é secundário quando temos "bofetadas" em direto

Hugo Gomes, 28.03.22

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The Power of the Dog” foi o grande vitorioso e simultaneamente o grande derrotado. Se por um lado a neozelandesa Jane Campion venceu o prémio de realização (a terceira mulher na História das estatuetas),  dando a entender o favoritismo do seu western desconstrutivo (desde o western spaghetti, que não existe western que não seja desconstrutivo), mas cujo apelo emocional e a atenção da representatividade levam o Óscar máximo à apropriação yankee de “La Famille Bélier” (sim, “CODA” é um remake do êxito francês). E foi através deste filme de família, que muitos juram ser simpático e de coração meloso (até à data deste texto não o vi por várias razões, uma delas é por já ter presenciado a versão francesa), que a fronteira de legitimação dos streamings neste contexto premiável foi totalmente trespassado. O mercado e o mundo vai mudar a partir de hoje. Em Portugal (novamente frisando, até à data deste texto), o "CODA'' apenas está disponível na Apple TV, e quem sabe ainda teremos que aguardar para o ver em grande ecrã (ou se calhar não, visto já não ser mais prioridade).

Enquanto isso, “Duna”, previsível, saí-se triunfante nas categorias técnicas, os lobbies das majors fizeram novamente sentir em muitas outras categoria, para ser exato a Disney com “Encanto” (uma perversa animação que ostenta a falta de criatividade no meio) e “Summer of Soul” a lesionarem “Flee” (Animação e Documentário respectivamente), já no Filme Internacional, “Drive My Car” sai compensado. Depois de Secundários merecidos, Ariana DeBose (no mesmo papel que garantiu também a estátua a Rita Moreno em 1961) foi de facto das melhores “coisas” da revisão e declaração amorosa de Spielberg a “West Side Story”, o último ato é marcado com decisões acima de tudo estranhas e fora das habituais apostas, a começar por Belfast como Argumento Original (The Worst Person in the World ficou a ver “navios”), “CODA” torna-se no melhor guião adaptado (“Drive My Car” e “The Power of the Dog” juntaram-se ao filme do Trier no miradouro), Jessica Chastain (“The Eyes of Tammy Faye”) passa à frente de Olivia Colman (“The Lost Daughter”) e Kristen Stewart (“Spencer”) em Melhor Atriz e Will Smith (“The King Richard") triunfa sobre o favorito Benedict Cumberbatch na categoria masculina.

Cerimónia desesperada em reconquistar público, marginalizando as categorias técnicas da festa televisiva e priorizando as performances artísticas e as boas intenções, assim como a hipocrisia (ver Francis Ford Coppola em palco celebrando os 50 anos de “The Godfather” enquanto a indústria tem o desprezado nestes últimos anos). No fim de contas, os Óscares são o que são, fala-se menos de Cinema e fala-se mais de espectáculo e a tendência é cada vez mais nessa direção até a sua relevância ser totalmente desvanecida. Porém, nada importa aqui, Will Smith esbofeteou Chris Rock e é disso que se fala.

Oscars 2022: O Padrão, O Cenário e o Desabafo

Hugo Gomes, 27.03.22

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Irritações sobre os Óscares. Um convite de Roni Nunes para o seu site Cultura XXI.
 
"Nesta última indicação gostaria de deixar a minha oposição à Academia Americana e invocar o discurso vitorioso de Bong Joon Ho de estatueta de Melhor Filme na mão: “quando ultrapassamos a barreira das legendas, acedemos a tantos magníficos filmes”. Talvez seja essa a resposta à angústia dos Óscares, essa abertura, internacional digamos (até como ofensiva a uma indústria cada vez mais decadente e homogeneizada), mas também na perda dos preconceitos quanto a géneros e a abordagens. Novamente celebrar Cinema e não apenas “glamour”, se é que um dia os Óscares foram sobre o cinema propriamente dito."
 
Para ler aqui.
 

Quem nos pode conduzir pelo vazio desta vida?

Hugo Gomes, 14.03.22

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Isto não é uma Crítica de Cinema, aliás, o que será uma Crítica de Cinema? Mas seguido adiante da reflexão, o que quero sublinhar é a capacidade que por vezes um filme tem de crescer em tão pouco tempo, seja na minha memória, ou acima de tudo na minha sensibilidade.

O que por vezes soa umbiguismo em tempos como estes, que vivemos e experienciamos “cataclismos” ao minuto, e que esse mesmo redor realmente questiona-nos sobre a prioridade a dar ao nosso estado e ao nosso sofrimento. Problemas de “primeiro mundo” dirão os mais distantes do meu quadrante. "Drive My Car” é esse filme sobre o luto, vindo de um realizador em plena fase de amadurecimento, um trabalho que prescreve a perda e a torna num aquário existencial. Como lidar com esse vazio? Não iremos vê-los preenchidos, mas há que viver com a dor, criar um vácuo para essa possibilidade não consolidada. Somos seres de estados, e com isso tentamos encontrar um abrigo para essa coexistência. Para Kafuku (Hidetoshi Nishijima) essa “harmonia” artificial resume-se ao interior do seu Saab vermelho na “companhia” da voz da sua mulher ausente (um misto de emoções por digerir, mas é a falta que mais manifesta). Para Misaki (Tôko Miura) é ao volante, de qualquer que seja a sua natureza, de olhos postos na estrada, rumo ao nada, trilhos e caminhos como fuga à sua expressão e impressão.

Poderíamos dizer tanta “coisa” sobre “Drive My Car”, poderia e posso, mas é ao terceiro visionamento que percebo, emocionalmente, a cerne de toda aquela palavra (Hamaguchi contou-me o quanto a palavra se tornou no motor do seu Cinema) não está na conquista dos sentimentos, mas as tréguas para com as nossas mágoas, aquilo que nos endurece perante um “mundo em chamas”. Talvez o meu "refúgio de cartão” esteja no Cinema, como disse em tempos, este parece comunicar comigo, ou é somente a manifestação do seu lado zeitgeist, e nós não somos tão “especiais” assim. Conforme seja a verdade absolutista, um facto é que “Drive My Car” vive entre nós, é um filme do nosso tempo projetado para quem olha para ele com desconfiança.

Cannes 2021: recomecemos fresquinhos para mais uma temporada

Hugo Gomes, 18.07.21

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Dou por terminada mais uma edição do festival, desta marcado pelas imensas saudades que tinha deste ritmo e da quantidade de sexo que a Competição ostentou nesta edição. Normalidade, não foi bem o que tivemos, mas o gosto de proximidade foi deveras revitalizador.

Com 36 filmes vistos e somente 12 entrevistas executadas com realizadores e atores como Ryusuke Hamaguchi, Nanni Moretti, Ari Folman, Tim Roth, Viky Krieps, Louis Garrel e Adèle Exarchopoulos (mais uma vez) e uma Palma de Ouro concretizada a “Titane”, o OVNI da Competição que confirmou a visão de Spike Lee em apostar num cinema arrojado, moderno e de género, fora dos conformismo que muita cinefilia apresenta, a 74ª edição de Cannes mostrou que a Sétima Arte permanece viva e vista em grande tela, em contradição às declarações precoces da sua morte, agravadas pela pandemia e pela expansão dominante do streaming.

Assim, deixo a minha lista de 10 filmes (marcantes diria eu) nesta Seleção, quer Oficial, quer secções paralelas (sem ordem de preferência):
 

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A Hero (Asghar Farhadi) – Competição
 

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Drive My Car (Ryusuke Hamaguchi) – Competição
 

218600966_10219717303819979_2221912876172221315_n. Julie (en 12 chapitres) / The Worst Person in the World (Joachim Trier) – Competição

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La Civil (Teodora Mihai) – Un Certain Regard
 

218772960_10219717303339967_1525778472785753653_n. Onoda, 10 000 nuits dans la jungle (Arthur Harari) – Un Certain Regard 

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Mi Iubita, Mon Amour (Noémie Merlant) – Sessão Especial

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Rien à foutre (Julie Lecoustre e Emmanuel Marre) – Semana da Crítica
 

219407939_10219717304219989_4367070920732744759_n. Stillwater (Tom McCarthy) – Fora de Competição

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Titane (Julia Ducournau) – Competição
 

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Tre Piani (Nanni Moretti) – Competição

Ryusuke Hamaguchi: "encontro-me mais interessado naquilo que os espectadores interpretam do que as minhas próprias definições"

Hugo Gomes, 10.03.21

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The Wheel of Fortune of Fantasy (2021)

Há quem o apelide de “realizador japonês de nicho”, mas a verdade é que Ryûsuke Hamaguchi tem captado cada vez mais atenção no seu percurso. Aluno de Kyoshi Kurosawa, o cineasta tornou-se um nome de luxo através do prémio garantido no Festival de Locarno (em 2015) com o seu épico dramático “Happy Hour: Hora Feliz” (com uns impressionantes 317 minutos de duração).

Seguiu-se o romance com duplos – “Asako I & II” (2018) – que competiu no Festival de Cannes, no ano em que o conterrâneo Hirokazu Kore-eda e “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões” conquistaram a tão invejada Palma de Ouro. Os dois filmes tiveram distribuição portuguesa, conquistando novos adeptos para o seu cinema delicado e plenamente ciente das convenções do quotidiano nipónico.

Conversei com Ryûsuke Hamaguchi a propósito de The Wheel of Fortune of Fantasy, uma das delícias e Grande Prémio de Júri na última edição (virtual) do Festival de Berlim, onde somos levados para um conjunto de três histórias sem aparente ligação: uma mulher descobre que a sua amiga tem um caso romântico o seu ex; outra aceita ser isco numa armadilha sexual para comprometer um consagrado romancista; e a última, num futuro alternativo em que um vírus informático colocou o mundo de “pernas para o ar”, uma trintona acredita ter reencontrado um amor de liceu.

Tratam-se de relatos de um mundo que reprime desejos, afetos e vontades em relação ao próximo, uma verdadeira “Roda da Fortuna” … cuja única solução é girar.

Segundo as suas notas de intenções no dossier de imprensa, este filme é o resultado de três das sete curtas histórias que escreveu. Iremos ver as restantes num futuro próximo?

Sim, planeamos fazer os outros quatro episódios, não num futuro imediato. Mas já estou a ponderar filmar os episódios 4 e 5 em 2022.

Apesar de serem três segmentos narrativamente independentes, julgo que a sua ligação está nas “escolhas”. Ou seja, estas personagens seguem em direção a uma crucial mudança.

Para dizer a verdade, encontro-me mais interessado naquilo que os espectadores interpretam do que as minhas próprias definições. Porque um filme é sempre uma experiência distinta para quem o vê. E ao ouvir a sua interpretação, de que as personagens vivem o resultado das suas escolhas, faz-me querer saber mais daquilo que viu e de outras pessoas. Contudo, não descartando essa sua interpretação, estas histórias são povoadas por personagens que, de uma maneira ou doutra, lhe foram permitidas chances de alterar as suas vidas através de pequenos gestos ou fatores. E estas personagens procuraram interromper esse fluido, a que chamamos "destino", para, de certa forma, descobrirem um outro lado delas próprias.

É sabido que o terceiro capítulo foi rodado no verão de 2020, durante a pandemia. Curiosamente, ele decorre numa distopia próxima onde um vírus informático alterou para sempre a sociedade e as relações afetivas. Esta alusão pandémica leva-me a perguntar sobre os desafios que encontrou ao filmar com estas restrições.

Em termos de produção, principalmente neste terceiro capítulo, pretendia não filmar pessoas que usassem máscaras, sendo que a solução arranjada foi criar um mundo paralelo. Um mundo esse que fosse tão próximo ao nosso, com algumas diferenças. Atualmente já nos estamos a habituar ao cenário. Presenciamos cada vez mais, principalmente em séries televisivas, atores a utilizar a máscara, o que tem sido uma abordagem necessária porque captar a realidade é uma das funções da câmara. É o correto, mas ainda nos restringe. E quanto às outras dificuldades, não é preciso ir muito longe.

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Ryûsuke Hamaguchi

“The Wheel of Fortune and Fantasy” foi o seu reencontro com alguns atores que trabalharam consigo na sua primeira longa-metragem ["Passion", 2008] - principalmente as duas atrizes do terceiro segmento [Fusako Urabe e Aoba Kawai]. Curiosamente, ele intitula-se “Once Again” [Mais uma vez].

Sempre tive o desejo de reunir o elenco do meu “Passion” e já tive várias oportunidades para o fazer. Contudo, pretendia que essa reunião fosse substancial e não uma pequena cordialidade, que me garantisse passar mais tempo com eles e trabalhar intensamente nos projetos. A questão dos atores de “Passion”, daquilo que se extrai da minha experiência com eles, é que para além de serem atores maravilhosos, são maravilhas enquanto pessoas. Pretendo trabalhar mais vezes com eles num futuro próximo. Espero que seja uma relação duradoura. A minha maneira de trabalhar e pessoal forma de filmar mudaram bastante desde “Passion”, por isso era importante para mim, visto que desejava trabalhar novamente com eles, reafirmar esta minha mudança. É a minha afirmação perante eles. Este é o meu novo “eu” enquanto realizador, o que não invalida, aliás reforça, o meu encanto nesta reunião. E ao fazer isto, tornaria esta relação ainda mais profunda.

Como encara a indústria nipónica na atualidade? Pergunto isto visto que, como o definiu, a sua obra anterior ["Asako I & II"] é um “filme comercial”.

Antes de responder a isso, deixe-me só clarificar as nuances. Aquilo que nós [japoneses] chamamos de “shōgyō eiga”, que literalmente traduzido é “cinema comercial”, não possui a mesma ligação com o “cinema comercial” na disposição ocidental, aquele que facilmente associamos ao cinema-pipoca, "blockbusters" ou os filmes recordistas de bilheteira. Mas falemos da indústria, do negócio, porque ele é necessário para que possamos desenvolver a técnica e o equipamento que nos permitem fazer melhores e melhores filmes. Acerca disso, não tenho problemas com o dito “cinema comercial”.

Mas se eu pudesse falar sobre os problemas que a indústria japonesa enfrenta hoje em dia, abordaria a falta de dinheiro, como também a forma como este é distribuído... obviamente, da maneira errada. E se continuasse com os problemas, acrescentaria ainda que existe a questão do tempo. Pouco tempo no processo de produção. Recordo uma conversa com Jacques Doillon, um cineasta francês que aprecio bastante, que confessava as dificuldades no seu último filme, nomeadamente o pouco tempo que dispôs para o filmar. Curioso como sou, questionei-o acerca desse mesmo tempo de rodagem. A resposta foram três meses, o que me deixou surpreendido porque no Japão não dispomos desse tempo. Aqui é particularmente difícil obter um mês de rodagem, e quando conseguimos é quase um luxo. Obviamente que, com isto, não estou a referir que quanto mais tempo obtemos para a rodagem, melhor será o filme. Contudo, são as adversidades que angariamos na agenda que nos dificultam ainda mais conceber um filme....

Mil e uma coincidências em tempos de solidão

Hugo Gomes, 07.03.21

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Com “felizes horas” passadas (não sendo uma menção ao acaso, visto que é o regresso do realizador na alçada da produção de Satoshi Takada de “Happy Hour: Hora Feliz”, em 2015), Ryûsuke Hamaguchi converte-se numa Sheherazade dos contos de solidão e repreensão na sua roda da sorte e de fantasia, trazendo à “vida” três das suas sete histórias (o realizador garantiu-nos que iremos conhecer as restantes quatro em projetos futuros). A trindade de historietas, todas elas protagonizadas por mulheres (vítimas do humor trocista do destino, são motivadas pelas escolhas, muitas delas disfarçadas por meras coincidências). Assim, Hamaguchi saído da sua experiência “comercial” (o caracterizado “shōgyō eiga” [termo nipónico para cinema comercial japonês, porém das convencionalidades do cinema pipoca norte-americano] “Asako I & II”) remexe na sensibilidade destas figuras solitárias e repreendidas.

No primeiro capítulo – intitulado de “Magic (or Something Less Assuring”)” – somos levados a um regresso ao passado indiciado num pertinente acaso. Nunca se deve voltar ao lugar onde fomos felizes, ou aquele que o qual, nunca percebemos, até então, que alguma vez o fomos. Seria este o conselho dado a Meiko (Kotone Furukawa), que descobre por via de uma conversa casual com a sua amiga Tsugumi (Hyunri), de que esta tem encontros românticos com o seu datado ex (sem esta desconhecer a natureza e historial daquele homem). Depois do diálogo, um desejo ardente renasce nela e de modo instintivo confronta o seu antigo amante. Do conjunto, este é o conto mais sádico e perverso, interiorizando uma certa repreensão sexual que desafia os códigos romanescos do afeto. Possivelmente, tal por efeito daqueles zooms desengonçados que aludem um certo autor sul-coreano, Hamaguchi parece interessado em incutir um cinema habitual em Hong Sang Soo … e não somente em aspetos formais … um moralismo “rohmeriano” que se adequa a questões quânticas e dimensionais. Uma espécie de gato de Schrödinger no seu mundanismo.

Já o segundo tomo – “Door Wide Open” – continuamos nas demandas sexualmente repreensivas. Desta vez uma mulher – Nao (Katsuki Mori) – servida de isco numa armadilha sexual, uma vingança planeada para comprometer um consagrado romancista e professor, transforma-se num conto erotizado quanto à sua verbalização, discutindo a fantasia em territórios, novamente, “rohmerianos”. Em seu jeito, funciona como um humorístico castigo divino, mas atinge, nas suas devidas alturas um vínculo espiritual para com a capacidade do criador – “as minhas palavras têm ressonância na experiência do leitor” – ouve-se a certa altura. E porque não assumi-lo como um canalizador de todo este percurso a três. Contudo, é na chegada à terceira curta-metragem que deparamos com a grande galinha de ouro nesta “roda afortunada”.

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Once Again” (sendo este o título atribuído) leva-nos a um futuro ali ao lado com uma particular distopia, um vírus informático com a capacidade de alterar para todo o sempre a nossa sociedade, expondo os nossos segredos e questionando as nossas próprias relações (curiosamente este segmento foi rodado em plena pandemia). Aí, Moka (Fusako Urabe), uma mulher na casa dos trinta, encontra uma mulher (Aoba Kawai) que lhe faz lembrar um antigo amor de liceu. O suposto reencontro é mais uma partida desse mesmo destino e Hamaguchi inverte essa crueldade em prol de um ensaio sensível sobre os afetos, memórias e sentimentos revividos, colocando-nos numa bandeja de artificialidade quanto a estas mesmas definições. Ou seja, nada é puro, e por sua vez existe pureza.

Confusos? Sim. Porque todas as definições, daquilo que nos garantem como genuínos sentimentos ou relações, somos evidenciados como construções dedicadas, por vezes desabadas, e resumidamente erguidas com igual paixão. Hamaguchi sabe o quanto especial é este episódio, esta revisitação, e por isso, as duas [e em grande parte do tempo únicas no seu mundo] protagonistas são atrizes “resgatadas” da sua primeira longa-metragem (“Passion”, 2008). O reencontro é nesta feita um ciclo emaranhado na sua própria criatividade.

No final há aquele zoom mal-amparado à lá Hong Sang Soo (outra vez!), mas já não interessa. Perdoamos Hamaguchi desse esse mesmo desleixo, a jornada que nos trouxe nesses perfeitos desconhecidos e imperfeitos conhecidos é uma das brilhantes histórias contadas no seio de uma pandemia. “Once Again”, por si, é uma jóia rara.

Pode alguém que vive uma vida aborrecida escrever um romance?