O sacrifício de um cervo sagrado
Com um percurso brindado com premiações - sendo a mais notável o Óscar conquistado na categoria de Melhor Filme Internacional, tendo algumas nomeações longe de serem desmerecedoras, como a de Melhor Filme e Realizador - Ryusuke Hamaguchi enfrenta agora o seu próximo grande desafio-dilema: ceder-se à luz do ouro da estatueta americana ou renegar essa escalada numa aposta... como diriam os Monty Python, "agora, algo completamente diferente". E foi isso que aconteceu, seguindo pela última via, invertendo a marcha como realizador de “world cinema”.
Para pernoitarmos em "Evil Does Not Exist", é importante entender o percurso e a sua preparação. O projeto iniciou-se através de um convite da compositora Eiko Ishibashi, que após a colaboração em "Drive My Car" (essa consagração de Hamaguchi), propôs ao realizador um trabalho visual que acompanhasse a sua nova partitura. O resultado foi "Gift"; porém, irrequieto criativamente, o autor expandiu essa mesma metragem-acompanhamento, adicionando diálogos, um enredo para além do visual, germinando assim a obra que nos deparamos. Embora com as suas transformações, mantém-se como um «filme mudo» na sua essência, que como o seu protagonista Takumi (Hitoshi Omika), mantém uma dependência espiritual para com o seu monte, a sua natureza, o ecossistema aí ameaçado pelo futuro empreendimento de “glamping” (glamour + camping).
O filme abre-nos com esse espírito, o convite do realizador (e compositora) ao espectador, a proposta para que se olhe para o céu, este, “refugiado” por entre ramos e ramificações das copas das árvores que compõem este mítico bosque, um refúgio para o que aí virá, quer para o protagonista, para o espectador, ou para com a cadência bucolista. Não tão depressa, visto que a contemplação está na duração de uma passagem de créditos, chegamos a Takumi, homem aparentemente solitário, aproveitando o riacho para fornecer água a uma modesta casa de udon no vilarejo ali perto. E como bem percebemos, é um ritual, um episódio do seu quotidiano a roçar ao eremítico. O espectador, mais uma vez, é "convidado" a ficar-se pelos trajetos do transporte à fonte, apenas para que o som de um disparo, vindo do outro lado da montanha, assim informa Takumi, interrompa pacificamente a estadia do nosso protagonista (estrondo a soar como delimitador de atos, ou pré-avisos de “maldades” não declaradas). A natureza é aqui o mote, o tempo, a sua paciência, calma como uma meditação induzida, levando-nos a um estado de quietude permanente.
Até à chegada do aparente antagonista - uma vez mais o uso do “aparente”, dando conta que se trata de um trabalho sobre engodos e aparências, e nunca de conformações fáceis - o filme reage a um confronto ecológico e umas quantas fintas pelo caminho que subvertem a expectativa do espectador, que por sua vez sente-se traído pelos inúmeros “convites” feitos até então. Pois bem, até ao seu “aparente” clímax (peço-vos para que esta seja a última utilização de tal adjetivo), o espectador facilmente sairá decepcionado, mas será mesmo por culpa do filme, de Hamaguchi ou do aparente storytelling? (menti-vos não foi? Nem no crítico dá para confiar) Indico três motivos para nos sentirmos assim, e por sua vez, sairmos deslumbrados pela acidez reservada no recheio deste "bombom".
A primeira, o facto de Hamaguchi não ser igual a si próprio, e ao mesmo tempo ser, ou seja, de natureza errática, nunca reproduzindo uma fórmula - mesmo que haja um trajeto que as une, e essa seja a comunicação e a sua árdua tarefa de a manter a um nível estático - a esse campo podemos apontar influência do seu professor, Kiyoshi Kurosawa. Segunda razão, a dependência do espectador atual pela imperatividade do chamado e por vezes limitado storytelling, da razão de tudo e de todas coisas na perceptibilidade dos mesmos, o que farão eles sem essa dominância? Estarão sozinhos na deriva, ou nadarão para encontrar a sua “terra à vista”? E terceiro e último ponto, aquela reviravolta, será ela um gesto de oportunismo que defronta as definições de maniqueismos nos dias de hoje, ou melhor, será a gravidade do ato invalidado pela nobreza da causa? Não se trata de ecologia enfiada a “goela abaixo”, antes a filosofia por detrás dessa fachada ecológica, o Humanismo e a sua natureza animalesca, atada com nós de marinheiro a imagens-alegóricas e fantasmagóricas, cervos, esses espíritos “niponizados”, feridos e ameaçados, em defesa não só da sua vida, como também do pequeno Império que os detém.
Hamaguchi fez tudo isso, apenas movimentando brisas e se poupando nas palavras, rodou uma ópera rural, com espiritualidades bastantes para permanecerem como nativos. No fim, olhamos para o céu, novamente, o mesmo movimento, o mesmo plano, só que a perspetiva, essa, encontra-se alterada. Digamos mutada. Um belíssimo filme de uma natureza estoica e lacónica.