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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Para lá da eternidade, a música e a Ordem

Hugo Gomes, 28.03.24

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Assinala-se um ano de ausência, e é através da sala de cinema que nos reunimos para "comemorar" a missa. Ryuichi Sakamoto morreu, todos sabemos disso, porém, não o sabia - talvez sentindo uma espécie de premonição através do gesto - o seu filho, Neo Sora, que filmou o seu pai, mais do que isso, o artista perante ele. Um concerto íntimo, transformando aquele estúdio, no lugar mais solitário, apenas ele, Sakamoto, e o seu piano de cauda Yamaha, em tons cinzentos numa invejável valsa entre luz e escuridão. Nós, espectadores, assistimos em jeito fúnebre à sua performance derradeira, vislumbrando o seu legado e, pontuadamente, à sua Ordem (leia-se "Opus").

Por cada tecla acionada, a sua cabeça balança, há nisso um respeito permanente, uma vénia para cada nota, para a melodia, para a composição, e num salto ao eixo a luz do projetor eclipsada pela sua cabeça, uma aura ali manufaturada, uma santidade que mesmo gracejando com o cântico dos Deuses demonstra-se humilde perante a sua moralidade. Um engano surge, cadência errada, "vamos recomeçar" declara em modo de auto-confissão, a sua rigidez para com a sua própria arte, para com o seu próprio percurso, não deparamos com um amador, nem sequer com um veterano, ou antes, um santo no seu piano (pedestal).

Uma hora e quarenta, tempo necessário, curto e igualmente longo para lidar com as evadidas lágrimas que deslizam pela nossa face. Enxugamos-as com vergonha de as exibir como prova sentimental, Sakamoto não pretendia essa manifestação, a sua dedicação solicita um contemplamento, uma Ordem própria. O artista e a sua arte, que melhor casamento para acenar a uma despedida! Neo Sora promove esse Adeus com uma coletânea de planos-detalhes; os dedos que pressionam, opondo-se ao reflexo na tampa do teclado, os pés em simbiótica coreografia no pedal de sustentação, os contornos delicados do seu instrumento enquanto é orquestrado (vivido e fortalecido), as cordas dançantes o qual podemos maravilhar (espíritos invocados talvez), a respiração de Sakamoto forte e arrastado em sincronizada para com a extraída melodia, um corpo ali, sacrificado à Música.

De "Aqua" a "Last Emperor", passando por "The Sheltering Sky", e soando réquiem, a partitura que o catapultou ao seu merecido estatuto: "Merry Christmas Mr. Lawrence", tema da obra de Nagisa Oshima, o qual o próprio compositor contracenou ao lado de David Bowie (até ao fim dos seus dias arrependendo de não ter tido "melhor relação"), que por sua vez, contou com uma despedida coincidente, em forma de álbum, "Black Star", provando a música divina que os moribundos produzem no seu aproximar com o Fim. No caso de Sakamoto, a Ordem é a estrutura da sua arte, e com esse estandarte musicado lançamos-nos a uma última performance, os créditos finais, mesmo que necessários, poluem a tela, aquela figura que toca a música que nos acompanhará até à saída da sala. 

A “missa” terminou, agora o seu espírito pertence a um outro terreno. Quem sabe, talvez haja recitais onde ele estiver, e que esteja na companhia com que bem entender? Escutando a maravilhosa sonoridade que existe para lá da tumba.