Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Era uma vez ... em São Paulo

Hugo Gomes, 06.05.18

698780-970x600-1.jpeg

Curiosamente, “As Boas Maneiras” entra em concordância com um outro filme estreado entre nós no mesmo ano, “Shape of the Water” (“A Forma da Água”), não pelos prémios recebidos (um foi o Óscar, o outro o Prémio de Júri de Locarno), mas pela intenção social explicita através do dispositivo-fábula. A criação de um imaginário fantástico ao serviço do mundo inserido e reconhecido do espectador, por palavras mais cômodas, uma profunda metáfora do real.

Esta comparação não fica por aí, ambos lidam com os seus monstros, literalmente falando, seres inadaptados de uma sociedade antagónica e hostil. Efeito que reflete no contraste entre as “monstruosidades” cometidas pelas criaturas (os gatos são nos dois casos, as vítimas desses instintos primários) para com a agressividade do meio que os envolve. Contudo, as comparações poderiam parar por aqui, mas o referido efeito-fabulação encontra-se presente com tamanha força, e nela expele o ridículo que o tutti-frutti de tons emanado poderia apresentar.

Enquanto num é a América discriminatória sob um diferente prisma, o outro é uma São Paulo emaranhada num registo fantástico (a fotografia de Rui Poças realça como condutor dessa virtude de fantasia),  o conto de fadas a tomar conta da grande cidade do Brasil. Porém, reconhecemos-o como um país distorcido e sobretudo verdadeiro para com essa mesma distorção. Trata-se da utopia entre o mundo realizado e o fabulado e o monstro, o menino-lobo digno de um folclore universal, fruto proibido de concepção herética, é a representação de uma sociedade que ousa em separar as divergências com tamanho pudor. Um Brasil onde cada um guarda o seu segredo, em compartimentos ocultos, em correntes quotidianas e em peregrinações noturnas, e esses mesmos segredos são passados como compromissos assumidos, um jeito anti-natura assim como as ditas “boas maneiras” são para com a natureza humana (a via de transformar os nossos comportamentos).

Marco Dutra e Juliana Rojas, a dupla que por si representa uma pequena fatia daquilo que poderemos apelidar de nova vaga do cinema de género brasileiro, compõem aqui, em sua espécie, uma sátira ao modelo Disney acomodada pelos valores do legado da Universal Pictures (os tumultos da população remete-nos ao imaginário transposto por essa Hollywood povoada por monstros clássicos). Os realizadores entendem sobretudo as nuances envergadas pelo trabalhado cinema de género, as respostas para estes fins instalados nas suas influências e não encarando a um género definido e isolado nas suas idiossincrasias.

Mas todo este registo tende a apresentar os seus cansaços, até porque “As Boas Maneiras” instala-se como uma perfeita referência a esse mesmo mundo e, assim, prevalece diversificado (ou “bom” esquizofrénico) até ao seu final. Porém, existe um veio que parece quebrar a narrativa da mesma forma que replica os atos temporais, um “evangelho bíblico” aludido , marcado pelo nascimento de um “messias” (novamente incompreendido). Nesse registo, notam-se dois filmes independentes congregados através de um momento musical. Infelizmente, dois filmes díspares em cumplicidade com enredos de bestas e bestialidades, de monstros e “boa educação”. Contudo, não serão mesmo estes elementos como o Brasil é hoje visto, dentro e fora?

Um barão à beira de um ataque de nervos

Hugo Gomes, 05.05.18

ZRZ5CGOKB4FIWP7EVCBGQP32VQ.jpg

Não deixem-se enganar pela estética plastificada digna de um quadro - “Zama” - a quarta longa-metragem da argentina Lucrecia Martel (que regressa após 9 anos de ausência) é um filme cruel para com o seu protagonista, o homónimo barão que cede à deterioração existencial e social perante os desejos longe de se cumprir.

É a espera que cai sob colossal peso na consciência da personagem encarnada por Daniel Giménez Cacho, respeitado oficial da Coroa Espanhola destacado num posto fronteiriço de Paraguai, que anseia pela transferência para Buenos Aires a fim de estar reunida com a sua família, que vive cada dia sob tremenda eternidade e um silencioso desespero. Se em “Zama” encontramos o registo de martirologia, é bem evidente que a hostilidade emanada pela realizadora reflete de igual maneira na subtileza visual. Perfeitamente encabeçada nos enquadramentos gerais, Martel é uma cineasta que prioriza o visual acima da narrativa convencional, mas é ao invisível que recorre, afrontando a visibilidade e questionando com isso,as suas próprias imagens. Tal como fizera com o seu anterior “La mujer sin cabeza”, o filme decorre sobretudo na inerência do seu protagonista.

Neste “Zama”, para além de se focar nas miragens fantasiadas pelo protagonista, Martel afirma uma conscientização de um terreno além-visto, desde os fantasmas, literalmente falando, até à assombração do mortal Vicuña Porto, cujas as exaustivas referências o transformam num espectro do mal representado, passando pelas fantasias idealizadas (desde o desejo de Buenos Aires até ao corpo idolatrado de Lola Dueñas). É por isso que por mais ordenado e formalista “Zama” se identifique, o filme tende em ser outro, vagueando por pântanos subtropicais até se transformar em algo mais, a possibilidade de descartar a sua importância estética (não desfazendo o belo trabalho do português Rui Poças no departamento de fotografia) em prol de um lirismo quase etéreo - Martel filma os colonizadores da mesma forma que os colonizados e os animais para diluí-los numa universo igualitário.

Por cá, caem comparações com “Jauja”, do conterrâneo Lisandro Alonso, o colonialismo invasor versus a América mística que sobrevive em derradeiros redutos (nem que sejam os imaginários), e o esoterismo captado pelas lendas duradouras e falsamente inseridas em sociedades em transição. Em ambas as obras, o El Dorado é procurado, cada um à sua maneira e em contextos térreos divergentes.

Juliana Rojas: "temos dificuldade a chamar o horror de Cinema"

Hugo Gomes, 04.05.18

c5215e99084c4985e5a09e6f7f17e4ee-MV5BN2JiNjc5MzItN

Marco Dutra e Juliana Rojas são a dupla do momento no que se refere ao cinema fantástico do Brasil. "As Boas Maneiras", filme que a própria realizadora descreve como o seu trabalho mais complexo, é uma fábula tentadora de um universo paulista alternativo, a história de um monstro que queria ser um menino de verdade e de uma mulher que encontra a inserção na companhia deste.

Vencedor do Prémio Especial do Júri no último Festival de Locarno, "As Boas Maneiras" comporta-se como uma revisão dos principais elementos do cinema de terror e não … passando pelo mundo da Disney e do cinema de carácter social. Falei com Juliana Rojas sobre o projeto que tem conquistado a crítica, público e um lugar no panorama fantástico brasileiro.

É sabido que a ideia deste filme nasceu a partir de um sonho de Marco Dutra. Como desenvolveram um filme a partir daí?

Sim, a base do filme surgiu nesse sonho, mas tinha poucos elementos, nós trabalhamos nessa imagem, essa sensação transmitida e atribuímos contornos. O que ele sonhou foram apenas duas mulheres num lugar isolado que criaram juntas uma criança monstruosa. Dessa primeira imagem desenvolvemos a história, o de duas mulheres coexistindo numa sociedade onde também habita uma criança monstro, que evolui para um lobisomem.

O porquê da escolha de um lobisomem?

É uma criatura muito próxima da nossa cultura, aliás, muito popular no Brasil, principalmente nas zonas rurais. Além disso é uma criatura metade humana, metade besta, simbolizando um conflito interior, uma dualidade que serviu de inspiração para vários aspetos do filme. Como alusão a essa mesma dualidade, desenvolvemos um filme em duas partes, traçada pelo nascimento, cujo primeiro encontramos duas mulheres de realidades opostas, uma da periferia, outra do centro, uma pobre, outra rica, uma branca e a outra negra. "As Boas Maneiras" é um filme que fala sobre os opostos, essas sanções, os conflitos que existem e que são quase naturais de São Paulo.

Mas de certa forma o lobisomem é um “monstro” universal, este enredo passa-se em São Paulo, mas poderia decorrer em qualquer outro lugar do Mundo.

Sim, é uma lenda universal. Existem várias culturas “assombradas” por esta criatura mítica. Temos histórias deste género na Europa, na Ásia, e na América do Sul, para além de não envolverem apenas lobos. Existem outras lendas de criaturas meio humanas, meio animais, que perpetuam uma fascinação pela metamorfose.

Falando em metamorfose, há pouco falava das duas partes, porém, em "As Boas Maneiras" está presente um tom de constante transformação.

Sim, é um filme que metamorfoseia devido à nossa preocupação de tornar isto numa espécie de fábula. Na nossa obra sempre tentamos explorar esses caminhos - o cinema de género. Principalmente salientando o fantástico e o horror, sempre ligados a um universo de tensões sociais, mas os “Boas Maneiras” é um filme onde realmente queríamos assumir esse tom de fábula. Então criamos um universo fantástico, a forma como compomos a obra, desde a fotografia até ao body painting que usamos nas paisagens. Essa metamorfose tem a ver com isso, uma maneira lúdica de como se estivéssemos contando uma fábula para além do visível, e isso permite transitar por vários géneros. É dessa matéria que as fábulas são feitas; comédia, romance, elementos fantásticos …

 … e musical.

Sim [risos], musical também, principalmente nos desenhos animados da Disney.

ac7d1d3f587e541d0a3d8f3b3fdf4b3a-as_boas_maneiras.

Marco Dutra, Marjorie Estiano, Juliana Rojas, Isabél Zuaa

Então existem aqui influências desse mesmo universo?

Nós tivemos bastante influência nesse Mundo Disney, principalmente da “Bela Adormecida” e da “Cinderella”, mas ao mesmo tempo fomos buscar influência das peças de Brecht, a sua maneira de trazer o ponto de vista da personagem à tona, conservando um aspeto crítico e irónico. Resumidamente, "As Boas Maneiras" bebe um pouco desses dois mundos, o lado lúdico vindo diretamente da Disney e o teatro épico de Brecht.

A Juliana juntamente com Marco Dutra têm sido os nomes, não diria mais relevantes, mas destacáveis do cinema de género brasileiro. Pelo menos do que chega a território internacional. A minha pergunta é como vê atualmente a indústria de cinema de género no Brasil?

Sempre houve cinema de género no Brasil e até mesmo o de horror, apesar de muitas vezes estar embebido num estilo mais barroco que certos filmes possuem. Consigo arranjar o exemplo de Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade, uma visão do Brasil enquadrado num olhar de fantasia que não se encontra necessariamente inserido nos códigos do horror. Temos ainda o José Mojica, o nosso Zé do Caixão, uma figura notória que levou este tipo de cinema para o resto do Mundo, mas que obteve pouco reconhecimento formal pelo grande público. Só que as pessoas voltaram a querer ver e a fazer filmes do género, e aí entram nomes como Gabriela Amaral, que realizou algumas curtas interessantes e a longa “O Animal Cordial”, Guto Parente com “O Clube dos Canibais” e Rodrigo Aragão, que tem feito obras como “Mangue Negro” e “A Noite dos Chupacabras”.

O que quero dizer é que estamos a viver um momento em que o público procura o cinema de género e este tem tido repercussões comerciais. Aliás, é tudo um ciclo, que funciona como no resto do Mundo. Os filmes de horror surgem com sucesso depois quase desaparecem, até reaparecem com igual força. Porém, existem sempre fiéis. Neste momento estamos num ciclo próspero, não só no cinema, mas também na televisão.

A verdade é que o facto de um filme como "As Boas Maneiras" ter vencido um prémio num festival como Locarno é um indicador de uma valorização do Cinema de Género. Aliás, querendo acrescentar, um filme como “The Shape of Water” ter conseguido arrecadar o Óscar de Melhor Filme e o prémio máximo em Veneza é uma evidência a que estamos a assistir numa reviravolta quanto ao estatuto do cinema de género.

Ainda é um género que sofre com algum preconceito. Alguns filmes de terror que começaram a circular em festivais de renome e a conseguir aclamações por parte da crítica obtiveram uma espécie de título, os “pós-terror”, isso denota o preconceito de que um filme de horror não poderá ser um bom filme. O horror continua a ser um género, e um género mutável, multifacetado. Ora, temos o terror com tons de comédia, ora temos com perfil de thriller psicológico, dramático, ou simplesmente o slasher. O problema é que temos dificuldade a chamar o horror de Cinema, para alguns não passa de um subgénero. Mas existe a mudança, não falo apenas da premiação do meu filme ou da “The Shape the Water”, mas em Locarno houve uma retrospectiva do Jacques Tourneur, que era um cineasta que na sua época fazia o cinema B e hoje é homenageado num dos maiores festivais de arte do Mundo.

Só o conceito de “cinema de género” é um pouco denegridor.

É, porque tudo é um género. O drama é um género, o problema é que quando se fala de género automaticamente dirige-se ao horror. É como se o drama fosse a derradeira normalidade.

Voltando agora ao filme "As Boas Maneiras", gostaria que salientasse os efeitos visuais tendo em conta os recursos que obtiveram.

Nós tivemos uma coprodução do Brasil com a França e recebemos um fundo francês de inovação tecnológica que nós direcionamos para os efeitos especiais. Então foram duas empresas francesas responsáveis pelos efeitos. Uma chama-se Atelier 69, que concretizaram os efeitos práticos e a outra, Mikros, teve responsabilidade nos computorizados.

Aí eles colaboram connosco no argumento de forma a discutir as maneiras mais fiáveis de implantar tais efeitos e que tipo se enquadraria em determinadas sequências. Ajudou bastante esta proximidade com os departamentos de efeitos que nos arranjaram soluções criativas para cada situação, tudo dentro das possibilidades da produção. "As Boas Maneiras" foi o nosso filme mais complexo, que exigiu um detalhado planeamento, principalmente na visibilidade da emoção de cada personagem.

18b-tc-goodmanners-tiff16b-23976ips-1998x1080-1704

Em relação à fotografia, da autoria de Rui Poças?

Foi muito bom trabalhar com o Rui. Nunca trabalhamos juntos, mas como primeira vez foi uma experiência incrível. O Rui é uma pessoa sensível, colaborativa e que teve uma boa relação com Fernando Zuccolotto, que era o nosso diretor de arte. A parceria dos dois resultou em algo fundamental para construir este mundo fantástico. Uma cidade de São Paulo com uma paleta bem diferente de cores, mas este universo e sua criação foi bastante discutida entre todos, principalmente na utilização da dualidade de ambientes, diferenciadas estéticamente. Para nós essa divergência visual da periferia com a cidade é uma alusão ao castelo e a floresta de qualquer fábula, o que apenas foi possível com esta união de forças entre a fotografia e a direção de arte.

Novos projetos?

Eu e o Marco estamos a desenvolver uma nova ideia, a história de uma casa assombrada. Contudo, ambos temos projetos individuais, o Marco vai dirigir um filme juntamente com Caetano Gotardo, o realizador do “O que se Move”, que se intitulará de “Todos os Mortos”.

Tendo em conta que "As Boas Maneiras" é uma fábula, o Brasil de hoje é também uma?

[risos] O Brasil de hoje? Nem sei se é uma fábula ou um pesadelo. O país está numa situação muito difícil em termos políticos. É muito preocupante e surreal de que este cenário encontra-se tão escancarado, porque existe obviamente uma perceptível manipulação dos factos e na condução dentro dos atos do Governo e da Judiciária para beneficiar quem está no poder. Isso leva-nos a uma sensação de impotência.

Este ano vamos ter eleições e ninguém sabe o que realmente irá acontecer, nem sequer sabemos ao certo quem são os candidatos.

Lucrecia Martel e as (des)venturas do barão Zama: "filmo os animais como os homens"

Hugo Gomes, 02.05.18

15162199325116.jpg

Lucrecia Martel na rodagem de "Zama" (2017)

A heroína independente, assim o Indielisboa a homenageia na sua 15ª edição. Lucrecia Martel é hoje tida como umas das grandes influências do novo cinema argentino e apesar de contar apenas com quatro longas-metragens, a sua linguagem cinematográfica tem tumultuado toda uma tendência de cinema.

Com "Zama", até à data o seu filme mais ambicioso, Lucrecia Martel volta a envergar por protagonistas isolados existencialmente, e refugiados do seu próprio ambiente. Neste seu novo filme seguimos Don Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho), um oficial da Coroa Espanhola destacado num retiro colonialista do Paraguai, que aguarda por uma transferência. A espera será o seu martírio, transformando aos poucos um orgulhoso barão num ser cada vez mais decadente e dependente da misericórdia divina.

Conversei com a realizadora sobre o seu mais recente projeto, a forma como o filmou, a sua colaboração com o diretor de fotografia, o português Rui Poças, e ainda a sua indignação para com o universo das séries de televisão.

Foram precisos 9 anos para voltar a fazer outra longa-metragem. O que a fez regressar?

O que acontece é que eu nunca faço planos. Não agendo qual filme irei trabalhar a seguir. Quando terminei a “La mujer sin cabeza”, pensei que nunca mais queria fazer outro filme. Aliás, quando saio de um projeto tenho este tipo de pensamentos – não quero continuar a fazer filmes. Mas porventura o tempo passa e ganho uma certa vontade de trabalhar. E sempre aparece algo ou uma questão que desejo partilhar com o espectador. Mas no geral, nunca planeio a minha carreira nem o antevejo que natureza será o meu próximo projeto.

“La mujer sin cabeza” tem alguma congeneridade com este “Zama”. Enquanto que na "Mulher" a identidade da protagonista era gradualmente fragmentada, neste seu novo filme o mesmo acontece ao protagonista, só que ao invés do trauma é a ausência deste – a espera.

Sim, são filmes muito similares, aliás, narrativamente este “Zama” é idêntico à  “La mujer sin cabeza”, porque somos de certa forma transportados para o interior da cabeça do protagonista.

Sim, a Lucrecia tem uma apetência em “perseguir” o invisível e Zama não está longe disso.

O dispositivo é o seguinte: todo o livro de Antonio Di Benedetto, o livro de “Zama”, é um monólogo pessoal, e as palavras que são ditas pertencem a outras pessoas. Sem dize-las quotidianamente, elas funcionam como um pensamento. Assim sendo, tive que inventar cenas para preencher esse mesmo monólogo, colocar “Zama” a apoderar-se desses pedaços de diálogos e torná-los seus por direito.

A minha intenção era que o espectador visse um filme onde é inexistente qualquer indício de voz-off, mas de alguma maneira, este chegaria ao final em que percebesse que todas as vozes escutadas era na verdade a “invisível voz-off” do próprio “Zama”, o monólogo ausente e igualmente presente.

Em relação ao Zama, a personagem, durante o casting, o que procurava nesta sua encarnação?

A ideia era encontrar um ator capaz de expressar um conflito sem a utilização de qualquer tipo de fala e acabei por encontrar isso no Daniel Giménez Cacho.

Devo dizer que a Lucrecia é uma realizadora cruel para com a sua personagem. Entendemos Zama, mas não sentimos compaixão pelo mesmo, e mesmo assim ele é fortemente humilhado em todo o filme.

Não penso assim, mas compreendo que alguém possa sentir dessa maneira, até porque eu me identifico muito com “Zama” e fiquei sempre com a sensação que muitos pudessem identificar com ele.

Mas acredito que se esta personagem fosse uma mulher, muitos espectadores não encarariam como humilhação, porque é mais razoável este tipo de situações acontecer a uma.

Zama-Lucrecia-Martel-1.jpg

Zama (2017)

Então, ao conceber a personagem Zama, pensou nele como uma personagem feminina?

A mim não me serve de nada pensar se Zama é um homem ou uma mulher. É obvio que no Cinema somos “agarrados” aquilo que vemos e se o papel pertencesse a uma atriz iremos encarar como uma mulher.

Mas, como parte da escrita, para mim, foi importante trabalhar a personagem como algo indefinido. Tratá-la como algo monstruoso, uma criatura quase alienígena que nem ele próprio saberia se é homem ou mulher.

Agora, o livro “Zama” está escrito de uma maneira pouco usual, focando e observando atentamente o desejo deste homem. É um tipo de livro raro na forma como descreve os homens. Benedetto não estava a pensar num barão, mas sim num ser humano. Um humano com um inerente conflito, o de ter razão ou não ter razão, assim como a sua frustração tão próxima do desejo.

Historicamente, este tipo de retrato na literatura atribui-se a uma mulher e não a um homem, essa tendência de triunfar e ao mesmo tempo cair.

Algo curioso e muito evidente em Zama, é que a Lucrécia filma os homens e as mulheres da mesma forma que filma os animais.

Sim, na realidade filmo os animais como os homens. A minha ideia de monstro explica exatamente isso, o de não distinguir o que se está a filmar e sobretudo, estar segura do que se tem à frente.

Quando filmo, não estou a pensar que à frente da câmara tenho uma mulher com tais características ou um homem com iguais atributos, ou se é um Homem branco ou um indígena. Trato da mesma maneira, a lente da minha câmara não julga nem faz distinções.

Quanto ao seu trabalho com Rui Poças, o diretor de fotografia?

Este foi um filme que requereu muito esforço físico e o Rui, para além de ser um excelente diretor de fotografia, possui um espírito incrível. Isso notou-se porque em nenhuma situação ou problema que surgiu na rodagem, não transmitiu qualquer adversidade para a restante equipa. Em termos de trabalho, Rui foi genial.

Novos projetos?

Estou a escrever algo que penso que poderá vir a tornar-se num filme, mas como já havia dito no início, não tomo este tipo de decisões com tempo.

Para terminar, gostaria que falasse das suas ideias em relação às séries de televisão. É sabido que declarou ao jornal El País que “as séries são um retrocesso”. Não partilha da opinião generalizada que na televisão concentra um “Novo Cinema”?

Creio que está a ocupar todo o espaço da narrativa audiovisual, assim como muitos não vêem as séries em televisores, assistem no computador ou outras plataformas que em nada parecem com as televisões. O grande consumo das mesmas dá-se por aí, através dos computadores ou Smart Tvs, onde os espectadores consomem temporadas inteiras numa só noite ou num fim-de-semana sem sair da cama.

O que eu penso não é se são boas ou más. O meu problema é o facto delas se concentrarem exclusivamente no argumento, o que é para mim o arcaico da narrativa, essa subjugação pelo argumento.

Faz sentido a preocupação com um todo, a estética por exemplo, e não apenas que se governe perante as linhas argumentais. Restringir a isso é o mesmo que as discussões amorosas. Neste tipo de discussões, diz-se coisas terríveis, mas aí o sentido das palavras não tem importância e sim a forma. Como tal, podemos tirar as conclusões que este casal ama-se, porque não se preocupam com o que se disse e sim, o como se disse. No caso de um casal que proclama palavras amorosas, mas sem a intenção nem a forma de demonstrar, sabemos à partida que eles não se amam.

Se nos prendemos no argumento, o resultado será pobre e as séries atravessam esse caminho. Todavia, as pessoas estão contentes que assim seja. O que mais me aflige é que não existem muitos críticos a falar profundamente disto.