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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O terror da antecipação e o prazer da entrega: “Holocausto Canibal”

Hugo Gomes, 28.10.23

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Cannibal Holocaust (Ruggero Deodato, 1980)

Se não há horror maior que o do desconhecido, a ficção terrorífica há de ser o ponto onde as certezas da ciência e as aplicações da lógica se desvanecem perante os mundos temerários onde fragilizados humanos vão meter-se – muitas vezes sem o terem desejado, mas em outros momentos por pura “cusquice”. O mundo dos mortos é particularmente apelativo – o reino do invisível onde seres que eram supostos ficarem mortos decidem… não ficar. Por vezes dão-se a conhecer apenas em fenómenos telecinéticos; em outras se materializam em cadáveres que saem de caixões ou debaixo da terra para atazanar os vivos.

Em dimensões mais próximas, no entanto, os humanos podem meter-se em apuros a frequentar locais “exóticos”. Há mais de 100 anos a literatura deslumbrava-se com o cada vez mais (des)conhecido mundo de florestas verdejantes que podiam esconder criaturas estranhas e, em casos mais elaborados, até tornado credíveis por teorias “científicas” – como o anfíbio de “Creature of Black Lagoon” (1954), um ser de outras eras que tinha miraculosamente escapado à extinção e que podia ser explicado pela lei da evolução.

Hoje sabemos que os humanos destruíram, de facto, todas as possibilidades de seres gigantescos ou pouco conhecidos terem sobrevivido. Há episódios notórios como a ocupação da Austrália há 60 mil anos, onde a chegada por mar de homenzinhos aparentemente muito pouco apetrechados em termos tecnológicos “coincidiu” com o espantoso e maciço desaparecimento de uma vasta fauna de animais de grandes dimensões.

Quando o cinema resolveu dar vida, com os devidos valores de produção, à uma destas aventuras pelos trópicos – mais especificamente ao clássico de sir Arthur Conan Doyle, “The Lost World”, de 1911 – foram chamados os inovadores serviços de William O’Brien, o homem que popularizou o “stop motion” para oferecer ao público de 1925 uma leitura visual destas estranhas paragens; oito anos depois, ele estava de volta com ainda mais recursos para descrever as lutaradas colossais entre um macaco gigante e um mundo de bestas jurássicas em “King Kong”.

Mas o cinema de terror é a perda inocência e poucos haverão como os italianos para absolutamente forrar de “ketchup” praticamente todos os subgéneros nos quais tocaram a partir dos anos 60 – a começar pelo popularíssimo “Mondo Cane” (esse de fabrico próprio, os “mondo films”) e uma fornada de zombies, canibais, “serial killers” e a mais sensacional palete de atrocidades com que tentavam faturar em cima dos modelos americanos.

Entre antecipação e consequência, talvez não haja na história do cinema de terror uma iguaria mais satisfatória do que “Holocausto Canibal”, um filme a que já se começa a assistir com medo dada a sensacional fama adquirida e aos processos jurídicos que ultrapassaram as estratégias espertas de “marketeiros” engenhosos: Ruggero Deodato, o líder do gangue, foi efetivamente a tribunal dar conta dos atores que tinha pago para desparecer e que o deixaram em grandes apuros.

No filme, a partir da chegada à Amazónia da missão para resgatar outra expedição, desaparecida um ano antes, começam os calafrios: conforme exposto acima, ninguém que se tenha posto nestas andanças poderá alegar ignorância. E o que segue a partir daí é um pesadelo infernal, onde matanças, esfolamentos, empalamentos, esquartejamentos, incêndios postos e a famosa execução em direto de uma tartaruga gigante, não deixam nada por desejar.

No interior de tamanha simbiose entre expectativa e entrega, poderia não ser de mau tom reciclar o célebre aviso de Carl Laemmle no primeiro filme designado como “horror movie”, “Frankenstein” (1931): “I think it will thrill you.  It may shock you.  It might even horrify you. So, if any of you feel that you do not care to subject your nerves to such a strain, now’s your chance to uh, well, - we warned you!

Por fim, em meio à danação total, o sardónico comentário do filme sobre os “media” e a violência, aparentemente a justificar-se, soa irrelevante. Nesta experiência visceral, as palavras podem apenas danificar o festim.

 

*Texto da autoria de Roni Nunes, jornalista, editor do site CulturaXXI, colabora com o C7nema, encontra-se de momento a desenvolver um livro sobre cinema de terror. 

Mais que canibalismos ...

Hugo Gomes, 29.12.22

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Ruggero Deodato

Foi num banco de jardim em frente ao Cinema de São Jorge, no qual tive a oportunidade de conhecer Ruggero Deodato, no meio dos festejos do MOTELx o qual se sintetizava como o ilustre “Mestre Vivo”, em 2016. 

Era uma “entrevista às três pancadas” arranjada pela equipa de comunicação do festival, mas curiosamente foi através daquele acaso, improvisado momento, que tornou-se especial, uma conversa maioritariamente educada numa noite amena que só o início de setembro consegue-nos dar. Lá estava eu, ao lado do meu colega Roni Nunes (ambos cobrindo o festival para o site C7nema) questionando o realizador por vias de trivialidades, até que num ato de fúria, insurge-se perante as comparações a Umberto Lenzi, conterrâneo seu também "especializado" em exploitation canibal (“Ma che cazzo, sempre Umberto Lenzi! Ma per che? Non posso piú!”). 

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Ruggero Deodato na rodagem de "Cannibal Holocaust" (1980)

Para Deodato, "Cannibal Holocaust”, a sua “obra-prima”, o seu filme-currículo, era mais que um objeto de selvajaria, era um choque entre o civilizado e o silvestre, e portanto, a questão permanente sobre o verdadeiro “bárbaro”? O nativo da floresta tropical ou o índio da selva de asfalto? São pertinências que pouco se atribuem a Deodato, salientando o preconceito em relação a um género e a um estilo, mas a verdade é que o seu filme, brutal e visceral (até hoje motivo de polémica pela crueldade animal, mantida no corte final), é uma comichão àquilo a que tornamos. Civilizados só de nome, somos mais selvagens que os próprios “selvagens”, porque aprendemos a destruir e a viver da destruição, e mais que isso a venerar essa mesma destruição. Narrativamente ou fora dela, “Holocausto Canibal” parte do pressuposto horror para nos aliciar a olhar, como um atrativo circense, e indignados ficamos no final da jornada dirigindo agressivamente ao realizador, porém o espelho está voltado a nós, não fomos obrigados apenas tentados ao apelativo engate dessa sedenta - Horror. 

Ruggero Deodato viu o pior de nós e disso fez uma obra. Hoje, tal criação concentra-se como uma Caixa de Pandora, como se a raiz desse mal residisse num mero “objeto” (neste caso filme). Talvez sentimo-nos melhores por isso, enganosamente melhores.

Ruggero Deodato (1939 - 2022)