O terror da antecipação e o prazer da entrega: “Holocausto Canibal”
Cannibal Holocaust (Ruggero Deodato, 1980)
Se não há horror maior que o do desconhecido, a ficção terrorífica há de ser o ponto onde as certezas da ciência e as aplicações da lógica se desvanecem perante os mundos temerários onde fragilizados humanos vão meter-se – muitas vezes sem o terem desejado, mas em outros momentos por pura “cusquice”. O mundo dos mortos é particularmente apelativo – o reino do invisível onde seres que eram supostos ficarem mortos decidem… não ficar. Por vezes dão-se a conhecer apenas em fenómenos telecinéticos; em outras se materializam em cadáveres que saem de caixões ou debaixo da terra para atazanar os vivos.
Em dimensões mais próximas, no entanto, os humanos podem meter-se em apuros a frequentar locais “exóticos”. Há mais de 100 anos a literatura deslumbrava-se com o cada vez mais (des)conhecido mundo de florestas verdejantes que podiam esconder criaturas estranhas e, em casos mais elaborados, até tornado credíveis por teorias “científicas” – como o anfíbio de “Creature of Black Lagoon” (1954), um ser de outras eras que tinha miraculosamente escapado à extinção e que podia ser explicado pela lei da evolução.
Hoje sabemos que os humanos destruíram, de facto, todas as possibilidades de seres gigantescos ou pouco conhecidos terem sobrevivido. Há episódios notórios como a ocupação da Austrália há 60 mil anos, onde a chegada por mar de homenzinhos aparentemente muito pouco apetrechados em termos tecnológicos “coincidiu” com o espantoso e maciço desaparecimento de uma vasta fauna de animais de grandes dimensões.
Quando o cinema resolveu dar vida, com os devidos valores de produção, à uma destas aventuras pelos trópicos – mais especificamente ao clássico de sir Arthur Conan Doyle, “The Lost World”, de 1911 – foram chamados os inovadores serviços de William O’Brien, o homem que popularizou o “stop motion” para oferecer ao público de 1925 uma leitura visual destas estranhas paragens; oito anos depois, ele estava de volta com ainda mais recursos para descrever as lutaradas colossais entre um macaco gigante e um mundo de bestas jurássicas em “King Kong”.
Mas o cinema de terror é a perda inocência e poucos haverão como os italianos para absolutamente forrar de “ketchup” praticamente todos os subgéneros nos quais tocaram a partir dos anos 60 – a começar pelo popularíssimo “Mondo Cane” (esse de fabrico próprio, os “mondo films”) e uma fornada de zombies, canibais, “serial killers” e a mais sensacional palete de atrocidades com que tentavam faturar em cima dos modelos americanos.
Entre antecipação e consequência, talvez não haja na história do cinema de terror uma iguaria mais satisfatória do que “Holocausto Canibal”, um filme a que já se começa a assistir com medo dada a sensacional fama adquirida e aos processos jurídicos que ultrapassaram as estratégias espertas de “marketeiros” engenhosos: Ruggero Deodato, o líder do gangue, foi efetivamente a tribunal dar conta dos atores que tinha pago para desparecer e que o deixaram em grandes apuros.
No filme, a partir da chegada à Amazónia da missão para resgatar outra expedição, desaparecida um ano antes, começam os calafrios: conforme exposto acima, ninguém que se tenha posto nestas andanças poderá alegar ignorância. E o que segue a partir daí é um pesadelo infernal, onde matanças, esfolamentos, empalamentos, esquartejamentos, incêndios postos e a famosa execução em direto de uma tartaruga gigante, não deixam nada por desejar.
No interior de tamanha simbiose entre expectativa e entrega, poderia não ser de mau tom reciclar o célebre aviso de Carl Laemmle no primeiro filme designado como “horror movie”, “Frankenstein” (1931): “I think it will thrill you. It may shock you. It might even horrify you. So, if any of you feel that you do not care to subject your nerves to such a strain, now’s your chance to uh, well, - we warned you!”
Por fim, em meio à danação total, o sardónico comentário do filme sobre os “media” e a violência, aparentemente a justificar-se, soa irrelevante. Nesta experiência visceral, as palavras podem apenas danificar o festim.
*Texto da autoria de Roni Nunes, jornalista, editor do site CulturaXXI, colabora com o C7nema, encontra-se de momento a desenvolver um livro sobre cinema de terror.