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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Desabafo sobre "Miss": Quando falamos para multidões com linguagem da carochinha …

Hugo Gomes, 02.12.20

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Era uma vez … um menino que sonhava ser uma Miss. Mas não era uma Miss qualquer, era a de França. E não, ele não queria ser menina, apenas ter a mesma oportunidade que todas as outras meninas têm para concorrer em tal concurso. Só que o nosso menino que não se identifica como tal, nem muito menos como menina, entrou no dito concurso tentando ser aquilo que não era. Mas o seu percurso dentro de tal competição, cheio de regras e rivais, é lhe facilitado, porque sempre havia alguém que nunca a deixava(o) “tropeçar”, dando oportunidades atrás de oportunidades, muito devido à … como diríamos … condição, ocultada, mas presente, secretamente, para alguns responsáveis da Miss França.

Ainda mais, a narrativa desta história privilegiava o nosso menino(a). Ele(a) é órfão, teve uma efémera infância feliz com os seus pais que o incitaram a lutar pelos seus sonhos, mas isso lhe foi retirado enquanto muito novo. De seguida, é-lhe dado uma “espécie” de família de acolhimento, uma união multicultural de marginais sociais. Todo este elemento indica-nos desde o seu início que o nosso menino, o qual revelo chamar-se Alex, vencerá nesta fábula que vos conto. Longe de mim usar tal forma como condescendência para com o nosso protagonista ou do discurso que por vezes o filme explicita, mas o nosso realizador ou neste caso, o storyteller, assumiu que “Miss” foi disposto como se uma fábula tratasse. Uma lição de vida para ser lecionada.

Pois bem, é através dessa questão identitária extraída nos códigos de género que Rúben Alves, após ter saído do “Portugal dos pequeninos” no meramente simpático “A Gaiola Dourada” (2013), falha na sua dita locução. Se por um outro lado temos o debate subversivo sobre os limites do género numa sociedade ainda vincada por polos / facções, é no ato de entrega destas ideias que reside o maior problema. Toda a construção de Alex (interpretado pelo ator e modelo andrógeno Alexandre Wetter, sem dúvida alguma a grande força desta obra) segue num modelo de superação underdog, que como é hábito recorrente desse mesmo conceito, adquire uma tendência de “vitimismo” quase pornográfico, ferramenta de manipulação emocional. Depois segue o processo de ascensão dentro do universo das Misses … Ruben Alves especifica uma instituição obsoleta, incapaz de motivar gerações recentes e que desesperadamente procura a sua “next big thing”. Mas qual? Alex é, enquanto “rapariga disfarçada”, elevada e “protegida” dentro de um meio competitivo. A sua condição, até então desconhecida para os demais, funciona a seu favor e de forma privilegiada perante as outras concorrentes. Ou seja toda esta “igualdade” e imparcialidade no jogo são desleais.

Certamente, que há diferenças perceptíveis na dita igualdade e equidade, se a primeira equipara todos de maneira imparcial dando as iguais ferramentas e oportunidades, a segunda opera de forma devidamente justa para com os mais socialmente desfavorecidos, dando a alavanca necessária para os colocar no “pé de igual” com os outros. Ou seja, a equidade leva-nos à igualdade, e quando o primeiro ponto já não é mais necessário chegamos, por fim, ao segundo. No caso de “Miss” a falta de adaptação de Alex perante as regras do concurso (muitas delas não partem do seu género indiferenciado, mas da sua moralidade), é sempre desculpada com o seu passado trágico, perdoando as suas, diversas vezes, atitudes de rebeldia e, em certos momentos, de ingratidão, para que no final ser visível a razão para esse “percurso”. Alex é o requisitado “next big thing”.

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Estes elementos narrativos não são novos no Cinema, porém, “Miss” foi concebido como um filme para massas, tentando com isto incentivar um debate envolto nestas questões. Para quem está familiarizado com os referidos territórios, ideias e experiências não será convencido ou exercitado a discuti-las. Para os “outros”, aqueles que não possuem a sensibilidade ou percepção (que de facto não são poucos) sentirão ideologicamente repelidos perante um episódico Tootsie que na verdade é apresentado como um “coitado”. Apela-se para que se desvie esse rótulo de “coitadinhos” na causa, cada vez mais inserido nos falatórios da extrema-direita. A solução (que não é simples) resulta na normalização e sobretudo expor a existência daqueles que não se identificam ou enquadram nos parâmetros binários “socialmente aceites”. Podem ser diferentes (palavra que, confesso, não gosto que seja empregue nestes casos) só que estão longe de serem … isso mesmo … Coitados.

Fora isso, “Miss” é um mero produto “popluxo”, com demasiadas purpurinas, mensagens motivacionais, música pop que toma de assalto as ações, o previsivelmente esperado neste tipo de produções. Ruben Alves tem, para além de Alexandre Wetter, outro golpe de “génio”, uma paralelização evidente e prestada ao tributo de um dos subgéneros mais propícios do feel good movie e do underdog – o Boxe. Nesse aspecto, tal como confidenciou-me, “Miss” foi criado como uma espécie de “Rocky” em passerelle.

"Miss": Ruben Alves fala sobre o seu "Rocky"

Hugo Gomes, 26.11.20

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Ruben Alves

Em 2013, uma comédia típica francesa de costumes e de choques culturais tornou-se um dos grandes êxitos do "box-office" português: "A Gaiola Dourada", do lusodescendente Ruben Alves e com um elenco português. Ainda que esse fenómeno não se vá repetir num ano como este 2020, "Miss"; a sua segunda longa-metragem, que estreia esta semana preserva muitos dos mesmos códigos que conquistaram multidões: a história de um rapaz que sonha vencer o concurso da Miss França e para isso se transveste como uma mulher, assumindo uma nova identidade.

Ruben Alves toma partido de Alexandre Wetter, ator e modelo andrógeno, neste “feel good movie” [o realizador não o esconde na entrevista] que chega até nós para contribuir para um debate sobre temáticas identitárias e de transgressões ao convencionalismo de género.

Como surgiu este projeto?

A ideia de “Miss” surgiu do meu encontro com o Alex [Alexandre Wetter]. Já tinha em mente um filme que falasse sobre a identidade de género, sendo uma causa que me toca imenso, mas quando encontrei o Alex é que me deparei com uma personagem iluminada, livre que assume completamente tudo. É um rapaz que demonstra o seu lado feminino e aqui, com esse mesmo lado, cria e recria a sua performance. Encontrei-o no Instagram a desfilar para a Alta-Costura, e fiquei automaticamente surpreendido e até mesmo baralhado. O rapaz não quer ser mulher, ele apenas se quer exprimir, é tão moderno e próprio da nossa época. Simplesmente é livre!

A particularidade é que temos um rapaz que quer participar no concurso Miss França, apenas isso. Não deseja transformar-se em mulher nem nada parecido, o que afasta “Miss” da temática da transsexualidade mas aproxima-o das questões de identidade ao nível do género.

Exatamente. Isso pode ser perturbador para muita gente. Mas ele é um rapaz! É o sonho dele que simplesmente está a viver. “Miss” é um filme sobre sonhos e como concretizá-los, por mais “malucos” que sejam. Mas para quê? Para que se conheça o percurso interior e introspectivo. A lição aqui é a seguinte: ama-te antes que as pessoas te amem. É aceitar e amar essa diferença. Porque a diferença é a riqueza. E é isso que faz um povo, é isso que se faz a Humanidade. Porque não somos todos iguais.

Deixe-me dizer que o que mais me interessou foi a utilização do universo do pugilismo, que é o tema da superação e do “underdog” no cinema. E que o utiliza como base estrutural para todo o percurso do Alex.

Tentei fazer deste filme uma espécie de “Rocky”! Achava interessante como um amigo de infância “volta” e como ele traz uma representação de virilidade ligado ao mundo do boxe e como isso se irá relacionar/trabalhar com a feminilidade trabalhada pelo protagonista. É um paralelo mais do que interessante, até porque sou fascinado em desconstruir clichés. Como tal, escolhi a Miss França porque é um concurso ditado por regras, “super-clássico”, em contraste com uma personagem que não anseia ficar reduzida em caixas. Para conseguir vencer o concurso, ela(e) tem que se deixar subjugar pelas regras.

Visto que falou do Alex ser uma figura, em si, livre, e sendo um pessoa andrógena, como o trabalhou ou direcionou-o para se enquadrar na sua idealização?

Na verdade, bastou-me encontrá-la em Alexandre Wetter, porque ele próprio tem essas características, essa experiência e iluminação. Acredito que tive que transladar essa dita iluminação para a personagem, mas desconfio que nem um terço daquilo que o Alex possui. Recordo que, quando o conheci, contava-me histórias da sua própria experiência de vida, do "bullying" que sofria enquanto criança. E o que era invulgar é que me contava tudo isto com um sorriso nos lábios. O importante era que ele percebesse o percurso da sua própria personagem, de onde veio, o que vivenciou e para onde vai. Um trabalho deveras introspectivo. Até digo mais, foi muito mais difícil para o Alex trabalhar o seu lado mais masculino, da maneira como se vestir, andar, etc., aquele que evidenciamos no início do filme, do que a sua parte mais feminina. Isto aconteceu devido à experiência vivida pelo próprio Alex.

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"Miss" (2020)

Como se deparou com este universo das Misses como o objetivo de Alex? Como estudou e reproduziu esse sistema, essa instituição?

A ideia surgiu num almoço com o Alex, questionando o que será que pode levar alguém ao máximo da sua feminilidade e seja acessível a todos os públicos. Costumo fazer filmes a pensar em causas, até mesmo nas mais arriscadas. Neste caso a questão de género, debrucei-me numa instituição com que todos estão familiarizados. Então, eu e a minha argumentista guionista [Elodie Namer] batemos à porta, eles receberam-nos cordialmente e durante um ano mostraram-me a estrutura e processo desse universo de Misses. Gostei do lado de uma instituição tão clássica e normativa permitir a entrada de uma personagem como esta. Lembro-me de ter perguntado a uma das responsáveis que nos acompanhou neste estudo se seria possível, tendo em conta as suas atuais características, regulamentos e restrições, acontecer algo como este filme. A resposta foi que poderia ser possível. Por isso mesmo era importante para mim usar a instituição e desconstruí-la.

Nessa questão de desconstruir, há uma personagem em “Miss”, Amanda (Pascale Arbillot), que vai produzir o novo concurso e que se depara com um programa obsoleto, incapaz de cativar novas gerações. Acredita nisso?

Não, porque este concurso é a preservação do sonho trabalhado. Hoje em dia, tudo quer-se rápido, efémero ou instantâneo. Como a fama, surgida do nada, mas que desaparece de um momento para o outro. E as Misses, tal como diz, algo obsoleto, está a regressar. A ser novamente um desejo, uma fantasia e até mesmo um objetivo. Agora, a questão da modernização que faço no filme… bem, eles que desenrasquem, lancei a sugestão [risos]. Há dois anos, em França, houve uma polémica por causa dessa mesma modernização, em que se ponderou aceitar candidatas transexuais. É uma abertura que leva a uma mudança de regras, requerimentos e procedimentos. Alteraria tudo.

Em "Miss", sinto que o(a) Alex tem um tratamento privilegiado na competição, até porque a nível narrativo, você lhe dá um passado trágico, sendo órfão e acolhido numa família de marginalizados sociais.

Acabei por dar os dois. A infância feliz com os pais, pelo que está no filme possibilita ao Alex acreditar no sonho, porque eles próprios o induziram a lutar por aquilo que queria. Ser o que acreditava ser. Tudo era possível. E a questão da família adotiva era tornar esta sua luta igual, porque perante as adversidades o protagonista teria que ter um suporte, um equilíbrio que o mantivesse firme para continuar o seu sonho.

Sinceramente, acredita que, nos tempos que decorrem, ainda vale a pena “lutar por sonhos”?

Acho que sim, há que lutar por isso. E… por muito estranho que pareça, não tenho muitos sonhos. Não sou uma pessoa sonhadora, nem coisa que o valha.

Como sente estrear um novo filme em Portugal, tendo em conta que "A Gaiola Dourada" foi um tremendo êxito... equivocadamente vendido como uma "obra portuguesa"? [risos]

Sim, é verdade. [risos] "Ai, foi o filme português que mais gostei!" [sarcasmo] Sim, o filme foi vendido como tal, e não só aqui, mas em todo o lado. Bem, esta minha obra é puramente francesa, abriu a Festa do Cinema Francês, o que me deu um sabor particular porque são dois países [Portugal, França] que me construíram. Não sei ao certo como o público português irá reagir. O que posso dizer é que em França correu bem. Muitos dirigiram-se a mim com comparações com “A Gaiola Dourada”.

Que não tem nada a ver, e ao mesmo tempo tem tudo a ver. Estão lá os meus elementos e preocupações, a dinâmica da identidade, da família, isso que me caracteriza, está lá.

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A Gaiola Dourada /  La Cage Dorée (2013)

Suponhamos que “A Gaiola Dourada”, que é de 2013 e foi a sua primeira longa-metragem, fosse feita hoje. Mudaria alguma coisa ou faria completamente distinto? Falo de elenco, tom ou outras questões.

Mais do que tudo, era importante fazer um filme “feel good” para descomplexar toda essa questão dos emigrantes, e como os portugueses olham para os seus imigrantes. Era importante falar disso, nem nunca troçar ou denegrir os valores da alma portuguesa. Sim, faria igual, no tom, em tudo. As únicas mudanças seriam em meros pormenores. Como também era o meu primeiro filme.

E novos projetos?

Estou a escrever com um argumentista espanhol um projeto que quero filmar aqui, em Lisboa, e com atores portugueses. Será basicamente um filme europeu. Digo europeu, porque será uma coprodução entre Portugal, França e Espanha.