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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Billy Woodberry: "Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia"

Hugo Gomes, 27.11.24

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Mário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Mário Pinto de Andrade (1928 - 1990): poeta, ensaísta, político e fundador do MPLA [Movimento Popular pela Libertação de Angola], uma figura de pegada incisiva no século XX, que em Portugal pouco (ou nada) o referimos pelo seu nome. Porquê? Razões ainda por apurar, apesar das teorias, das especulações ou das certezas captadas numa sociedade de traumas e histórias confinadas a alçapões, contudo, é através da curiosidade mórbida de um americano que este homem das mil artes e das mil línguas se posiciona em frente ao holofote. 

Mário”, simplesmente, é a mais recente obra de Billy Woodberry - uma das peças centrais do movimento L.A. Rebellion (o qual fizeram parte Charles Burnett, Zeinabu Irene Davis ou Larry Clark) - que explora o seu percurso e o pensamento que influenciou os mais diferentes estandartes culturais pan-africanos, conduzindo-se por imagens e filmagens de arquivo, colheita de trabalhos seus e um incessante encontro às suas demandas politizadas, dos amigos a inimigos, família a amores, até dar de caras com a morte. A vida de um homem, sem hagiografias, mas com a dignidade declarada. No final da sessão, e mesmo não entendendo o seu apagamento, um “bichinho carpinteiro” e curioso anseia por mais e mais sobre Mário Pinto de Andrade. Woodberry apenas o despertou.

O Cinematograficamente Falando … falou com o realizador sobre Mário’, o filme, o homem, a sua (não)presença na memória de Portugal e ainda sobre fotografia e as suas possibilidades de cinema.    

Começo por lhe questionar sobre qual foi o seu primeiro contacto com o trabalho de Mário Pinto de Andrade?

O primeiro contacto foi, na verdade, através de um artigo que o próprio escreveu, publicado em inglês em Havana [Cuba]. Era um texto sobre cultura e movimentos de libertação nacional e nele, sobre a importância do Brasil e da cultura brasileira, particularmente a literatura, para um país como Angola, ou outro canto na África. Destacava como essa cultura literária ajudava a entender e a refletir sobre a modernidade, oferecendo um exemplo que, de certa forma, lhes parecia próximo.

A importância da literatura brasileira era significativa porque apresentava protagonistas descendentes de africanos, apesar de ter mudado ao longo do tempo, este universo literário sempre contou com escritores críticos e relevantes para o pensamento, eram de facto uma inspiração. Na altura em que li o artigo, já me encontrava profundamente fascinado e envolvido com o movimento brasileiro chamado Cinema Novo, o que me conduziu a descobrir a literatura e a cultura do Brasil. Esse contacto obteve impacto para mim porque funcionava como um exemplo alternativo, uma outra possibilidade. O Brasil, com uma população negra notada, mostrava nos seus filmes uma forma diferente, mais emocionante e interessante, de fazer cinema. Ver aqueles protagonistas negros no ecrã foi muito marcante e emocionante.

A partir daí, comecei a ler mais livros, conheci pessoas e mergulhei nos romances. Ao mesmo tempo, tive também a oportunidade de aprender mais sobre a história em cursos académicos. Quando ele [Pinto de Andrade] fez essa ligação entre a cultura brasileira e os movimentos de libertação, coincidiu com o que aquilo que estava a estudar e a refletir. Isso foi fascinante. A sua presença ativa em muitos movimentos de libertação nacional na África lusófona é indiscutível, estes surgiram após a primeira onda de independências africanas nos anos 50 e 60 e traçavam um caminho diferente, com uma consciência e uma reflexão sobre o que tinha acontecido noutras partes de África. Aprenderam com essas experiências e pareciam desenhar um percurso que integrava as lições do passado.

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Billy Woodberry

Essa abordagem foi crucial para mim e para a minha geração, que pensava sobre África de forma intensa. Mas o desafio era: qual África estávamos a imaginar? Seria a África do mito? A África lendária do período pré-colonial? Ou as versões que conhecíamos dessa África? No meu caso, interessava-me sobretudo o presente e o que estava a acontecer, embora também tivesse curiosidade pela história.

África não era algo alheio ao nosso interesse. Inspirávamo-nos em exemplos para criar um novo tipo de cinema. Nessa procura, tivemos referências como o cineasta senegalês Ousmane Sembène, que porque mantinha uma relação próxima com os militantes e ativistas das antigas colónias portuguesas em África. No filme, vemos fotos de Mário em vários lugares — na China, em Roma —, sempre ao lado dessas figuras, incluindo Sembène. Essa ligação também era muito significativa para se entender a sua aura política e artística.

Além disso, conhecíamos os filmes de Sarah Maldoror, em especial “Sambizanga”, tendo causado um grande impacto quando foi lançado em 1972. Foi uma obra inspiradora. Levou-nos a ler a tradução do livro que serviu de base, o que só reforçou essa influência inicial.

Esse foi o meu primeiro contacto com tudo isso, o tal ponto de partida.

De forma semelhante, o uso da história do Mário permite contar uma história do pensamento em África, dos movimentos, movimentos artísticos e políticos. Então, gostaria de ligar isto a outra pergunta, talvez usando as suas palavras, porque ao ver o seu filme, perguntei-me: por que é que em Portugal não falamos muito (ou quase nada) sobre o Mário? E, como se vê no seu filme, ele é uma figura presente nesses movimentos políticos e culturais.

Sim, concordo plenamente. De facto, é curioso debruçar esse “esquecimento”. Talvez tenha a ver com a forma como o conhecimento sobre este período, sobre este aspecto da história de Portugal e do colonialismo, é transmitido. Pode ser uma questão relacionada com a maneira como a história é contada. É possível que existam lacunas, embora haja pessoas em Portugal com um conhecimento profundo sobre o tema e sobre Mário. No entanto, talvez não sejam assim tantas, e talvez este assunto não esteja no centro do currículo escolar ou das preocupações atuais, por várias razões. Afinal, trata-se de um passado que remonta a 50, 70 anos ou mais, e isso pode contribuir para esse afastamento.

Mas devo dizer que muito do material que encontrei e usei no filme está em Portugal. Por exemplo, existe uma entrevista feita pela RTP em 1985 ou 1986, conduzida por Diana Andringa, que é uma fonte inestimável, uma longa entrevista em que Mário aborda muitos aspectos da sua vida e do seu pensamento. Além disso, há uma entrevista em livro com Michel Laban, um académico literário francês, publicada após a morte de Mário. É um documento extenso e detalhado que também foi muito importante.

Outro exemplo: encontrei cerca de 20 horas de material sobre a Guerra Colonial. Esse arquivo é valioso porque foi produzido na RTP e inclui entrevistas com pessoas de todos os lados do conflito — tanto portugueses como membros dos vários movimentos de libertação. Para Angola, por exemplo, encontramos entrevistas com representantes dos três principais movimentos de libertação. Também há material sobre Moçambique, o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] e outros. Este arquivo está organizado por períodos e por marcos importantes na evolução da guerra, desde o início até à cessação do conflito. A certa altura, esse material foi distribuído como parte de uma coleção ligada a um dos jornais, com 14 volumes ou algo do género, que podiam ser colecionados.

mario (1).jpegMário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Além disso, os arquivos de Mário estão em Portugal. O mesmo acontece com os arquivos de Amílcar Cabral, de Marcelino dos Santos e de outras figuras importantes, que estão preservados em instituições como a Fundação Mário Soares e Maria Barroso.

Nos museus históricos, também existe muita informação, se não diretamente sobre este período específico, pelo menos sobre a história do Ultramar como um todo. Portanto, o material existe e está acessível. O que pode estar a faltar é o seu destaque no imaginário coletivo ou no debate público atual.

E acredita que essa distância dos portugueses aos arquivos e à sua história colonial, detém algo de político?

Talvez haja um componente político nessa questão. Tenho ouvido algumas coisas e, claro, devo ser cuidadoso, porque sou estrangeiro e tive a sorte de passar a viver aqui. Mas ouvi pessoas dizerem que isso pode estar ligado a um trauma — termo que, reconheço, é muitas vezes usado em demasia. Pode ser o trauma persistente do fim da era colonial e da perda associada a esse período. Para alguns, foi uma perda; para outros, um ganho, e talvez isso ainda não tenha sido totalmente processado ou amplamente discutido e conhecido. Pode ser essa a razão, mas não tenho certeza.

Nos Estados Unidos, por exemplo, não sei se seria muito diferente. Temos muitos documentários e obras audiovisuais sobre o Vietname. Há cerca de cinco anos, foi feito um grande documentário sobre o tema. Existe um certo distanciamento no tempo, mas também não sei se estes assuntos são fáceis de divulgar de forma ampla, há sempre disputas sobre como interpretar essas questões. Nos Estados Unidos, frequentemente esquecemos que há uma espécie de amnésia voluntária em relação a certos tópicos - aqui, não posso dizer que sei como as coisas são, mas já ouvi pessoas comentarem: “Ah, isso não é ensinado nas escolas.

A educação, claro, é influenciada por diferentes correntes de pensamento que tentam definir o que é mais importante ensinar aos cidadãos, às crianças, aos jovens no ensino secundário e superior. No nível universitário, há investigadores excelentes nesta área. Há também jornalistas e figuras como Diana Andringa, que dedicaram a vida a escrever, pensar e partilhar reflexões sobre esses temas. Acho que Portugal tem um serviço público de televisão notável, o Canal 2 [RTP 2], por exemplo, é um dos melhores do mundo no que diz respeito à oferta cultural. Fazem um grande esforço para trazer questões importantes ao público e estimular a reflexão.

Talvez, no passado, tenha havido uma necessidade inicial de debater sobre esses temas, mas com o tempo isso foi desaparecendo, à medida que surgiam novos desafios. Construir uma sociedade diferente, integrar-se na União Europeia, fomentar a democracia, expandir o acesso à educação — tudo isso traz novas prioridades.

Não digo isto de forma leviana, mas devemos sempre questionar porquê que as pessoas não sabem? Talvez, no futuro, as populações afrodescendentes em Portugal sintam mais curiosidade sobre estas histórias e figuras como Mário e queiram aprender e partilhar esse conhecimento. Isso pode ser uma fonte de renovação, um caminho para recuperar e valorizar essa memória.

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Mário Pinto de Andrade e Sarah Maldoror / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Demorou quatro anos para produzir este filme. Gostaria que me falasse sobre a angariação de material, a sua seleção, edição e a construção de uma estrutura narrativa que respeitasse o pensamento e vida de Mário?

Tive a sorte de contar com a colaboração de Teresa Gusmão, minha colega e produtora associada do filme, que esteve ao meu lado praticamente durante todo o processo. Desde o início, quando começámos a reunir o material, até às etapas de pesquisa contínua, esteve sempre presente. Queríamos conhecer profundamente os arquivos disponíveis, entender o seu conteúdo. Com o tempo, começámos a estruturar uma ideia, um esboço de guião, uma linha narrativa: sabíamos o ponto de partida e o ponto final — os 60 anos da vida de Mário.

A partir daí, precisávamos aprender o máximo possível sobre a cronologia dos acontecimentos e identificar os eventos e elementos significativos que poderíamos incluir no filme. Quando chegou a fase de edição, já tínhamos reunido uma quantidade imensa de material de várias fontes: material de arquivo, gravações, documentos relacionados com a história de Mário, as suas conexões, viagens, envolvimento político e cultural.

Entre os materiais descobertos, estavam gravações de entrevistas que ele fez ao longo dos anos. Uma delas, de 1982, foi conduzida pela socióloga francesa Christine Messiant, em Paris. Outra, do final dos anos 80, foi realizada por Michel Laban, que resultou no livro-entrevista publicado postumamente. E, claro, a entrevista feita por Diana Andringa, que sabíamos existir mas que, inicialmente, apenas conhecíamos através de algumas imagens transmitidas na televisão.

Desde o início, pretendia que a voz de Mário estivesse presente no filme. Por isso, focámo-nos nestas três fontes. Tanto Christine Messiant como Michel Laban já tinham falecido, e os seus arquivos foram transferidos para a Fundação Mário Soares, esperando-se, eventualmente, que fossem para Angola. Quando soubemos que estavam na Fundação, tivemos de aguardar autorização para aceder às gravações e fazer cópias digitais, o que conseguimos. Infelizmente, outra gravação feita nos Estados Unidos nunca nos foi disponibilizada. Quanto à entrevista de Diana Andringa, conseguimos acesso ao material completo apenas mais tarde, mas foi extremamente valioso.

Cada uma dessas entrevistas trouxe contribuições únicas. A de Christine Messiant, por exemplo, concentra-se sobretudo nas origens políticas do MPLA, cobrindo o período até 1962. Já a de Michel Laban abrange um arco temporal maior, refletindo sobre a vida familiar de Mário — a relação com os pais, a casa onde cresceu —, mas também sobre o seu desenvolvimento literário, intelectual e político, além das dinâmicas da sua geração em Angola e em Lisboa. Esta entrevista é notável porque Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia, por isso, preparou-se meticulosamente para as conversas, com o objetivo de ser-se preciso e rigoroso, oferecendo um relato considerado dos eventos e do seu significado.

Ao integrar essas fontes com o material que Diana Andringa produziu, começámos a delinear a estrutura do filme. No entanto, mesmo com tantas informações, não era possível incluir tudo. Tivemos de tomar decisões cuidadosas sobre o que contar, o que omitir e como articular os eventos para que fizessem sentido dentro do conjunto.

Trabalhei com o editor Luís Nunes, com quem já colaborei em quatro filmes anteriores. Ele é fantástico e tem um conhecimento profundo dos diversos arquivos, pois já trabalhou com realizadores como Manuel Mozos e produziu filmes sobre figuras como João Bénard da Costa. O trabalho com Luís foi essencial para reconstruirmos a narrativa e criarmos uma obra coesa. No final, foi um processo de intenso pensamento, pesquisa e escolhas, mas acredito que conseguimos transmitir o essencial da história de Mário e da sua relevância. Já agora, conhece o trabalho de Manuel Mozos?

mario (3).jpegMário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Sim, conheço e, principalmente, o filme que refere: “Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei”.

Voltando … Luís tem sido incrivelmente útil, tem um olhar muito apurado e uma experiência vasta com arquivos.

Durante o processo, surgiam momentos em que identificávamos algo que queríamos incluir. Por exemplo, havia uma passagem em que Mário viajava de comboio para ver a mãe. Queria mostrar essa viagem, mas só tínhamos uma única fotografia do comboio — e era uma imagem miserável. Sabíamos que precisávamos encontrar algo melhor, algo que captasse de forma mais eficaz essa ideia no cinema. E foi assim ao longo de todo o trabalho: procurar o melhor material e pensar na melhor forma de transmitir uma ideia de forma cinematográfica.

Foi um processo que exigiu muito tempo e paciência. Houve períodos em que não podíamos filmar ou em que ainda não tínhamos o financiamento necessário para avançar em certas partes. Então, usávamos esse tempo para aprofundar ou refinar a pesquisa, sempre tentando descobrir algo que pudesse enriquecer o filme. Foi um esforço contínuo, mas nunca cansativo para mim. Pelo contrário, acho fascinante.

O desafio maior foi transformar todo esse material e essas ideias em algo coerente, algo que fizesse sentido enquanto filme, como tal exigiu muita dedicação, mas também foi extremamente recompensador.

Vejo que trabalha muitas vezes com arquivos e fotografias, e isso tem-se verificado cada vez mais nos seus últimos projetos. Diria mesmo que tem sido uma abordagem muito distante em relação, por exemplo, ao seu primeiro filme, a ficção “Bless Their Little Hearts” (1983). Sente-se fascinado pelas possibilidades que uma fotografia pode oferecer ao cinema?

Talvez seja porque comecei a explorar isso mais tarde. No início, fazia algumas fotografias e slideshows, mas não pensava exatamente em cinema. Talvez estivesse lá no meu horizonte, mas ainda não estava a concretizá-lo, era mais uma questão de ter um texto, normalmente não meu, sobre um tema histórico, e de forma obsessiva procurava fotografias que, de alguma maneira, dialogassem com esse texto.  

Foi só depois, ao falar sobre esses começos com alguém há cerca de um mês, que percebi que as pessoas viam nisso algo cinematográfico. Diziam que tinha a ver com a forma como as imagens trabalhavam umas com as outras. Esse processo aconteceu antes de entrar na escola de cinema, mas não o tinha reconhecido como tal na altura.  

Quando comecei a trabalhar com imagens em movimento, a fazer ficção e coisas do género, não pensava em fotografias, nem em imagens individuais. Essa relação com a fotografia veio mais tarde, sobretudo quando comecei a ensinar. Dei aulas num programa de fotografia numa escola de arte, e isso ajudou-me a aprender muito mais sobre fotografia, graças a fotógrafos, escritores e até aos meus próprios alunos. Foi aí que comecei a valorizar realmente a fotografia.  

Também fui influenciado por cineastas como Hartmut Bitomsky e fotógrafos e escritores como Allan Sekula, o qual fizeram-me pensar de forma mais aprofundada sobre a fotografia, e talvez isso tenha aberto mais possibilidades para mim.  

No meu filme “And When I Die I Won’t Stay Dead” (2015, sobre o poeta e ativista Bob Kaufman), não havia tantas imagens em movimento do tema, foi um processo de aprendizagem. Sabia que, nos anos 1950 em São Francisco, havia muitos fotógrafos talentosos, e isso também se devia ao facto de, naquela época, ser mais provável alguém ter uma câmara fotográfica SLR [single-lens reflex] do que uma câmara de filmar.  

Felizmente, encontrei imagens de filmes, mas as fotografias ainda eram predominantes. Conhecia um livro de fotografias publicado por um deles, Jerry Stoll, chamado “I Am a Lover, que é um dos melhores registos visuais do que era viver no bairro boémio de North Beach, São Francisco, naquela época. Trabalhei com essas imagens e outras de alguns fotógrafos importantes, o que me inclinou a usar fotografias de forma mais aberta e reflexiva nos meus filmes.  

p20189702_i_h10_aa.jpgAnd When I Die I Won’t Stay Dead (Billy Woodberry, 2015)

Depois de “And When I Die I Won’t Stay Dead”, eu e Luís fizemos uma curta de 11 ou 12 minutos chamada "Marseille après la guerre”, composta apenas por fotografias. Foi durante a pesquisa para “Mário” que me deparei com a coleção de [José] Veloso de Castro, um fotógrafo militar. Essa descoberta levou-nos a criar uma história a partir das suas imagens de África.  

Este interesse por fotografias não surgiu do nada. Há cineastas que admiro profundamente, como Santiago Álvarez, documentarista cubano. Ele dizia: "Dê-me duas fotografias e um pouco de música, e consigo emocionar-te; consigo fazer um filme." Embora não faça exatamente como ele, a confiança dele em usar fotos inspirou-me. Outro grande exemplo é obviamente Chris Marker, que também começou como fotógrafo. 

Marker dizia que não se tornava fotógrafo porque William Klein era muito melhor. Mesmo assim, usava fotografias nos seus filmes e refletia sobre o que uma fotografia pode ser, em trabalhos como “Si j'avais quatre dromadaires” (“Se Eu Tivesse Quatro Dromedários”, 1966). A sua abordagem ao meio e o seu próprio trabalho fotográfico são algo que admiro muito.  

Mas essa fascinação pela imagem fixa, pelos arquivos e por essa realidade, tem também fascínio na vaga de fotógrafos amadores da América e como a sua transição para o cinema, um cinema underground americano ou alternativo à fantasia vendida pela indústria hollywoodesca?

Sim, tem a ver com isso também. Refere-se a Helen Levitt e outros? Sim, porque os filmes e a fotografia dela foram realmente importantes para mim. Gostava muito do trabalho dela. Dediquei o meu primeiro filme a ela porque o modo como ela trabalhava era livre, interessante e original, especialmente no contexto de East Harlem.

Ela conseguiu fazer filmes dentro de uma indústria que já tinha regras muito estabelecidas. Além disso, colaborou com o escritor James Agee, e juntos fizeram outro filme que é um dos meus favoritos, chamado “In the Street” (1948). A sensibilidade que ela demonstrava na imagem fixa continuava presente quando passou a trabalhar com imagens em movimento.

Ainda que tenha mudado de plataforma artística, ela manteve aquele olhar aguçado para a observação, para os detalhes e para o movimento. Mas o foco nunca era abstrato; estava sempre nas pessoas, nas suas vidas.

Essas qualidades, essa atenção ao humano, ao particular, impressionaram-me profundamente e foram uma inspiração.

E sobre esses fotógrafos, muitas vezes captavam as classes, a classe trabalhadora, as vozes mais silenciosas que não tinham lugar no cinema de massas. Essa foi, como disse, uma das características do movimento LA Rebellion do qual fez parte: o de dar voz aos invisíveis no cinema mainstream?

Sim, exatamente. Talvez como muitos dos movimentos de novo cinema, especialmente o novo cinema latino-americano, que era profundamente radical e convencido da necessidade de tornar visíveis, no cinema e na cultura, as pessoas, as classes populares: como vivem, o que fazem, como se expressam, os desafios que enfrentam. Era uma forma de contrariar a tendência de simplesmente usar o cinema como escapismo.

Sob a influência dessas pessoas e encorajados pelo exemplo delas, tentámos fazer algo semelhante, e havia também uma necessidade, quase uma compulsão: uma vez que tivéssemos acesso ao meio, o que faríamos com isso? Imitaríamos os outros? Seríamos apenas entertainments? Não. Pensávamos que o cinema podia ser mais do que isso. Outros temas e outras subjetividades poderiam ser tão envolventes e interessantes quanto aquelas histórias banais com personagens fictícios, estrelas e narrativas pré-fabricadas.

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"Boys with cigarettes", Nova Iorque / Foto.: Helen Levitt (1940)

Acho que foi assim que esse pensamento surgiu. Havia uma afinidade com as pessoas que mencionei, que se tornaram pilares, referências. Sabíamos que outras pessoas já tinham feito isso, e que era possível fazê-lo, se quiséssemos.

Felizmente, vi essas obras na escola e procurei aprofundá-las. Tinha amigos que também gostavam muito e as consideravam como referência. É quase uma tradição, como Chaplin, que também tinha essa preocupação com os temas humanos e sociais.

Visto chegou “Mário” por via de outras obras, pergunto-lhe como desfecho da nossa conversa, se no seu trabalho e pesquisa para este filme deparou-se com a ideia do seu próximo projeto?

Não tenho certeza. Tenho algumas ideias, algumas ‘coisas’ que gostaria de fazer, mas nada de concreto, como também tenho receio de embarcar em algo só porque preciso fazer alguma coisa. Não sinto que ainda tenha surgido o projeto certo, algo que me convence de forma definitiva. Mas espero continuar a procurar.

Ai, Timor! Se outros calam, cantemos nós ... ou não!

Hugo Gomes, 07.07.23

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Timor-Leste, 1942. Quatro homens (portugueses devemos salientar) reunidos num quintal, bebendo cerveja e discutindo geopolítica após o visionamento de uma película sobre aviões-zeros japoneses. A Guerra, essa “mão” nefasta que “infecta” o Mundo, chegará àquele Paraíso pelo ar e proveniente da Terra do Sol Nascente. O medo infiltra-se neste clube privado de privilegiados a léguas da sua Pátria, mas cada um deles fortalece a conversa com um debitar histórico, “fact-checkings” rasgados de uma Wikipédia qualquer (“ninguém fala assim”, pensará intuitivamente o espectador). 

A suposta conversa (se é a que estavam a ter) é interrompida por um forte bater no portão de tal propriedade - “Quem é que bate desta maneira?” - questiona António Pedro Cerdeira apontando em direção ao som e sem um pingo de perplexidade. “Carlos, Carlos, toma cuidado, pergunta quem é”, precavê Marco Delgado ao seu companheiro - neste momento gargalhadas explodem fora da narrativa. Um diálogo no mínimo ridículo, incoerente, mas encenado por alguém que tem conhecido a celebrização nos últimos tempos graças ao spoof de novelas “Pôr do Sol”, o registo dessa série satírica em que o ator interpreta um latifundiário orgulhoso da sua linhagem não difere, em nada, daquela sua personagem - o tenente Pires, como iremos saber mais tarde. 

Mas não se acanhem, a poucos minutos surgem os outros protagonistas desta história da História, os aliados, a frente de batalha australiana liderada pelo capitão Bernard Callinan, aqui sob a pele de Elmano Sancho. Após as suas primeiras palavras, de seguida confirmadas pelo restante pelotão, não poderíamos cair (ainda) mais no ridículo. Falando português fluente sob um sotaque cartunesco, estes australianos seriam o resultado de que esta produção - “Abandonados” - uma série da RTP retalhada como longa-metragem parecem não quer levar o seu espectador em conta, muito mais reduzir Timor a uma Madeira “faz-de-conta”, e resumir um conflito em meras vinhetas de pedagogia institucionalizada. Ah, e daqui a nada chega-nos Chico Diaz, ator brasileiro radicado em Portugal, a desempenhar um cônsul japonês - só visto! E aliás não se via nada assim desde que Alexandre Lencastre serviu de vidente chinesa numa comédia de Vicente Alves do Ó, isto numa época em que se fervorosamente teima por representações exatas nas artes (qualquer que seja). 

Enfim, “Abandonados”, assinado por Francisco Manso (a quem tive um bela conversa em 2020 em contexto do “O Nosso Cônsul em Havana”, o qual desejo recuperar para uma futura publicação), homem que sonha e ambiciona ver História estampada no ecrã, sofre de um grande mal, a iniciativa delirante sem recursos nem orçamentos para tamanhos voos e reconstituições credíveis, ao invés disso, tem gerado episódios cada vez mais deslocados do que pretendia-se de “dramas históricos”. O restante é o previsto na reciclagem de TV para Cinema, uma falta de coordenação, e condicionamento das personagens … mais “bonecos” figurativos que qualquer outra coisa … inibindo dramaturgia e palcos artísticos, a acrescentar uma condescendência enorme para com todos aqueles eventos histórico-narrativos, sem nunca “levantar pé” do provincianismo. 

No fim de contas, João Botelho repete e repete, atribuindo essa repetição a um dos ensinamentos valiosos transmitidos por Manoel De Oliveira - “Se não há dinheiro para filmar a carroça, filma a roda, mas filma-a bem”. Manso bem poderia ter ouvido Botelho e seu hipotético “dizer” à lá Oliveira, assim escusávamos de ter presenciado tamanha vergonha alheia.

Quem és tu Zé Gato?

Hugo Gomes, 19.08.22

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Primeiro Mandamento: O polícia é um homem."

"Segundo Mandamento: O homem deve sempre lembrar ao polícia que é um homem."

"Terceiro Mandamento: O polícia que esquece disto tem que escrever 500 vezes no quadro preto: “A pistola é um meio, não um fim”.”

Zé Gato” (1979 - 1980) foi uma série dentro das suas possibilidades produtivas e são essas limitações que deixam em aberto as filosofias citadinas e em estado de “ferida aberta” a condição do polícia. Continua a falar muito bem sobre nós, nesta nossa atualidade cinzenta. Quanto ao nosso Zé Gato, o personagem imortalizado por Orlando Costa, a sua melancolia nunca deixou, por um minuto que seja, de de ser tão humana.  

A série encontra-se para visualização nos arquivos da RTP, é uma boa forma de relembrar o ator que ficou vincado neste “polícia à paisana”.  

Orlando Costa (1948 - 2022)

O falatório de João Bénard da Costa

Hugo Gomes, 02.07.22

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Ler João Bénard da Costa sempre foi (e continua a ser) uma leitura prazerosa, mesmo não concordando totalmente com a sua visão de um Cinema-raiz às suas precoces paixonites, platónicas como denomina diversas vezes. É no seu abraço, na sua perspectiva delirante no contacto do filme (diria até que, tendo em conta muitas das Folhas de Sala da Cinemateca, recorrentemente “fazia amor” com os próprios filmes, apenas descrevia em papel), gestos e fragmentos, desde que me lembre, que se tornaram inspiração à minha escrita de cinema, não ansiando com isto ser, ou mimetizar, quer o seu estilo, lirismo e paladar, e antes preservar o misticismo que o Cinema ainda nos pode oferecer de mão cheia. Com isto, sublinho, não sou um proclamado “filho de Bénard” - aludindo à "descendência" artística deixada nos mais diferentes cantos da cinefilia portuguesa - nem desejo prosseguir nessa herança. Com todo o respeito à sua memória, prefiro admirar Bénard da Costa numa distância que me permita acompanhar a minha própria voz (ou lá o que isso seja).   

Mas toda esta conversa de chacha é desnecessária para dizer que descobri uma deliciosa conversa entre o ex-crítico, curador e programador (e porventura diretor da Cinemateca) com a jornalista e escritora Clara Ferreira Alves no antigo programa da RTP 2, “Falatório” (já não se fazem mais programas assim), e a entender que as preocupações de hoje são debatidas há anos. No Cinema, para o bem ou para o mal, nada é novo, somente revisitável, desde a decadência dos cinemas de bairro que degradam a identidade de Lisboa, a ausência de “Grandes Filmes” (as produções hollywoodescas e milionárias que o ex-director da Cinemateca resumiu com a etiqueta “Titanics”) no circuito alternativo aos multiplexes, e a prioridade das pipocas como apaziguação da exigência do espectador (falou-se na má qualidade das salas e das projeções nos ditos cinemas de centro comercial, mas ninguém quer saber, desde que se tenha as delícias de milho à mão).   

Ouvir Bénard da Costa em 1998 (julgo ser esse o ano, também não vos quero mentir) é como se estivesse a ouvir, hipoteticamente, um Bénard da Costa em pleno 2022, a única diferença é que o streaming ainda era um “não-assunto”.

Para ver e ouvir aqui.

Falando com Beatriz Batarda, a nossa "Sara", a atriz do choro e do riso

Hugo Gomes, 16.11.18

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Foto.: Hugo Gomes

É de facto uma das “caras” mais reconhecidas do cinema português. Beatriz Batarda irá transitar para um novo universo, as séries de televisão e estreará com Sara, um ensaio meta-narrativo de uma atriz de drama que perde a capacidade de chorar e embarca numa jornada ao reencontro do seu “eu”.

A atriz, conhecida pelos seus trabalhos em obras de João Canijo, João Botelho, Margarida Cardoso, Manoel de Oliveira e, claro, Marco Martins, falou sobre a nova aposta da RTP e as escolhas dos atores, mais precisamente, as suas escolhas de carreira.

Confesso que estive a procurar qualquer indício de trabalho na televisão portuguesa. Como não encontrei, presumo que esta seja a sua estreia neste formato, por isso questiono: como é chegar à produção televisiva nacional?

Para dizer a verdade, fiz figuração há 25 anos atrás. Essa informação ficou perdida, nem me lembro se era novela ou série, mas porque hoje só temos currículo se estiver na internet.

Mas bem, não considero uma estreia, Sara é a minha chegada. O que posso dizer é que se trata de um universo bem à parte do Cinema. Enquanto espectador particular, porque sou profissional, vejo o quão diferentes são esses formatos: Cinema, Televisão e Teatro. E dentro desses mesmos existem registos completamente distintos. A qualidade maravilhosa desta série é que no mesmo seriado conseguimos reunir imensos registos, e numa forma organizada, natural e até intuitiva, sem perturbar a narrativa, a estética e até a linguagem da montagem que está instituída.

O facto é que o Marco [Martins] ter conseguido na sua realização esse casamento, porque se mantêm essas qualidades que estão todas presentes, é notável. Como se diz - qual está na moda nesse rol de programas de culinária - uma explosão de sabores [risos]. Estes termos e expressões vão ser absorvidos naquilo que é agora a programação televisiva. Esperemos que esta série influencie alguma coisa ou até mesmo alguém.

E como esta ideia chegou a si?

As pessoas quanto muito também conversam, partilham desejos e projeções, e o Marco tinha desejo de experimentar a televisão. Eu fiz pouca televisão, porém, gosto de explorar, aprender, sair da minha zona de conforto e o Bruno [Nogueira] tinha sido desafiado pela RTP para apresentar um projeto novo. Esteve ali nessa procura e apresentou esta sinopse, até porque tudo começa com uma simples sinopse, um esqueleto evidentemente.

A premissa de uma atriz que é apanhada no fundo de uma tragédia, que constitui na perda do seu maior instrumento – a capacidade de chorar – e transformando essa tragédia em algo risível. No fundo é o que fazem os escritores de comédia. É uma forma de ultrapassar, de viver com, digerir as dificuldades da vida. A comédia nos ajuda a fazer isso. Ou seja, ele fez um esqueleto e partilhou com o Marco esta ideia, que por sua vez ficou entusiasmado e quis logo fazer parte enquanto realizador. Penso que não é injusto dizer que a ideia do Bruno surge um pouco inspirada nesta imagem que eu construí, uma imagem pública que não corresponde certamente à verdade.

Sara (Marco Martins, 2018)

E que imagem é essa?

Sei que estou catalogada como aquela atriz ligada ao Cinema de autor, o do drama e com pretensões intelectuais arrogantes. É a construção de uma imagem como outra qualquer que alimenta muitos espelhos. Realmente existe quem se alimente disso e eu vivo bastante bem com essa imagem, é quase como um acordo entre cavalheiros. É agarrada nessa imagem que o Bruno desenvolve a ideia da Sara. Construímos juntos esta personagem, fomos dando essas cores, espaço para várias vertentes. Resumidamente, aquilo pelo qual gosto de construir personagens cheias de contradições. Como tal, fomos criando espaços na narrativa para que estas mesmas contradições ganhassem corpo e dimensão cómica evidentemente.

Poderemos afirmar que a Beatriz e a Sara têm muito em comum?

Não, porque na verdade isso não corresponde à realidade, essa é apenas a imagem que as pessoas tem da minha vida profissional. Tenho um percurso imensamente variado. Já fiz anúncios, comédias, policiais, tragédias clássicas e textos contemporâneos. No Cinema, já passei tanto pelo comercial quanto como de autor. Sempre tive sorte de visitar as várias áreas. No entanto, é aquilo pelo qual sou catalogada nesse nicho. Mas não me identifico de todo com esse rótulo, evidentemente, aliás, nunca fiz novela.

E faria alguma novela?

Porque não? Estás a ver, isso já é uma projeção em relação a mim. Eu nunca disse em entrevista alguma que nunca faria novela ou que era contra as novelas. Até trabalho com muitos atores que fazem novelas. Não as vejo porque não me preenche, não me interessa, mas espreito por causa de imensos atores com os quais trabalho e que entram nesse formato.

Mas concorda com um preconceito em relação aos atores de novela? Quase soa como um sistema de castas.

Há um ditado: diz-me com quem andas e eu dir-te-ei quem és. As nossas escolhas não nos definem na totalidade, mas influenciam a nossa estruturação. Há escolhas que fazemos na vida porque sim, porque nos levam àquele caminho inconscientemente. às vezes não podemos escolher, o que é mais grave, algo mais redutor na nossa vida. Olhamos muito para poder oferecer aos nossos filhos a possibilidade de escolha. É uma grande arma, até porque nem toda a gente tem esse poder. Tive a felicidade dessa sorte  (…) e estou grata por isso (…) o de poder escolher e fazê-lo em função das minhas necessidades. Agora, em relação a esse debate de que os atores de novela são inferiores aos atores de Cinema? A minha resposta é não. Não há inferioridades. Os atores transitam e alguns especializam-se em determinadas áreas. Sei que existem atores que são bons em fazer novelas, isso ninguém lhes retira o mérito. Assim como muitos não estão interessados em transitar para outras áreas, como o Cinema. Há espaço para isso tudo. Tal não te faz melhor ou pior ator, versátil ou limitado, tudo se resume a escolhas.

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A Costa dos Murmúrios (Margarida Cardoso, 2004)

Assim como a novela, a comédia é também uma plataforma bem subvalorizada pelo grande público, no que se refere a valorização de atores.

Vou dizer algo politicamente incorreto, mas o que é que entendes por valorizar? Dinheiro ou estamos a falar de reconhecimento intelectual. É que tudo isso, como havia dito, são fruto das escolhas. Tudo em função das necessidades. Se precisares de reconhecimento intelectual, então procurarás isso, em caso de retorno financeiro, essa será a tua busca. Isso vai influenciar a escolha do teu caminho. Aqui, por exemplo, o Bruno escreveu uma série, ele é comediante e acima de tudo reconhecido intelectualmente.

Isso da comédia ser subvalorizada é uma bandeira do senso comum. Como por exemplo, é costume dizer que a comédia não vai longe nos Óscares. O que eu acho é que os critérios são muito altos e bastante inflacionáveis consoante o seu contexto. O fenómeno social em que se vive naquele presente que o filme acontece, e isso é muito variável. A comédia é na verdade muito mais difícil do que o drama. Apesar de eu partir do princípio que chorar e rir é essencialmente a mesma coisa.

Ou seja, é da opinião que a comédia vive dos mesmos elos da tragédia?

Na vida, quando tu ris, na verdade estás a chorar, porque estás a reagir ao teu medo. Tu ris porque tens medo. Para mim é a mesma coisa – chorar a rir. Vem da mesma dor, da mesma inquietação, da mesma perda e quando a comédia faz as pazes com isso adquire uma dimensão diferente.

E quanto a expectativas para a série?

Não tenho nenhumas. Nunca tenho expectativas. Eu faço o melhor que posso e depois, já não é meu. Larguei.

Novos projetos?

O Marco Martins convidou-me para a sua nova longa e eu fiquei imensamente contente. A minha personagem será uma imigrante portuguesa em Inglaterra que faz a ponte entre uma entidade empregadora de uma zona industrial e os imigrantes portugueses em situação limite em busca de uma saída económica.

Tendo em conta o Cinema de Marco Martins, aposto que esse projeto terá algo de Brexit pelo meio.

Não é à toa que ele escolhe Inglaterra como cenário, pretendendo assim levantar todas essas questões, se há ou não livre circulação dentro dos mercados e se em concreto é equilibrada ou não

Bruno Nogueira: "A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer"

Hugo Gomes, 06.10.18

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Uma atriz sobretudo dramática que perde o dom de chorar. Resultado, uma inversão de marcha na sua carreira então presa a arquétipos e uma busca pelo que realmente lhe faz feliz. Esta é a resumida premissa de “Sara”, a série de Marco Martins que promete abalar toda a nossa perspetiva de ficção à portuguesa no pequeno ecrã e demonstrar as versáteis capacidades de Beatriz Batarda, que à imagem da protagonista tem vindo a ser “acorrentada” a rótulos.

Uma proposta deliciosamente satírica e astuta que veio originalmente da mente de Bruno Nogueira. O comediante e ator falou com o Cinematograficamente Falando … sobre este projeto e de que maneira ele se insere no panorama audiovisual português.

Sendo o autor da ideia original, gostaria de perguntar como esta surgiu?

Surgiu da minha realidade e da realidade que conhecia da Beatriz, uma atriz que facilmente cai no estereótipo, reduzida ao mesmo tipo de papéis. Sempre que a convidavam, não era para encenar “casamentos felizes”, “famílias felizes”, mas sim desempenhar algo trágico ou coisa que pareça. Pensava muito nesse mecanismo de uma atriz como a Beatriz que de um dia para o outro não conseguia mais chorar. O que aconteceria a esse tipo de atriz dramática se fosse lhe retirada a sua mais preciosa ferramenta de trabalho, e com isso a procura de um lado mais feliz na sua vida. Então imaginei essa viagem, e imaginei a partir da própria Beatriz.

De certo modo, “Sara” é sobre a Beatriz Batarda?

Só o facto de ser uma atriz e ficar quase limitada aos papéis dramáticos, o resto é somente ficção. A sua jornada, famílias, relações, amigos, tudo é fruto da ficção.

Portanto, foi através dela que construiu a base desta série que funciona no todo como uma crítica satírica ao mundo do Audiovisual e do Entretenimento do nosso panorama?

Sim, mas mais que isso, todo este processo de conceção obrigou-me a pensar sobre o Cinema, Teatro e até mesmo Televisão, no que leva um ator a fazer determinada coisa, muitas vezes tendo motivação financeira, outra apenas por curiosidade profissional, ou é uma fase da vida em que se procura o que é mais seguro. Sempre tive esta ideia mesmo quando estava fora do mundo audiovisual, agora que estou dentro apercebo-me que a realidade é para lá disso. Depois só me interessava brincar com a realidade da situação, com aquilo que a Beatriz e o Marco pensavam que era. Depois juntei uma essência forte e eficaz daquilo que é a nossa visão sobre o que são estes meios nos dias de hoje.

Mas “Sara” foi inicialmente pensado como uma série ou um filme?

Numa série. Foi sempre pensado como tal.

Mas diria que existe uma linguagem muito cinematográfica em “Sara”.

Sim, foi parte do Marco [Martins], que entrou no projeto a partir de uma simples conversa de quotidiano. “O que estás a fazer? O que andas a fazer? Projetos futuros?”, falei-lhe desta ideia e segundo as suas próprias palavras, ele achou “perfeito”. Assim, após a sua entrada, esta ideia deixou de ser minha e passou a ser “nossa”. Foi quase um trabalho em família.

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E como pensa que reagirão os espectadores em relação a “Sara”?

Não sei. Acho que toca com vários tópicos, mas sobretudo vai muito ao encontro da perceção que os espectadores têm, outros informaram um pouco mais, mas um caso é um caso. Não sei realmente como reagirão. Isto é uma coisa muito egoísta de dizer, mas “Sara” foi concebido como aquilo que eu gostaria de ver na televisão neste momento. Por isso, como última análise, isto foi para nós vermos. Foi um projeto fiel aquilo que pretendíamos e que gostaríamos de ver, obviamente tendo em conta que isto estava direcionado para televisão.

Mas é um projeto arriscado para a nossa televisão, diria que é uma série construída a partir de uma metalinguagem bastante própria e incisiva.

Vejamos, a ideia era de posicionarmos de fora a assistir a isto tudo. Portanto, tem várias camadas. Dando exemplo, colocamos a Rita Blanco a criticar quem faz novelas e anúncios a bancos, enquanto sabemos que a própria atriz já fez isso tudo. A série retrata um pouco o Mundo de cada um dos envolvidos, e mesmo sendo, em alguns casos, feridas nossas, só o facto de avançarmos com essas representações estamos em certa parte a exorcizar os nossos pontos fracos.

Tendo como base o conteúdo, o contexto e as “farpas” que Sara constantemente lança, gostaria de perguntar como vê a atual produção cinematográfica e televisiva em Portugal?

Cada vez mais o Cinema Português vem ao encontro com o público e durante muito tempo estes dois fatores estavam intrinsecamente desencontrados. O público não via o nosso cinema, guiando por palavras-chaves como “filmes longos e chatos” (e verdade é que existiam imensos longos e chatos). Hoje em dia, uma coisa que ajuda imenso o cinema português, felizmente, é o reconhecimento estrangeiro e desta nova geração de realizadores que têm uma maior proximidade com o público. Por isso, sou da opinião que o cinema português está melhor não só por essa cumplicidade com os espectadores, mas até pelos espectadores que fizeram um esforço para entender a sua linguagem.

A televisão … bem … tendo em conta a minha experiência, uma ideia passa por imensas transformações até chegar ao produto final. Veja-se o caso de “Sara”, a ideia é originalmente minha e foi gradualmente transformada em uma outra ‘coisa’ com as contribuições de Marco Martins, Beatriz Batarda, entre outros. O que restou dos primeiros pensamentos foi nada do que está ali. Julgo que em 90% das séries nacionais, as ideias, que podem ser boa, são submetidas a todo um conjunto de intervenções, passando pelos executivos a produtores, “vamos meter umas gajas nesta cena aqui”, ou o diretor do canal, “epá, o que ficava bem aqui era aquele gajo que agora está na ribalta”. Portanto, a ideia com todos estes contágios misturados resultam numa … papa … perdeu-se no caminho.

Acho que temos ótimos autores em Portugal, mas a ideia original perde-se no trajeto e aquilo que presenciamos no ecrã não é, nem tão pouco aquilo que originalmente seria. De resto, não acho que esteja num caminho brilhante. A televisão continua com aquela lengalenga que vai ao encontro do que o público quer, e por vezes isso é discutível. Para vir para cá, passei por um acidente na A5. Não havia trânsito, mas os carros paravam para ver os destroços. Naquele momento, o que público pretendia era ver o acidente, por isso julgo que essa política “das intenções do público” não seja de todo verdade.

Um canal privado tem outras obrigações para além de mostrar o “acidente”, e a RTP, enquanto pública, tem o papel fundamental que é o respeito pelos atores e cumprir essa preservação autoral, assim como a valorização dessas mesmas.

Novos projetos?

Penso voltar à televisão, por enquanto não é o momento certo, estou à espera de ideias e isso leva o seu tempo. Contudo, vou regressar a algo que tinha saudades e que têm dedicado paixão que é o stand-up comedy. Ando em experiências e testes de material e em novembro arrancarei com uma tournée.

A memória, o legado, o passado e o futuro, os frutos da nossa existência

Hugo Gomes, 25.05.18

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Antes de seguirmos pelos labirínticos registos da existência de Eduardo Lourenço, é preciso falar de Miguel Gonçalves Mendes, realizador que se tem dedicado à evasão do formalismo e o formato academicamente aceite que o documentário português parece ter contraído no sentido em esquematizar “vidas e méritos alheios”. Por sua vez, é também fugaz a distorção dos cânones do docudrama que ultimamente tem caído num poço sem fundo de (não) criatividade. Passando pela lenda de mouras encantadas de Olhão, pela marca pessoal de Cesariny ou do romance que transgride o “eu” artístico e criador de José Saramago, Gonçalves Mendes aventura-se agora, ou deixa-se aventurar, pelos pensamentos de contradições de Eduardo Lourenço, ensaísta, professor e sobretudo “poeta da vida”.

Nesta tendência de condensar um livro da autoria de Lourenço, “O Labirinto da Saudade” (1978), o realizador propõe ao catedrático uma demanda pessoal e pensante pelo seu íntimo intelectual e fá-lo através do uso da tecnologia para colocar um velho sábio em perfeita confrontação com as suas ideias. Este é um caso em que a ideologia e o homem se confundem, parindo uma quimera de conscientização dos fantasmas da nossa nacionalidade, enquanto Lourenço se debate pela sua própria existência. A existência de um paralelismo com o nosso legado enquanto portugueses, viventes de um país traumático, cujas mazelas agora convertidas em lendas e criaturas mitológicas, olharapos da nossa História (“A História é a ficção das ficções”).

As questões deparam-se, aguçadas como adagas feudais, no qual Eduardo Lourenço se defende com a serenidade e a lucidez pelo qual é visto, respeitado e venerado. E dentro dessa divindade, Gonçalves Mendes prepara um altar tecnológico, empacotado entre caixotes dimensionais e náutilos, a espiral logarítmica que nos leva ao córtex da sua concretização, mas ao mesmo tempo à sua tragédia. Por entre esses traumas evidenciados, existem dois que se cometem como pessoais, acima da reflexão pensante dos anteriores.

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A primeira cicatriz do nosso país que Eduardo Lourenço verdadeiramente testemunhou conta com Ricardo Araújo Pereira como o interveniente escolhido para uma exorcização do salazarismo vincado nas nossas raízes (“povo fascista e ‘fascizado’”), ou a análise do “sacerdote falhado”, Salazar em pessoa e a sua cruzada pelo país imaginário ainda hoje invocado com um martirológico saudosismo. O segundo “trauma” experienciado é mais quebradiço, até porque é o futuro que aborda, o futuro da nossa cidadania enquanto europeus, continentais acima de nacionais (“Precisamos mais que nunca ser europeus”).

Essa questão das questões, a bandeja direta ao apocalipse identitário, guia-nos para o derradeiro dos destinos, no qual Lourenço encontra-se consciente. Nada é eterno, porém, “escrevemos como se fossemos eternos”. Quanto à morte, a paragem final, que não aflige a sábios, aliás, porque a “verdadeira morte é a do outro”, nesse campo, Lourenço encontra-se calejado. A tragédia parece se abater nos últimos tempos deste “Labirinto da Saudade", mas Miguel Gonçalves Mendes responde com um reencontro a um legado e fá-lo sob o jeito de um antecipado tributo.

Fora a figura do sábio, que monta e desmonta a sua sapiência através de passos (planeados pela personificação de Diogo Dória), o filme em si, adverte para um sufocante cerco tecnológico e provavelmente não era preciso tantos “confettis” para celebrar tais ideias. Contudo, em defesa a Miguel Gonçalves Mendes, esta assoalhada artificial gira em volta da sua figura, portanto, saúda, e ouve atentamente à sua palavra, ao contrário dos textos que se querem fazer ouvir mas que são emudecidos pelas imagens salteadas de quem não sabe pensar além do seu umbigo. Acreditem, existem muitos autores assim, que se escondem por “correspondências”, mas Gonçalves Mendes não é um deles.

Um estranho Federico entre nós

Hugo Gomes, 12.04.15

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Não nos ficamos por um mero documentário, aliás as pessoas envolvidas não incentivariam a tais resultados, simplesmente não poderiam, seria um ato mais que criminoso. O “produto” final (que palavra mais ordinária para o contexto) é uma viagem visceral e iconoclasta ao estúdio Cinecittà 5, em queda livre para o interior da cinematografia de um dos mais singulares, senão o mais singular, dos cineastas italianos… e não é favoritismo.

Falo obviamente de Federico Fellini, sob o curioso olhar e camarada gesto de Ettore Scola, amigo e colega, não apenas nas suas demandas cinematográficas, como também nas suas vivências enquanto cartoonistas da revista Marc’Aurelio. A criatividade já se encontrava na veia de ambos, assim como a visão ácida e crítica, e particularmente em relação a Fellini, um leve toque fabulista em relação à sociedade que os envolvia. “Che strano chiamarsi Federico” (“Que Estranho Chamar-se Federico”, título citado de um poema de García Lorca) é o tributo que tanto necessitávamos ao autor de “La Dolce Vita” e de “8 ½”, e que segundo Scola, foi o maior dos mentirosos que o século XX presenciou.

Mas vamos por partes, antes de nos centrarmos no emocional que esta obra poderá transmitir ao cinéfilo mais ferrenho, ou o mais carente da chamada projeção “felliniana” (uma ausência colossal no nosso mundo cinematográfico), deveremos encarar com uma respeitosa vénia a um dos “esquecidos”, que abdica do seu potencial holofote para esta declaração. Sim, esse mesmo, Ettore Scola. Tendo directamente trabalhado com o realizador em “C’eravamo tanto Amati” (“Tão Amigos que Nós Éramos”, 1974), Scola ambiciona um híbrido informe, um cruzamento documental com a cinebiografia, e claro, Fellini não seria Fellini, sem a essência mimetizada do seu farsista teor neorrealista particular, onde o propositado surrealismo e onírico são ferramentas constantemente recorrentes. Scola ocasionalmente veste a pele do realizador de serviço em toda a sua busca pela catarse do autor, sob alusões visuais, apresentando até nós uma múltipla realidade. Depois chega-nos o óbvio tom sarcástico, um presente da vida diversas vezes partilhado entre Scola com a figura homenageada.

Sim, homenagem é o que encontramos aqui, não só pela figura, pelo Homem, pelo mestre e artista, mas pelo seu cinema, o seu contributo e a influência que exerceu em futuros cineastas. Depois disto, apetece-nos verdadeiramente bramar aos céus as saudades que este Mundo possui de Fellini. Este é um documento para aficionados e não só … para quem ainda acredita nos mágicos e na magia invocada pela Sétima Arte.