Um brinde ... porque viver custa!
En duva satt på en gren och funderade på tillvaron / A Pigeon Sat on a Branch Reflecting on Existence ( Roy Andersson, 2014)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
En duva satt på en gren och funderade på tillvaron / A Pigeon Sat on a Branch Reflecting on Existence ( Roy Andersson, 2014)
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Nem sequer vou debruçar sobre o ano 2020 (essa data em que cada um de nós possui uma história particular para contar, possivelmente com desilusões e adversidades no meio) mas, como chegou aquela altura que se torna quase imperativo nomear 10 filmes (com estreia comercial no nosso pais) para os já habituais pódios, eis que, por fim, meto as mãos à obra. E mesmo sob adiamentos, cancelamentos, migrações para streamings, eis um cinema ainda rico de emoções, temáticas e estilos que, por momentos, fizeram-nos esquecer os 'coronavírus' e o mundo de avesso. Aqui, neste leque, o conflito israelita-palestino contínua presente, o Brasil demonstra a sua resistência e urgência, as mulheres tornam-se protagonistas das mais ricas narrativas do ano e a Reboleira é palco de uma das maiores evasões do cinema português. Eis que segue os meus 10 filmes de 2020:
#10) The Invisible Man
“Se haverá sequela, universo partilhado ou "spin-offs" de qualquer natureza ainda é cedo para prever, mas, por enquanto, Leigh Whannell conseguiu um filme que vive por si só e, ao contrário do seu “monstro”, não tenciona mesmo passar despercebido. E com isso temos aqui uma entusiasta surpresa do cinema de género entregue por um grande estúdio de Hollywood.” Ler aqui
#09) There is No Evil
Tido como um dos ditos realizadores iranianos “proibidos”, Mohammad Rasoulof comprometeu a sua carreia a denunciar, o que o levou (e leva) a inúmeras sentenças e consequências em território nacional. Com There is No Evil, vencedor do Urso de Ouro no último Festival de Berlim, prova, além da sua habilidade de “whitlesblower”, uma capacidade narrativa e de extrema sensibilidade (sem maniqueísmos propagandistas). Através do tema da pena de morte, ainda em uso no Irão, Rasoulof expõe quatro histórias sobre contactos diretos e indiretos para com essa questão político-social. Um relato que vai desde as vítimas até carrascos, decisões a dilemas, paz e tormento, passando por um primeiro ato de pulsações arendteanas [“A Banalidade do Mal”] até a um montanhoso e intacto limbo para acarretar culpas e humanismos. Sim, é um filme de tema a demonstrar que é mais do que somente o seu mesmo, é Cinema com causas e efeitos.
#08) Les Miserábles
“Mais do que tudo, o realizador Ladj Ly prova o seu conhecimento, a sua vivência e a sua humanidade. A sua sede por um cinema de sangue na guelra, imparcial e, ao mesmo tempo, que denuncia sem ser ideologicamente agressivo ou ter alicerces nas tendências do "cinema verité" [cinema-verdade].” Ler aqui
#07) Corpus Christi
““Corpus Christi” revela-se encantado com esses métodos de redenção, na farsa que impõe e prolonga, com frieza técnica e o desempenho visceral do seu protagonista, Bartosz Bielenia, o qual, como Cristo, “abraça” o seu estatuto de mártir em cada missa. Com um olhar atento à imagem do seu Salvador, segundos antes de dar início à sua leitura religiosa para com os demais, (...) poderia ser um "running gag", mas é uma reflexão da nossa capacidade de superar adversidades, cinicamente ligada ao estatuto que ansiamos ter neste mundo.” Ler aqui
#06) O Fim do Mundo
“O Fim do Mundo” “captura” um universo em extinção e o encara como a sua propriedade, preservado em âmbar, neste caso em filme com as promessas da sua “eternidade”. Uma coprodução luso-suíça que envergonha muitos da sua espécie e da sua nacionalidade pela forma como bravamente utiliza o “know-how”, pavimento de sugestões, fora-de-campos e o “desenrasque” (palavra tão portuguesa) para nunca perder a credibilidade deste quadrante de violência em cada esquina.” Ler aqui
#05) Portrait de la Jeune Fille en Feu
“Jean-Claude Brisseau deixou-nos somente há poucas semanas, mas é um facto que sentimos aqui uma réstia da sua vida no convívio espectral que Portrait de la jeune fille en feu estabelece entre a carnalidade dos corpos das atrizes até às premonições de um fim próximo: “Porque que é que os amantes sempre pensam que estão a inventar o romance?“. Não se fica pela coincidência o nome da realizadora com o filme Celine de Brisseau, ou do referido contrato com as entidades extranaturais, mas também a exploração do prazer feminino, embrulhado sob uma definição de romance platónico, que já por si é um dos temas cada vez mais tabus para direções masculinas.” Ler aqui [texto escrito durante a sua estreia no Festival de Cannes].
#04) It Must be Heaven
“Portanto, em “It Must Be Heaven” somos deixados à geopolítica e com isso à globalização da sua mensagem, partindo para Paris até Nova Iorque, reconhecendo as metrópoles como um novo exotismo. Elia Suleiman filma-se a si próprio perante uma narrativa episódica, nada de igualmente novo na sua filmografia, porém, a sua costura autoral é gradualmente entorpecida perante um jogo de vontade. Saindo de Nazaré com um medo transluzente no seu olhar, deixando para trás os limoeiros que observa da sua varanda, as mulheres beduínas que carregam iogurtes pelo olival a dentro e os sacerdotes enfurecidos perante os rituais interrompidos (desta vez sem intervenção divina), e encarando um “Novo Mundo” com quem sente na pele a (desacreditada) Guerra sem fim (até mesmo o seu recorrente “I put a spell on you” entra na festa como uma recordação agridoce).” Ler aqui
#03) A Vida Invisível
“Este talvez seja, possivelmente, um dos filmes brasileiros mais belos dos últimos anos, que entra em diálogo com o mais belo produzido desta década – Elena, de Petra Costa. Ambos tornam-se cúmplices à melancólica derrota do desejo, o reencontro de um amor que só poucos perceberão a sua dimensão e que é disposto como uma busca à eternidade. A união que se desmaterializa como uma fantasia perante a ausência.” Ler aqui
#02) About Endlessness
““Da Eternidade” nada restará (nem mesmo as ideologias com que abraçamos, aqui de maneira pictórica numa recriação do quadro “O Fim de Hitler”, de Kukryniksy), a futilidade da nossa sociedade que depende do transporte diário que encaminha milhões para as suas respetivas habitações como o seu mais consagrado Deus, marcando oposição a toda aquela matéria que supostamente constitui a alma. A nossa existência é ridícula, e até mesmo mesquinha, e Roy Andersson bem o sabe.” Ler aqui
#01) Martin Eden
““Martin Eden” é, para todos os efeitos, um filme de coração-artista: tumultuoso e inquietante numa sufocante ânsia em criar a todo o custo. É assim a personagem (figura refém do desempenho anárquico e igualmente magistral de Luca Marinelli), é assim a obra que busca livremente os sopros do homónimo trabalho literário de Jack London (de cariz autobiográfico) para proclamarem como seus numa Itália abstrata e enevoada quanto à perceção de século XX.” Ler aqui
Menções honrosas - Small Axe: Lovers Rock, Mosquito, Uncut Gems, Da 5 Bloods, Soul
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"O Fim de Hitler" (pintura do coletivo Kukryniksy, em 1946)
About Endlessness (Roy Andersson, 2019)
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Difícil mesmo é selecionar (recolher seria a palavra mais apropriada), um somente “sketch” em toda esta cadeia narrativa de Roy Andersson. Mas se tivesse que quebrar a regra seria numa particular discussão entre um padre que se debate com a sua repentina falta de fé (e os sonhos de natureza sacra como complemento) com um médico o qual recorre para encontrar o antídoto para os seus males. Após confessar o profissional de saúde que a sua patologia é do foro existencial, desesperado, questiona-o após receber a prescrição de uma inteira ausência de crença – “No que vamos acreditar se Deus não existir?”
“Sei lá eu, talvez na nossa existência?” responde-lhe. A partir deste momento desejamos voltar aos dramas intrínsecos deste vigário sem determinação nas suas pregações, o revisitar que será ocasional nesta corrente de situações que se deparam na beira da tragédia, obtendo resultados quer hilariantes mas igualmente destroçadores. Aliás, este “About Endlessness” (“Na Eternidade”), o filme que continua a tradição dos viventes do segundo andar ou dos pombos filosóficos é todo ele embebido na definição de tragédia – a conjugação do trágico com a comédia – que nos encaminham para uma reflexão da nossa própria existência. Esta, nutrida, desvalorizada e demasiado sacrificada para um bem comum.
Porque aqui, a tristeza não tem lugar num banco de autocarro sob os olhos dos restantes seres pálidos e melancólicos, ou as experiências angariadas que soam como inúteis perante um doutoramento ou do dentista cativo dos seus pensamentos que evade (repentinamente) do seu consultório para se refugiar num bar lotado – “É tudo fantástico” – diz um dos consumidores naquele coletivo inanimado. Pronto, menti-vos, acabei por citar mais umas quantas historietas que compõem os pensamentos aqui envolvidos que se dão pelo nome de filme. Contudo, a vida é curta, em breve chegaremos a setembro e descobrimos que pouco ou nada desfrutamos destas ditas “férias da morte”.
“Da Eternidade” nada restará (nem mesmo as ideologias com que abraçamos, aqui de maneira pictórica numa recriação do quadro “O Fim de Hitler”, de Kukryniksy), a futilidade da nossa sociedade que depende do transporte diário que encaminha milhões para as suas respetivas habitações como o seu mais consagrado Deus, marcando oposição a toda aquela matéria que supostamente constitui a alma. A nossa existência é ridícula, e até mesmo mesquinha, e Roy Andersson bem o sabe.
Sete anos depois de “A Pigeon Sat on a Branch Reflecting on Existence” (“Um Pombo Pousou Num Ramo a Refletir na Existência”, laureado com o Leão de Ouro em Veneza), o sueco continua a aplicar essa raiz quadrada da nossa resiliência por este mundo, um niilismo embelezado narrado à bela maneira de Xerazade (ou fazendo-se passar por um versão modernizada e desencantada de Mil e uma Noites), que nos confronta com uma mortalidade sem importância. O absurdismo deste gags violentíssimos é como uma resposta à relação desconcertante de Andersson para com esses fantasmas a quem chamamos de adultos, isto, em contraste com os jovens que celebram a sua juventude numa inconsequente “felicidade” (as aspas servem para disfarçar o nosso bovarismo crónico). Um belíssimo e igualmente doloroso retrato … de nós próprios e da nossa presença neste mesmo lugar, o Mundo.
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“No que vamos acreditar, se Deus não existir?”
“Sei lá eu, talvez na nossa existência?”
O pombo descolou do seu ramo, migrou com promessas de uma primavera vizinha, deixando para trás a Humanidade debatendo sozinha com a sua mortalidade com tamanho absurdismo. Entre perdas de fé à tristeza embaraçosa ou somente a cobiça pelas conquistas dos outros que envergonham as nossas vivências, um “bando” (assumindo a semântica ornitóloga) de infelizes, e zombificados, condenados à tumba, que durante as ditas “férias da morte” promovem os seus problemas de primeiro “mundinho”.
Setes anos depois do seu consagrado filme – “A Pigeon Sat on a Branch Reflecting on Existence” – o sueco Roy Andersson traz até nós mais uma colheita de episódios de um humor mórbido, seco e tão familiar para com as nossas “diferentes” peles. Depois da pandemia e as ameaças de uma segunda vaga, este conjunto de quadro-vivos chamado “About Endlessness” resultou numa boa interação com o nosso bovarismo crónico.
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