Os mortos também falam na "Praia Formosa": uma conversa com Julia de Simone sobre a memória de uma cidade
A cidade como ferida aberta, memórias em ruínas e um palco para espectros prontamente a serem apagados em nome do Progresso, amnésia desculpa no cognome do futuro. Em “Praia Formosa”, Julia de Simone avança por esse Rio de Janeiro enterrado sob o concreto da modernidade, escava-o sem recursos a arqueologia, e desses achados extrai as histórias negadas pelo Poder estabelecido ou negligenciadas com a ordem estampada na bandeira. Não há aqui qualquer saudade colonial e tampouco reconstituição apaziguadora: existe sim, um confronto.
Depois de se dedicar a obras de índole documental, Julia encerra a sua trilogia portuária com “Praia Formosa” (apresentado no Festival de Roterdão de 2024, e estreado nas salas portuguesas recentemente), um delírio temporal e performativo onde acompanhamos Muanza, mulher escravizada no século XIX, num presente onde a sua história se assume resistência, reencontro e reimaginação.
Em conversa com o Cinematograficamente Falando…, a realizadora partilha o que move esta procura, o papel da cidade como corpo político e o desafio de encenar o passado sem lhe roubar a complexidade. Tudo o que “Praia Formosa” carrega: tempo, memória e forma.
Com “Praia Formosa”, termina a sua trilogia sobre a zona portuária do Rio [“O Porto”, “Rapacidade”], um território de disputas e fantasmas. Considera que filmar esse espaço é também um gesto de exorcismo ou de reencantamento da cidade?
Para dizer a verdade, considero que é uma busca pelo reencantamento da cidade. O filme faz todo um exercício de tentar encontrar um outro modo de ver esses espaços — esses espaços e esses tempos — encarando-os como uma sobreposição de temporalidades, de facto. É uma forma de mudar um pouco a perspectiva sobre como podemos entender, perceber e se relacionar com a região portuária, com o Rio de Janeiro e com a história da cidade como um todo.
Sobre a protagonista, Muanza (Lucília Raimundo, “Um Animal Amarelo”), deslocada no tempo, parece ser uma espécie de corpo-arquivo. Foi sua intenção que ela personificasse esse Brasil que caminha, mas sem nunca sarar as suas cicatrizes históricas?
Um aglomerar, sim. Ela traz uma certa presentificação dessa história, mas não só do ponto de vista simbólico. Existe uma concretude muito grande na personagem, que se conecta com a história das pessoas que ainda hoje vivem naquele lugar, na forma como se relacionam com esses espaços. A busca foi justamente essa: tentar trazer, não só na personagem, mas na construção do filme como um todo, todos esses elementos que, de alguma maneira, condensam tempos e espaços. Então, nesse sentido, sim, ela presentifica uma historicidade, mas também tem uma presença muito corporal, encarnada nesse presente, nessa história da Muanza.
O seu filme faz eco com outros conterrâneos, assim de repente recorda-me “Todos os Mortos”, de Marco Dutra e Caetano Gotardo, ao confrontar uma ideia muito precisa: o progresso urbano como agente de apagamento. Como se filma uma cidade cuja modernização parece construída sobre a negação das suas próprias fundações?
Sim. Acho que há, de facto, uma tentativa constante de apagamento, mas esse apagamento nunca se dá por completo. Felizmente, ele não é totalmente exitoso. O filme tenta justamente encontrar formas de olhar para aquilo que resiste a esse apagamento. Não apenas os vestígios materiais da cidade (a concretude dos objetos arqueológicos, por exemplo), mas também a vida, a presença das pessoas que ainda hoje habitam esses espaços.
Durante o processo de escrita e pesquisa do filme, conhecemos a mãe Celina, uma mãe de Santo da região portuária, que participou junto da equipa de arqueologia na identificação de objectos. A experiência dela, a presença dela, é muito viva. Então, não estamos a falar de algo apagado, e sim de algo que resiste … e resiste de muitas formas, sobretudo na experiência das pessoas.
A sua obra parte de investigações históricas, mas chega à ficção como um ato político e poético. Como se encontra o equilíbrio entre o rigor da memória e a liberdade da fabulação?
Sim. Penso que o filme aposta muito nessa coexistência, não só de elementos históricos e ficcionais, mas também numa coexistência estética. Como os elementos que encontramos são muito heterogéneos, as escolhas formais acabam por acompanhar essa diversidade Por exemplo, no início do filme, a sequência da casa — mais ligada à presença da corte, através da personagem da Catarina — tem um modo de encenação mais marcado, mais desenhado. De certa forma, isso dialoga com a teatralização da própria corte, com essa encenação de um poder falido que, ainda assim, insiste em manter uma aparência. Por outro lado, a Muanza tem uma relação mais física, mais encarnada com os espaços. A sua atuação é mais performativa e isso conduz o filme a outro modo de ver e sentir.
A presença da mãe Celina, já na parte final, traz uma dimensão mais documental, que nos direciona para uma experiência de realidade, da experiência vivida daquela personagem real. E há também a cena na igreja, com os três depoimentos que a Muanza testemunha. Aqueles são documentos históricos reais, encontrados durante a nossa pesquisa. São raríssimos materiais de arquivo onde pessoas escravizadas falam na primeira pessoa. Mesmo dentro das limitações e violências dos próprios arquivos, esses testemunhos carregam uma força subjetiva muito potente. Então, como a pesquisa envolveu fontes de naturezas muito diversas, era natural que a abordagem estética também fosse múltipla. Faz parte da tentativa de olhar para esses espaços englobando as tensões, os paradoxos, mas reconhecendo que todas essas forças coexistem e atuam no território. As escolhas estéticas seguem justamente esse caminho.
A presença espectral de Catarina, mulher branca portuguesa (Maria D’Aires), coabita com Muanza num espaço que já foi de dor e opressão. Vês nessa convivência uma possibilidade de diálogo ou um confronto simbólico entre colonizador e colonizado?:
Acho que sim. Tanto ela quanto a casa são vestígios dessa colonização nos dias de hoje. A presença da Catarina, que se transforma ao longo do filme, está muito ligada à tentativa de pensar de que forma o colonialismo se atualiza na contemporaneidade. Quando a Catarina reaparece mais à frente no filme, naquele anúncio publicitário, é justamente esse exercício de refletir sobre como esse poder colonial se mantém. Ele reaparece de outras formas, mas continua ali, presente, actuante, ditando normas e sustentando estruturas que vêm desde os tempos coloniais.
Mesmo com resistências e transformações, a força de quem ocupa esse lugar de poder e opressão ainda é muito evidente. Isso aparece, por exemplo, no tecido urbano, no próprio traçado da cidade, a mostrar como essa força se perpetua, ainda que disfarçada.
Usando as suas notas de intenção, o qual achei interessante, foi a incorporação no filme o “tempo espiralar, inspirado na cosmogonia Bantu”, subvertendo a lógica narrativa ocidental linear. Quão decisiva foi essa estrutura para transmitir uma temporalidade africana através da linguagem cinematográfica?
Foi muito decisiva! No início da pesquisa, por volta de 2012, quando comecei a filmar as obras na região portuária, as escavações no Cais do Valongo evidenciavam, de forma muito concreta, as camadas temporais. O Cais’, de 1843, foi soterrado poucos anos depois para dar lugar ao Cais da Imperatriz, que, por sua vez, também foi enterrado para o deslocamento do porto. Estávamos, naquele momento, numa quarta camada visível, uma estratificação material do tempo.
Essa sobreposição de camadas temporais, tão palpável no território, já nos colocava diante de uma visão não-linear do tempo. A partir daí, ao pesquisarmos sobre os povos escravizados que chegaram pelo Cais do Valongo (em especial os povos Bantu, os primeiros a chegar ao Brasil), fomos aprofundando o entendimento sobre a sua cosmogonia, em especial a noção do tempo espiralar. Essa concepção bantu de tempo foi uma descoberta que se alinhou perfeitamente com a nossa percepção das camadas históricas do espaço. O tempo espiralar é uma ideia complexa, difícil de resumir, mas essencialmente vê o tempo como algo construído a partir da presença. O presente evoca o passado e, ao fazê-lo, transforma o futuro (todas essas temporalidades estão em constante contato e recriação).
Essa visão rompe com a lógica eurocêntrica e branca de um tempo linear e progressivo, em que cada momento substitui o anterior, sempre apontando para um futuro idealizado. Pensar o tempo como algo em transformação contínua — inclusive o que entendemos como passado — muda radicalmente a forma como percebemos o mundo. O exercício do filme foi justamente esse: tentar traduzir essa percepção espiralar para a sua própria construção estética. Subverter a lógica narrativa linear, que está diretamente associada à noção ocidental de progresso, foi fundamental. Essa ideia de que o futuro é sempre superior ao passado é algo que o filme questiona, propondo outras formas de ver e sentir o tempo.
Isso é muito curioso. Agora faço esta pergunta: apesar de ser uma coprodução luso-brasileira, “Praia Formosa” é, claramente, um filme mais brasileiro do que português, e nos últimos 10 ou 15 anos, tenho sentido que o cinema brasileiro tem voltado o olhar para o seu próprio passado, algo que, durante décadas, não acontecia. Havia uma aposta no futuro com desconstrução do presente. Esta viragem para o passado acontece porque o futuro se revelou uma desilusão e o cinema, de alguma forma, já o percebeu?
Talvez. Talvez estejamos justamente a precisar de reencontrar formas de contar esse passado. O futuro ainda é incerto, mas o passado — ou melhor, a maneira como o olhamos — já nos mostra que precisa ser ressignificado. O cinema brasileiro, neste momento, parece estar a repensar quem fomos, de onde viemos, tentando encontrar outras formas de narrar uma história que, durante muito tempo, foi contada de forma única, oficial até.
Igualmente o “Praia Formosa” parece inserir-se numa corrente recente do cinema brasileiro que encara o passado como um verdadeiro campo arqueológico. Vês o seu trabalho como uma continuação dessa tendência ou como uma ruptura em relação ao que poderíamos chamar de “documentário museológico”?
Não diria que é um museu, pelo menos não no sentido mais convencional [risos]. A ideia de museu remete-me a algo mais estático, rígido, fechado em vitrines. “Praia Formosa” é muito mais sobre algo vivo: uma memória em permanente construção, uma identidade em processo. Acho que essa ideia de memória como meta, e não como ponto de partida, é central. Não se trata de um regresso a um passado dado ou fixo. É uma construção contínua, a cada instante, com as vozes que entram, com as presenças que partilham o percurso.
Já deve ter ouvido este reparo diversas vezes, mas cá vai: como mulher branca a filmar histórias negras, assumiu claramente uma posição de escuta e co-autoria. Que tipo de ética norteou essa partilha? Como é que o seu olhar se transformou ao longo desse processo?
Com certeza. Todo esse processo começou com um desejo de investigar a cidade, o Rio de Janeiro. Mas, ao mergulhar na história da cidade, especialmente na região portuária, a história da escravidão e da população negra no Brasil tornou-se incontornável. Não há como falar da história do Brasil, e particularmente daquela região, sem atravessar essa dimensão.
Então, a questão deixou de ser se falaríamos disso e passou a ser como contar essa história … e com quem. Desde o início, houve uma preocupação muito clara em que esse trabalho fosse feito de maneira colaborativa e aberta. Foram dez anos de investigação e construção, sempre com uma escuta ativa, com disposição real para os encontros, para as contribuições de cada pessoa que se juntou ao projeto. Sinto que essa ética colaborativa está presente no próprio corpo do filme. Há uma generosidade no modo como ele foi construído, e isso veio do modo como escutámos e partilhámos, sem nunca querer impor uma visão unívoca.
Por fim, que papel atribui ao cinema — ao teu cinema — neste esforço de resgatar narrativas silenciadas? Seria um convite à justiça poética ou uma tentativa de reinscrição na História?
Olha, não tenho essa pretensão tão grandiosa. Não acredito que, sozinha, nem que um filme sozinho — ou mesmo o cinema, por si só — possa dar conta disso. Mas acredito, sim, que pode ser uma contribuição. Uma tentativa de fazer com que essa conversa exista, de que essas questões circulem entre nós. Nesse sentido, acho que o filme encontrou o seu lugar. Desde a estreia em Roterdão, em janeiro de 2024, tem sido exibido, debatido, visto em diferentes contextos. Já conta mais de um ano e meio de circulação. E isso, para mim, já é uma grande realização. Ver que ele está a provocar um debate (não só sobre o filme em si, mas sobre os temas que levanta, sobre as formas de fazer cinema), é algo que me deixa muito feliz. Talvez o mais importante seja mesmo isso: colocar em pauta essas questões, tanto temáticas quanto formais.
E em relação ao futuro? A memória desse tempo, e desse espaço, continuará a acompanhar-te enquanto autora?
Curiosamente, o que era uma trilogia acabou por se tornar uma quadrilogia [risos]. Após o filme, surgiu uma exposição em artes visuais. Foi um projeto que transbordou para além do cinema, onde imagens dos três filmes foram instaladas num espaço expositivo, acompanhadas por uma instalação sonora. Foi muito interessante perceber como esse material ganhava outra dimensão ao ser transportado para uma galeria, para um espaço de contemplação diferente do da sala escura.
Quanto a novos projetos ... ainda não consegui materializar nada. Por muitas razões, inclusive pela complexidade que é fazer cinema, o tempo que exige, os desafios de produção. Acho que ainda estou num processo de assimilação de tudo o que este projeto significou. Ainda estou a digerir. Mas acredito que, de alguma forma, essa memória — esses espaços, essas histórias — continuarão a acompanhar o meu percurso.