Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os mortos também falam na "Praia Formosa": uma conversa com Julia de Simone sobre a memória de uma cidade

Hugo Gomes, 23.06.25

praia-formosa-3.webp

A cidade como ferida aberta, memórias em ruínas e um palco para espectros prontamente a serem apagados em nome do Progresso, amnésia desculpa no cognome do futuro. Em “Praia Formosa”, Julia de Simone avança por esse Rio de Janeiro enterrado sob o concreto da modernidade, escava-o sem recursos a arqueologia, e desses achados extrai as histórias negadas pelo Poder estabelecido ou negligenciadas com a ordem estampada na bandeira. Não há aqui qualquer saudade colonial e tampouco reconstituição apaziguadora: existe sim, um confronto.

Depois de se dedicar a obras de índole documental, Julia encerra a sua trilogia portuária com “Praia Formosa” (apresentado no Festival de Roterdão de 2024, e estreado nas salas portuguesas recentemente), um delírio temporal e performativo onde acompanhamos Muanza,  mulher escravizada no século XIX, num presente onde a sua história se assume resistência, reencontro e reimaginação. 

Em conversa com o Cinematograficamente Falando…, a realizadora partilha o que move esta procura, o papel da cidade como corpo político e o desafio de encenar o passado sem lhe roubar a complexidade. Tudo o que “Praia Formosa” carrega: tempo, memória e forma.

Com “Praia Formosa”, termina a sua trilogia sobre a zona portuária do Rio [“O Porto”, “Rapacidade”], um território de disputas e fantasmas. Considera que filmar esse espaço é também um gesto de exorcismo ou de reencantamento da cidade?

Para dizer a verdade, considero que é uma busca pelo reencantamento da cidade. O filme faz todo um exercício de tentar encontrar um outro modo de ver esses espaços — esses espaços e esses tempos — encarando-os como uma sobreposição de temporalidades, de facto. É uma forma de mudar um pouco a perspectiva sobre como podemos entender, perceber e se relacionar com a região portuária, com o Rio de Janeiro e com a história da cidade como um todo.

Sobre a protagonista, Muanza (Lucília Raimundo, “Um Animal Amarelo”), deslocada no tempo, parece ser uma espécie de corpo-arquivo. Foi sua intenção que ela personificasse esse Brasil que caminha, mas sem nunca sarar as suas cicatrizes históricas?

Um aglomerar, sim. Ela traz uma certa presentificação dessa história, mas não só do ponto de vista simbólico. Existe uma concretude muito grande na personagem, que se conecta com a história das pessoas que ainda hoje vivem naquele lugar, na forma como se relacionam com esses espaços. A busca foi justamente essa: tentar trazer, não só na personagem, mas na construção do filme como um todo, todos esses elementos que, de alguma maneira, condensam tempos e espaços. Então, nesse sentido, sim, ela presentifica uma historicidade, mas também tem uma presença muito corporal, encarnada nesse presente, nessa história da Muanza.

O seu filme faz eco com outros conterrâneos, assim de repente recorda-me “Todos os Mortos”, de Marco Dutra e Caetano Gotardo, ao confrontar uma ideia muito precisa: o progresso urbano como agente de apagamento. Como se filma uma cidade cuja modernização parece construída sobre a negação das suas próprias fundações?

Sim. Acho que há, de facto, uma tentativa constante de apagamento, mas esse apagamento nunca se dá por completo. Felizmente, ele não é totalmente exitoso. O filme tenta justamente encontrar formas de olhar para aquilo que resiste a esse apagamento. Não apenas os vestígios materiais da cidade (a concretude dos objetos arqueológicos, por exemplo), mas também a vida, a presença das pessoas que ainda hoje habitam esses espaços.

Durante o processo de escrita e pesquisa do filme, conhecemos a mãe Celina, uma mãe de Santo da região portuária, que participou junto da equipa de arqueologia na identificação de objectos. A experiência dela, a presença dela, é muito viva. Então, não estamos a falar de algo apagado, e sim de algo que resiste … e resiste de muitas formas, sobretudo na experiência das pessoas.

MixCollage-24-Jun-2025-12-13-AM-1888.jpg

A sua obra parte de investigações históricas, mas chega à ficção como um ato político e poético. Como se encontra o equilíbrio entre o rigor da memória e a liberdade da fabulação?

Sim. Penso que o filme aposta muito nessa coexistência, não só de elementos históricos e ficcionais, mas também numa coexistência estética. Como os elementos que encontramos são muito heterogéneos, as escolhas formais acabam por acompanhar essa diversidade Por exemplo, no início do filme, a sequência da casa — mais ligada à presença da corte, através da personagem da Catarina — tem um modo de encenação mais marcado, mais desenhado. De certa forma, isso dialoga com a teatralização da própria corte, com essa encenação de um poder falido que, ainda assim, insiste em manter uma aparência. Por outro lado, a Muanza tem uma relação mais física, mais encarnada com os espaços. A sua atuação é mais performativa e isso conduz o filme a outro modo de ver e sentir.

A presença da mãe Celina, já na parte final, traz uma dimensão mais documental, que nos direciona para uma experiência de realidade, da experiência vivida daquela personagem real. E há também a cena na igreja, com os três depoimentos que a Muanza testemunha. Aqueles são documentos históricos reais, encontrados durante a nossa pesquisa. São raríssimos materiais de arquivo onde pessoas escravizadas falam na primeira pessoa. Mesmo dentro das limitações e violências dos próprios arquivos, esses testemunhos carregam uma força subjetiva muito potente. Então, como a pesquisa envolveu fontes de naturezas muito diversas, era natural que a abordagem estética também fosse múltipla. Faz parte da tentativa de olhar para esses espaços englobando as tensões, os paradoxos, mas reconhecendo que todas essas forças coexistem e atuam no território. As escolhas estéticas seguem justamente esse caminho.

A presença espectral de Catarina, mulher branca portuguesa (Maria D’Aires), coabita com Muanza num espaço que já foi de dor e opressão. Vês nessa convivência uma possibilidade de diálogo ou um confronto simbólico entre colonizador e colonizado?

Acho que sim. Tanto ela quanto a casa são vestígios dessa colonização nos dias de hoje. A presença da Catarina, que se transforma ao longo do filme, está muito ligada à tentativa de pensar de que forma o colonialismo se atualiza na contemporaneidade. Quando a Catarina reaparece mais à frente no filme, naquele anúncio publicitário, é justamente esse exercício de refletir sobre como esse poder colonial se mantém. Ele reaparece de outras formas, mas continua ali, presente, actuante, ditando normas e sustentando estruturas que vêm desde os tempos coloniais.

Mesmo com resistências e transformações, a força de quem ocupa esse lugar de poder e opressão ainda é muito evidente. Isso aparece, por exemplo, no tecido urbano, no próprio traçado da cidade, a mostrar como essa força se perpetua, ainda que disfarçada.

Usando as suas notas de intenção, o qual achei interessante, foi a incorporação no filme o “tempo espiralar, inspirado na cosmogonia Bantu”, subvertendo a lógica narrativa ocidental linear. Quão decisiva foi essa estrutura para transmitir uma temporalidade africana através da linguagem cinematográfica?

Foi muito decisiva! No início da pesquisa, por volta de 2012, quando comecei a filmar as obras na região portuária, as escavações no Cais do Valongo evidenciavam, de forma muito concreta, as camadas temporais. O Cais’, de 1843, foi soterrado poucos anos depois para dar lugar ao Cais da Imperatriz, que, por sua vez, também foi enterrado para o deslocamento do porto. Estávamos, naquele momento, numa quarta camada visível, uma estratificação material do tempo.

Essa sobreposição de camadas temporais, tão palpável no território, já nos colocava diante de uma visão não-linear do tempo. A partir daí, ao pesquisarmos sobre os povos escravizados que chegaram pelo Cais do Valongo (em especial os povos Bantu, os primeiros a chegar ao Brasil), fomos aprofundando o entendimento sobre a sua cosmogonia, em especial a noção do tempo espiralar. Essa concepção bantu de tempo foi uma descoberta que se alinhou perfeitamente com a nossa percepção das camadas históricas do espaço. O tempo espiralar é uma ideia complexa, difícil de resumir, mas essencialmente vê o tempo como algo construído a partir da presença. O presente evoca o passado e, ao fazê-lo, transforma o futuro (todas essas temporalidades estão em constante contato e recriação).

Essa visão rompe com a lógica eurocêntrica e branca de um tempo linear e progressivo, em que cada momento substitui o anterior, sempre apontando para um futuro idealizado. Pensar o tempo como algo em transformação contínua — inclusive o que entendemos como passado — muda radicalmente a forma como percebemos o mundo. O exercício do filme foi justamente esse: tentar traduzir essa percepção espiralar para a sua própria construção estética. Subverter a lógica narrativa linear, que está diretamente associada à noção ocidental de progresso, foi fundamental. Essa ideia de que o futuro é sempre superior ao passado é algo que o filme questiona, propondo outras formas de ver e sentir o tempo.

praia-formosa-meio-amargo-2.jpg

Isso é muito curioso. Agora faço esta pergunta: apesar de ser uma coprodução luso-brasileira, “Praia Formosa” é, claramente, um filme mais brasileiro do que português, e nos últimos 10 ou 15 anos, tenho sentido que o cinema brasileiro tem voltado o olhar para o seu próprio passado, algo que, durante décadas, não acontecia. Havia uma aposta no futuro com desconstrução do presente. Esta viragem para o passado acontece porque o futuro se revelou uma desilusão e o cinema, de alguma forma, já o percebeu?

Talvez. Talvez estejamos justamente a precisar de reencontrar formas de contar esse passado. O futuro ainda é incerto, mas o passado — ou melhor, a maneira como o olhamos — já nos mostra que precisa ser ressignificado. O cinema brasileiro, neste momento, parece estar a repensar quem fomos, de onde viemos, tentando encontrar outras formas de narrar uma história que, durante muito tempo, foi contada de forma única, oficial até.

Igualmente o “Praia Formosa” parece inserir-se numa corrente recente do cinema brasileiro que encara o passado como um verdadeiro campo arqueológico. Vês o seu trabalho como uma continuação dessa tendência ou como uma ruptura em relação ao que poderíamos chamar de “documentário museológico”?

Não diria que é um museu, pelo menos não no sentido mais convencional [risos]. A ideia de museu remete-me a algo mais estático, rígido, fechado em vitrines. “Praia Formosa” é muito mais sobre algo vivo: uma memória em permanente construção, uma identidade em processo. Acho que essa ideia de memória como meta, e não como ponto de partida, é central. Não se trata de um regresso a um passado dado ou fixo. É uma construção contínua, a cada instante, com as vozes que entram, com as presenças que partilham o percurso.

Já deve ter ouvido este reparo diversas vezes, mas cá vai: como mulher branca a filmar histórias negras, assumiu claramente uma posição de escuta e co-autoria. Que tipo de ética norteou essa partilha? Como é que o seu olhar se transformou ao longo desse processo?

Com certeza. Todo esse processo começou com um desejo de investigar a cidade, o Rio de Janeiro. Mas, ao mergulhar na história da cidade, especialmente na região portuária, a história da escravidão e da população negra no Brasil tornou-se incontornável. Não há como falar da história do Brasil, e particularmente daquela região, sem atravessar essa dimensão.

Então, a questão deixou de ser se falaríamos disso e passou a ser como contar essa história … e com quem. Desde o início, houve uma preocupação muito clara em que esse trabalho fosse feito de maneira colaborativa e aberta. Foram dez anos de investigação e construção, sempre com uma escuta ativa, com disposição real para os encontros, para as contribuições de cada pessoa que se juntou ao projeto. Sinto que essa ética colaborativa está presente no próprio corpo do filme. Há uma generosidade no modo como ele foi construído, e isso veio do modo como escutámos e partilhámos, sem nunca querer impor uma visão unívoca.

Por fim, que papel atribui ao cinema — ao teu cinema — neste esforço de resgatar narrativas silenciadas? Seria um convite à justiça poética ou uma tentativa de reinscrição na História?

Olha, não tenho essa pretensão tão grandiosa. Não acredito que, sozinha, nem que um filme sozinho — ou mesmo o cinema, por si só — possa dar conta disso. Mas acredito, sim, que pode ser uma contribuição. Uma tentativa de fazer com que essa conversa exista, de que essas questões circulem entre nós. Nesse sentido, acho que o filme encontrou o seu lugar. Desde a estreia em Roterdão, em janeiro de 2024, tem sido exibido, debatido, visto em diferentes contextos. Já conta mais de um ano e meio de circulação. E isso, para mim, já é uma grande realização. Ver que ele está a provocar um debate (não só sobre o filme em si, mas sobre os temas que levanta, sobre as formas de fazer cinema), é algo que me deixa muito feliz. Talvez o mais importante seja mesmo isso: colocar em pauta essas questões, tanto temáticas quanto formais.

__praia_formosa_img683576cb78d5a.jpeg

E em relação ao futuro? A memória desse tempo, e desse espaço, continuará a acompanhar-te enquanto autora?

Curiosamente, o que era uma trilogia acabou por se tornar uma quadrilogia [risos]. Após o filme, surgiu uma exposição em artes visuais. Foi um projeto que transbordou para além do cinema, onde imagens dos três filmes foram instaladas num espaço expositivo, acompanhadas por uma instalação sonora. Foi muito interessante perceber como esse material ganhava outra dimensão ao ser transportado para uma galeria, para um espaço de contemplação diferente do da sala escura.

Quanto a novos projetos ... ainda não consegui materializar nada. Por muitas razões, inclusive pela complexidade que é fazer cinema, o tempo que exige, os desafios de produção. Acho que ainda estou num processo de assimilação de tudo o que este projeto significou. Ainda estou a digerir. Mas acredito que, de alguma forma, essa memória — esses espaços, essas histórias — continuarão a acompanhar o meu percurso.

Daniele Luchetti: "cresci com um cinema em que era preciso discutir para completar a experiência."

Hugo Gomes, 16.03.25

confidenza.webp

Daniele Luchetti retoma as páginas de Starnone e, através de “Confidenza”, resolve tratar o espectador não como passageiro, mas como cúmplice de uma estratégia de suspense, hoje quase obsoleta pela fome desvairada do público por respostas exactas. Por isso mesmo, encontra-se nessa sugestão a sua ponta de inovação. Thriller que revolve um casal que, para manter a confiança mútua, decide segredar o seu mais escabroso segredo. O resultado é um constante jogo de bluff e suspeita, num clima adensado pela banda sonora de Thom Yorke [Radiohead] — e, dessa feita, um sucesso de bilheteira em solo italiano. Por cá, antes da sua revelação em Roterdão de 2024, fechou a 17ª Festa do Cinema Italiano e, quase um ano depois, chega às salas com um desafio aos espectadores portugueses: estarão aptos a sentir uma narrativa, ao invés de apenas conhecê-la?

O Cinematograficamente Falando … trocou umas breves palavras com o realizador sobre os pontos fulcrais desta sua obra, com o ator Elio Germano ao leme deste vertigo.

O que o fascinou neste livro de Domenico Starnone para proceder à sua adaptação?

O romance de Starnone atraiu-me muito por duas razões: uma é o conteúdo existencial, ou seja, a representação de um “homem assustado”, podemos definir assim, e a segunda, por outro lado, foi a proposta de invenção no que requer construir toda a narração em torno de um dito e no não-dito. Foram elementos que depois tive de transpor e transformar num filme. Evidentemente, que não tinha a ferramenta da escrita para poder entrar nos pensamentos da personagem, por isso tive de encontrar uma forma de construir essa tensão, de criar um interesse cinematográfico e igualmente libertar o filme de uma quotidianidade da escrita que era interessante em papel, mas que poderia não funcionar numa transposição direta para o cinema. Desta forma tive que encontrar um estilo, uma chave, e o encontrei sob o registo de thriller. Com isto tudo, devo garantir que o filme e o livro se assemelham pouco.

Mas é a terceira vez que adapta um livro deste autor, recordo “La Scuola” (1995) e “Lacci” (2020). O que tem este escritor de especial que o faz querer adaptar as suas histórias?

Certamente, sempre que leio um livro dele, parece-me que construiu um pedaço da minha biografia. Evidentemente, temos traços de personalidade em comum, uma formação cultural semelhante, mesmo que ele tenha vinte anos a mais do que eu. No entanto, há algo mais profundo, que são os grandes temas das nossas gerações, e, por isso, tenho a sensação que ele me poupa o trabalho de investigar a mim mesmo. Ao investigar a si próprio, no fundo, estou a fazê-lo sobre mim.

1705679894774.jpg

Daniele Luchetti

No filme, nem no livro existe essa revelação do segredo oculto. Não desejo, como muitos jornalistas o fizeram em variadas entrevistas, questionar o que realmente se tratava esse segredo guardado a sete chaves, mas se, durante o processo de escrita e de rodagem deste filme, havia uma ideia, sugerida que fosse, do que seria, e assim construir um filme envolto dessa ideia?

Sim, digamos que passei um ano e meio de escrita em torno dessa questão. A verdade é que foi Francesco Piccolo [co-argumentista] quem me fez manter-me firme na ideia de ser fiel ao conceito do livro, que é o mesmo do filme – criar esse buraco negro. É claro que coloquei algo de meu dentro disso. Por exemplo, não revelei certas coisas aos atores, ao invés disso pedi-lhes que cada um encontrasse, por si só, um ponto de vergonha, um ponto de escândalo no presente. Acredito que eu e os atores estávamos envolvidos nesse elemento do segredo, mas cada um tinha algo diferente em mente.

Porque, na verdade, os atores gostam de fazer um filme sobre ambiguidade, mas querem certezas para poder trabalhar. Querem saber: "O que estou a dizer? O que estou a pensar? O que estou a comunicar ao outro?" Foi aí que pedi a cada um que trouxesse o seu próprio segredo. Não queria um filme que desse um significado fechado, mas um filme que produzisse significado. Não um filme com uma mensagem única, mas um que gerasse possíveis mensagens. Como se fosse um objeto, uma máquina que, dependendo de como a giramos, produz um som ou outro.

Confesso que quando via o seu filme, e não conhecendo o romance original, desejava no meu íntimo que o segredo não fosse revelado, e assim concretizou-se a fantasia. Interpreto que essa vontade de permanecer oculta a confissão serve quase de forma combativa à audiência atual, aquela habituada a plot twists, ao tudo explicado, e, por sua vez, às produções que alimentam esse conformismo. “Confidenza” é a preservação do bom cinema sem resposta?

Estou absolutamente de acordo consigo. O cinema americano e a televisão comercial acostumaram-nos sempre a fechar todas as pontas, como se o público precisasse de alguém que o pegasse pela mão e o ajudasse a chegar a uma conclusão. Mas cresci com um cinema em que, depois do filme, era preciso discutir para completar a experiência.

E há outro elemento: ao longo da minha vida, vi inúmeros filmes em que se anunciava uma grande revelação. Adorava esperar por essa revelação, mas detestava ouvi-la, porque nunca estava à altura das expectativas, por isso, tentei encontrar um modo de eliminar esse problema.

E como conjuga a banda sonora de Thom Yorke na atmosfera do seu filme?

Quando ele leu o guião, revelou-me que sentiu um desconforto durante em toda a sua leitura, como se em cada relação houvesse algo errado, em cada cena de diálogo houvesse algo profundamente desajustado, desequilibrado. Então, fez a sonoridade de forma "errada" para o filme, para evitar que o público se sentisse num estado contínuo de desequilíbrio. E foi por isso que lhe pedi principalmente para trabalhar nos subtextos, na tensão, nas ‘coisas não ditas’, mas de forma sistemática. Sim, a comunicação é que seja vocacional.

Há um desconforto subliminar ao longo deste filme e do protagonista, principalmente na sua relação, enquanto professor de uma aluna, que mais tarde será um casal. Refiro isto porque encontrei inúmeras entrevistas no âmbito deste filme, em que se falou muito de masculinidade tóxica e feminicídio. Perante essas questões que lhe lançaram, pergunto se pensou nestes temas enquanto fazia este filme?

Tenho uma visão, obviamente, democrática, de esquerda, progressista, etc. Porém, também é verdade que essa redefinição da relação homem-mulher não é tão fácil quanto se pensa. Porque, deixando de lado os episódios extremos, como a violência, etc. – essas são reações criminosas, ações criminosas – o problema está exatamente no quotidiano. Ou seja, o problema no quotidiano é para quem vive numa situação democrática, num casal que deveria ser libertado, mas que, pessoalmente, não consegue libertar-se de certos comportamentos automáticos.

HERO_CLEAN_WIDE.jpg

Por exemplo, não aceitar a igualdade num casal, não aceitar a inversão de papéis, não aceitá-la psicologicamente, não nos atos práticos. A inversão a ser feita é psicológica, psíquica, e isso é complicado, porque temos centenas, senão milhares, de anos de literatura, de construção do imaginário, de construção de arquétipos, de construção de... provavelmente das nossas conexões neurológicas, que são culturais, mas que também se tornaram naturais. Inverter tudo isso de uma só vez não é nada fácil.

Desde que “Mio fratello è figlio unico” (2007) estreou, os seus filmes sempre chegaram aos cinemas do nosso país, e posso garantir que existe uma certa cinefilia bastante fascinada pelo seu cinema. Contudo, na altura de fazer uma retrospetiva do cinema italiano atual, sinto que Luchetti é deixado um pouco de lado dos holofotes, e talvez associe isso ao próprio estado do cinema italiano. Portanto lhe pergunto, como vê a indústria atual e como acha que a indústria italiana o vê a si?

Sou exatamente como o resto da indústria. Estamos desorientados porque é um momento de transição bastante importante. Grande parte dos filmes que antigamente seriam adequados para o cinema, hoje também o são para as plataformas, e isso obriga-nos a mudar algo. Muitos dos meus colegas, os da minha idade, entram e saem, fazem um filme para o cinema, um filme para as plataformas, uma série de televisão. E nós ainda estamos a tentar entender esse vaivém, e sobretudo essas mudanças de produção.

Acredito que a narrativa clássica, que antes era feita para o cinema, hoje pode ser feita com bastante satisfação para as plataformas, enquanto no cinema deve haver espaço para algum tipo de experimentação. Devemos reservar para a sala de cinema não o produto clássico, mas o produto de ponta, aquele que busca inovar. Essa é a minha ideia, e a minha tentativa de cinema de hoje em dia.

À espera dos trópicos ...

Hugo Gomes, 09.02.25

1738756884625_1000x0666_0x0x0x0_1738756899050.jpg

O tom labiríntico com o qual Sandro Aguilar confere aos seus filmes (refiro-me, numa óptica das suas longas-metragens – as curtas pertencem a um universo distinto, possivelmente mais experimental se pensarmos nisso atentamente) leva o espectador “às escuras”. A atenção é convocada, mas, acima de tudo, revela-se a capacidade semiótica para conectar os dotes e decifrar o puzzle assumido com precisão por estas obras. 

Em “Primeira Pessoa do Plural” não se distancia nem desafia essa lógica; pelo contrário, o que se observa é uma combinação mesclada de géneros (e épocas, sendo o 'cinema mudo' um horóscopo confirmado pelo próprio maestro) que o realizador pretende implementar neste universo, trazendo consigo um hiato febril de um casal burguês (os maneiristas Albano Jerónimo e Isabel Abreu), após a toma das vacinas necessárias para uma antecipada viagem aos trópicos. Encontra-se nele uma esquisitice que evoca os primeiros trabalhos de Lanthimos – sobretudo com Jerónimo, desde o instante inicial, munido de um passa‐montanhas branco, comporta-se como um predador animalesco na sua enclausura doméstica. “Primeira Pessoa do Plural” promete extrair, da crise desse matrimónio, algo higiênico, embora tropece nas diretrizes sociais, formalidades e cordialidades, revelando um ar de surrealismo delirante, sem jamais banalizar os trilhos narrativos.

Aguilar afasta a escuridão e abraça a plasticidade emancipada deste retrato – não só visual, mas igualmente orientado para uma performance de “faz de conta”. Há, assim, uma farsa entranhada na seriedade, por vezes derretida no tórrido humor. Nesse aspecto, aproxima-se do atual cinema “faz-por-ti-mesmo” de João Nicolau, que o próprio Aguilar tem vindo a produzir, e, pelo meio, oferece brindes à altura do cinefilismo como de Aki Kaurismaki (“The Man Without a Past”, sobretudo) ou de uma alusão quase felliniana a uma burguesia alienada, entretida na “caça aos gambuzinos”. Esta (minha) citação a “la Dolce Vita” não decorre do acaso, das últimas sequências, já no resort, filmado num artificial em Itália, onde, novamente sem perceber a causa, Jerónimo, levantando-se na praia, exibindo um ar abananado e despreocupado, tentando com isso sorrir à boleia da memória de Marcello Mastroianni nesse ato final do tal Fellini de coração.

Aguilar brincou às cinéfilas com o seu novo joguete com direito a banhos de sol, enquanto o espectador, perversamente, permanece embebido nas suas próprias trevas. O desafio surge no pós… e daí poderá realmente nascer um filme de apreço – ou não.

Deixem Salazar morrer ...

Hugo Gomes, 06.02.25

4ffce8d8-88b5-42ef-ba20-cf1e855e976a-1296x729.jpg

Que Portugal o coma bem cozidinho, Sr. Presidente

A teatralização da morte, a ditadura da última vontade. É fácil encontrar uma espécie de castigo ou perversão na imaculada figura política de ditadores e autocratas — ou até mesmo, se seguirmos por outros ventos, na do estadista e governante. Mas fiquemos pelo primeiro ponto: quão perverso pode ser testemunhar a queda de um tirano, ou até a sua ridicularização como último verso da sua existência?

Pai Nosso – Os Últimos Dias de Salazar”, nova obra de José Filipe Costa, é, sem grandes surpresas — até porque o título já o revela —, o espetáculo da morte de um ditador. António de Oliveira Salazar chega-nos sob o prisma da desmistificação da sua figura autoritária, num gesto de desmistificação que já foi cumprido noutras geografias e por outros realizadores. Do outro lado da fronteira, Franco é cada vez mais revisitado e punido por desconstruções da sua suposta imponência. Pablo Larraín converteu Pinochet numa criatura draculiana sem nunca despir a capa do ridículo (“El Conde”, 2023). Os americanos, por sua vez, mataram Estaline em “The Death of Stalin” (Armando Iannucci, 2017), mais como sátira ao regime em si, sem nunca partir da desconstrução do líder soviético, nesse caso Fanny Ardant o concretizou, apostando num monstruoso Gérard Depardieu para dar corpo a um Josef Estaline de cabeça perdida, refugiado no seu poder insuflado (Le Divan de Staline, 2016). E, levando a troça ao extremo e de outras eras, por vezes mais libertárias (e libertinas), Augusto Tretti transformou Mussolini num fantoche num mundo humano — não só a morte, mas também a sua própria existência, é dotada de "bonecada" (“Il potere”, 1971).

Gozar com Salazar não é novidade. “Capitão Falcão” (João Leitão, 2015) trouxe o pitoresco à sua presença, mimetizada pelo ator José Pinto. Já José Filipe Costa, habituado ao simbolismo da Revolução, fixa-se no leito alucinado de Salazar após a célebre queda da cadeira. Isolado no seu palácio-fortaleza, convencido que ainda governava, enquanto Portugal transita para a chamada "Primavera Marcelista". Tal como no filme de Ardant, "Pai Nosso" não se rege pelas ditaduras da biopic convencional, onde os atores replicam a personalidade que encarnam, Jorge Mota não é um Salazar familiar nem reconhecível, tampouco imita os seus maneirismos vocais – “a oratória de professor de primária”, segundo Ricardo Araújo Pereira. Com essa distância, quer visual quer sonora, somos apanhados no abstrato deste salazarismo expirado.

2b5984b8-cbe5-47a0-87b0-2f0e520c321b-1296x729.jpg

Um salazarismo, no seu conceito originário e dependente do culto à figura, sobrevive apenas naquele cenário, entre os olhares voyeurs de funcionários do Estado, médicos que o visitam regularmente, criadas reprimidas - mas no privado festivas e extrovertidas -, e uma governanta, Maria de Jesus (Catarina Avelar), que encarna a réstia e a taxidermia de todo um cocktail de costumes ditatoriais, nunca distanciando da sua essência vampiria, enquanto Salazar, que domesticou um país com uma mão de ferro e sermões; é agora, naquele aposento, reduzido a um homem gradualmente cadavérico, ele próprio uma sombra vampírica do seu regime. Entre perus, animais antropomórficos (alusões aos alcunhados termos e o provincianismo com que os portugueses eram retratados na lente do seu governador), alucinações e canibalismos políticos, este Salazar torna-se vítima de uma corrente de tortura hipnótica. Daí que o filme oscile entre a comédia negra e satírica, por vezes revanchista, e a tragédia que expõe a decadência, sobretudo mental, do ex-ditador. Todos, diante da proximidade da morte, tornam-se covardes como galináceos. O temido Salazar é, afinal, apenas um mortal, despojado da aura divina que o regime ultraconservador lhe atribuíra e, com ela, do poder opressor que exercera.

O filme faz desses rasgos delirantes a marca fundamental de José Filipe Costa (como já fizera em Prazer, Camaradas!”) e, desses interlúdios, a sua piada mortal.

Pérola para os checos ...

Hugo Gomes, 05.02.25

PERLA_Still_2_Golden Girls Film.jpeg

Perla (Rebeka Poláková) escapou da opressiva Cortina de Ferro que pairava sobre a sua nativa Checoslováquia para Viena, onde se tornou numa artista em ascensão. A sua filha, Julia (Carmen Diego), uma talentosa pianista, tem ainda muito território a pisar. Do outro lado da fronteira, Perla constrói uma vida estável e boémia, e até um marido que cuida dela com afecto e paixão, mas tudo ameaça desmoronar-se quando ouve uma voz vinda do passado. O pai de Julia, outrora prisioneiro político e agora finalmente libertado, deseja conhecer a filha e suplica uma visita das duas sob o pretexto de sofrer de uma doença terminal. À chegada ao outro lado da fronteira, a visita, o reencontro – ou talvez a reconciliação – entram em conflito com a nova identidade de Perla, desenterrando traumas ocultos e dilemas que dificultam a sua progressão. 

Segunda longa-metragem de Alexandra Makarova (“Crush My Heart”), “Perla” volta a ser um ensaio sobre identidades, deslocações e espíritos ambulantes, agora sob o contexto sociopolítico da desintegração dos estados soviéticos e da sua resiliência face a uma iminente derrota. O filme vive sobretudo da sua protagonista, Poláková, que transmite (e, crucialmente, esconde) uma angústia traumática perante o modus operandi do regime que a marcou durante anos. No regresso à Checoslováquia, o contraste com Viena é evidente – não apenas na rigidez e frigidez dos figurantes, moldados à imagem de um sistema opressivo e repressivo, como também no brutalismo quase ruralista e na névoa fantasmagórica que parece assombrar um local onde o tempo estagnou em prol de um “Bem Comum”, slogan decretado sem qualquer margem para dúvida.

Perla”, após a entrada do segundo ato, e transpassada o posto fronteiriço (um imagético separador capitular), tece habilmente subgéneros ou tendências formais que se desdobram ao longo da narrativa: da provocação à la Östlund, evidente no interior do hotel, uma mera fachada, aos embustes de folk horror que emergem no vilarejo; do flashback desconfortável filmado num único plano - que nos recorda do trágico e condutor episódio do georgiano “Beginning” (Déa Kulumbegashvili, 2020) ou desta corrente vaga de cinema russo anti-sistema (Kantemir Balagov, Kira Kovalenko) -, a exposição grotesca que coloca o espectador numa posição de impotência. É um filme de cerco sem ser verdadeiramente de cerco, evocando memórias da própria realizadora, que hoje, num mundo mais propenso a saudosismos e repetições históricas, parece adquirir uma nova dimensão. Porém, como exercício fílmico, herda a mesma austeridade e rígido formalismo manifestado por tantos que o precederam.

Filme em Competição no Festival de Roterdão 2025

Billy Woodberry: "Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia"

Hugo Gomes, 27.11.24

mario.jpeg

Mário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Mário Pinto de Andrade (1928 - 1990): poeta, ensaísta, político e fundador do MPLA [Movimento Popular pela Libertação de Angola], uma figura de pegada incisiva no século XX, que em Portugal pouco (ou nada) o referimos pelo seu nome. Porquê? Razões ainda por apurar, apesar das teorias, das especulações ou das certezas captadas numa sociedade de traumas e histórias confinadas a alçapões, contudo, é através da curiosidade mórbida de um americano que este homem das mil artes e das mil línguas se posiciona em frente ao holofote. 

Mário”, simplesmente, é a mais recente obra de Billy Woodberry - uma das peças centrais do movimento L.A. Rebellion (o qual fizeram parte Charles Burnett, Zeinabu Irene Davis ou Larry Clark) - que explora o seu percurso e o pensamento que influenciou os mais diferentes estandartes culturais pan-africanos, conduzindo-se por imagens e filmagens de arquivo, colheita de trabalhos seus e um incessante encontro às suas demandas politizadas, dos amigos a inimigos, família a amores, até dar de caras com a morte. A vida de um homem, sem hagiografias, mas com a dignidade declarada. No final da sessão, e mesmo não entendendo o seu apagamento, um “bichinho carpinteiro” e curioso anseia por mais e mais sobre Mário Pinto de Andrade. Woodberry apenas o despertou.

O Cinematograficamente Falando … falou com o realizador sobre Mário’, o filme, o homem, a sua (não)presença na memória de Portugal e ainda sobre fotografia e as suas possibilidades de cinema.    

Começo por lhe questionar sobre qual foi o seu primeiro contacto com o trabalho de Mário Pinto de Andrade?

O primeiro contacto foi, na verdade, através de um artigo que o próprio escreveu, publicado em inglês em Havana [Cuba]. Era um texto sobre cultura e movimentos de libertação nacional e nele, sobre a importância do Brasil e da cultura brasileira, particularmente a literatura, para um país como Angola, ou outro canto na África. Destacava como essa cultura literária ajudava a entender e a refletir sobre a modernidade, oferecendo um exemplo que, de certa forma, lhes parecia próximo.

A importância da literatura brasileira era significativa porque apresentava protagonistas descendentes de africanos, apesar de ter mudado ao longo do tempo, este universo literário sempre contou com escritores críticos e relevantes para o pensamento, eram de facto uma inspiração. Na altura em que li o artigo, já me encontrava profundamente fascinado e envolvido com o movimento brasileiro chamado Cinema Novo, o que me conduziu a descobrir a literatura e a cultura do Brasil. Esse contacto obteve impacto para mim porque funcionava como um exemplo alternativo, uma outra possibilidade. O Brasil, com uma população negra notada, mostrava nos seus filmes uma forma diferente, mais emocionante e interessante, de fazer cinema. Ver aqueles protagonistas negros no ecrã foi muito marcante e emocionante.

A partir daí, comecei a ler mais livros, conheci pessoas e mergulhei nos romances. Ao mesmo tempo, tive também a oportunidade de aprender mais sobre a história em cursos académicos. Quando ele [Pinto de Andrade] fez essa ligação entre a cultura brasileira e os movimentos de libertação, coincidiu com o que aquilo que estava a estudar e a refletir. Isso foi fascinante. A sua presença ativa em muitos movimentos de libertação nacional na África lusófona é indiscutível, estes surgiram após a primeira onda de independências africanas nos anos 50 e 60 e traçavam um caminho diferente, com uma consciência e uma reflexão sobre o que tinha acontecido noutras partes de África. Aprenderam com essas experiências e pareciam desenhar um percurso que integrava as lições do passado.

fd0d2ff0-da95-4b94-b75f-a898d31074ae.jpg

Billy Woodberry

Essa abordagem foi crucial para mim e para a minha geração, que pensava sobre África de forma intensa. Mas o desafio era: qual África estávamos a imaginar? Seria a África do mito? A África lendária do período pré-colonial? Ou as versões que conhecíamos dessa África? No meu caso, interessava-me sobretudo o presente e o que estava a acontecer, embora também tivesse curiosidade pela história.

África não era algo alheio ao nosso interesse. Inspirávamo-nos em exemplos para criar um novo tipo de cinema. Nessa procura, tivemos referências como o cineasta senegalês Ousmane Sembène, que porque mantinha uma relação próxima com os militantes e ativistas das antigas colónias portuguesas em África. No filme, vemos fotos de Mário em vários lugares — na China, em Roma —, sempre ao lado dessas figuras, incluindo Sembène. Essa ligação também era muito significativa para se entender a sua aura política e artística.

Além disso, conhecíamos os filmes de Sarah Maldoror, em especial “Sambizanga”, tendo causado um grande impacto quando foi lançado em 1972. Foi uma obra inspiradora. Levou-nos a ler a tradução do livro que serviu de base, o que só reforçou essa influência inicial.

Esse foi o meu primeiro contacto com tudo isso, o tal ponto de partida.

De forma semelhante, o uso da história do Mário permite contar uma história do pensamento em África, dos movimentos, movimentos artísticos e políticos. Então, gostaria de ligar isto a outra pergunta, talvez usando as suas palavras, porque ao ver o seu filme, perguntei-me: por que é que em Portugal não falamos muito (ou quase nada) sobre o Mário? E, como se vê no seu filme, ele é uma figura presente nesses movimentos políticos e culturais.

Sim, concordo plenamente. De facto, é curioso debruçar esse “esquecimento”. Talvez tenha a ver com a forma como o conhecimento sobre este período, sobre este aspecto da história de Portugal e do colonialismo, é transmitido. Pode ser uma questão relacionada com a maneira como a história é contada. É possível que existam lacunas, embora haja pessoas em Portugal com um conhecimento profundo sobre o tema e sobre Mário. No entanto, talvez não sejam assim tantas, e talvez este assunto não esteja no centro do currículo escolar ou das preocupações atuais, por várias razões. Afinal, trata-se de um passado que remonta a 50, 70 anos ou mais, e isso pode contribuir para esse afastamento.

Mas devo dizer que muito do material que encontrei e usei no filme está em Portugal. Por exemplo, existe uma entrevista feita pela RTP em 1985 ou 1986, conduzida por Diana Andringa, que é uma fonte inestimável, uma longa entrevista em que Mário aborda muitos aspectos da sua vida e do seu pensamento. Além disso, há uma entrevista em livro com Michel Laban, um académico literário francês, publicada após a morte de Mário. É um documento extenso e detalhado que também foi muito importante.

Outro exemplo: encontrei cerca de 20 horas de material sobre a Guerra Colonial. Esse arquivo é valioso porque foi produzido na RTP e inclui entrevistas com pessoas de todos os lados do conflito — tanto portugueses como membros dos vários movimentos de libertação. Para Angola, por exemplo, encontramos entrevistas com representantes dos três principais movimentos de libertação. Também há material sobre Moçambique, o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] e outros. Este arquivo está organizado por períodos e por marcos importantes na evolução da guerra, desde o início até à cessação do conflito. A certa altura, esse material foi distribuído como parte de uma coleção ligada a um dos jornais, com 14 volumes ou algo do género, que podiam ser colecionados.

mario (1).jpegMário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Além disso, os arquivos de Mário estão em Portugal. O mesmo acontece com os arquivos de Amílcar Cabral, de Marcelino dos Santos e de outras figuras importantes, que estão preservados em instituições como a Fundação Mário Soares e Maria Barroso.

Nos museus históricos, também existe muita informação, se não diretamente sobre este período específico, pelo menos sobre a história do Ultramar como um todo. Portanto, o material existe e está acessível. O que pode estar a faltar é o seu destaque no imaginário coletivo ou no debate público atual.

E acredita que essa distância dos portugueses aos arquivos e à sua história colonial, detém algo de político?

Talvez haja um componente político nessa questão. Tenho ouvido algumas coisas e, claro, devo ser cuidadoso, porque sou estrangeiro e tive a sorte de passar a viver aqui. Mas ouvi pessoas dizerem que isso pode estar ligado a um trauma — termo que, reconheço, é muitas vezes usado em demasia. Pode ser o trauma persistente do fim da era colonial e da perda associada a esse período. Para alguns, foi uma perda; para outros, um ganho, e talvez isso ainda não tenha sido totalmente processado ou amplamente discutido e conhecido. Pode ser essa a razão, mas não tenho certeza.

Nos Estados Unidos, por exemplo, não sei se seria muito diferente. Temos muitos documentários e obras audiovisuais sobre o Vietname. Há cerca de cinco anos, foi feito um grande documentário sobre o tema. Existe um certo distanciamento no tempo, mas também não sei se estes assuntos são fáceis de divulgar de forma ampla, há sempre disputas sobre como interpretar essas questões. Nos Estados Unidos, frequentemente esquecemos que há uma espécie de amnésia voluntária em relação a certos tópicos - aqui, não posso dizer que sei como as coisas são, mas já ouvi pessoas comentarem: “Ah, isso não é ensinado nas escolas.

A educação, claro, é influenciada por diferentes correntes de pensamento que tentam definir o que é mais importante ensinar aos cidadãos, às crianças, aos jovens no ensino secundário e superior. No nível universitário, há investigadores excelentes nesta área. Há também jornalistas e figuras como Diana Andringa, que dedicaram a vida a escrever, pensar e partilhar reflexões sobre esses temas. Acho que Portugal tem um serviço público de televisão notável, o Canal 2 [RTP 2], por exemplo, é um dos melhores do mundo no que diz respeito à oferta cultural. Fazem um grande esforço para trazer questões importantes ao público e estimular a reflexão.

Talvez, no passado, tenha havido uma necessidade inicial de debater sobre esses temas, mas com o tempo isso foi desaparecendo, à medida que surgiam novos desafios. Construir uma sociedade diferente, integrar-se na União Europeia, fomentar a democracia, expandir o acesso à educação — tudo isso traz novas prioridades.

Não digo isto de forma leviana, mas devemos sempre questionar porquê que as pessoas não sabem? Talvez, no futuro, as populações afrodescendentes em Portugal sintam mais curiosidade sobre estas histórias e figuras como Mário e queiram aprender e partilhar esse conhecimento. Isso pode ser uma fonte de renovação, um caminho para recuperar e valorizar essa memória.

mario (2).jpeg

Mário Pinto de Andrade e Sarah Maldoror / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Demorou quatro anos para produzir este filme. Gostaria que me falasse sobre a angariação de material, a sua seleção, edição e a construção de uma estrutura narrativa que respeitasse o pensamento e vida de Mário?

Tive a sorte de contar com a colaboração de Teresa Gusmão, minha colega e produtora associada do filme, que esteve ao meu lado praticamente durante todo o processo. Desde o início, quando começámos a reunir o material, até às etapas de pesquisa contínua, esteve sempre presente. Queríamos conhecer profundamente os arquivos disponíveis, entender o seu conteúdo. Com o tempo, começámos a estruturar uma ideia, um esboço de guião, uma linha narrativa: sabíamos o ponto de partida e o ponto final — os 60 anos da vida de Mário.

A partir daí, precisávamos aprender o máximo possível sobre a cronologia dos acontecimentos e identificar os eventos e elementos significativos que poderíamos incluir no filme. Quando chegou a fase de edição, já tínhamos reunido uma quantidade imensa de material de várias fontes: material de arquivo, gravações, documentos relacionados com a história de Mário, as suas conexões, viagens, envolvimento político e cultural.

Entre os materiais descobertos, estavam gravações de entrevistas que ele fez ao longo dos anos. Uma delas, de 1982, foi conduzida pela socióloga francesa Christine Messiant, em Paris. Outra, do final dos anos 80, foi realizada por Michel Laban, que resultou no livro-entrevista publicado postumamente. E, claro, a entrevista feita por Diana Andringa, que sabíamos existir mas que, inicialmente, apenas conhecíamos através de algumas imagens transmitidas na televisão.

Desde o início, pretendia que a voz de Mário estivesse presente no filme. Por isso, focámo-nos nestas três fontes. Tanto Christine Messiant como Michel Laban já tinham falecido, e os seus arquivos foram transferidos para a Fundação Mário Soares, esperando-se, eventualmente, que fossem para Angola. Quando soubemos que estavam na Fundação, tivemos de aguardar autorização para aceder às gravações e fazer cópias digitais, o que conseguimos. Infelizmente, outra gravação feita nos Estados Unidos nunca nos foi disponibilizada. Quanto à entrevista de Diana Andringa, conseguimos acesso ao material completo apenas mais tarde, mas foi extremamente valioso.

Cada uma dessas entrevistas trouxe contribuições únicas. A de Christine Messiant, por exemplo, concentra-se sobretudo nas origens políticas do MPLA, cobrindo o período até 1962. Já a de Michel Laban abrange um arco temporal maior, refletindo sobre a vida familiar de Mário — a relação com os pais, a casa onde cresceu —, mas também sobre o seu desenvolvimento literário, intelectual e político, além das dinâmicas da sua geração em Angola e em Lisboa. Esta entrevista é notável porque Mário estava consciente de que provavelmente nunca escreveria uma autobiografia, por isso, preparou-se meticulosamente para as conversas, com o objetivo de ser-se preciso e rigoroso, oferecendo um relato considerado dos eventos e do seu significado.

Ao integrar essas fontes com o material que Diana Andringa produziu, começámos a delinear a estrutura do filme. No entanto, mesmo com tantas informações, não era possível incluir tudo. Tivemos de tomar decisões cuidadosas sobre o que contar, o que omitir e como articular os eventos para que fizessem sentido dentro do conjunto.

Trabalhei com o editor Luís Nunes, com quem já colaborei em quatro filmes anteriores. Ele é fantástico e tem um conhecimento profundo dos diversos arquivos, pois já trabalhou com realizadores como Manuel Mozos e produziu filmes sobre figuras como João Bénard da Costa. O trabalho com Luís foi essencial para reconstruirmos a narrativa e criarmos uma obra coesa. No final, foi um processo de intenso pensamento, pesquisa e escolhas, mas acredito que conseguimos transmitir o essencial da história de Mário e da sua relevância. Já agora, conhece o trabalho de Manuel Mozos?

mario (3).jpegMário Pinto de Andrade / "Mário" (Billy Woodberry, 2024)

Sim, conheço e, principalmente, o filme que refere: “Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei”.

Voltando … Luís tem sido incrivelmente útil, tem um olhar muito apurado e uma experiência vasta com arquivos.

Durante o processo, surgiam momentos em que identificávamos algo que queríamos incluir. Por exemplo, havia uma passagem em que Mário viajava de comboio para ver a mãe. Queria mostrar essa viagem, mas só tínhamos uma única fotografia do comboio — e era uma imagem miserável. Sabíamos que precisávamos encontrar algo melhor, algo que captasse de forma mais eficaz essa ideia no cinema. E foi assim ao longo de todo o trabalho: procurar o melhor material e pensar na melhor forma de transmitir uma ideia de forma cinematográfica.

Foi um processo que exigiu muito tempo e paciência. Houve períodos em que não podíamos filmar ou em que ainda não tínhamos o financiamento necessário para avançar em certas partes. Então, usávamos esse tempo para aprofundar ou refinar a pesquisa, sempre tentando descobrir algo que pudesse enriquecer o filme. Foi um esforço contínuo, mas nunca cansativo para mim. Pelo contrário, acho fascinante.

O desafio maior foi transformar todo esse material e essas ideias em algo coerente, algo que fizesse sentido enquanto filme, como tal exigiu muita dedicação, mas também foi extremamente recompensador.

Vejo que trabalha muitas vezes com arquivos e fotografias, e isso tem-se verificado cada vez mais nos seus últimos projetos. Diria mesmo que tem sido uma abordagem muito distante em relação, por exemplo, ao seu primeiro filme, a ficção “Bless Their Little Hearts” (1983). Sente-se fascinado pelas possibilidades que uma fotografia pode oferecer ao cinema?

Talvez seja porque comecei a explorar isso mais tarde. No início, fazia algumas fotografias e slideshows, mas não pensava exatamente em cinema. Talvez estivesse lá no meu horizonte, mas ainda não estava a concretizá-lo, era mais uma questão de ter um texto, normalmente não meu, sobre um tema histórico, e de forma obsessiva procurava fotografias que, de alguma maneira, dialogassem com esse texto.  

Foi só depois, ao falar sobre esses começos com alguém há cerca de um mês, que percebi que as pessoas viam nisso algo cinematográfico. Diziam que tinha a ver com a forma como as imagens trabalhavam umas com as outras. Esse processo aconteceu antes de entrar na escola de cinema, mas não o tinha reconhecido como tal na altura.  

Quando comecei a trabalhar com imagens em movimento, a fazer ficção e coisas do género, não pensava em fotografias, nem em imagens individuais. Essa relação com a fotografia veio mais tarde, sobretudo quando comecei a ensinar. Dei aulas num programa de fotografia numa escola de arte, e isso ajudou-me a aprender muito mais sobre fotografia, graças a fotógrafos, escritores e até aos meus próprios alunos. Foi aí que comecei a valorizar realmente a fotografia.  

Também fui influenciado por cineastas como Hartmut Bitomsky e fotógrafos e escritores como Allan Sekula, o qual fizeram-me pensar de forma mais aprofundada sobre a fotografia, e talvez isso tenha aberto mais possibilidades para mim.  

No meu filme “And When I Die I Won’t Stay Dead” (2015, sobre o poeta e ativista Bob Kaufman), não havia tantas imagens em movimento do tema, foi um processo de aprendizagem. Sabia que, nos anos 1950 em São Francisco, havia muitos fotógrafos talentosos, e isso também se devia ao facto de, naquela época, ser mais provável alguém ter uma câmara fotográfica SLR [single-lens reflex] do que uma câmara de filmar.  

Felizmente, encontrei imagens de filmes, mas as fotografias ainda eram predominantes. Conhecia um livro de fotografias publicado por um deles, Jerry Stoll, chamado “I Am a Lover, que é um dos melhores registos visuais do que era viver no bairro boémio de North Beach, São Francisco, naquela época. Trabalhei com essas imagens e outras de alguns fotógrafos importantes, o que me inclinou a usar fotografias de forma mais aberta e reflexiva nos meus filmes.  

p20189702_i_h10_aa.jpgAnd When I Die I Won’t Stay Dead (Billy Woodberry, 2015)

Depois de “And When I Die I Won’t Stay Dead”, eu e Luís fizemos uma curta de 11 ou 12 minutos chamada "Marseille après la guerre”, composta apenas por fotografias. Foi durante a pesquisa para “Mário” que me deparei com a coleção de [José] Veloso de Castro, um fotógrafo militar. Essa descoberta levou-nos a criar uma história a partir das suas imagens de África.  

Este interesse por fotografias não surgiu do nada. Há cineastas que admiro profundamente, como Santiago Álvarez, documentarista cubano. Ele dizia: "Dê-me duas fotografias e um pouco de música, e consigo emocionar-te; consigo fazer um filme." Embora não faça exatamente como ele, a confiança dele em usar fotos inspirou-me. Outro grande exemplo é obviamente Chris Marker, que também começou como fotógrafo. 

Marker dizia que não se tornava fotógrafo porque William Klein era muito melhor. Mesmo assim, usava fotografias nos seus filmes e refletia sobre o que uma fotografia pode ser, em trabalhos como “Si j'avais quatre dromadaires” (“Se Eu Tivesse Quatro Dromedários”, 1966). A sua abordagem ao meio e o seu próprio trabalho fotográfico são algo que admiro muito.  

Mas essa fascinação pela imagem fixa, pelos arquivos e por essa realidade, tem também fascínio na vaga de fotógrafos amadores da América e como a sua transição para o cinema, um cinema underground americano ou alternativo à fantasia vendida pela indústria hollywoodesca?

Sim, tem a ver com isso também. Refere-se a Helen Levitt e outros? Sim, porque os filmes e a fotografia dela foram realmente importantes para mim. Gostava muito do trabalho dela. Dediquei o meu primeiro filme a ela porque o modo como ela trabalhava era livre, interessante e original, especialmente no contexto de East Harlem.

Ela conseguiu fazer filmes dentro de uma indústria que já tinha regras muito estabelecidas. Além disso, colaborou com o escritor James Agee, e juntos fizeram outro filme que é um dos meus favoritos, chamado “In the Street” (1948). A sensibilidade que ela demonstrava na imagem fixa continuava presente quando passou a trabalhar com imagens em movimento.

Ainda que tenha mudado de plataforma artística, ela manteve aquele olhar aguçado para a observação, para os detalhes e para o movimento. Mas o foco nunca era abstrato; estava sempre nas pessoas, nas suas vidas.

Essas qualidades, essa atenção ao humano, ao particular, impressionaram-me profundamente e foram uma inspiração.

E sobre esses fotógrafos, muitas vezes captavam as classes, a classe trabalhadora, as vozes mais silenciosas que não tinham lugar no cinema de massas. Essa foi, como disse, uma das características do movimento LA Rebellion do qual fez parte: o de dar voz aos invisíveis no cinema mainstream?

Sim, exatamente. Talvez como muitos dos movimentos de novo cinema, especialmente o novo cinema latino-americano, que era profundamente radical e convencido da necessidade de tornar visíveis, no cinema e na cultura, as pessoas, as classes populares: como vivem, o que fazem, como se expressam, os desafios que enfrentam. Era uma forma de contrariar a tendência de simplesmente usar o cinema como escapismo.

Sob a influência dessas pessoas e encorajados pelo exemplo delas, tentámos fazer algo semelhante, e havia também uma necessidade, quase uma compulsão: uma vez que tivéssemos acesso ao meio, o que faríamos com isso? Imitaríamos os outros? Seríamos apenas entertainments? Não. Pensávamos que o cinema podia ser mais do que isso. Outros temas e outras subjetividades poderiam ser tão envolventes e interessantes quanto aquelas histórias banais com personagens fictícios, estrelas e narrativas pré-fabricadas.

metalocus_helenlevitt_14.jpg

"Boys with cigarettes", Nova Iorque / Foto.: Helen Levitt (1940)

Acho que foi assim que esse pensamento surgiu. Havia uma afinidade com as pessoas que mencionei, que se tornaram pilares, referências. Sabíamos que outras pessoas já tinham feito isso, e que era possível fazê-lo, se quiséssemos.

Felizmente, vi essas obras na escola e procurei aprofundá-las. Tinha amigos que também gostavam muito e as consideravam como referência. É quase uma tradição, como Chaplin, que também tinha essa preocupação com os temas humanos e sociais.

Visto chegou “Mário” por via de outras obras, pergunto-lhe como desfecho da nossa conversa, se no seu trabalho e pesquisa para este filme deparou-se com a ideia do seu próximo projeto?

Não tenho certeza. Tenho algumas ideias, algumas ‘coisas’ que gostaria de fazer, mas nada de concreto, como também tenho receio de embarcar em algo só porque preciso fazer alguma coisa. Não sinto que ainda tenha surgido o projeto certo, algo que me convence de forma definitiva. Mas espero continuar a procurar.

A geometria do Mito ...

Hugo Gomes, 03.03.24

DDDF_10.jpg

Na véspera da sua exibição no Festival de Roterdão, os jornalistas portugueses, dirigindo-se ao visionamento de imprensa de “Diálogos Depois do Fim” no Cinema Nimas, foram recebidos pela produtora Ana Pinhão Moura que os elucidou sobre um aspecto peculiar da obra. Inicialmente produzida como uma série televisiva composta por 19 episódios, este filme foi concebido e realizado através da "colagem" de 6 "diálogos". No entanto, em Roterdão, o "filme" seria diferente daquilo a que os profissionais de imprensa iriam assistir, tal como indicou a produtora, essa versão seria de uma montagem diferente, uma compilação de episódios previamente selecionados pela comitiva de seleção do festival holandês. 

Assim, "Diálogos Depois do Fim" estabeleceu-se como um filme fragmentado, composto por partes que são construídas pela iniciativa do curador/espectador, nunca detendo uma estrutura original, mas mantendo a sua essência - a adaptação de "Diálogos com Leucó", a obra predileta do escritor neorrealista italiano Cesare Pavese (1908 - 1950), integrado na sua visão de desapropriação do mito grego e igualmente a sua subjugação à natureza mitológica (“O mito é (...) o esquema de um facto acontecido de uma vez para sempre, e retira o seu valor desta unicidade absoluta que o leva para fora do tempo e o consagra como revelação”, citando o próprio).

Em resumo, é um exercício performativo digno de instalação, onde 39 atores e uma pequena equipa, liderada por Tiago Guedes ("Os Restos do Vento", "Coisa Ruim", "A Herdade"), aventuram-se no arquipélago açoriano para encenar os diálogos totalizados (19 dos 27 originalmente presentes no livro) e extrair as figuras mitológicas e mortais fantásticas de Pavese, em conflito de ideias, orbitadas pelos fascínios declarados pelo autor. Desde a existência à dicotomia entre a morte e a vida, da violência à paz, da utopia à distopia, estas conversas imaginadas com o mar no horizonte e a selvajaria intactamente indomável servem de palco para a teatralidade encontrada.

Embora Straub e Huillet tenham feito destas inspirações muitos dos seus campos elísios, nas mãos do oscilante realizador Guedes, entendemos como uma variação mais digna do seu processo do que da sua própria conclusão. "Diálogos Depois do Fim" é um filme transmutável, sem um lar ao qual possa chamar seu, encaminhado como um gesto produtivo em vez de uma obra finalizada. Os Açores [Pico] contribuem com o ambiente nesta móvel residência artística, e a sua conjuntura para com o desconhecido apela constantemente à imaginação e crença do espectador. O resto tenta permanecer relevante depois do fim. Não sabemos se resultará com a sua arte ...

Quem é que acordou Nolan hoje?

Hugo Gomes, 17.02.24

1706532250779_1500x1000_0x0x0x0_1706532281467.jpg

Depois de ter captado a atenção com a premonição de radicalização política em “Son of Denmark” (2019), o realizador dinamarquês Ulaa Salim aventura-se na ficção científica com tons introspectivos numa expedição ao interior de uma fissura oceânica, narrativamente dividida em três capítulos / três atos [Eternamente Jovem, o Núcleo, Eterno], tentando estabelecer uma filosofia em camadas, e igualmente piscando o olho às audiências mais generalizadas e às mesmas que confundem o transcendente com a complexidade humana. É uma espécie de “e se”, entre física e exploradores, amantes por um dia e arrependimentos que o encaminharam por cruzadas ao conhecimento e nessa prática ao desconhecido questionam a sua própria existência. 

Há algo de romântico na forma como a ficção científica é tratada nos dias de hoje, muito graças aos Nolans’ e aos seus “filhos”, que procuram expulsar o científico da sua esfera tradicional, colocando-o em um contexto permeado por paradoxos espirituais e esotéricos, isso, refletindo um tempo em que a Ciência, propriamente dita, é colocada ao mesmo nível da crença e questionada nesse prisma, ou seja, entendida a um ponto antropocêntrico (neste caso, a alteração climática é descartada a favor de uma relação). “Eternal” (“For evigt”), esse filme que contrai um código universal, é um “blockbuster” em menor escala, respeitando línguas, nacionalidades e a ordem do mundo, relembrando fragrâncias de outros exemplares reconhecíveis do género e da dimensão. Ora, se pequenas “maliquices” pontuam os mesmos “rodriguinhos” - família, amor, legado, possibilidades - ora o contexto Nolan, mais concretamente “Interstellar” e a sua lavagem decifrada quanto à sua inspiração de raíz [“2001: A Space Odyssey”], o conectam a uma espécie de esboço e de interações com paradoxos temporais. 

Por outras palavras, Salim está confinado a uma estética e a uma visão que se reduzem a uma espécie de "Nolan temporário", um prato alternativo, ineficaz enquanto objeto científico, e demasiado revisada enquanto ensaio sobre a condição humana.

 

Roterdão: Big Screen Competition

Um talentoso senhor português em Londres

Hugo Gomes, 07.02.24

o-pior-homem-de-londres.jpg

Rodrigo Areias [em entrevista à Agenda Cultural Lisboa] desafia os espectadores a discordarem do título da sua nova longa-metragem - “O Pior Homem de Londres” - que aborda o chantagista, trapaceiro e manipulador negociador de arte, Charles Augustus Howell (1840 - 1890), figura digna de uma Londres vitoriana à luz de Arthur Conan Doyle (aliás é sabido que o escritor inspirou nele para compor um dos arqui-inimigos de Sherlock Holmes, e o filme mantém a sua presença como easter egg para os mais atentos). Aqui, interpretado por Albano Jerónimo em generosas doses de pomposidade, estabelece-se como um dos responsáveis pela difusão e influência do grupo de Pré-Rafaelitas, autores e artistas que na ordem de discordar da estética corrente e acadêmica, regressam às bases românticas e góticas, procurando nelas uma espécie “honestidade artística”. Dessa colheita surgiram personalidades como John Everett Millais e Dante Gabriel Rossetti, este último como estrutura óssea do drama de época aqui imposto, e cujos espíritos estabelecem pontes entre as ambições de Howell e a sua sensibilidade artística, deveras ambíguo devido à natureza da sua personagem-central.

Areias, produtor prolífico (“O Barão”, “Listen), une-se a Paulo Branco para trazer esta história sob uma perspectiva portuguesa, visto que o infame Howell tinha umas quantas “costelas lusitanas”, e tal como o manifesto artístico serviente como cenário, “O Pior Homem de Londres” anseia a regressão, instalar-se no belo conforto do “filme de época”, e para tal abre-se o armário de um vistoso guarda-roupa, até à criatividade, sem falhas, de converter Viana do Castelo numa Londres “faz-de-conta”, ou pela fotografia de Jorge Quintela, a declaração artística Pré-Rafaelitas, aliando-se à câmara irrequieta e igualmente dócil com que cada travelling por salões afora é "pincelado". É um filme com o seu "quês" de oliveriano com injecção generosas de naturalismo, ou do romantismo com que Visconti se encantou nos seus exercícios “de época”, ou, com influências de Branco, a prolongação da “portugalidade do tempo da outra senhora” de Raúl Ruiz.

Contudo, com rasgos ali e acolá, a sua narrativa devidamente esquemática (assinado por Eduardo Brito, o mesmo autor na conversão da obra-prima de Bessa-Luís ao reinado do cinema) expressa um travão a qualquer criatividade fora das quatro linhas, sentimos preso à convencionalidade em um jogo que tem tanto de televisivo (sentimos alojados a um espírito à la BBC) e de uma passividade que nunca exalta devidamente a figura de Howell (apesar de Albano Jerónimo estar em grande forma, como também está Victoria Guerra na sua representação de Elizabeth Siddal, uma das principais musas do movimento Pré-Rafaelitas). E como falou-se em “território televisivo”, e pelo andar da carruagem das nossas produções cinematográficas, não seria de estranhar a passagem de “O Pior Homem de Londres” como série, expandida e adequadamente recortada ao pequeno ecrã.

Takes Roterdão 2024: na balada das 'vidas passadas'

Hugo Gomes, 05.02.24

The Ballad of Suzanne Césaire

UzMBFQBpZmZyLmZpb25hLW9ubGluZS5uZXQ0AGF0dGFjaG1lbn

Se o espectador nada conhece sobre Suzanne Roussi-Césaire (1915 - 1966), escritora e precursora do movimento afro-surrealista e pan-tropicalista, isso não se converte em impedimento algum para o exercício trazido deste “The Ballad of Suzanne Césaire”, primeira longa-metragem de Madeleine Hunt-Ehrlich, e tal é evidente no momento em que Zita Hanrot - a atriz encabeçada para a interpretá-la (num filme dentro de um filme, e vice-versa) -, após a leitura de alguns dos seus escritos se dirige ao público, quebrando a quarta parede, constatando: “estamos a tentar fazer um filme de uma artista que não deseja ser recordada”. 

Portanto, o filme parte do suposto que nada se conhece sobre Césaire e que a própria Césaire nada se revê nessa pedagogia, prosseguindo então à ‘balada’ propriamente dita, ao gesto da rodagem de um filme sobre a escritora, biopic a apontar a convencionalidade, e a forma como essa convencionalidade é distorcida num constante “salto ao eixo”, ora entramos na ficção, ora entramos no exercício meta. Porém, o meta pouco ou nada tem de meta sem ser a auto-conscientização do exercício em si, o filme apregoa num ensaio atrás de ensaio, citações e espiritualidades sublinhados ao ato de desconstrução, que em Césaire aprontava num anti-colonialismo, aqui na intenção de quebrar fronteira entre as mais diferentes realidade. 

The Ballad of Suzanne Césaire” é um biopic contra todas as biopics, garantindo o lugar da sua personalidade a léguas da banalização que o cinema em massa pressupõe, e fora isso, a sua riqueza lírica embalada nas imagens que tanto tem de obscuras como nostalgicamente confortantes, ou da escuridão que também albergaria espíritos de outras épocas, exorcizadas através de danças milenares. Conhecer ou não conhecer Suzanne Césaire não é a questão, a questão é manter o seu legado vivo em frame

Tiger Competition

 

Praia Formosa

praia-formosa_still_03_paula-huven.webp

Olhar para o passado, como quem olha para o presente. “Praia Formosa”, co-produção luso-brasileira, é a continuação do trabalho da realizadora Julia De Simone sobre a génese do Rio de Janeiro, invocando os fantasmas aí “enterrados” na sua cidade portuária. 

Adução ao seu passado colonialista, e acima de tudo um descortinar dessa História intencionalmente apagada e “desculpada” em nome do Progresso, projetada ao futuro que se reflete num espelho de uma nação que pouco ou nada de interesse tem pela seu próprio percurso, e tal nota-se pelas ruínas substituídas pela arquitetura moderna, a paisagem que metamorfoseia até se tornar naquilo que hoje conhecemos e identificamos como Rio de Janeiro, seja fílmico, seja de postal turístico. Através dessa intenção, “Praia Formosa” saboreia a esquizofrenia do seu ambiente, representado numa diluição de narrativas guiadas por épocas distanciadas temporalmente, unidas apenas pela demanda de uma personagem que de passado como de futuro se diluem na sua própria deambulação, a vivente de um esclavagismo que faz “turismo” pelas ruínas daquele cenário forçado. 

Julia De Simone explora as raízes afro-culturais da sua cidade, e para isso empresta-se à sua heroína, Muanza (Lucília Raimundo, “Um Animal Amarelo”), para a encaminhar e ser encaminhada. É um retrato sobre os temas que hoje perduram na discussão da realidade brasileira, que leva-nos à sua polarização, de um lado um encobrimento e “branqueamento”, afigurado na cidade em constante construção, e do outro os “vingadores” pelas memórias de outrem, resgatadas dos escombros. A discussão é complexa, vasta, o qual não se resume a meia dúzia de linhas e muito menos a um filme de 90 minutos, porém, “Praia Formosa”, esse descolar das vertentes documentais de Simone (o filme insere-se numa trilogia composta por curtas documentais, “O Porto” e “Rapacidade”), é encorajado pelo seu exercício de pseudo-época, sem condescendência nem paternalismo, ou agressividades quanto ao seu discurso. 

Relembrar vidas passadas como quem deseja homenageá-las e não vingá-las, entendendo-as como matéria performativa e dramatúrgica. Quanto ao retrato da cidade, reflexo esse que tem contagiado um novo cinema brasileiro, quase arqueológico e museológico (o gesto leva-me ao exercício de invisibilidade / visibilidade de “Todos os Mortos”, assinado pela dupla Marco Dutra e Caetano Gotardo), que funciona como arquivo que o Brasil carece, e muito. 

Tiger Competition

 

O Filme Feliz :) 

20230615105647_MM1JSHCQS25PA44F6C0Y.png

A boa disposição de “O Filme Feliz :)” aufere-lhe um manto de especialidade enquanto atravessa territórios comuns principalmente associados ao cinema português recente. Gonçalo [Almeida] e os seus amigos rumam à casa do seu falecido avô e nela deparam-se com as memórias e , pelo meio, alguns fantasmas que por lá se foram “encalhando”, só que essa jornada de descoberta (e de auto-descoberta) parte de um tom milagreiro, uma benção que lhe transfere uma transcendência e igualmente júbilo com que se relaciona com a morte e outros nefastos afazeres. 

Duarte Coimbra (“Amor, Avenidas Novas”) cita de tudo, esses lugares comuns do cinema familiar e memorialista da nossa praça (embrulhado numa linguagem de artesanato tão característico dos autores da desconstrução - Miguel Gomes e João Nicolau, para exemplificar), desde fotografias a filmes-achados, e por outras, sobressaindo entre bandas improvisadas e um pontuado “Menino da Lágrima” lá pendurado, “O Filme Feliz :)” tem tanto de kitsch como de modernaço, triste como de alegre, vivaço como de fúnebre, e nesse último aspecto, Luís Miguel Cintra, decadente (nada podemos fazer para contornar essa inevitável da vida) que nos surge como um “fantasma do natal passado”, de olhar encantado e continuamente triste, presença que enriquece e transfere ao trabalho de Coimbra uma espécie de legado a preservar. 

Portugalidades, juventudes, a mesma “sopa” … porém, vénia feita, um filme bem disposto sobre memórias que deixamos e das memórias que procuramos. 

Secção: Short & Mid-length

 

On Plains of Larger River & Woodlands

UzMBFQBpZmZyLmZpb25hLW9ubGluZS5uZXQ0AGF0dGFjaG1lbn

Português residente na Tasmânia, Miguel de Jesus afasta-se lentamente do bestiário animal de “Ultimate Bliss”, filme-curta epistolar sobre relações humanas onde esse factor encontrava-se visualmente ausente e no seu lugar o Reino Animal detendo as imagens como suas. 

Em “On Plains of Larger River & Woodlands” arrancamos com a rapina e sequencialmente o wallaby albino, mas é na partilha do primeiro que notamos precocemente um fragmento humano, sinal antecedente a essa eventual cedência, atalho para o território doméstico, mais concretamente um quarto, íntimo e convidativo, onde duas amigas partilham as suas experiências e vivências. De Jesus desejou trazer a este filme uma ideia de “exotismo” desconstruído, primeiro porque o discurso entre elas rodeia-se de situações nada vulgares que em outros olhares apelariam à indignação ao choque ou ao embaraço, e segundo, aí novamente, a animalidade que se confunde com essa humanidade, até ela se tornar, imagéticamente, simbiótica. 

Trazendo consigo um intimismo partilhável e com desejo de partilhar, esta curta também partilha (prometo não abusar mais do verbo) o lado epistolar de “Ultimate Bliss”, não exposto no discurso-narrado, mas disfarçado na sua concepção. Segundo o realizador, o filme foi montado à distância, e cuja correspondência fílmica se revela numa alegoria às milhas que geograficamente separam Tasmânia e Portugal, porém, é desta maneira o Cinema a assumir no mais dedicado dos sistemas de correios. 

Secção: Short & Mid-length