A frase que definiu todo o movimento Roman Porno
Lovers Are Wet / Koibito-tachi wa nureta (Tatsumi Kumashiro, 1973)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Lovers Are Wet / Koibito-tachi wa nureta (Tatsumi Kumashiro, 1973)
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Aroused by Gymnopedies (Isao Yukisada, 2016)
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“Lovers Are Wet” / “Os Amantes Molhados” (Tatsumi Kumashiro, 1973)
Mais perverso que nunca, chegamos ao final do ciclo do “Roman Porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), com dois filmes que olham sem medos para a amoralidade e ainda “trocem” a severa censura japonesa. Eles são “Lovers Are Wet”, de Tatsumi Kumashiro, e “Wet Woman in the Wind”, de Akihiko Shiota. Em exibição no Espaço Nimas, em Lisboa, e no Teatro Municipal Campo Alegre, no Porto.
- O VAI-E-VÊM DO SEXO E VIOLÊNCIA DA NIKKATSU -
Perante a tão apertada censura japonesa (o artigo 175 do Código Penal nipónico proíbe, até hoje, a representação explícita de órgãos genitais nas mais diferentes formas artísticas), Tatsumi Kumashiro (um dos realizadores mais característicos do movimento permutado pela Nikkatsu) eleva-se perante um gesto de troça.
Enquanto dois amantes copulam num prado sob as “vestes” de uma chapa negra, deixando em incógnito os seus corpos nus (a invocação injuriada dos agrestes veículos da censura), o protagonista aproxima-se suavemente em modo de furtivo voyeurista, abordando-os sem compaixão por eles. “O que é pior, espreitar ou mostrar?”. Sim, é a provocação, injetada em “Lovers Are Wet” / “Os Amantes Molhados” (1973) , servindo de membrana para todo o movimento permutado pela Nikkatsu – o de levar o sexo ao limite da sua estética possível, ao mesmo tempo aproveitando esses momentos carnais e lascivos como atração para uma audiência “envenenada” pelos conteúdos controlados do boom televisivo.
Por isso mesmo, filmes como estes, embebidos na amoralidade das agressividades sem consequências, são mostras de temáticas, imagens e potências que de forma alguma seriam aprovadas em pequenos ecrãs no conforto do lar. O “roman porno” à luz desta obra de Kumashiro, reporta o cinema em sala não como o “motivador” escape do mundo real mas sim como um espaço de experimentação, de aliciantes desafios libertados (temporariamente) pelo crepúsculo da sala de projeção, inibindo o espectador de qualquer culpa no que está a ser visto e sentido.
Esta é a história de vagabundos que vêm “sabe-se lá donde”, trazendo consigo um rasto de caos, perversões e delinquências tardias, enquanto pedalam nas suas bicicletas “desenrascadas” (o filme abre e fecha sob essas voltas e reviravoltas da viatura em si). “Os Amantes Molhados” riposta num errante que entrega bobines aos variados cinemas, nunca falando do seu passado, e desprezando qualquer indício material e afetivo. Cantarola como quisesse (popularmente falando) os seus “males espantar”, ao mesmo tempo sem perceber que o seu desapego ético o torna num animalesco ser no sabor do “agora”. Sem remorsos e reflexões.
“Os Amantes Molhados” é de um niilismo afetado pela brutalidade do contemporâneo consumista e do Japão na sua constante dúvida existencial.
“Wet Woman in the Wind” / “À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas” (Akihiko Shiota, 2016)
- O DESEJO É DESTRUTIVO, QUANDO QUER E QUANDO PODE -
Tal como o filme que homenageia, “Wet Woman in the Wind” / “À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas” (Akihiko Shiota, 2016) embarca com pedalada na bicicleta de seres errantes. Aqui, a dita vagabundagem tem o adversário à sua altura – o eremitismo.
Porém, os papéis distorcem, a nómada é uma jovem sem paradeiro de um incontrolável desejo lascivo e o eremita é um dramaturgo que se refugia no seio do “selvagem”, sobrevivendo somente com os resquícios da sua anterior “civilização”. Este choque gerará um constante jogo de sexo procrastinado em prol de tensões que enlouquecem e que “colherão tempestades”.
Depois do espírito indomável e livre (fisicamente, psicologicamente ou eticamente) de “Os Amantes Molhados”, somos induzidos a um conto de verão, de suor e mamilos com luzes para os enfoques rohmerianos, dotado de provérbios cinematográficos.
Tudo é caóticamente caricato, absurdista e, ao seu jeito, descomprometido ao lidar com razões ou moralidades de quem quer que seja. É um objeto munido, movido e consequentemente transgredido pelo seu desejo, seja pelo seu representativo clímax, seja pela vontade de filmar corpos insaciáveis. O sexo é aqui energia, improvisada, dramática que funde com a simplicidade e a ingenuidade de um filme que ambiciona ser consumido sem nunca sonhar com a devoção.
Como "double bill", “Os Amantes Molhados” e “À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas” provam-se num dessincronizado, mas confiado tango de prazeres “impuros”.
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“Jimunopedi ni midareru” / “Aroused by Gymnopedies“ (Isao Yukisada, 2016)
Nesta quarta parte do Ciclo “Roman Porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), seguimos por dois filmes que olham de um certo jeito trocista para dentro do seu próprio alinhamento produtivo. Eles são “Black Rose Ascension”, de Tatsumi Kumashiro, o nascimento satírico e transgressivo de uma nova estrela da pornografia (incorporada na atriz Naomi Tani) e o farrapo humano de “Aroused by Gymnopedies”, de Isao Yukisada. Em exibição no Espaço Nimas, em Lisboa.
- O NASCIMENTO ATRIBULADO DE UMA ESTRELA PORNOGRÁFICA -
Não é alienado encontrar no movimento "Roman Porno" um júbilo masturbatório que requer olhar para dentro da sua essência no processo logístico e criativo.
“Êxtase da Rosa Negra” (“Kurobara shôten” , 1975) é uma sátira aos alinhamentos dos filmes porno-românticos. Dirigido por Tatsumi Kumashiro, esta auto-caricatura surge através de Juzo (Shin Kishida), realizador de filmes de teor lascivo algo charlatão, algo fracassado, que procura uma nova diva para as suas metragens depois de a sua atriz-fetiche encontrar-se de “esperanças”.
Durante a sua procura, que colide numa extravagante recolha de sons (o auge ocorre num jardim zoológico enquanto discute sexo com a sua “parceira do crime” sob um olhar atento de uma excursão escolar), encara uma gravação num consultório de dentista como um possível achado. Nela, é possível ouvir os gemidos de dor e contenção de uma mulher, que mais tarde saberemos pertencer a Ikuyo (Naomi Tani), que o nosso realizador perseguirá, assediará e persuadirá a participar no seu filme. O facto de esta mulher ser uma espécie de gueixa “congelada no espaço e tempo” não ajudará em nada na tarefa de conquista.
Construído em tons de comédia absurda, as contrastadas personagens são como hélices numa sátira que segue de cabeça para o retrato de um Japão dividido entre as suas entranhadas amarras tradicionais, sensualizadas, mas discretas, e a vanguarda libertina com um sedutor desejo de exposição. É um braço de ferro entre dois espectros de um só país, decorridos no auge do "boom" económico daquela época.
“Êxtase da Rosa Negra” é de um absurdismo calculado, arrojado, que adquire a sua força na igualmente caricatural montagem, quer visual e sonora, partituras que desfilam numa cadência de “desvirginação” ao som da marcha nupcial.
“Kurobara shôten” (Tatsumi Kumashiro, 1975)
- O COITO AO SOM DE MEMÓRIAS PASSADAS -
Se a obra de Tatsumi Kumashiro assenta num dispositivo satírico para expor pornograficamente uma essência algo autorreferencial, já “Gymnopédies Escaldantes” (“Jimunopedi ni midareru” / “Aroused by Gymnopedies“, 2016), de Isao Yukisada, vira-se para a trágica mágoa de um realizador marginalizado, Shinjin (Itsuji Itao), que vê o seu filme interrompido por falta de financiamento.
O percurso deste ser soturno é outro: um luto insaciável que se “alimenta” dos corpos femininos parecem ser a sua fonte de vivência e razão pela deambulação noturna entre espaços conhecidos e desconhecidos. Mulheres são várias nesta jornada algo vampiresca, cada uma delas servindo de atalho para um outro corpo ambicionado, o da esposa de Shinjin, uma pianista, cuja melodia doce da "Gymnopédie No. 1", do compositor e pianista francês Erik Satie, é invocada sobre os atos lascivos como um ritual religioso.
Talvez “Gymnopédies Escaldantes” seja um dos filmes mais sentidos e menos reflexivos do movimento que homenageia, e igualmente um dos mais desengonçados do leque de tributos ao “roman porno”.
O tom depressivo e autodestrutivo entra em gradual embate com um jeito trocista e de hilariante enxovalhamento da personagem de Itsuji Itao. É como se nos deparássemos com o culto de um artista frustrado, presunçoso e negacionista quanto aos seus verdadeiros propósitos existenciais. A pomposa aura intelectual que deseja vestir é, por exemplo, “desmascarada” durante um "Q&A" de um dos seus filmes, ou pelas peripécias com que se aventura para saciar as suas diferentes sedes.
Este é um filme cruel para com o seu protagonista, convertendo-o numa comédia em forma humana, acorrentado a uma cinza de nojo com adiadas urgências por cumprir. A esperada (mas não desejada, nem mesmo pelo espectador) libertação acontecerá em forma de “punchline” de uma longuíssima piada mortal. É a última tirada, demonstrando que as memórias não se duplicam nem a elas se regressam imaculadamente. Isso, em conformidade com a essência de tributo de “Gymnipédie Escaldantes”, é uma mórbida autocrítica.
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Aroused by Gymnopedies (Isao Yukisada, 2016)
Garden State (Zach Braff, 2004)
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Anti-Porno / Anchiporuno (Sion Sono, 2016)
Com toda a dedicação, prosseguimos para terceira parte do ciclo “roman porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), a estratégia de produção dos estúdios Nikkatsu nos anos 70 para conseguirem superar a decadência da indústria da altura, no Espaço Nimas. Chega-nos a vez do quarto filme da série Angel Guts: Red Porno (Tenshi no Harawata: Akai Inga, 1981), de Toshiharu Ikeda, e o não consensual, Anti-Porno (Anchiporuno, 2016), de Sion Sono.
- DE "TRIPAS-CORAÇÃO” COM O DESEJO NÃO-RETRIBUÍDO -
A adaptação de uma série manga de Takashi Ishii de caráter erótico/pornográfico algo repreensivo e perverso que explora os limites da violência sexual (mais exatamente a violação) e o "exploitation artístico" encontrou lugar na tela sob a coordenação do realizador Chūsei Sone pela Nikkatsu. Tornou-se num dos mais rentáveis da galeria “Roman Porno”, ainda que roçasse no limite deste movimento artístico e no dos chamados “pink films” dos estúdios rivais (as produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo, normalmente de consumo inferior).
Este “Red Porno” (“Tenshi no Harawata: Akai Inga” / “Angel Guts: Red Porno”) assume-se como o quarto desta série cinematográfica, após estas fantasias terem passado para a mão de Noboru Tanaka (o mesmo de “Noites Felinas de Shinjuku” (“Mesunekotachi no yoru”), em 1979. Toshiharu Ikeda (1951 – 2010) foi o realizador escolhido para levar a cabo este capítulo que nos remete para uma jovem vendedora de centro comercial, Nami (Jun Izumi), que após ter aceitado ser capa de uma revista de cariz lascivo, vê-se perseguida por um fã obsessivo.
Sob a luz das lentes das consciências atuais, indiscutivelmente que a série "Roman Porno" é difícil de digerir e este filme não foge a regra: “Red Porno” debate-se constantemente no limiar da violência e do sexo, da criminalidade e da sensualidade, na passividade e na profunda e realizada perversão. É sobretudo um filme de agressivos pulsares de desejo, mas filmados como a tenra fantasia (quente, húmida, lubrificada e imunda).
Seja como for, “Red Porno” não nos atinge somente pelas imagens, equilibrando entre o sugestivo e a carnalidade possível (tentando sempre contornar os censores apertados, e dessa forma “trocista” para com um ainda proibido “In the Realm of the Senses" / “Ai no korîda”, que Nagisa Oshima fez em 1976, homenageando-o numa das cenas), mas como também pela sua apetência sonora. Através dos escorridos sons, do estalar suave e ecoante dos dedos e dos objetos penetrados, grande parte deles deixados à nossa fértil imaginação.
Os sentidos fazem parte desta viagem ao nosso íntimo mais depravado, por entre perseguidores passivos que projetam violações imaginárias ou as "ingênuas donzelas” (os “anjos” do título que remexem neste conceito de purezas, aparentemente, impenetráveis), a sonoridade complementa a ala criminosa.
“Vísceras de Anjo: Red Porno” funciona como uma obra a caminho do limite deste território “roman porno”, espelhando em nós a determinação do voyeurismo e os fetiches levados da breca por aí suscitados. Talvez Ikeda tenta com a popular e tabu manga identificar o desejo feminino, nas suas fronteiras mais libertinas e inquestionavelmente submissas. E curiosamente, nisso também um diálogo convergente e semi-antípoda para com Michelangelo Antonioni e o seu (com uma diferença de um ano) “Identificazione di una donna” / “Identification of a Woman” (1982).
Angel Guts: Red Porno / Tenshi no Harawata: Akai Inga (Toshiharu Ikeda, 1981)
- A PORNOGRAFIA ROMÂNTICA ESTÁ ULTRAPASSADA -
Assinado pelo muito popular e transgressivo cineasta nipónico Sion Sono (“Suicide Club”, “TAG”), “Antiporno” faz parte da série de homenagem ao legado da Nikkatsu e é o menos consensual desse grupo. Também o mais reflexivo para com o movimento o qual enverga: mais do que um mero exercício meta, embute em certas veias "brechtianas" [relativo ao dramaturgo e poeta Bertolt Brecht], no querer revelar e assumir-se automaticamente como uma farsa narrada perante o espectador.
Aqui, Kyôko (a tão adequada “over-the-top” Ami Tomite, uma das atrizes fetiches de Sion Sono) é uma jovem de alma artística e de um ego fraturado, mas igualmente assombroso, que procura intensamente, durante uma caótica entrevista, desvendar o elo do seu foro criativo e simultaneamente da sua sexualidade, uma ação que acaba por se revelar na rodagem de um filme ao estilo “roman porno”. Após esta passagem de realidade, os papéis invertem-se: Kyoko não é mais do que uma jovem inexperiente, uma aspirante a atriz, engolida por outros em consequência da sua presença esmorecida. Aqui, ela é uma jovem que se confronta com a ideia de sexo na sociedade que íntegra, que ora é, segundo os sermões do pai, uma obscenidade ou é um gesto natural a merecer ser reivindicado em todas as frentes.
“Quero tornar este corpo em algo obsceno!”, suplica a certa altura Kyôko perante o realizador e equipa de "casting" do filme que irá integrar, demonstrando qual a sua básica e aparente noção de emancipação: revelar-se como objeto sexualizado perante ao mundo! Em “Antiporno”, nota-se que existe uma exaustiva invocação e tratamento “male gaze” (palavra hoje em voga que se resume à sexualidade sob o prisma do desejo masculino) que, simultaneamente, é satirizado e caricaturado ao serviço de um instabilizado malabarismo de realidades e com isso, percepções (as personagens não escondem o facto de que são observadas por nós, espectadores). Trata-se de uma crítica biforme e irreverentemente ingrata para com o rótulo de "homenagem" ao "Roman Porno", uma dissecação e revisionismo de todo um ciclo, expondo as suas fragilidades enquanto cinema na vanguarda, à boleia da nossa modernidade.
O artifício dimensional perpetuado por “Antiporno” (simbolizado, que no seu todo, por um lagarto preso na garrafa, o fatal conformismo pela sua realidade) anula qualquer perversão obtida do exercício sexual, revelando-se um trabalho-tese que finaliza todo um gesto produtivo. Depois deste filme, acreditamos que as vontades (se existissem) de ressuscitar o “roman porno” nos nossos dias não serão mais do que meros devaneios oriundos de homens saudosistas, presos a um passado cada vez mais longínquo.
Com o cineasta Sion Sono, o sexo muda de holofote, altera a sua exposição, o seu consumismo e sobretudo o seu olhar e os olhos pelo qual se direciona. O que sobra é a cultura do seguidismo, da veneração dos corpos e a constante batalha campal em salvaguardar o sexo como a divina arte.
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A Noite das Felinas em Shinjuku / Mesunekotachi no yoru (Noboru Tanaka, 1972)
Continuando na nossa viagem pelos sentidos com o “roman porno” (literalmente traduzido, ciclo da “pornografia romântica”, vindo da designação atribuída por crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger), a estratégia de produção dos estúdios Nikkatsu nos anos 70 para conseguirem superar a decadência da indústria da altura, no Espaço Nimas. Nesta segunda parte do ciclo, chegamos às “mulheres-gatos” com “Night of the Felines” (“Mesunekotachi no yoru”, 1972), de Noboru Tanaka, e a modernizada versão, “Dawn of the Felines” (“Mesunekotachi”, 2017) de Kazuya Shiraishi.
- "NOITES FELINAS EM SHINJUKU": SEXO E BANHO A PEDIDO DO FREGUÊS -
As noites escaldantes ocultadas pela ferocidade do quotidiano dos hedonistas, empresários e yakuzas disfarçados povoam a segunda longa-metragem de Noboru Tanaka (1937-2006), realizador que se estreou sob o selo da Nikkatsu com “Kaben no shizuku” em 1972 e por lá andou até se converter num dos importantes nomes do movimento do "Roman Porno". Com as “Noites Felinas em Shinjuku” (Mesunekotachi no Yoru, 1972), a inspiração é um dos clássicos do cinema nipónico, “A Rua da Vergonha” / “Street of Shame” (Kenji Mizoguchi, 1956), onde nos era dado um retrato de época da mais antiga profissão do Mundo.
Atualizado e contextualizado no espírito algo libertino dos anos 70, Tanaka reproduz a cumplicidade de prostitutas que se dignam a exercitar a profissão sob o disfarce de “banhos turcos” (de forma a contornar a lei anti-prostituição), negócio movimentado no bairro Shinjuku por todo o tipo de homens, muitos deles ansiosos por escapar das rotinas carrasqueiras dos matrimónios e dos seus percursos profissionais. Por aqui encontramos Masako (Tomoko Katsura), que vive uma relação ainda por identificar com o seu vizinho fura-vidas Honda (Ken Yoshizawa), sendo que este lhe propõe que tenha sexo com o seu amigo Makoto, um jovem gigolo que nunca tivera relação alguma com mulher que se veja.
Nasce aqui uma espécie de triângulo amoroso, sem as ditas arestas reconhecíveis, que irá culminar numa viragem sexual ao som de cantos gregorianos a explorar territórios não-binários da sexualidade de cada um. Digamos que se descobre que as mulheres têm algo de gato dentro delas, independentes, matreiras e nunca devidamente domesticadas, enquanto os homens, meramente ridículos do debaixo das suas propositadas capas de masculinidade (ou como, no caso de Makoto, sensibilidade à flor-da-pele), abrem portas para um universo, ainda que secreto, da homossexualidade da altura em Tóquio.
Este é um daqueles filmes em que o “roman porno” se joga a favor de um retrato social (notamos como o Japão está cada vez mais ocidentalizado), cuidado sem nunca dissipar a sua vertente lasciva de entretenimento para as massas. Mas também é um objeto profundamente cinematográfico que prevalece numa comunhão de referência e ideias abstratas tanto de fora quanto de dentro do país.
Da mesma maneira que se cita o americano “Rear Window” (Alfred Hitchcock, 1954), com um sabor de procrastinação artística e intelectual por parte de um assumido voyeurismo do fura-vidas Honda, também integra uma crítica à contemporânea cultura japonesa dos "pink films" (produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo, normalmente de consumo interior), que aparecem aqui como uma tentativa falhada de excitar Makoto, enquanto Masako reativa os seus sentidos num forçado e perpétuo ato de masturbação (tudo isto sob a musicalidade deliciosamente dessincronizada de Kôichi Sakata).
O Alvorecer das Felinas / Mesunekotachi (Kazuya Shiraishi, 2017)
- "O ALVORECER DAS FELINAS": GATAS DE MADRUGADA EM TELHADO DE ZINCO QUENTE -
Na homenagem dos 45 anos do “roman porno”, Kazuya Shiraishi transcreve as experiências felinas de Noboru Tanaka com um tributo modernizado e vincado num realismo encenado (a câmara é o mais nervoso dos voyeuristas ou "stalkers"). Aqui o bairro é outro: saímos de Shinjuku e entramos em Ikebukuro, também em Tóquio, acompanhando de “mão dada” três “raparigas de programa”, cada uma delas com os seus dilemas pessoais que diluem com a sua profissão de encomenda. Ao contrário do original de 1972, a narrativa procura uma igualdade no tratamento do trio em vez de afunilar numa só protagonista, mesmo que seja uma demanda parcial.
Acima de um filme que atribui positivismo ou negativismo à prostituição, é uma janela entreaberta para um submundo de prazeres, alguns deles alicerçados aos ensinamentos do Marquês de Sade, que desejam encontrar a legitimidade na sensibilidade dos seus praticantes em vez de estagnarem como pecaminoso desejo a merecer nada mais que a obscuridade. A par do “Noites Felinas em Shinjuku”, este “O Alvorecer das Felinas” (“Mesunekotachi”) é uma obra de múltiplas saídas, descrições e encruzilhadas.
Se falamos anteriormente do sadomasoquismo como espetáculo de cabaret, há aqui outras visões que de certa forma dialogam com o Japão que ultrapassou o período exposto por Tanaka, mas que ainda vive na sua sombra de globalização resistente. Por isso, é impossível não mencionar o regresso do ator Ken Yoshizawa, o Honda oriundo de Shinjuku, que em Ikebukuro é somente um viúvo que se deseja ligar com a falecida mulher através da sua prostituta (Michié, vista em “Silence”, de Martin Scorsese, e no censurado episódio de "Masters of Horrors" assinado por Takashi Miike).
Fora do objeto de estudo de “O Alvorecer das Felinas” (o sexo e a sua relevância no aceleramento social), Kazuya Shiraishi compõe uma obra que, como tantas outras que parecem surgir como “cogumelos” na atual indústria cinematográfica nipónica, esboçam uma metrópole acorrentada à sua permanente solidão e isolamento. Ou seja, antes dos confinamentos impostos pela crise pandémica da COVID-19, os japoneses já enfrentavam a distância com a mais requisitada das normalidades.
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Lady Karuizawa / A Senhora Karuizawa (Masaru Konuma, 1982)
Em alturas de desconfinamento, a grande questão lançada no mercado de audiovisual é como voltar a incentivar os espectadores a frequentar as salas? Como estratégia, há quem reveja a História para extrair lições de como demarcar as salas das propostas do confinamento, sejam elas serviços televisivos, streaming ou tudo o que esteja ao alcance de um dedo. Foi o que fez a Leopardo Filmes / Medeia Filmes, gerida pelo produtor Paulo Branco, e a solução a que se chegou chama-se "roman porno".
O termo nasceu do crítico e programador da Cinemateca Francesa Jean-François Rauger, referindo a um nova abordagem produtiva dos estúdios Nikkatsu, um dos mais antigos do Japão (produziu filmes de todo o género desde 1912), virada para o “porno romântico”. Com a queda abrupta da afluência de público às salas, no início da década de 1970, que levou a uma decadência na indústria nipónica frente à cada vez mais abrangente televisão, o estúdio, que também enfrentava uma iminente falência, radicalizou-se e criou um novo esquema produtivo, que passava por invocar sexo “semiexplícito” em filmes de baixo-orçamento e de duração que não ultrapassasse a hora e meia (para que fosse exibido em "sessões duplas").
Na altura, o Japão estava dominado por uma forte censura, o que condicionava a própria ideia de sexo no grande ecrã, sendo explicitamente proibida a exibição de qualquer órgão genital. Isto levou os realizadores a exercitar a sua engenhosidade criativa para não acanhar as imagens lascivas. Durante este período, vários nomes surgiam nestas “páginas” de erotismo transgressivo, passando por Masaru Konuma, Noburu Tanaka, Toshiharu Ikeda ou Tatsumi Kumashiro. Respondendo aos pedidos da produtora, eles preenchiam estes ensaios com evidentes referências e presunções cinematográficas, ao mesmo tempo em que focavam diversos temas tabus ou de cariz político-social.
Não fiquemos no equívoco de encarar estas obras como somente pornografia: o “roman porno” alcançou mundialmente uma conotação artística que os separava dos contemporâneos “pink films” (as produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo oriundas de pequenos estúdios independentes, normalmente de consumo interior), resgatando uma produtora veterana na “cruel” mudança dos tempos. O impacto foi tal que, em 2016, para celebrar o 45º aniversário do “porno romântico” dos estúdios Nikkatsu, cinco realizadores modernos foram desafiados a replicar os moldes aplicados nesses tempos áureos, e o resultado foram obras marcadas por diferentes abordagens e transposições do estilo até então estabelecido.
Voltando agora aos estratagemas de apelo ao público “confinado”, a proposta da Leopardo Filmes / Medeia Filmes é a de seduzir com as mesmas armas dos estúdios Nikkatsu, apresentando um ciclo especial no Cinema Nimas, em Lisboa, sobre este género salvador-da-pátria e obcecado pelas tentações do corpo. Serão no total dez obras (cinco clássicos e cinco modernos). A primeira sessão será composta por "A Senhora Karuizawa" (“Lady Karuizawa”) e "O Lírio Branco" (“White Lily“).
Na rodagem de "Lady Karuizawa" / "A Senhora Karuizawa" (Masaru Konuma, 1982)
- O VERÃO CHEGA-NOS QUENTE E HÚMIDO -
Já no arrefecimento da carnalidade do “roman porno”, nos primeiros anos da década de 1980, surgiu-o "A Senhora Karuizawa" (“Karuizawa fujin”, 1982), que adapta livremente o romance de Stendhal “O Vermelho e o Negro", contextualizando com as desigualdades sociais nas terras do Sol Nascente.
Este romance erotizado centra-se na chegada de um jovem estudante pobre, Junichi (Takayuki Godai), à região de Karuizawa, local escolhido pelos afortunados como estância de férias, para trabalhar num serviço de "catering" de um restaurante da área. Após um acidente na mansão de uma das importantes famílias de Karuizawa, Junichi é despedido, mas acaba contratado por Keiko (Miwa Takada), a matriarca da tal família, como tutor do filho de cinco anos. Durante o serviço, ambos aproximam-se, afetiva e carnalmente, consumindo o desejo nesses tempos quentes quase animalescos.
Dirigido por Masaru Konuma, este é, notavelmente, um filme sobre o desejo impregnado como força animal. Diga-se que a própria construção visual é deveras alusiva a essa bestialidade interiorizada, sendo que a fauna e flora assume um papel fundamental nos registos de passagem e transformação das personagens, assim como as suas mais profundas fantasias. Veja-se por exemplo o canto dos animais noturnos como “vozes de aprovação” ao magnetismo sexual do par, com Keiko tentando resistir à mais perdida tentação (“Não me obrigue a despi-lo”). Esse apetite sexualizado é também rompido pelo onirismo de uma dendrofilia confessada pela protagonista aos espectadores, estendendo a ideia de um perverso apetite não apenas facultado pelo corpo de Junichi, mas de todo este lugar Karuizawa sob o sol escaldante e o cantar das cigarras em pleno verão (“Os invernos são rigorosos em Karuizawa, mas... o verão sempre volta!”).
O trabalho de Masaru Konuma persegue o calor dessa mulher à espera de ser libertada das amarras matrimoniais, tentando escapar do sexo bruto quase violatório por parte do autoritário marido para correr para os braços do jovem amante, onde o contato entre corpos é um ópio incorporado.
A grande infelicidade de "A Senhora Karuizawa" está na (não) coesão do argumento, que não passa aqui de um dispositivo para embarcar nesta jornada sexual e do retrato algo sádico da diferença entre classes, da subjugação dos mais baixos sob os aristocratas e da emancipação da mulher para fora do mero símbolo de estatuto social.
White Lily / O Lírio Branco (Hideo Nakata, 2016)
- O PERPÉTUO DESEJO DO PODER -
Hideo Nakata foi um dos grandes impulsores do chamado "j-horror", um esquema de filmes de terror que conquistaram o Ocidente (tendo sido brindados com a variedade de "remakes", "reboots "e refilmagens em Hollywood). Da sua filmografia contam-se obras como “Ringu” (que originou o sucesso “The Ring – O Aviso” nos EUA) e “Águas Passadas”, mas antes dessas aventuras por espectros e maldições correntes, Nakata foi assistente de realização de Masaru Konuma, o que lhe garantiu legitimidade para invocar os seus gestos de sugestão e fabulação sexual durante a homenagem dos 45 anos.
“O Lírio Branco” (“Howaito rirî”, 2016) é uma fantasia lésbica vigorosa no elo entre mestre e pupilo, neste caso de uma artesã e professora de olearia com a sua subserviente aluna/amante precária. Uma relação equilibrada entre o desejo e a necessidade que será abalada com a vinda de um terceiro elemento e um triângulo amoroso que se acerca e se estatela em territórios psicológicos e obsessivos.
Hideo Nakata comete a vénia da suscitação através de um embelezamento apropriado nas sequências sexuais entre as duas mulheres, tentando equiparar com isto o espírito proposto do legado “roman porno” dos estúdios Nikkatsu. As brancas flores dos lírios adquirem aqui um segundo sentido, um atalho visual que faz contornar o puro explícito, enquanto o barro moldado e os constantes focos nos dedos em plena operação atribuem um senso erotizado e afrodisíaco que inspira não só o ato sexualizado em si, mas também a moldagem desta relação perante a sua “oleira”.
Nakata consegue um trabalho saudosista e referencial, mas infelizmente cai como prosa numa teoria metaforizada, e como tal, em modo castração, impedindo-o de transgredir para territórios próprios e ainda mais perversos. Em comparação com “A Senhora Karuizawa”, onde o sexo é quase uma imposição mística e quente como o verão que cita constantemente, em “Os Lírios Brancos” o contacto entre corpos é agressivo, animalesco e em recorrente conflito para estabelecer um domínio.
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