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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Ai ... a política dos autores! A política dos autores!

Hugo Gomes, 03.09.23

Silvana Pampanini, unknown and director Abel Gance

Abel Gance e a atriz Silvana Pampanini em "La Tour de Nesles" (1955)

Sim, mas a política dos autores tornou-se muito depressa uma figura para a frente, porque era o mesmo que dizer: efectivamente são todos muitos diferentes, mas têm algo em comum que é o facto de serem “autores”. Mas bom, a partir desse momento, num instante, toda a gente se tornou um autor! É verdade quando são Rossellini e Hitchcock, continua a ser verdade quando se trata de Ford e de Renoir, ainda é verdade quando é Hawks, e continua a sê-lo, claro, quando se trata de Lubitsch ou de Dreyer, mas continua a ser verdade quando se trata de Minnelli, ou por mais fortes razões quando se trata de Richard Fleischer? E depois chegamos à Positif, que se põe a falar de Sydney Pollack e de não sei mais quem, ou tanto faz, porque quando se diz Pollack não se está longe de dizer “tanto faz”!

Portanto a política dos autores é uma resposta má, e sobretudo não explica porque é que, nos “grandes” autores, como de resto nos grandes romancistas, nos grandes pintores ou nos grandes músicos, tudo é interessante, porque os seus falhanços merecem ser considerados com mais atenção do que um sucesso de um fazedor; de resto, no príncipio, era isto que a política dos autores queria dizer. Uma encomenda executada por Abel Gance é mais interessante (porque, se bem me lembro, a primeira vez que François [Truffaut] lançou esta expressão nos Cahiers, foi a propósito de um filme de Gance, “La Tour de Nesle”, que era uma pura encomenda, da qual Gance falava com grande modéstia) … portanto, porque é que “La Tour de Nesle” por Gance pode ser tomada em infinitamente mais alta consideração do que a obra-prima de Delannoy? Eis a primeira questão.

E esta, é um assunto arrumado; mas o que não foi resolvido, o que continua em suspenso, é: o que é que faz com que possamos admirar no mesmo plano - por causa da sua coerência, por causa, digamos, da sua lógica, mas isto não é suficiente - cineastas tão diferentes, e usemos os mesmos exemplos, como Rossellini e Hitchcock.

  • Jacques Rivette em conversa com Hélène Frappat em “Jacques Rivette: O Segredo por Trás do Segredo” (edições Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema) 

«Alemanha, Ano Zero»: perdoar e castigar em Berlim

Hugo Gomes, 26.03.15

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As ruínas prevalecem como feridas abertas de uma cidade megalómana e orgulhosa que conheceu a derrota da pior maneira possível. A capital alemã, Berlim, presencia o seu ano zero, o seu recomeço, uma ressurreição quase bíblica e nada glorificante, cujo intervalo não decorreu em três dias mas sim em três anos. Porém, este regressar é doloroso, no qual uma outrora triunfante nação que vivia “o seu ignorante sonho” é forçado a resistir à perpétua humilhação, de joelhos perante os seus declarados “inimigos”.

Esta cidade fantasma, onde os seus habitantes comportam-se como peregrinos, vagueando em direções incógnitas, eis que surge o novo encontro de Roberto Rossellini com a realidade filmada, o seu neorrealismo, um estilo resistente às fantasias cinematográficas e à ficção moralista de Hollywood. Um cinema despido de qualquer aura literária ou onírica e da inesperada arte da impressão. Em “Alemanha, Ano Zero” (“Germania anno zero”, 1948), o seu veio artístico é puramente outro, o puro real digno de um documentário etnográfico, com o cenário a assombrar cada plano e personificando-se na pele de um menino, um “inocente” numa consequência devastadora.

Edmund Moeschke não deseja somente sobreviver, mas sim o de não desapontar a sua respetiva família de tornar, esforçando-se a transformar, este pesadelo no menos insuportável possível. O trabalho árduo que tenta submeter-se ilegalmente, o ilícito do seus atos para “matar a fome” dos seus e por fim a sua descabida noção de realidade que o faz cometer um hediondo e mortal gesto. Edmund é Berlim, e Berlim é Edmund, uma dualidade que une personagem e cenário, com Rossellini a operar umbilicalmente numa transfiguração gradual, um percurso prescrito de uma cidade reduzida a ruínas e de uma criança ainda por transcrever.

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Alemanha, Ano Zero” é também uma afronta ao high moral ground levado a cabo pelo cinema aliado, é a confrontação de um teor cinzento com a camada “sonhadora” proveniente de Hollywood, é a limpeza dos maniqueísmos evidentes mesmo que a moralidade esteja presente no trágico desfecho desta obra. Mas Roberto Rossellini não converte a sua obra num retrato da tremenda luta de um povo pela sobrevivência, é sim, o confronto desse mesmo com o seu orgulho nacionalista. Tal como evidenciara-se na metáfora cinematográfica em “Der letzte Mann” (“O Últimos dos Homens”, 1924), de F.W. Murnau, a Alemanha segue a sua dignidade como uma farda limpa e engomada, a última “telha” a cair de um teto descoberto. Todo este retrato que deixa o espectador vaguear livremente, mais livre que as suas próprias personagens na sua cidade natal, não serve de catarse para um passado a ser recordado vezes sem conta, ao invés disso é um espelho que reflete a imagem distorcida do nosso “eu” julgador.

A Alemanha perdeu a Guerra, os seus “filhos” pedantes numa moribunda distinção o qual chamam de futuro e a tomada de posse, imperativa numa cidade feita refém, condenada aos “cegos” pecados que afligiram. Assim, voltando a reafirmar, Edmund é Berlim, o mais preocupado com o seu bem estar face à negligência cometida por outros, e o destino que colide com o silencioso pedido de ajuda duma outrora imponente metrópole confinada ao seu … ano zero!