O Trabalho do Diabo no fascínio e na farsa
The Devil's Reject (Rob Zombie, 2005)
Once Upon Time in Hollywood (Quentin Tarantino, 2019)
Incorretamente associado a Charles Manson, a quote “I’m the devil, I’m here to do the devil’s business” foi, desde os tempos do monstruoso homicídio a Sharon Tate, convertido uma das proféticas citações de um certo cinema de género incutido numa determinada cultura popular. Sabemos, sim, que é na sombra de Manson encontramos a influência que redefiniu a metade de um século, que nos fez salivar pela violência descara como atentados aos então estabelecidas condutas moralistas da sociedade corrente. E devido a isso, o fascínio pela sua “ideologia” motivou todo uma vaga de filmes exploitation, sangrentos e distorcidos nos anteriores e estudados códigos de heróis e vilões.
A violência extrema tornou-se o ato corajoso contra uma sociedade “certinha” e aprisionada na sua hipocrisia, pelo menos, é nesse contexto que, por exemplo, Rob Zombie intromete nas suas personagens. Como é o caso do seu Devil’s Rejects (2005), o seu filme mais duro e definidor da sua aura artística, que funciona como uma homenagem ao gangue Manson e as suas novas interpretações familiares. Aqui, as palavras sagradas adquirem exatamente isso, a prece definitiva de um Deus menor, mas pertencente do Mundo Moderno, o palavreado antes de um imperativo fim.
Por sua vez, Quentin Tarantino e o seu Once Upon Time in Hollywood cometem a blasfémia de despir tal citação (ou meia citação) da sua promoção de destino inadiável, aquela ultima sentença. Nesse aspeto, quando o “servente” de Charles Manson (Charles “Tex” Watson) profere a tão abalada tagline, o desenrolar é adulterado, dando, previsivelmente, ala a um descortinar de violência gráfica (e convém afirmar, satisfatória), mas desencadeada do lado oposto. São os hippies que sofrem nas mãos dos “artistas” que representam a ilusão do capitalismo (Hollywood) e não o oposto, marcado a tinta permanente da nossa História. Com esse feito, Tarantino desmonta o misticismo por detrás de Charles Manson e o ridiculariza, não o diretamente, mas através dos seus seguidores, o Grande Outro segundo o filósofo Slavoj Žižek. Essa é sátira perfeita de uma instituição convertida ao sagrado através da fome insaciável dos medias.
E Tarantino é perito nisso, desde a adulteração da queda do nazismo e o seu líder máximo - Adolf Hitler - “metralhado” em Inglourious Basterds (2009), até à troça ao Klux Klux Klan, tendo como alvo certeiro a “relevância fílmica” de The Birth of a Nation (D.W. Griffit, 1915), em Django Unchained (2012).
Mas antes de Once Upon Time in Hollywood, o realizador já havia brincado a esse ritual de matança, através da passagem bíblica transmitida pelo nosso eterno Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) em Pulp Fiction (1994). Ou seja, já era evidente a sua sede de atingir a cerne do mal que certamente encantou o audiovisual e nunca mais o largou. Foi preciso esperar 25 anos para que Tarantino vingasse verdadeiramente.