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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Margarida Gil: "sempre fugi do real, porque para mim o real não é suficiente."

Hugo Gomes, 03.10.24

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Mãos no Fogo (2024)

Chega às salas portuguesas “Mãos no Fogo”, a mais recente e premiada obra de Margarida Gil, cineasta que tem habitado produções austeras nos últimos tempos. No entanto, talvez habituada a este ambiente ou sentindo-se confortável com a intimidade que ele proporciona, afirma não se importar. Afinal, o "cinema pobre", como a própria define, é a sua arte.

Neste trabalho, vencedor do Prémio de Melhor Longa-Metragem na 21ª edição do IndieLisboa, Gil mergulha no lado sombrio e contido do mal presente no clássico de Henry James — “The Turn of the Screw —, readaptando-o à sua realidade. Uma palavra curiosa, "realidade", visto que, nesta versão, seguimos uma estudante de cinema com o sugestivo nome Maria do Mar (Carolina Campanela), que se instala num casarão algures no Douro, com a ambição de consolidar a sua tese sobre o "real no cinema". À medida que os dias passam, a presença fantasmagórica da casa leva-a a questionar a sua própria realidade e a dos seus atos. Será que a queda de Maria do Mar representa, simbolicamente, um gesto de Gil contra um determinado tipo de cinema?

Foi numa solarenga e escaldante tarde de Setembro, na esplanada da Cinemateca, que a realizadora falou com Cinematograficamente Falando … sobre ideias, oposições e o cinema em que acredita — mesmo que, para isso, tenha de meter as suas mãos nas brasas.

Gostaria de começar com a génese deste projeto, de onde veio a ideia para readaptar … talvez não seja a palavra indicada, ou melhor … trabalhar o livro de Henry James?

Se me perguntares de onde vem, nem sei dizer, porque acho que ninguém é capaz de responder a essa pergunta. Pelo menos, não sou capaz de a responder. Às vezes vem de sonhos, ou de uma visão que se tem. Neste caso, de um livro que me marcou. Depois, nunca foi tanto o livro em si, mas algo que ele me transmitiu. Aquela violência, aquele mal que nunca é por acaso. Interesso-me muito por questões sobre a maldade. Sobre o porquê de se fazer o Mal. Porquê se maltrata? Porquê essa relação maléfica com a vida e com os seres humanos? No fundo é a história da vida. Essa questão, que também é a história do Poder, em que as criaturas exercem o Poder, e normalmente o mal está associado a isso. São questões que me envolvem sempre no cinema. Neste caso, a questão das crianças que são, ou não, cúmplices naquela situação toda, o qual considero o auge da maldade: essa fusão de criaturas indefesas com o Mal. Parece-me a expressão mais maléfica do Mal. E isso deixou-me com uma sensação de indignação insuportável.

Provocou-me uma reação, porque é sempre uma irritação. Não há uma única vez que leia o livro sem ficar profundamente irritada. Aliás, o Henry James, escritor que considero superlativo, tem o condão de me irritar imenso. Já a Agustina Bessa-Luís também me afeta profundamente. São escritores que me deixam possessa, por um lado, pela sua grande imperfeição – que, aliás, adoro –, por deixar tudo em aberto. Essa é a perfeição deles. Será voluntária ou não? As coisas são enunciadas, subentendidas... Há uma necessidade imensa nisso. Estou a referir-me aos dois, mas não sei se o que digo faz muito sentido... É qualquer coisa assim. Mas agora que falo nisto …

Curiosamente ia falar sobre a “presença”  de Agustina Bessa-Luís no seu filme, acho curioso ter a mencionado.

Está no ar, parece que é natural. E essa coisa, do “parece que é natural”, irrita-me muito.

Sim, pegando, por exemplo na “Sibila” da Bessa-Luís, há toda a normalização da má-índole nas personagens …

Como me irrita, é verdade. O Henry James deixa-me sempre perplexa, porque acho que ele é genial. A forma como conta, como esconde... aquela habilidade de ocultar o mal. Ele é o escritor que, por acaso, mais tarde descobri que tinha algo de muito Shakespeareano, muito Hitchcockiano. E, um dia destes, ouvi o Hitchcock dizer que o escritor que ele achava que melhor compreendia o seu cinema era de facto o Henry James. E esse lado perverso que o escritor tem, não há dúvida. A Agustina também o possui, sem dúvida. E o Hitchcock, obviamente. Mas, curiosamente, acho que não tenho esse lado. Contudo, fico fascinada por isso.

Provavelmente, há muitas explicações, mas sinto que acabo por derivar para um lado mais solar, mais "Renoiriano", se calhar. Enfim, quem me dera... Já sou eu a “armar-me aos cucos”.

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Margarida Gil no Festival de Berlim

Sobre essa questão da perversidade, há um ponto interessante, especialmente porque a protagonista é vegetariana, e o primeiro contacto que ela tem com a casa é através da cozinha, onde encontra a cozinheira, Adelaide Teixeira, prestes a preparar um peru. Ou seja, logo ali temos uma relação mefistofélica. Depois, é através do cinema, das filmagens, que ela vai desvendando a diversidade e as complexidades daquela família. Portanto, a perversidade, apesar de você dizer que não a tem, está sempre lá presente.

O assunto interessa-me muito, mesmo que não tenha necessariamente essa perversidade em mim. No entanto, quase todos os meus filmes possuem esse lado, ou pelo menos algo próximo disso. É um tema que me fascina. A rapariga, com a sua candura quase tocante, tem uma visão tão particular do mundo que acredita que o que filma é a realidade, e que o real é aquilo que os seus olhos captam e que é possível filmar. O que ela vê é o que existe, tal como muita gente me diz. Há muitas pessoas que vivem convencidas de que aquilo que veem com os seus próprios olhos é a vida, como se a perceção visual fosse a única verdade.

Que a verdade é só isto que nós vemos, e não há nada mais …

É mais daquilo que nós não vemos. Acho que essa candura da personagem foi a minha pequena traquinice. É como puxar o “tapete”, porque o que está lá debaixo, é o que ela não vê. Mas o percurso que faz, como num "road movie" dentro da casa, acaba por embater com a vida, tal como acontece na realidade. As crianças, que podem ser bastante malvadas, são também quem mais acredita em tudo. Para uma criança, tudo é possível: o elefante voa, as estrelas levantam voo da água ... Para elas, tudo isso é real. Acho isso uma das coisas mais bonitas do mundo.

No entanto, à medida que vão crescendo, começam a encarar a realidade de outra forma, cedendo, cedendo, cedendo, até que o único real que reconhecem é aquele que podem ver e tocar, e aí perdem o encanto. Quando o perdem, começam a participar, de forma mais consciente ou lenta, no Mal, até ao ponto de fusão, como faz Henry James. Mas no meu caso, não o faço assim. Há um ponto em que a personagem está quase a mergulhar nesse Mal, quase a fundir-se com ele. Já estive tentada a seguir esse caminho no filme, mas  depois pensei ... não posso perpetuar isso. Tive que tomar uma posição e, nesse momento do filme, tomei-a.

Sobre essa questão do cinema e do real, que é justamente o que a Maria do Mar defende – já voltaremos ao nome, que também acho uma escolha curiosa – a tese dela é precisamente sobre o real. Ela acredita piamente naquilo, mas ao longo do filme vamos percebendo que as suas convicções são postas em causa. Há um ponto muito curioso no seu percurso, que talvez seja o que mais gostei no filme: ela acredita nesse cinema do real, mas o filme, esteticamente, é construído de forma a parecer uma fábula, uma fantasia. Como disse, tem algo de encantado.

E, olhando para muitos dos movimentos artísticos do cinema contemporâneo, o foco está muito no realismo, na tentativa de capturar a ideia do que é o real. Mas o problema não está no real em si, está na ideia do que se pensa ser o real e isso acaba por despir os filmes do seu lado estético, da sua magia. O que fez foi uma pequena provocação, porque, enquanto a Maria do Mar acredita nessa visão crua do real, o filme esteticamente caminha noutra direção, quase como um “conto de fadas”. É uma contradição que, de forma subtil, questiona essa obsessão moderna pelo realismo e desafia a própria noção de verdade no cinema.

Sim, o filme está cheio de provocações, e essa do peru é um ótimo exemplo. Tenho um prazer especial em "tirar o tapete" ao espectador, e ele escorrega com facilidade nas cascas de banana que vou deixando de lado. Dá-me gozo, é o meu lado sádico, essa ideia de que a pessoa está confortável, convencida de que entende o filme, e de repente eu lhe tiro o chão debaixo dos pés. Interessa-me tanto a técnica quanto a visão, porque sou assim. Gosto do contrassenso. Do que não se vê com os olhos abertos. Acredito muito mais no sonho, no inconsciente, naquelas coisas que não conseguimos explicar, mas nas quais acreditamos. Acredito com convicção. Acho que nunca perdi isso.

Tenho uma confiança total quando sinto que algo é assim, seja porque sonhei, ou porque não sei explicar, mas simplesmente sei. E vou até ao fim. Por vezes, o que surge parece tão estapafúrdio que até chego a pensar: "Mas será que isto faz sentido?", para perceber posteriormente que faz, e as pessoas entendem. Não são estúpidas, percebem o que está lá, ainda que por um caminho menos direto.

Quanto ao cinema do real, não tenho nada contra, apenas acho uma visão limitada. E, mais do que isso, é uma forma de hubris, aquela arrogância que, na cultura grega, o homem tem ao enfrentar os deuses. Quando se faz o chamado "cinema do real", parte-se do princípio de que se pode filmar o real, como se o real fosse apenas aquilo que se pode captar com a câmara. Esses hubris, essa arrogância, as pessoas nem se dão conta de que a têm.

Se me responderem: "Ah, mas Kiarostami fazia ‘cinema do real’?" Não sei se era bem assim. Adoro todo o seu trabalho, e posso garantir que aquilo não é de todo “cinema do real”. Agora, os Dardenne, esses sim, e o cinema deles já não me interessa tanto.

32.jpgMãos no Fogo (2024)

Fiz televisão durante muitos anos como também documentários, aquilo que se poderá chamar “cinema do real”. Mas sempre fugi do real, e de forma automática, porque para mim, na verdade, o real não é suficiente. Não me chega. Preciso de voar, de fazer as criaturas reptilianas ganharem asas. A Humanidade fez isso ao longo da evolução: os peixes saíram da Terra, os répteis voaram e viraram pássaros, transformaram-se e sobreviveram. Porque é que nós não podemos fazer o mesmo?

Falando no documentário, que no senso comum é considerado o auge do realismo em cinema. Há uma crença quase inabalável no que está lá, no que é mostrado. Mas mesmo no documentário, como no caso do seu “O Fantasma do Novais” (2012), tentou evitar esse absolutismo. Nesse filme, mistura o lado de investigação – quem foi Joaquim Novais Teixeira? – com uma dimensão de ficção ou semi-ficção, através da Cleia Almeida, que performaticamente representa essa descoberta. 

Nos meus primeiros filmes, direcionados para televisão, e em película deve-se acrescentar, são considerados documentários, mas na verdade, têm muito pouco de documental. No entanto, são considerados como tal. Como, por exemplo, em “Para Todo o Serviço” (1975), sobre as criadas de serviço e o sindicato de formação para o trabalho doméstico, vou ao encontro da primeira aprendiz desse tal sindicato, uma antiga criada de Salazar ... e tudo aquilo é o mais real possível, é totalmente real, as pessoas, as suas histórias, no entanto, é totalmente ficcionado. Elas estavam a representar os seus próprios papeis, aquilo que faziam na vida real, desempenhavam-no em frente à câmara.

Foi das primeiras ‘coisas’ que fiz, e ninguém me questionou, censurou ou alcunhou aquele meu trabalho de “falso documentário”. Até porque essa questão simplesmente não existe para mim.

O que é que poderemos considerar um “falso documentário”?

Um falso documentário... O que é isso, afinal? Um falso documentário? Pois, é como um falso comentário, uma caricatura.

Sim, é visto como uma caricatura, mas a questão é que, hoje em dia, utiliza-se muito o termo 'falso' para descrever algo gerado pela encenação. Contudo, não há nenhum documentário que não tenha tido a percentagem de encenação, nem que seja de previamente pensado. “Nanook”, por exemplo, tendo o título de “primeiro documentário”, foi um objeto assumidamente encenado por Robert Flaherty. 

Mas a ficção também não é documentário? Quando filmamos os atores, quem são eles? Bonecos digitais? Estou a fazer um documentário sobre a pessoa que está a interpretar uma personagem específica. Há muitos documentários dentro da ficção. Ou seja, essa barreira não é produtiva, é pouco interessante. Serve para fazer festivais de “cinema do real”, grupos de “cinema do real”, teses sobre “cinema do real”, e depois, qualquer dia muda-se para uma outra coisa. Já ninguém faz documentários sobre cinema de ficção, o que faz sentido. Pronto, o documentário do “cinema do real” ... sempre me pareceu uma ideia forçada. Esta irritação não é de agora, sempre me fez rir essa coisa do “cinema do real”. Não quero ofender ninguém, porque sei perfeitamente que há muita gente que vai discordar…

Gostaria que me falasse o nome da personagem de Carolina Campanella, Maria do Mar.

Simplesmente porque gosto muito desse nome … [risos]

Pergunto porque Maria do Mar leva-me por vários caminhos, especialmente dentro do cinema português. Faz-me pensar no filme “Maria do Mar” de Leitão de Barros, passado em Nazaré. 

É um filme lindíssimo!

E com uma forte carga de erotismo, especialmente naquela cena do salvamento. Mas também porque a sua última longa-metragem chama-se, exatamente, “Mar” … daí a minha questão, se existe uma ligação consciente.

É tão português, e ao mesmo tempo não conheço ninguém com esse nome … Mas não impede de o achar um tão belo nome, tão extravagante de facto. Digamos que pode ter sido uma situação inconsciente, perfeitamente. Mas não vou afirmar que é, porque isso seria presumir algo falso.

36.jpgMãos no Fogo (2024)

Em relação aos recursos disponíveis para fazer este filme, fiquei com a impressão de que, comparando com as suas obras anteriores, especialmente as mais recentes, estamos perante um aumento orçamental.

Não, foi exatamente o mesmo. Não me vou queixar de ter pouco dinheiro. Não quero voltar à pobreza de antigamente, acho que posso fazer cinema pobre, mas não cinema ... para pobres. Sempre trabalhei com muito poucos meios, contudo, gosto de trabalhar com boas câmaras, com a melhor equipa que existe, mesmo que isso seja caro. Sou bastante rápida e preparo tudo muito bem, mesmo que mude tudo … na véspera [risos]. Por vezes, meto um bocadinho de medo às assistentes, mas não o faço de propósito, porque confio nas suas qualidades. Já sabem é que à noite vão receber uma mensagem com as tais alterações [risos].

O “Perdida Mente” foi quase todo improvisado a partir de uma ideia apenas. O “Cavaleiro Vento”, o mesmo procedimento, aliás nasceu de um sonho …

A do cachalote a voar sob o Pico?

Precisamente …

Eu, sabendo a equipa que tenho, que é tão boa e preciosa, tenho confiança em mim e sei que eles podem confiar. Não cedo, sigo o plano de trabalho, e até tenho tendência a simplificar as coisas. Não sou dada a muitos caprichos; quando é preciso, sou convincente, e não preciso de ter muitas exigências. Faço filmes que considero bastante baratos. Portanto, não sou uma cineasta que se sai caro [risos], sei exatamente o que existe e, não … não sou excessiva. A minha escola é a de João César Monteiro, e não é por acaso que se vive com um realizador assim durante tantos anos; sempre tive inclinação para isso. Filmava tudo e aproveitava todo o material que filmava na televisão. Tudo. E filmava um para um. Nunca percebi isso de os cineastas precisarem de fazer muitas takes.

Então é só uma take e pronto?

Não digo que faça apenas uma take, pronto. Isso depende dos atores. Mas tenho tendência a fazer muito poucos takes, e geralmente é na primeira.

Também não é dada a decoupagem?

Depende muito dos filmes, mas normalmente sei aquilo que quero e faço um esboço. Depois adapto tudo conforme necessário. Não tenho feito muitos directos para televisão, mas isso não me preocupa. Adaptar à luz, por exemplo, e ver os atores a seguir por ali é maravilhoso. Porém, tenho tudo planeado; tenho uma carta na manga, por segurança, porque, se não tivesse, não conseguiria dormir. Preciso disso.

Falando em atores, o seu “Mãos no Fogo” tem uma força gravitacional no seu interior que se chama Rita Durão, um papel alucinado e sinistro …

É Henry James puro e duro... ela é a incorporação desse espírito.

A personagem da cozinheira também é muito Henry James, mas a da Rita Durão não existe no livro; em vez disso, há a de um tio. A questão do Henry James está relacionada com o fato de que muitas daquelas personagens não existem realmente; é um truque do autor. Ele mostra uma 'coisinha' e depois desaparecem, ficam apenas a insinuar, a assombrar. A do Marcello [Urgeghe] também é uma mistura de várias personagens da obra.

Mudando drasticamente de assunto, tem existindo um movimento, especialmente aqui na Cinemateca, que é o de resgatar alguns cineastas que estiveram connosco, principalmente a geração que começou a filmar nos 70 e 80, tirá-los do esquecimento. Este ano, recordo, houve um ciclo do Fernando Matos Silva, da Monique Rutler, e do José Nascimento, mais tarde, gerando exaustivos catálogos sobre as suas obras. A Margarida Gil acredita que terá lugar num ciclo destes ou espera que não?

Não [risos]. Peço, por favor, que não façam. [risos] 

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Mãos no Fogo (2024)

Já houve um festival que lhe dedicou um ciclo, o FESTin

Sim, a divulgação para esse ciclo foi escassa, mas louvo a iniciativa e a intenção. Só que tudo isso dá-me um sabor de … postumum. Penso que se deve dar atenção na altura, um pouco como aquela frase que o João César Monteiro sempre usou: “tarde piaste”. 

Por enquanto, espero continuar o mais possível a produzir, portanto, não quero distrações. E são distrações algo narcisistas, não preciso,tenho sido bastante bem tratada, exceto no cinema a certa altura, mas já estou mais que habituada.

E quanto a novos projetos?

Tenho, mas sou demasiado supersticiosa para falar sobre eles. Dá-me azar. [risos]

Catarina Ruivo: "Quando a minha avó morreu quis salvá-la, e filmá-la pareceu-me a única solução."

Hugo Gomes, 19.07.24

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Na sua quarta longa-metragem, Catarina Ruivo (“André Valente”, “Em Segunda Mão”) decide capturar o vazio e, nele, encontrar uma figura familiar: a sua avó, uma presença que considerava sua e que o destino levou aos 92 anos. 

Surpreendeu-se com essa perda, mesmo que a idade avançada sugerisse o contrário; a vida que transbordava dela dava sinais opostos, contudo, através dessa existência encantatória, Ruivo decidiu conceber um filme em sua homenagem. Durante esse processo, encontrou uma avó que desconhecia: uma avó antes de ser sua avó, uma mulher cujas aventuras, desvendadas por meio de cartas e fotografias, revelam a protagonista de um "épico". O épico de Catarina Ruivo, “A Minha Avó Trelotótó”, é um documentário-ensaísta que condensa uma vivência que, por mais ingrata que seja essa ideia de redução, encontra aqui o seu devido palco.

Catarina Ruivo aceitou o desafio de Cinematograficamente Falando... e respondeu às seguintes questões envolto desta obra sua que estreia nos cinemas portugueses, cinco anos depois de ter sido premiado no Indielisboa

Começo pela seguinte questão: como se filma a ausência? 

Neste filme, parti da ideia de que a ilusão do real no cinema é tão forte que ao filmar a  ausência de um corpo, tornando visível o espaço que ele ocupava, consigo não só filmar a  dor dessa ausência, mas também, materializar um ser, fazer existir um fantasma.  

Considera este filme uma homenagem à sua avó ou uma representação do vazio  humano? 

Quando a minha avó morreu quis salvá-la, e filmá-la pareceu-me a única solução. Não queria fazer um documentário sobre a minha avó, mas fazer um filme com ela. O que  me propunha fazer era filmar um fantasma para depois o devolver ao reino dos vivos, como Orfeu tentou com Eurídice. Criar um mundo onde ela pudesse continuar a viver 

Depois de terminado o filme, consegue me dizer quem foi a sua avó? O que descobriu dela que estava fora do seu radar? A pessoa que conheceu é a mesma com quem terminou o filme?

No sótão de casa da minha avó encontrei uma arca cheia de cartas suas e do meu avô, que  morreu jovem e que nunca conheci. Cartas para os pais quando foi viver para Moçambique com o meu avô em 1946, cartas de amor, cartas para mim.  

Descobri uma nova intimidade com a minha avó. Conheci a minha avó com vinte, com trinta anos, quando ainda não era avó. Através das suas cartas conheci a Julita e via-a  envelhecer. 

Gostaria que me falasse sobre algumas questões estéticas, as fotografias e a sua importância memorialista, acima do seu lado arquivista, obviamente. 

Gosto das fotografias, da forma como cristalizam um instante. A minha avó fazia álbuns que  construía como um romance, uma biografia, e onde muitas vezes colocava legendas com  pequenas histórias, pelo que parte do trabalho já tinha sido feito por ela. A ideia de fazer bonecos de cartão a partir de fotografias e colocá-los em cenários naturais, brincando com a perspectiva, surgiu das bonecas de cartão que existiam na minha infância a quem podíamos vestir diferentes fatos também eles feitos de cartão. 

Sobre a utilização dos não-atores, ou melhor das pessoas que conheceram a sua avó e que no filme interpretam elas próprias como se ela estivesse viva?

Fiz este filme para salvar a minha avó e em troca este filme salvou-me. Trabalhar com quem nunca tinha feito cinema, fez-me descobrir novamente o cinema e devolveu-me intacta a minha vontade de filmar, que julgava perdida.

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Rita Durão é uma atriz que tem sido recorrente na sua filmografia, o facto de  emprestar a sua voz para a narração atribui algum sentido de familiaridade ao seu filme? 

Nunca filmei sem a Rita, e quando tive que pensar quem seria a voz da minha avó não  pensei em mais ninguém. Quando gravámos a sua voz a ler as cartas não o quis fazer como uma voz off no sentido tradicional do termo, queria trabalhar com a Rita como actriz, criar uma personagem, fazer um trabalho de composição, como num filme de ficção. E quando oiço a Rita sinto que conseguimos, sinto a sua voz envelhecer e mudar ao longo do  tempo. 

Porquê só agora a sua estreia em sala, cinco anos depois do Prémio no Indielisboa?

Só agora, com a ajuda do Gustavo Scofano e da Catarina Almeida, conseguimos que o  filme chegasse às salas, o que me deixa muito feliz pois os filmes só existem quando são  vistos. 

“A Minha Avó Trelotótó” é a sua última longa-metragem até então, encontra-se a preparar mais alguma? Tem novos projetos?

Em 2020 filmei uma curta-metragem, “Boa Noite”, que espero vir a estrear e estou neste  momento a filmar uma nova longa-metragem de ficção, “Como é que te aguentas”.

Um pianista que sofre como um país

Hugo Gomes, 10.06.24

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Como lidar com a história recente portuguesa no nosso Cinema?”, questão colocada por um colega crítico, à porta de um visionamento qualquer, que tinha como ponto de partida o evidente fracasso de bilheteira que “Soares é Fixe”, da autoria de Sérgio Graciano, revelou ser. A conversa tendeu a apontar a inaptidão do filme em “adaptar” um dos momentos marcantes da área político-social de Portugal pós-25 de Abril, seguida pela comparação com outras cinematografias europeias na sua própria relação com a história do século XX e XXI. Conclusões? Nada foi obtido, apenas um lamento de quem … e não está sozinho nessa demanda … se indigna perante tal tratamento em nome do “cinema popular”. 

O fiasco funcionou como uma resposta de que existe um público, mesmo que normalmente desligado do seu nacionalizado cinema, nunca totalmente abraçado aos trabalhos gerados a “três pontapés”. Tal pergunta-desabafo desafiou-me a olhar para outros exemplos de história recente virados ao cinema, e felizmente, notei artesãos mais capazes em retratá-la que, apesar de não contrariar o panorama geral, dão-nos lições de moral aos “Soares é Fixe” desta vida. Um dos realizadores bem-intencionados nessas jornadas de olhar para dentro e para o horizonte passado é definitivamente Luís Filipe Rocha.

Convém salientar que 2024 é um ano de ‘renascimento’ para o cineasta, que popularmente conhecemos pelo pequeno êxito “Adeus Pai” (1996) ou do também muito divulgado “A Outra Margem” (2007), um palco completo à excelência performativa que era o ator Filipe Duarte (1973 - 2020). Com uma exibição feliz do seu raríssimo “Sinais de Vida” (1984), uma introspecção-homenagem a Jorge Sena numa experimentalidade biográfica enviesada numa breve retrospectiva à sua obra, na Cinemateca de Lisboa, o restauro do seu “Fuga” (1978), projetado em algumas sessões especiais, uma edição de luxo em DVD de “Cerromaior” (1980) e, por fim, o lançamento do seu mais recente trabalho - “O Teu Rosto Será o Último” - sete anos após do seu documentário “Rosas de Ermera”. Este último é uma adaptação do livro homónimo de João Pedro Ricardo, uma narrativa persistente num paralelismo para com as transformações de um país que se libertaria das amarras da sua opressão expressa em 40 anos de poder salazarista, e de uma guerra que cicatrizou a sua sociedade.

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Basta testemunhar a primeira sequência: um grupo de homens (e um padre à mistura, para distanciar os ‘servos de Deus’ dos ‘serventes de Deus’), que acompanham os televisados avanços da Revolução dos Cravos, cujo o olhar atento aos eventos é interrompido pelo chamamento de uma canja na sala de jantar. Seguem para a refeição e debatem sobre o sucedido, numa tertúlia recheada de certezas, dúvidas, conspirações, apelos e injúrias em modo comic relief. Não fomos introduzidos concretamente a estas personagens, e sinceramente, tal sequência soa-nos de uma inútil existência, a não ser pela perpetuação de dois factores, que mais tarde apercebemos apoiar: o contexto histórico-temporal que a narrativa adequará (pós-25 de Abril), e a insinuação, mesmo que discreta, de que o que veremos é uma intenção de aliar-se a esse percurso “revolucionário” (e contra-revolucionário) e manifestar-se como um drama de revisão a um país. 

Segue-se então o nosso enredo: uma das personagens daquela trupe será o avô (Pompeu José) do nosso protagonista, Duarte (Vicente Wallenstein em fase adulta), que desde criança descobre um dom, uma destreza (ou talento) para o piano. Os pais (Rita Durão [a mãe] a convencer-nos que 2024 é o seu melhor ano em muito tempo) estimulam essa aptidão, inscrevem-no no Conservatório e, sob a atenta proteção do seu tutor (Adriano Luz), ele prossegue à luz de uma eventual consagração. Fala-se no mais “beethoveniano dos beethovianos do seu tempo”, gaba-se a sua sensibilidade musical, o seu entendimento e conexão com as partituras e os seus autores, o qual coleciona no seu pequeno quarto-refúgio, mas na progressão do seu crescimento, algo “estranho” acontece. Duarte começa a renegar o seu dom, o qual converte-se numa tinhosa maldição.

Traumas são bandejados como interação para com este sofrimento artístico proveniente de Duarte, que por sua vez nos leva ao melancolismo da sua figura, numa mistura de medo do fracasso à perda da sua identidade. Luís Filipe Rocha construiu um filme sob o signo dessa degradação, não ostenta fantasias além daquelas que o seu avô, em jeito de ‘contador de histórias’, o delicia com as aventuras do seu amigo de longa data, Policarpo. O espectador tem a certeza, devido ao tom manifestado, que não estamos envolvidos num conto de “sonhos superados” e sim num reflexo de uma infelicidade maior e daí, talvez lendo por “linhas tortas”, evidenciamos a história de uma difícil libertação pós-25 de Abril. 

Do medo do risco, do estrangulamento de talentos e aptidões em prol de valores nunca esquecidos após anos e anos de martelação, dos “brandos costumes” e da escapada para um terreno sem avanços - “O Teu Rosto Será o Último” é sobre um país de cinzas. Duarte é apenas um sintoma, e Luís Filipe Rocha é dotado em captar os aromas dessa história recente e em cometer a sua crónica. Filme de pianistas e de cordas entrelaçadas, que tão bem afigura-se como resposta à combalida gesticulação da dita história recente de “Soares é Fixe” e de muitos outros congéneres.

Do real para o imaginário cinematográfico ... com queimaduras nas mãos!

Hugo Gomes, 26.05.24

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O cinema de Margarida Gil tem caminhado para produções austeras, em jeito de resiliência e talvez um pouco de "carolice", que a faz avançar contra todas as adversidades. Há uns meses, uma curta e uma longa-metragem estrearam em modo double bill nos cinemas portugueses ["Cavaleiro Vento", "Perdida Mente"], de forma a relembrar a sua existência num meio que resiste aos apoios e aos júris que selecionam quem "filma" e "como deve filmar". Gil, por outro lado, calha a "sorte grande" com um filme de produção modesta, que a extrai dos trabalhos mais artesanais e, em todo o caso, amadores. O que encontra neste refúgio ao abrigo da Ar de Filmes é a sua aparentemente derradeira oportunidade de se reerguer. Daí que a realizadora se conquiste por meio de um cuidado técnico e uma planificação que a vincula às tradições, hoje em modo expiratório, do cinema que a viu nascer. Um cinema oliveriano em trajes de Henry James - "The Turn of the Screw" ("A Volta do Parafuso", na tradução portuguesa da editora Sistema Solar) - mas despido do seu horror gótico e encantado com as possibilidades da sobrenaturalidade trazida à arte de filmar, sobressaindo como relato gótico com vénias ao misticismo que o Cinema nos trouxe.

Ora, convém salientar que em "Mãos no Fogo", ao invés de amas enviadas para mansões remotas, é uma jovem estudante de cinema (Carolina Campanela, interpretando uma Maria do Mar, ligação com a donzela nazarena do homónimo filme de Leitão de Barros e com a última longa-metragem assinada por Gil, “Mar”, em 2019) com a tese do "Real no Cinema" na mente, que se depara com os habitantes do casarão - velha lógica de um cinema visto pela sua burguesia e de contos de realeza e bons costumes -, o qual é cedido por pensamentos de incerteza e de espectros que por lá habitam, tendo como única certeza a sua imortalização por via das imagens. É "filmar o real", mas é para além disso que a câmara e a sua narrativa subjacente captam, numa espécie de erotismo barroco e de mestres implícitos numa intelectualidade e cultura impermeável e intransponível (sob um snobismo vilipendiado de Marcello Urgeghe).

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Margarida Gil opera sob esses tópicos de perfuração do assombro residido naquela instância, cuja protagonista escreve e rasura com constância no seu bloco de apontamentos... isso mesmo, apontamentos sobre o testemunhado e captado numa intenção de se encontrar numa coesão de pensamentos, infelizmente atormentada por visões e presenças (Rita Durão na sua delirante forma) que a fazem desconfiar das suas próprias "crenças" (o peru, o vegetarianismo e a cozinheira Adelaide Teixeira [resgatada do primeiro filme de Gil - "Relação Fiel e Verdadeira" (1988) -, Mefistófeles de bata que a seduz ao pecado e à tentação]). É um filme de imagens, repito isto vezes sem conta, como oposição às acusações de teatralidade ou da narrativa fracassada numa percepção de storytelling aristotélico (sabendo também que é nesta declarada guerra para com tais “inimigos” que o filme nunca desfere a sua transgressividade). 

É a sugestão, o fantasmagórico que projeta como memorialismo de produções ‘tobiescas’ ou de um Manoel Oliveira de mão dada à sua comparsa Agustina Bessa-Luís. Aliás, é aí que entra o elemento crucial da jornada e de convocação de Gil: a casa, o seu efeito, a sua imponência, as histórias aí permanecidas, encobertas em pó ou imprimidas em esquecida película à espera de uma outra e nova projeção. A casa vira tradição, e é através dessa tradição que Margarida Gil deseja lançar o recado para o "mundo" - "Eu continuo aqui!". Visto que chegamos a um tempo de revisionismos e de recuperações - é preciso escrever a história do nosso cinema por linhas direitas - com Solveig Nordlund, António de Macedo, Carlos Vilardebó, Fernando Matos Silva, Monique Rutler e, recentemente, Rui Simões na esperança de um holofote há muito negado. Gil inveja tal salvação e, para tal, demonstra o quão é capaz de invocar cinema na sua pomposa e ostentada estética. Já não se fazem filmes assim! Aliás, este "Mãos no Fogo" poderá ser o último da sua espécie (basta constatar, por exemplo, como “Sibila” sucumbiu a um vazio lírico normalizado nestes novos tempos).

Falando com Rita Durão, uma mulher de cumplicidades ao som de Mozart

Hugo Gomes, 14.12.22

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Rita Durão em "Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Encontros e reencontros sempre centralizaram o espírito criativo de Eric Rohmer (que hoje poderemos afirmar como um dos nomes mais influentes do dito cinema moderno). Nessa sua familiarizada demanda concebeu com “O Trio em Mi Bemol”, a sua única peça de teatro, numa revisão aos elementos humanos, passado e presente de braços dados enquanto visualizam o Futuro a passos de si. 

Porém, não estamos perante um trabalho integralmente rohmeriano. “Éric Rohmer est mort”, cantarolava Clio acompanhada por Fabrice Luchini, e as suas estâncias rumaram para outras mãos, e para outros formatos. Rita Azevedo Gomes apodera-se desse material e compõe um filme a três dimensões, um teatro inicialmente delineado, um realizador (Adolfo Arrieta) com ambições de gerar televisão a partir daquelas relações e por fim, um filme, Cinema, aí parido num “salta-pocinhas” de linguagens e estéticas. 

Segundo a realizadora, a obra foi fruto da colaboração dos seus “amigos”, artistas unidos levados a cabo para materializar e musicalizar esta visão, entre eles, calejada aliada do seu Cinema, Rita Durão, atriz que como Rohmer valoriza relações e afinidades, o seu conjunto funde Arte.

Em conversa, Rita Durão falou-nos do projeto e do seu contacto com a (outra) Rita, o seu círculo e ainda prestou a conhecermos esta protagonista. Esta “Mulher Vingativa”. 

Gostaria de começar pelo início, pelo seu envolvimento neste projeto, e sabendo que o “Trio em Mi Bemol” estava planeado ser um rádio drama ao invés de um filme.

A Rita [Azevedo Gomes] tinha-me falado deste projeto, antes de ele se tornar num filme, era um fruto da sua vontade e de verbalizar essa ideia. A conversa inicial não tinha qualquer intenção de convite à sua participação. Depois recebi um telefonema da Rita a propor-me a participar no seu então decidido filme, só que ela propunha começar a filmar no dia seguinte. Ora bem, tinha uma “carrada” de texto para decorar e a juntar isso, o meu “pouco à vontade” com o francês, estando na dúvida se aceitaria ou não. Pensava, “isto é uma grande ‘maluquice’, é muito texto em tão pouco tempo e ainda por cima em francês  … não sei se serei capaz.” Sentimentos de dúvida que embateram no meu instantâneo entusiasmo em ouvir aquela “cor” na voz da Rita ao telefone, do qual dá sempre uma vontade em “correr atrás” do seu desejo. Isto porque existe uma energia entre nós que funciona muito desta forma … por isso acabei por dizer que “Sim”. E pronto … o filme fez-se. 

Apesar de não ser um entendido a francês, alguns colegas meus notaram durante a projeção de Berlim [o filme estreou nesse festival] sobre a sua pronúncia. Mais tarde, a Rita Azevedo Gomes revelou que Rita não sabia falar francês, como me confirmou agora. 

Não, porque nunca tive francês na escola, e portanto acabei por ter, o que chamo, de um certo “francês de praia” [risos]. 

Recordo que no Teatro da Cornucópia, o Luís Miguel Cintra convidou a Christine Laurent para encenar uma peça - “O Lírio” de Ferenc Molnár - e na altura ela precisava de um assistente de encenação. Não sei bem como a ‘coisa’ aconteceu, mas acabei por ser a tal assistente. Entrei em pânico porque não sabia falar francês, e a Christine nem português, mas ao longo do processo, passadas algumas semanas, já me lançava nestas aventuras da língua estrangeira. A Christine também tentava desvencilhar no português, e se havia alguma dúvida entre nós, requisitavámos o inglês como auxílio. Portanto era umas conversas bastante misturadas [risos]. Esta experiência acabou por me dar, de uma forma bastante natural, uma aproximação ao francês. Também acabo por ler ‘coisas’ em francês, livros e até filmes que me vão acompanhando, e quanto mais fundo sigo na língua mais entendo o quão próximo está da nossa. 

Mas para este filme, com a quantidade de diálogos, acabei por recorrer e muito ao Olivier Blanc - um excelente diretor de som que se encontra em Portugal há vários anos, o companheiro da Rita Azevedo Gomes nos seus filmes, e qual cruzamos não só nesse universo mas também em outros trabalhos com outros realizadores. Ele ajudava nos meus ensaios. Gravamos por via dos telemóveis e com isso aconselhava o quanto e como teria que aperfeiçoar a minha pronúncia, por exemplo, sendo que não era uma opção do filme, visto que a Adélia, a minha personagem, assume-se como portuguesa. Por vezes o preciosismo da língua não era levado ao extremo, como tínhamos o propósito de "construir" algo agradável e que fizesse sentido. 

A juntar a isso, os ensaios por Zoom com o Pierre [Léon], que interpreta Paul no filme, sempre companheiro, estando disponível 100% para me ajudar a melhorar a língua, porque, francamente, há palavras bastante difíceis para mim, principalmente em termos de pronúncia.

Mas o filme, foi essa força conjunta em ajudar ao máximo o próximo. 

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Rita Durão em "As Bodas de Deus" (João César Monteiro, 1999)

Outro ponto referido pela Rita [Azevedo Gomes] é que a língua não poderia ser entendida como uma barreira à sua participação, visto que ela desejava manter a química encontrada entre si e Pierre Léon.

De facto, eu e o Pierre tivemos mais tempo juntos durante a rodagem do filme, e virtualmente, através dos nossos ensaios via Zoom. Eu o conheci em … julgo ter sido em Locarno, o qual acompanhei a Rita com um outro filme dela, e aí fui apresentada ao Pierre e automaticamente nos demos naturalmente bem. De alguma forma, penso que a Rita guardou essa memória, esse sentimento, pelo que mais tarde lá reencontramo-nos durante “A Portuguesa”, uma experiência que adorei. O meu papel nesse filme era muito secundário, julgo só ter tido uma deixa e era algo baço, mas encontrava-se constantemente presente em cena, e com isso ia observando tudo à minha volta. Porém, aconteceu uma interação entre nós que deslumbrou a Rita. Julgo que foi a maneira como nos relacionamos um com ou outro nessa determinada cena que a marcou, guardando os ingredientes necessários para nos voltar a juntar. “Um dia, gostaria de juntar a Durão e o Pierre num filme, e ver o que isso gerará”, deve ter pensado, pelo menos, é o que me deu a entender no tal telefonema. 

Desde “A Conquista de Faro” (2005) que a Rita [Durão] tem sido recorrente nos filmes da Azevedo Gomes. Sente que, de certa forma, o Cinema dela encontra-se inteiramente ligado à sua figura?

Francamente, não me lembro como é que conheci a Rita, mas recordo de estar na “Conquista de Faro” e aperceber-me da química que estávamos a criar. Ela gosta particularmente de trabalhar com equipas pequenas, mais íntimas possíveis, sendo uma característica que também me interessa, porque permite uma observação de tudo que está a acontecer. Outra característica da Rita é de manter-nos envolvidos intrinsecamente no projeto e levar-nos a irmos além do nosso respetivo ofício. Ela proporciona esses momentos, enquanto realizadora, não guarda as dúvidas para com ela, partilha-as com a equipa e incentiva a procurarmos uma solução juntos.

Sinceramente, acho que fomos criando uma cumplicidade. Começou com os momentos artísticos e foi saltando para nós enquanto mulheres e depois enquanto amigas. Sim, é sobretudo uma relação de amizade.

Mas foi com Rita Azevedo Gomes que teve, possivelmente, um dos momentos altos da sua carreira no Cinema. Refiro a “A Vingança da Mulher” (2012), filme que a colocou como plena protagonista e que a premiou com a distinção de Melhor Atriz da Sociedade Portuguesa de Autores. 

Não sei. Não com isto dizendo que não estou agradecida aos prémios, dos quais são bons de receber, tratando-se de uma prova de que o nosso trabalho é reconhecido, assim como o filme e da equipa também … mas o que importa referir aqui é que a “A Vingança da Mulher” foi um filme bastante especial resultante de um trabalho intenso e conjunto entre mim e a Rita. Nós nos reunimos, com a devida antecedência, para preparar este filme. Intensamente discutimos essas ideias, as cenas, os diálogos, a dicção. Aí houve um trabalho muito grande entre a pessoa que diz, a que escuta, a que realiza e a que vai encenar. Uma consolidação de uma grande proximidade que já se adivinhava, seja de projetos anteriores, mas acima de tudo, e devido à natureza do filme e a do meu papel, originando horas e horas de conversa a propósito do mesmo e na órbita desse mesmo filme. “A Vingança da Mulher” abre a janela para outros temas e outros entendimentos. 

Fora Rita Azevedo Gomes, existe outra realizadora o qual tem sido presente nos seus trabalhos - Catarina Ruivo - desde a sua primeira longa-metragem (“André Valente”, 2004), passando por “Daqui P’rá Frente” (2008) e contracenando com o ator Pedro Hestnes, no seu último papel (1962 - 2011), em “Em Segunda Mão” (2012).

Sim, é verdade, também tenho uma cumplicidade com a Catarina. Obviamente que são pessoas bastantes diferentes, mas acabo por me identificar com elas da mesma maneira. São duas mulheres importantes para mim de alguma maneira, lançam-me desafios, deixem-me integrar na concepção dos respectivos projetos e são “abertas” para mim. Gosto de as escutar. 

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Leonardo Viveiros e Rita Durão em "André Valente" (Catarina Ruivo, 2004)

Gosta de que lhe desafiam artisticamente?

Sim, gosto [risos].

Distanciando destes dois universos, a Rita partilhou uma romã com João César Monteiro em “As Bodas de Deus” (1999) … 

Sim. O Cinema é também isso, a vida a “mexer-se” e o meu primeiro encontro com o João César Monteiro foi desencadeado por esse mesmo movimento. Ele procurava alguém para aquele papel e eu acabei por cruzar-me com ele, o que me garantiu a personagem. E a verdade é que por questão geracional, ambos [Rita Azevedo Gomes e João César Monteiro] acabavam por gostar das mesmas ‘coisas’, frequentavam os mesmos círculos culturais, sendo normal que tivessem a mesma aproximação, o mesmo universo, a mesma familiaridade. 

Com o João César Monteiro ainda trabalhou em “Branca de Neve” (2000) …

Eu não participei no “Branca de Neve”.

Mas encontra-se creditada no projeto.

Sim, tenho conhecimento disso, mas não sei porquê. Era para participar, mas por algumas razões não cheguei à fase final do filme. Não apareço no filme.

Acho que ninguém “aparece” no filme [risos]

Sim. [risos]

Prosseguindo, depois participou no “Vai e Vem” (2003), o último filme do César Monteiro. Como foi trabalhar com ele? 

Essa é uma pergunta que me fazem tantas vezes. Tive uma relação muito especial com o César, aliás a minha forma de trabalhar é, prioritariamente, de criar laços de cumplicidade, gerar uma relação de cuidado para com a pessoa e para aquilo que me é proposto. 

Eu gosto muito de observar os realizadores, da mesma forma que eles nos observam, também gosto muito de observá-los. 

Nesse seu campo de observação e visto possuir uma carreira que oscila entre o Cinema e o Teatro, tenta "transferir" experiências de um território para o outro? 

Sim, porque as ‘coisas’ não devem ser arrumadas nos seus cantinhos como gavetas. As gavetas devem permanecer “semi-abertas” para que deem espaço para criação e transferência de ideias de um território para o outro. Pelo menos penso dessa forma, porque muitas vezes eu roubo do Cinema, elementos que levo para o Teatro e assim sucessivamente. 

E quanto ao Teatro, existe uma certa afinidade deste território no cinema de Rita Azevedo Gomes.

Sim, há uma construção de cenas e situações que nos remetem ao universo teatral. Cada cena decorre num determinado sítio e num determinado tempo que é permitido de alguma forma ser inventado ou reinventado, e todas aquelas cenas possuem um significado, uma representação, cabe ao espectador tentar compreendê-las e sucessivamente encaixá-las. Soa tanto a Teatro.  

Só que no Teatro existe um contacto direto com o seu público no ato da sua criação, não uma reação à posteriori.

Sim. Mas antes da peça em si, existem os ensaios. É um pouco de Cinema dentro do Teatro, que por sua vez, acaba por ser o Teatro dentro do Cinema. Essa questão do público é uma questão de consciência, nós sabemos que o que fazemos irá ter um público em determinada altura, portanto, tentamos antecipar essa reação, seja no Teatro, seja no Cinema. A grande diferença, é que no Teatro, por vezes temos uma reação direta e manifestante, por exemplo, o riso ou a tensão, a energia emanada no público. No Cinema, não temos essa energia, mas temos outra libertada na cena, na cinematografia, ou entre nós, no qual sentimos, depois temos a restante equipa que nos observa, um público improvisado, naquele preciso momento é como se tivéssemos uma espécie de Teatro íntimo. 

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Rita Durão em "A Vingança da Mulher" (Rita Azevedo Gomes, 2012)

Qual é a sua “reação” ao termo que tem ganho uma conotação pejorativa que é “teatro filmado”? Relembro que é diversas vezes dirigido ao cinema português.

Não tenho muito para dizer sobre isso. Acho que o “teatro filmado” pode ser algo extraordinário desde que faça sentido a sua existência. Quanto à conotação … sinceramente, não sei muito bem o que dizer.

Falou-me há pouco do francês vindo dos “filmes que a acompanharam”, pergunto se Éric Rohmer entra nesse cardápio?

Não entra muito, para dizer a verdade. Quanto a Rita falou comigo sobre o projeto, percebi que não era um realizador do qual acompanhava. Na altura, achei por bem não ver nada dele para que não haja influências. O que fiz, e do qual adorei fazê-lo, foi consultar as suas entrevistas, o de ouvi-lo falar sobre os seus pontos-de-vista, do que pensava, da sua perspectiva quanto à Arte, à Vida sobretudo. De resto, tentei manter-me como uma “folha em branco”, preferi essa abordagem ao invés de me aprofundar no seu universo cinematográfico Se tivesse feito isso, teria como consequência de me sentir aquém do seu estilo ou algo do género, e nisso condicionar-me. Senti que os filmes poderiam ter um efeito diferente no “O Trio em Mi Bemol”, poderia não funcionar a aproximação do mundo da Rita com o do Rohmer, por isso evitei essa abordagem. 

E no final disso tudo - depois do “O Trio em Mi Bemol” - não ficou com vontade de espreitar a sua cinematografia?

Fiquei, mas confesso que não tenho tido o tempo necessário para o fazer. A correria entre o trabalho, os filhos, as peças para ler, não permitem aquele “tempo de qualidade”, que por vezes é essencial para a nossa receptividade. Julgo que o Rohmer merece melhor. 

É sabido também que vai ou já esteve a trabalhar com o Luís Filipe Rocha na adaptação do livro de João Ricardo Pedro, “O Teu Rosta Será o Último".

Estive a filmar com o Luís Filipe este ano, do qual terminamos no início de maio, e … pelo que vou sabendo, está praticamente pronto. Mas não sei mais detalhes nem sequer quando estreará.