Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

"A Culpa não morre solteira": o ano terrível para o Cinema Português

Hugo Gomes, 24.12.22

img_828x523$2022_04_21_11_25_01_304912.jpg

"Km 224" (António-Pedro Vasconcelos, 2022)

2022, mais um ano, mais lamentações a caminho. O Cinema Português, essa formalizada instituição que muitos adoram cuspir, resiste face aos números vergonhosos nas bilheteiras nacionais, mesmo que, muitos deles beneficiam de “boa imprensa”, de críticas esplendorosas, artigos requintados e o esforço hercúleo por parte das suas distribuidoras e produtoras em os promover. 

Mas o cinema nacional demonstrou-se alheio aos planos do grande público, que o diga o veterano António-Pedro Vasconcelos e o seu drama de custódias “Km 224” que terminou com uns “míseros” 4.128 espectadores (tendo em conta a sua ambição comercial, 830 sessões contra, comparativamente, as 161 de Lobo e Cão de Cláudia Varejão que arrecadou, até ao momento, valores mais acima), ou o que dizer a estreia de Tiago R. Santos e o quarteto de luxo [Ricardo Pereira, Teresa Tavares, Margarida Vila-Nova e Cristóvão Campos] com “Revolta”, filme que em outros tempos chegaria, na pior das hipóteses, aos 5.000 espectadores, apenas arrecadou 1.719. Melhor posicionado esteve “Salgueiro Maia: O Implicado” de Sérgio Graciano [16.777], o qual convém referir a importância ainda memorial da sua figura-alvo, e a dupla rural “Restos do Vento” de Tiago Guedes e “Alma Viva” de Cristèle Alves Meira [11.685 e 7,537].

Nem mesmo João Botelho, possivelmente o realizador com mais imprensa por metro quadrado nos seus filmes, que nos trouxe uma das suas melhores obras em muito tempo (“Um Filme em Forma de Assim”), não escapou à derrota nessa estrangulada luta nas bilheteiras [2.208], e num ano em que contou com retrospetiva integral na Cinemateca, novamente promovida em todos os meios, mas igualmente captada pela indiferença do seu público-alvo. Cinema português e bilheteiras são um eterno fado e que nada descura da qualidade de muitas destas obras. 

Já os restantes autores propriamente ditos; "Fogo-Fátuo" de João Pedro Rodrigues a exibir a sua legião de adeptos [3.533 espectadores], com cerca do dobro do atendimento, Marco Martins e o seu “Um Corpo que Dança - Ballet Gulbenkian 1965 - 2005” demonstraram adesão ao documentário português (enquanto o mais visto nessa categoria foi “Cesária Évora" de Ana Sofia Fonseca com 7.057 espectadores). Números longínquos para com uma Rita Azevedo Gomes, por exemplo, cujo O Trio em Mi Bemol levou até ao momento 467 espectadores, mais que o tríptico de Joaquim Pinto e Nuno Leonel acolheram [“Pathos Ethos Logos / 178 espectadores]. Comparativamente, com menos promoção e imprensa, a segunda longa-metragem de Adriano Mendes - “28 ½ - concretizou 725 espectadores, em 43 sessões, menos que as projeções do filme da Azevedo Gomes, ainda em cartaz [62 até à data].

221202_20220325124032_9D9CJL5T109790DZTWJJ.jpg

"O Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Estes trazidos números serviram para mostrar um só propósito - o constante desfasamento entre o público e o seu cinema - um fenómeno latente à dissertação das salas pelo conforto do ambiente doméstico sob a febre das “novidades do streaming”, ou a cada vez mais “exigente” seleção do que realmente ver numa sala de cinema … a aspas são pertinências visto que o cardápio parece fundamentado em redor de super-heróis ou franchises duradouros. Contudo, quando o tema é cinema português, a discussão resume-se na própria qualidade destes do que no gosto do espectador. Anos a fio a ouvir os mesmos queixumes, enfrento-o esses argumentos com os iguais números.  

Mas antes disso, há que procurar as causas para esse divórcio? Possivelmente, um dos graduais problemas, como havia sido sugerido, seja a reputação que a nossa produção adquiriu e acumulou ao longo destes anos. As avenças de “Amor de Perdição” de Manoel de Oliveira ou os enterros antecipados a António Macedo (o sketch satírico de Herman José fantasmagoricamente ainda povoa na nossa imaginação coletiva), conspiradas raízes para este boicote orquestrado ou até politizado que hoje fomenta furiosos pedidos de uma renovação de histórias, de estilos, de ritmo, de atores e sobretudo uma “americanização” do nosso cinema, em jeito de encabeçar sem grandes histrionismos um catálogo de um globalizado streaming

Porém, o desejo é diferente dos sucessos, “Dois Duros de Roer” ou Curral de Moinas: Os Banqueiros do Povo, inquestionavelmente amadora televisão descaradamente embutida na tela conquistou espectadores (48.830 e 314.115 respetivamente), muitos deles assinantes dessa “carta de exigências". Com este cenário em conta, para quê continuar a debater sobre o que o cinema português precisa de fazer para “apelar” ao seu público? Claro que não, como todos os divórcios, a culpa não morre solteira. 

Escusado será totalmente imputar a nossa produção tendo em conta que o dito “espectador português” tem demonstrado ao longo destes anos zero paladar no ramo.

Falando com Rita Durão, uma mulher de cumplicidades ao som de Mozart

Hugo Gomes, 14.12.22

image.jpg

Rita Durão em "Trio em Mi Bemol" (Rita Azevedo Gomes, 2022)

Encontros e reencontros sempre centralizaram o espírito criativo de Eric Rohmer (que hoje poderemos afirmar como um dos nomes mais influentes do dito cinema moderno). Nessa sua familiarizada demanda concebeu com “O Trio em Mi Bemol”, a sua única peça de teatro, numa revisão aos elementos humanos, passado e presente de braços dados enquanto visualizam o Futuro a passos de si. 

Porém, não estamos perante um trabalho integralmente rohmeriano. “Éric Rohmer est mort”, cantarolava Clio acompanhada por Fabrice Luchini, e as suas estâncias rumaram para outras mãos, e para outros formatos. Rita Azevedo Gomes apodera-se desse material e compõe um filme a três dimensões, um teatro inicialmente delineado, um realizador (Adolfo Arrieta) com ambições de gerar televisão a partir daquelas relações e por fim, um filme, Cinema, aí parido num “salta-pocinhas” de linguagens e estéticas. 

Segundo a realizadora, a obra foi fruto da colaboração dos seus “amigos”, artistas unidos levados a cabo para materializar e musicalizar esta visão, entre eles, calejada aliada do seu Cinema, Rita Durão, atriz que como Rohmer valoriza relações e afinidades, o seu conjunto funde Arte.

Em conversa, Rita Durão falou-nos do projeto e do seu contacto com a (outra) Rita, o seu círculo e ainda prestou a conhecermos esta protagonista. Esta “Mulher Vingativa”. 

Gostaria de começar pelo início, pelo seu envolvimento neste projeto, e sabendo que o “Trio em Mi Bemol” estava planeado ser um rádio drama ao invés de um filme.

A Rita [Azevedo Gomes] tinha-me falado deste projeto, antes de ele se tornar num filme, era um fruto da sua vontade e de verbalizar essa ideia. A conversa inicial não tinha qualquer intenção de convite à sua participação. Depois recebi um telefonema da Rita a propor-me a participar no seu então decidido filme, só que ela propunha começar a filmar no dia seguinte. Ora bem, tinha uma “carrada” de texto para decorar e a juntar isso, o meu “pouco à vontade” com o francês, estando na dúvida se aceitaria ou não. Pensava, “isto é uma grande ‘maluquice’, é muito texto em tão pouco tempo e ainda por cima em francês  … não sei se serei capaz.” Sentimentos de dúvida que embateram no meu instantâneo entusiasmo em ouvir aquela “cor” na voz da Rita ao telefone, do qual dá sempre uma vontade em “correr atrás” do seu desejo. Isto porque existe uma energia entre nós que funciona muito desta forma … por isso acabei por dizer que “Sim”. E pronto … o filme fez-se. 

Apesar de não ser um entendido a francês, alguns colegas meus notaram durante a projeção de Berlim [o filme estreou nesse festival] sobre a sua pronúncia. Mais tarde, a Rita Azevedo Gomes revelou que Rita não sabia falar francês, como me confirmou agora. 

Não, porque nunca tive francês na escola, e portanto acabei por ter, o que chamo, de um certo “francês de praia” [risos]. 

Recordo que no Teatro da Cornucópia, o Luís Miguel Cintra convidou a Christine Laurent para encenar uma peça - “O Lírio” de Ferenc Molnár - e na altura ela precisava de um assistente de encenação. Não sei bem como a ‘coisa’ aconteceu, mas acabei por ser a tal assistente. Entrei em pânico porque não sabia falar francês, e a Christine nem português, mas ao longo do processo, passadas algumas semanas, já me lançava nestas aventuras da língua estrangeira. A Christine também tentava desvencilhar no português, e se havia alguma dúvida entre nós, requisitavámos o inglês como auxílio. Portanto era umas conversas bastante misturadas [risos]. Esta experiência acabou por me dar, de uma forma bastante natural, uma aproximação ao francês. Também acabo por ler ‘coisas’ em francês, livros e até filmes que me vão acompanhando, e quanto mais fundo sigo na língua mais entendo o quão próximo está da nossa. 

Mas para este filme, com a quantidade de diálogos, acabei por recorrer e muito ao Olivier Blanc - um excelente diretor de som que se encontra em Portugal há vários anos, o companheiro da Rita Azevedo Gomes nos seus filmes, e qual cruzamos não só nesse universo mas também em outros trabalhos com outros realizadores. Ele ajudava nos meus ensaios. Gravamos por via dos telemóveis e com isso aconselhava o quanto e como teria que aperfeiçoar a minha pronúncia, por exemplo, sendo que não era uma opção do filme, visto que a Adélia, a minha personagem, assume-se como portuguesa. Por vezes o preciosismo da língua não era levado ao extremo, como tínhamos o propósito de "construir" algo agradável e que fizesse sentido. 

A juntar a isso, os ensaios por Zoom com o Pierre [Léon], que interpreta Paul no filme, sempre companheiro, estando disponível 100% para me ajudar a melhorar a língua, porque, francamente, há palavras bastante difíceis para mim, principalmente em termos de pronúncia.

Mas o filme, foi essa força conjunta em ajudar ao máximo o próximo. 

MV5BMTg3M2M0N2ItMmFjZC00YzMxLTg3NWQtZDhmZGFjZTAyNG

Rita Durão em "As Bodas de Deus" (João César Monteiro, 1999)

Outro ponto referido pela Rita [Azevedo Gomes] é que a língua não poderia ser entendida como uma barreira à sua participação, visto que ela desejava manter a química encontrada entre si e Pierre Léon.

De facto, eu e o Pierre tivemos mais tempo juntos durante a rodagem do filme, e virtualmente, através dos nossos ensaios via Zoom. Eu o conheci em … julgo ter sido em Locarno, o qual acompanhei a Rita com um outro filme dela, e aí fui apresentada ao Pierre e automaticamente nos demos naturalmente bem. De alguma forma, penso que a Rita guardou essa memória, esse sentimento, pelo que mais tarde lá reencontramo-nos durante “A Portuguesa”, uma experiência que adorei. O meu papel nesse filme era muito secundário, julgo só ter tido uma deixa e era algo baço, mas encontrava-se constantemente presente em cena, e com isso ia observando tudo à minha volta. Porém, aconteceu uma interação entre nós que deslumbrou a Rita. Julgo que foi a maneira como nos relacionamos um com ou outro nessa determinada cena que a marcou, guardando os ingredientes necessários para nos voltar a juntar. “Um dia, gostaria de juntar a Durão e o Pierre num filme, e ver o que isso gerará”, deve ter pensado, pelo menos, é o que me deu a entender no tal telefonema. 

Desde “A Conquista de Faro” (2005) que a Rita [Durão] tem sido recorrente nos filmes da Azevedo Gomes. Sente que, de certa forma, o Cinema dela encontra-se inteiramente ligado à sua figura?

Francamente, não me lembro como é que conheci a Rita, mas recordo de estar na “Conquista de Faro” e aperceber-me da química que estávamos a criar. Ela gosta particularmente de trabalhar com equipas pequenas, mais íntimas possíveis, sendo uma característica que também me interessa, porque permite uma observação de tudo que está a acontecer. Outra característica da Rita é de manter-nos envolvidos intrinsecamente no projeto e levar-nos a irmos além do nosso respetivo ofício. Ela proporciona esses momentos, enquanto realizadora, não guarda as dúvidas para com ela, partilha-as com a equipa e incentiva a procurarmos uma solução juntos.

Sinceramente, acho que fomos criando uma cumplicidade. Começou com os momentos artísticos e foi saltando para nós enquanto mulheres e depois enquanto amigas. Sim, é sobretudo uma relação de amizade.

Mas foi com Rita Azevedo Gomes que teve, possivelmente, um dos momentos altos da sua carreira no Cinema. Refiro a “A Vingança da Mulher” (2012), filme que a colocou como plena protagonista e que a premiou com a distinção de Melhor Atriz da Sociedade Portuguesa de Autores. 

Não sei. Não com isto dizendo que não estou agradecida aos prémios, dos quais são bons de receber, tratando-se de uma prova de que o nosso trabalho é reconhecido, assim como o filme e da equipa também … mas o que importa referir aqui é que a “A Vingança da Mulher” foi um filme bastante especial resultante de um trabalho intenso e conjunto entre mim e a Rita. Nós nos reunimos, com a devida antecedência, para preparar este filme. Intensamente discutimos essas ideias, as cenas, os diálogos, a dicção. Aí houve um trabalho muito grande entre a pessoa que diz, a que escuta, a que realiza e a que vai encenar. Uma consolidação de uma grande proximidade que já se adivinhava, seja de projetos anteriores, mas acima de tudo, e devido à natureza do filme e a do meu papel, originando horas e horas de conversa a propósito do mesmo e na órbita desse mesmo filme. “A Vingança da Mulher” abre a janela para outros temas e outros entendimentos. 

Fora Rita Azevedo Gomes, existe outra realizadora o qual tem sido presente nos seus trabalhos - Catarina Ruivo - desde a sua primeira longa-metragem (“André Valente”, 2004), passando por “Daqui P’rá Frente” (2008) e contracenando com o ator Pedro Hestnes, no seu último papel (1962 - 2011), em “Em Segunda Mão” (2012).

Sim, é verdade, também tenho uma cumplicidade com a Catarina. Obviamente que são pessoas bastantes diferentes, mas acabo por me identificar com elas da mesma maneira. São duas mulheres importantes para mim de alguma maneira, lançam-me desafios, deixem-me integrar na concepção dos respectivos projetos e são “abertas” para mim. Gosto de as escutar. 

0b5fecddda3fcccceafc35b259b1d361.jpg

Leonardo Viveiros e Rita Durão em "André Valente" (Catarina Ruivo, 2004)

Gosta de que lhe desafiam artisticamente?

Sim, gosto [risos].

Distanciando destes dois universos, a Rita partilhou uma romã com João César Monteiro em “As Bodas de Deus” (1999) … 

Sim. O Cinema é também isso, a vida a “mexer-se” e o meu primeiro encontro com o João César Monteiro foi desencadeado por esse mesmo movimento. Ele procurava alguém para aquele papel e eu acabei por cruzar-me com ele, o que me garantiu a personagem. E a verdade é que por questão geracional, ambos [Rita Azevedo Gomes e João César Monteiro] acabavam por gostar das mesmas ‘coisas’, frequentavam os mesmos círculos culturais, sendo normal que tivessem a mesma aproximação, o mesmo universo, a mesma familiaridade. 

Com o João César Monteiro ainda trabalhou em “Branca de Neve” (2000) …

Eu não participei no “Branca de Neve”.

Mas encontra-se creditada no projeto.

Sim, tenho conhecimento disso, mas não sei porquê. Era para participar, mas por algumas razões não cheguei à fase final do filme. Não apareço no filme.

Acho que ninguém “aparece” no filme [risos]

Sim. [risos]

Prosseguindo, depois participou no “Vai e Vem” (2003), o último filme do César Monteiro. Como foi trabalhar com ele? 

Essa é uma pergunta que me fazem tantas vezes. Tive uma relação muito especial com o César, aliás a minha forma de trabalhar é, prioritariamente, de criar laços de cumplicidade, gerar uma relação de cuidado para com a pessoa e para aquilo que me é proposto. 

Eu gosto muito de observar os realizadores, da mesma forma que eles nos observam, também gosto muito de observá-los. 

Nesse seu campo de observação e visto possuir uma carreira que oscila entre o Cinema e o Teatro, tenta "transferir" experiências de um território para o outro? 

Sim, porque as ‘coisas’ não devem ser arrumadas nos seus cantinhos como gavetas. As gavetas devem permanecer “semi-abertas” para que deem espaço para criação e transferência de ideias de um território para o outro. Pelo menos penso dessa forma, porque muitas vezes eu roubo do Cinema, elementos que levo para o Teatro e assim sucessivamente. 

E quanto ao Teatro, existe uma certa afinidade deste território no cinema de Rita Azevedo Gomes.

Sim, há uma construção de cenas e situações que nos remetem ao universo teatral. Cada cena decorre num determinado sítio e num determinado tempo que é permitido de alguma forma ser inventado ou reinventado, e todas aquelas cenas possuem um significado, uma representação, cabe ao espectador tentar compreendê-las e sucessivamente encaixá-las. Soa tanto a Teatro.  

Só que no Teatro existe um contacto direto com o seu público no ato da sua criação, não uma reação à posteriori.

Sim. Mas antes da peça em si, existem os ensaios. É um pouco de Cinema dentro do Teatro, que por sua vez, acaba por ser o Teatro dentro do Cinema. Essa questão do público é uma questão de consciência, nós sabemos que o que fazemos irá ter um público em determinada altura, portanto, tentamos antecipar essa reação, seja no Teatro, seja no Cinema. A grande diferença, é que no Teatro, por vezes temos uma reação direta e manifestante, por exemplo, o riso ou a tensão, a energia emanada no público. No Cinema, não temos essa energia, mas temos outra libertada na cena, na cinematografia, ou entre nós, no qual sentimos, depois temos a restante equipa que nos observa, um público improvisado, naquele preciso momento é como se tivéssemos uma espécie de Teatro íntimo. 

image-w1280.jpg

Rita Durão em "A Vingança da Mulher" (Rita Azevedo Gomes, 2012)

Qual é a sua “reação” ao termo que tem ganho uma conotação pejorativa que é “teatro filmado”? Relembro que é diversas vezes dirigido ao cinema português.

Não tenho muito para dizer sobre isso. Acho que o “teatro filmado” pode ser algo extraordinário desde que faça sentido a sua existência. Quanto à conotação … sinceramente, não sei muito bem o que dizer.

Falou-me há pouco do francês vindo dos “filmes que a acompanharam”, pergunto se Éric Rohmer entra nesse cardápio?

Não entra muito, para dizer a verdade. Quanto a Rita falou comigo sobre o projeto, percebi que não era um realizador do qual acompanhava. Na altura, achei por bem não ver nada dele para que não haja influências. O que fiz, e do qual adorei fazê-lo, foi consultar as suas entrevistas, o de ouvi-lo falar sobre os seus pontos-de-vista, do que pensava, da sua perspectiva quanto à Arte, à Vida sobretudo. De resto, tentei manter-me como uma “folha em branco”, preferi essa abordagem ao invés de me aprofundar no seu universo cinematográfico Se tivesse feito isso, teria como consequência de me sentir aquém do seu estilo ou algo do género, e nisso condicionar-me. Senti que os filmes poderiam ter um efeito diferente no “O Trio em Mi Bemol”, poderia não funcionar a aproximação do mundo da Rita com o do Rohmer, por isso evitei essa abordagem. 

E no final disso tudo - depois do “O Trio em Mi Bemol” - não ficou com vontade de espreitar a sua cinematografia?

Fiquei, mas confesso que não tenho tido o tempo necessário para o fazer. A correria entre o trabalho, os filhos, as peças para ler, não permitem aquele “tempo de qualidade”, que por vezes é essencial para a nossa receptividade. Julgo que o Rohmer merece melhor. 

É sabido também que vai ou já esteve a trabalhar com o Luís Filipe Rocha na adaptação do livro de João Ricardo Pedro, “O Teu Rosta Será o Último".

Estive a filmar com o Luís Filipe este ano, do qual terminamos no início de maio, e … pelo que vou sabendo, está praticamente pronto. Mas não sei mais detalhes nem sequer quando estreará. 

Rita Azevedo Gomes e o nevoeiro em três dimensões

Hugo Gomes, 21.03.22

csm_o_trio_em_mi_bemol_01_6db7c04526.jpg

Há um sentimento de repetição, não em Rita Azevedo Gomes devo dizer, mas em mim, que tenho acompanhado a sua obra e que nunca obtive o privilégio de “presenciar” a realizadora das “imagens em transe” nem o “para aí além”. Sempre deparei-me com o fenómeno como uma espécie de exagero subtilmente implantado entre nichos como resposta a um cinema que tem se espalhado fora desse concentrado de adornos intelectuais e ócios comumente replicados, tendo como centro a Cinemateca (o qual trabalha como programadora), a raiz de toda uma ideologia cinematográfica que por aí expande ou fomenta. Basta verificar nos seus defensores do outro lado do Oceano Atlântico, que por um lado olham para o Cinema Português de uma forma limitada ou a encaram como uma homogénea demanda, nunca sobressaindo das linhas oliverianas ou cesarianas, e por vezes tendo em conta uma trajetória própria de Pedro Costa. 

Quanto a Rita Azevedo Gomes, novamente cito João Bénard da Costa, ator-convidado ao seu "Frágil como o Mundo” (a sua melhor obra até à data) em que explicita um nevoeiro que amedronta os corações dos Homens, essa mesma neblina, desconhecida salienta-se, empesta o potencial de uma realizadora em conseguir um cinema que seja seu por direito, e que não invoque as auras tidas de um Oliveira, de um César Monteiro ou até mesmo do artista plástico Luís Noronha da Costa (o qual Rita Azevedo Gomes trabalhou como atriz e assistente de realização no ainda muito obscuro “O Construtor de Anjos”, em 1978). 

Por outras palavras, sempre espero mais dela do que meros “filmes para amigos e para específicos amigos”, ou o reconhecimento por detrás daquele travelling serpenteado nos aposentos da decadente duquesa em “A Vingança de uma Mulher” (2012) ou do cuidadoso mise-en-scène em “A Portuguesa” (2018), exista um temor em desconstruir as suas práticas e conhecimentos em prol de uma linguagem própria e desafiante. No fim de contas, Rita Azevedo Gomes constrói quadros de natureza morta, de estagnada vida que por lá reside. Na chegada de “O Trio em Mi Bemol", com base numa peça de Eric Rohmer e o tormento que é em (re)adaptá-la à televisão e por sua vez ao cinema, sou hipnotizado com a seguinte imagem: Rita Durão (atriz-fetiche do cinema de Gomes), “escondida” na quietude da noite, fumando o seu cigarro anestésico, apenas “acompanhada” pela lua cheia que de “braços abertos” abraça-a assim como o mar de costas voltadas para a mesma. Bela imagem, confesso, ressaltando o olho pitoresco e de preciosa perspetiva renascentista da realizadora. 

Quanto ao resto … porém, o resto é fazer teatro escorrer em trajes cinematográficas, enriquecendo em planos conjuntos que desafiam o oscilar das diferentes dimensões. Só que a esta altura do campeonato, os involuntários propósitos de Rita Azevedo Gomes confundem com os propósitos do enredo, transformando tudo aquilo num programa televisivo. Se em parte os dilemas e bloqueios criativos do realizador empenhado à tarefa (Adolfo Arrieta) tentam conduzir o filme para além da sua matéria-prima, por outro, e aproveitando a deixa da assistente de realização a este veterano nos primeiros minutos de “O Trio em Mi Bemol” - “Tudo é uma grande farsa" - não poderíamos estar mais de acordo, os alicerces enferrujados estão à vista de todos, e nem sempre é por culpa da artesã, porque como a própria adianta em prólogo  -“Este filme só existe graças à colaboração desinteressada de todos os que nele participaram”. No fundo o que está implícito é um exercício, e como todos os exercícios não existe muito mais além do ato de exerção do mesmo. O nevoeiro continua por trespassar.

Feliz por fora, triste por dentro

A mera “natureza morta” de Rita Azevedo Gomes

Hugo Gomes, 13.02.19

A-Portuguesa-de-Rita-Azevedo-Gomes-1.jpg

“Gosto do nevoeiro. É uma espécie de medo, o qual esqueci. Por vezes, o que esquecemos é o mais importante”

João Bénard da Costa disse-o de um jeito sereno e envelhecido, enquanto olhava o horizonte desconhecido através da janela da sua casa. É uma das muitas cenas de “Frágil Como o Mundo” (2001), a possível obra máxima da realizadora Rita Azevedo Gomes, em que o antigo e mítico diretor da Cinemateca Portuguesa, em modo ator, fazia prevalecer a sua presença como o último dos pensantes e o eterno amante do misticismo. Mas a personagem encarregue de Bénard da Costa pouco saía da sua casa, e nesse seu abrigo entre quatro paredes, relatava diversas vezes o temor pelo desconhecido à sua espirituosa neta.

É certo que entre Frágil’ e a nova obra, “A Portuguesa”, passaram-se 17 anos. Pelo meio surgiam curtas, médias e longas documentais e um drama inspirado no conto de Jules-Amédée Barbey d’Aurevilly (“A Vingança de uma Mulher”), mas olhando para esta carreira não muito rica, encontramos um medo … um constante pavor. Não existe um risco no seu Cinema. Aliás, é na sua zona de conforto que Azevedo Gomes se refugia. A comodidade da sua cultura-disponível, dos livros às citações palavrosas, ou dos artistas e cineastas com que se relacionou, referindo e ditando esses mesmo sábios, são elementos que tornam os seus filmes em camadas de saudosismo alternativo.

thumb.jpg

Por mais pictórico que “A Portuguesa” (adaptação de Agustina Bessa-Luís de uma história de Robert Musil) seja, as suas imagens estão despidas de qualquer simbolismo e profundidade para além do estético, não existindo, sobretudo, uma ousadia de transpassar a frieza destas. São ilustrações, bonitas ilustrações, cuidadosamente coreografadas, onde destaco o plano-conjunto como a sua língua materna, abordando tudo como gravuras, não vivas, mas dotadas da essência de natureza morta.

Pois … morta! Pois nada aqui vive; os atores são meros bonecos que respiram em prol de um júbilo não-partilhável, alvos a abater para que o cinema dos outros viva. Rita Azevedo Gomes faz um “filme para amigos”, porque nele encontramos as pisadas que os seus “amigos” fizeram e melhor, tendo especial atenção aos ecos deixados por João César Monteiro nos seus tempos de Silvestre ou da memória sempre invocada do épico à Manoel de Oliveira (os despojos de batalha a requisitar os quadrantes de “‘Non’, ou A Vã Glória de Mandar”). São interpretações suas que não saem das ciências aplicadas e em "A Portuguesa" somos conduzidos sobretudo a uma alternativa a essa inexistência.

Sim, é pena que Azevedo Gomes não dê o passo em frente desse círculo de confianças, não avance em direção ao nevoeiro e que enfrente, por fim, os seus profundos medos. A sua visão estética metódica serviria de arma para uma nova vaga do Cinema Português. Ao invés disso, ficou-se pela pintura materializada, sem a existência necessária para brotar.

A Portuguesa não nos deixa respirar ... por outros motivos.

Hugo Gomes, 06.02.19

51951412_10213331748425085_552483706531479552_o (1

Por entre o uso dos planos conjuntos que tornam cada cena num quadro vivo, devemos olhar para A Portuguesa e procurar uma luz de enfoque que nos tire dos traços de natureza morta aqui perpetuados.

Morta? Sim, porque nada disto acrescenta, avança, nem inova no panorama de cinema português dito autoral, até porque, dentro do universo de Rita Azevedo Gomes, já acontecera oportunidades que chegue de sair do dito circulo de amigos o qual influencia e se deixa influenciar. A fragilidade do Mundo e até as vinganças femininas transportaram-nos para outros ares (esperanças assim sublinhadas), mesmo respeitando um legado em cima (devidamente homenageado nos créditos), mas depois da quebra imagética que houvera com Correspondências (a passividade visual ao invés do transe), A Portuguesa é um limbo. Esse mesmo que impede Azevedo Gomes de ser algo mais do que uma condutora de referências. Assim sendo, temos uma ditadora do cinema confortável.

 

"Correspondências": apropriando as palavras dos outros

Hugo Gomes, 05.10.16

correspondencias.png

Há uma mistura de teores que percorre todas estas palavras, desde o poético ao lírico passando pelo simplesmente político, até à preocupação da nossa língua (essa nossa identidade), como a preservação dos nossos ideais culturais e sociais – “devemos ser mais como o gregos” – tal como é referido em determinado ponto. Rita Azevedo Gomes (“A Vingança de uma Mulher”) encontrou a sua matriz, a correspondência trocada entre dois poetas, Jorge Sena e Sophia Mello Breyner, durante o exílio do primeiro no Brasil e posteriormente dos EUA, de forma a “fugir” ao regime fascista que se vivia em Portugal. Porém, para Breyner, a sua escrita remete à recordação de cada palavra como a saudade do seu mais íntimo amigo. Uma amizade separada por quilómetros de distância, mas reforçadas pelas estrofes, pelas frases que substituem horas e horas de conversa.

Belos textos temos aqui! E a realizadora bem o sabe, aliás, até demais. “Correspondência” vem a reforçar a ideia de uma vaga que se vai brotando no nosso seio cinematográfico – um cinema cada vez mais lírico, empurrado pelos textos de uma correspondência antiga – que servem, não só de guião, assim como puro alicerce de uma eventual intriga. Será a saudade vencida por este prolongado método de comunicação, agora perdido pela distância de um clique das novas tecnologias em cumplicidade com as redes sociais que nos atingem, que nos faz invocar referido formato? Será a preocupação com o texto imprimido, a degustação de cada palavra, cada acento, cada parágrafo e até a grafia no seu mais extremo nível, que nos afronta espiritualmente?

A verdade, é que temos aqui um português falado e escrito à beira da extinção, que nos dias de hoje, vê-se atropelado pela globalização e nesta redução de distância de contato entre os mais diferentes pontos geográficos. Será que esta aproximação nos torna menos cuidadosos? Assim sendo, “Correspondências” vem ao auxílio de “Cartas da Guerra”, de Ivo Ferreira, a prioridade do texto-legado, da literatura salientada nas suas imagens. Mas infelizmente, para Azevedo Gomes, Ferreira soube construir uma narrativa visual que pudesse emancipar-se do próprio texto, em “Correspondências” tal isso não acontece, tudo é recorrido à forma de cautela. A nossa realizadora parece ter medo de superar o mencionado texto, focando-se nele e aceitando a aleatoriedade das imagens.

Quase seguindo à letra a poética forma da citação, “Correspondências”  evidencia um “terror de penetrar na habitação secreta da beleza“, o que impede que as encenações tomem conta das palavras residentes e trocadas, sem conseguir apoiar no seu todo. “As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim“, uma miragem nestas “Correspondências” de facto. Nesse aspecto, Rita Azevedo Gomes poderia lecionar-se no seu próprio formato – “será que a vida é a luta das imagens que não morrem?” Ao invés disso, soube criar um belo produto para os nossos ouvidos, a sensualidade de palavras tecidas com a maior das dedicações, quer da sua forma e construção, quer do sentimento nelas depositadas. Poderia ser um grande filme … poderia, mas Rita Azevedo Gomes preferiu encenar um mero exercício de encenação.