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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O Descaramento Indiscreto da Burguesia

Hugo Gomes, 01.06.22

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Anunciado e noticiado, uma revolução acontece no exterior - um aparente caos - apenas ofuscado pela “tempestade perfeita” gerada no centro de quatros paredes, onde o qual o espectador, assim como o quarteto de personagens, testemunharão. Da janela, a revolta do título, é somente um espectáculo para os seus olhos, um fogo-de-artifício que atribui cores nunca vistas na cidade de Lisboa. Noite fatídica para o país, mas tal não interessa, o casal prepara o seu combinado jantar (nada neste mundo os demove a desmarcar tal 'coisa'), um convívio que junta mais dois amigos, cuja sua entrada naquele refúgio de privilégio funcionará como ignição para o cataclismo.   

Esta primeira longa-metragem de Tiago R. Santos (argumentista de alguns filmes de António-Pedro Vasconcelos [“Call Girl”], Leonel Vieira [“O Leão da Estrela”] e Sérgio Graciano [“Perdidos”]), resume-se como uma representação da sua contemporaneidade, um projeto à imagem do seu tempo - os inícios da pandemia onde tudo era “pintado” de branco ou preto - o qual a distopia idealizada cumplicita com o cenário de perturbação social e com isso trazendo para o aquário uma burguesia conformista figurada no casal-protagonista (o qual somos introduzidos entre o calor de corpos que “se esfregam” num sofá de sala).  

Contudo, foi na limitação dos seus recursos que a “Revolta” encontra o seu mote de “know-how”, o de abraçar a sua escassez para extrair a criatividade, e não só. Convenhamos afirmar que os dois factores que sobressaem no filme são, respectivamente, as duas causas perpetuadas pelo realizador (agora emancipado como tal) neste seu percurso pelo panorama português; a priorização do guião e por sua vez o trabalho de atores, duas “qualidades” (as aspas servem no ‘goto’ do leitor, conforme seja a sua ideologia na abordagem a estas propriedades) que dão as “mãos” nesta entropia de relações.   

Por entre o “filme de cerco”, ou a “colisão entre egos”, este primo afastado de “Quem tem Medo de Virginia Woolf?” (equação de desastre em que “forças exteriores” perturbam a "harmonia" do casal) se apronta como uma obra de referências vistosas, incumbidas de trazer uma hipotética “revolução” para apresentar tópicos há muito desvanecidos no cinema português (a sátira em prol da divergência entre classes). Tiago R. Santos apela nesta sua história de catarses e epifanias altamente freudianas, um olhar pelo nosso umbiguismo existencial, pela relação sedentária para com o restante mundo e a distância com que olhamos para as mudanças em redor. Ricardo Pereira e Teresa Tavares interpretam esses seres “parasitários” à sua rotina, uma relação que “sugará” os outros dois peões, todos contribuindo com os seus fados, seja a deriva tempestuosa, seja a solidão disfarçada.   

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Se é óbvio que os calcanhares de Aquiles de primeira obra estão à vista (como fraturas expostas digamos) - desde as menções e as influências não devidamente embrulhadas (um erro em atribuir uma causa à “revolução exterior” o qual  se poderia ficar pela sugestão, notavelmente mais carpenteriano), até pelas quebras rítmicas que os diálogos ocasionalmente demonstram no seu arranque conflituoso - Tiago R. Santos não se camufla no anonimato, há uma vontade própria na sua câmara em dirigir-se naquele espaço, nem que seja a (re)criar uma ligação quase carnal para com Teresa Tavares (a atriz é facilmente destacada até porque inconscientemente o filme a torna no vector físico e emocional do turbilhão). 

No fim de contas, o exercício aliado à necessidade produtiva (sendo um filme rodado no auge da pandemia, contrariando o congelamento de produções e restrições sociais) funcionou, quer na prática e na teórica, como uma ideia executávelmente simples e, simultaneamente, propício a inúmeras interpretações. Através dessa simplicidade deparamos com uma fórmula vencedora que muitos (sobretudo os trovadores do “cinema para grande público”), até então, evitaram, sem razão alguma. 

"Golpe de Sol": Um Vicente com novos pontos de alma

Hugo Gomes, 13.08.20

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Nove anos separam este Vicente Alves do Ó do seu hitchcockiano “Quinze Pontos de Alma” (a sua primeira longa-metragem em 2011), a ainda imbatível “obra-prima”, e tendo em conta essa linha direta que reúne comédias disparadas e biografias do foro artístico é que questionamos, o que ficou do velho Alves do Ó e o que podemos contar com o novo?

A verdade é que o realizador, que encontrou sucesso em “Florbela” (a segunda longa-metragem que posteriormente se converteria numa série televisiva), é um homem constantemente assombrado pela sua existência, quer vindo das memórias do passado, quer do presente que o atormenta, quer o futuro o qual deseja vincar. É quase, em jeito de má-língua, um Almodovar de marca branca, no sentido com que idealiza as suas pessoalidades e que as impõe nas suas obras, nunca escondendo a sua natureza emocional, afetiva e sexual (tal como o cineasta espanhol).

Com “Golpe de Sol”, o realizador encontra-se ciente que este filme é uma desculpa para uma introspecção, uma psicanálise autoinduzida, e como tal, reparte a sua alma em quatro personagens aparentemente distintas, mas igualmente confundíveis nos propósitos e nas suas géneses. Convém salientar que não há artista algum que não trabalhe o seu íntimo, e quem não o faz arrisca-se a ser um mero técnico / tarefeiro. Por mais que se adore ou odeie Alves do Ó (ele tem a capacidade de alimentar essas duas esferas), nunca o poderemos acusar de falta de personalidade ou de isenção artístico-criativa.

Porém, com esta obra … esta, mesma, longe dos seus piores trabalhos (refiro às suas falhadas experiências cómicas como “O Amor é Lindo … Porque Sim!” e “Quero-te Tanto!”), é o filme que mais revela as suas arestas a merecer ser limadas enquanto realizador de corpo e alma. Entre as quais, o completo ego retraído que invalida de uma total entrega emocional nas personagens – quatro adultos prontos a conviver numa residência da costa vicentina, numa tremenda espera por um quinto elemento que lhe trará assuntos pendentes.

Nessa questão, a das personagens, nota-se a dedicação dos atores em construí-las e enraizá-las neste mesmo universo, com especial atenção a Ricardo Pereira na sua demanda pela transgressão de estereótipos já ultrapassados (mas que no nosso audiovisual ainda somos presenteados, graças à escassez da representação), e o alicerce valioso do qual se assume a banda-sonora (“bullseye”) – o artista brasileiro Johnny Hooker – a implementar a ênfase dramática que Alves do Ó não consegue de forma alguma (os atores parecem reconhecer isso, porque os seus gestos são sincronizados com a cadência do cantautor).

Ele próprio afirmou que se sente, por vezes, megalómano, e essa megalomania o atrapalha em tentar resolver trabalhos simples e quase niilistas como este “Golpe do Sol”. Por isso, respondendo à pergunta pontapé de saída que coloquei, a grande diferença está nessa aproximação com o futuro que o espera. Enquanto “Quinze Pontos de Alma”, indiciamos um realizador a emancipar-se perante o panorama que se inseria, em “Golpe de Sol”, testemunhamos um homem preocupado com o seu legado, e aquilo que as futuras gerações o poderão interpretar.

Ivo M. Ferreira: "É estranho como uma tragédia do século XX não é falada, nem estudada"

Hugo Gomes, 01.09.16

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Tudo começou com correspondência. As cartas escritas pelo jovem alferes António Lobo Antunes para a sua primeira mulher, tornaram-se com o passar dos anos mais do que um romance de longa-distância, num olhar intimista e desesperante duma realidade deslocada, porém, certa para muitos dos jovens portugueses de ’68. As Cartas da Guerra ganharam notoriedade como livro, desvendando um escritor em busca de si mesmo no mais austero dos cenários, agora convertido num filme com tamanha dimensão política e sobretudo existencialista. Ivo Ferreira foi o mentor deste bélico português onde a verdadeira guerra reside no interior de cada ser. O Cinematograficamente Falando … com o realizador sobre a sua terceira longa-metragem, um “parto” difícil que resultou num filme ímpar da nossa cinematografia.

Gostaria antes de mais, perguntar o porquê de António Lobo Antunes e o porquê deste livro concretamente?

O porquê deste livro? Bem, porque quando o li tive a consciência que estava perante de material fortíssimo, quer em termos históricos (é em todo o caso um documento), topográficos, estamos a falar de um melhores escritores de sempre da Língua Portuguesa … e do Mundo, e é composto por uma magnífica história de amor. Não consigo responder exatamente o porquê de António Lobo Antunes e deste mesmo livro, mas é fantástico este acumular de cartas, organizadas pelas suas filhas, tendo em conta que eram cartas guardadas pelo autor enquanto alferes miliciano. Cartas que trocava com a sua mulher, que na altura estava grávida da primeira filha. Ainda mais fantástico é a forma como ele olha e descreve as pessoas em seu redor, esses homens que estão a sair do seu país, “empurrados” totalmente para aquela guerra absurda e fora de tempo. 

Fala-se de complicações na produção. O filme demorou bastante tempo a ser concretizado, por algum motivo?

Houve complicações porque o Estado faliu e o ICA não tinha dinheiro. Época, Guerra e África são três componentes que afastam qualquer produtor entusiasmado, e quando começou-se a construir a parte financeira do projeto, a parte portuguesa não estava concretizada, isso não só bloqueou o filme, como também repugnou a tentativa de coprodução. Porque Cartas da Guerra era por si um filme com interesse em ser internacionalizado. Mais tarde quando veio o dinheiro tivemos a consciência que se íamos filmar em África iríamos gastar todo o dinheiro do “bolo“, logo na rodagem. Estávamos todos falidos, então lancei-me numa jogada arriscada – e se eu terminar o filme?

Um facto é que iniciamos a rodagem em Abril, começamos a montar de imediato, fomos a Veneza, pelo qual fomos selecionados pelo European Gap-Financing Market para participarmos num fórum, e em dois dias conseguimos financiamento para o resto do filme. O filme demorou muito tempo, sim, mas não foi porque andamos a “empatar“, não sei se é recorde mundial, mas desde o momento em que começou a rodagem até à Competição em Berlim, foi bastante rápido.

Em Berlim, Cartas da Guerra foi constantemente apontado como um dos potenciais candidatos ao Urso de Ouro. Como se sentiu perante tais aclamações?

Só o facto de estar em competição num dos melhores festivais do Mundo já é fantástico, não com isto seja falta de ambição mas é por si um motivo para estar satisfeito com o filme.

É verdade que os atores foram submetidos a uma “recruta de preparação“?

Algo que temos que ter em conta, visto que vamos ter atores a desempenhar soldados num cenário de Guerra, é garantir que os atores tenham ou conheçam formação militar. Muitos dos atores já nem se lembravam dos seus tempos militares, outros nem sequer foram à tropa, então teria que haver rigor nesta encenação. Os atores teriam que, por exemplo, saber como pegar uma arma ou até mesmo subir um Unimog [designação de uma série de caminhões off-road produzida pela Mercedes-Benz, utilizados sobretudo em serviço militar]. Aliás, as primeiras imagens dos nossos atores fardados e munidos com a G3 a tentarem subir pela primeira vez um Unimog, era realmente um filme muito cómico. Eles também teriam que experienciar a “pressão“, nesse aspeto os Comandos foram “simpáticos“, não para os recrutas como é óbvio, porque era preciso que eles sentissem a violência, quer física e psicológica, como preparação para uma eventual guerra.

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Ricardo Pereira, Margarida Vila-Nova, Miguel Nunes e Ivo M. Ferreira no Festival de Berlim

As Forças Armadas Portuguesas tiveram um importante papel na rodagem do filme?

Sim, portuguesas como também angolanas. Tivemos sobretudo um apoio imenso das Forças Armadas Angolanas. Esta ajuda não foi preciosa, nem dispensável, foi completamente impossível fazer este filme sem o apoio deles. Eles proporcionaram-nos tudo, desde logística a armamento. Falamos também em helicópteros, Unimog, Kamazes que foram emprestados pelo exército para transportar mais de 40 toneladas de material para a construção do aquartelamento. Nós construímos aquilo do meio do nada, tivemos até que reconstruir a ponte que dava acesso ao aquartelamento.

No fundo, o Ivo Ferreira filmou um filme de guerra, cuja guerra está ausente.

Ausente no pensamento deles. Aquilo é uma guerra pouco convencional, é a guerra do “toque e foge“, os aquartelamentos estavam perdidos no meio do nada, supostamente eram posições estratégicas, uma estratégia um pouco questionável portanto, eles estavam a tentar defender a Zâmbia. Aquilo é que era o quotidiano daqueles soldados, o afastamento, o isolamento, eram essas as verdadeiras guerra daqueles homens. No filme, os inimigos são eles próprios. 

Em determinada cena, enquanto os soldados se limpam numa casa de banho de campanha é possível visualizar um retrato de Salazar numa pia. Tal imagem é uma provocação ou somente uma demonstração do desgaste psicológico e da consciência política destes homens após meses no aquartelamento?

Os soldados estavam a viver numa altura difícil. Encontravam-se a lutar numa guerra moribunda, uma guerra falida, uma guerra “estúpida” fora de época, simplesmente porque a ditadura não permitiu uma fácil descolonização. Aliás, em 68 (o ano em que decorre o filme) não havia qualquer motivo para persistir em colónias, a Guerra da Argélia já terminou há anos.  Essa imagem só esclarece a segunda fase desta estadia, o facto dos soldados encararem o fascismo, essa ditadura, como o verdadeiro inimigo. Obviamente que mais para a frente o inimigo acaba por ser eles próprios, ou seja, o pensamento deles passa a ser “e se sobrevivermos“. 

Uma natureza entre os soldados, algo que está descrito no filme, é que estes sonham regressas à vida civil, porém, não sabem concretamente o que fazer com esse retorno.

O que sei, é que os suicídios ocorridos durante esse período, não aconteciam durante a Guerra propriamente dita, mas sim, no regresso a casa. Estes aconteciam antes de voltarem a Portugal, derivado ao facto deles terem mudado tanto, mas tanto, que não sabiam mais como receber a dita “vida normal“. Por isso, sim, esse é o grande drama da personagem principal.

Mas nesse drama é também acrescentado, como refere o próprio Lobo Antunes, com um aparecimento de uma consciência política.

Sim, ele próprio diz isso nas suas cartas: “O meu instinto conservador e comodista tem evoluído muito, e o ponteiro desloca-se, dia a dia, para a esquerda: não posso continuar a viver como o tenho feito até aqui.” Essa consciência politica também foi alimentada com o constante contacto com um Capitão, que foi o Capitão Ernesto Melo Antunes, que no filme é o seu parceiro de xadrez.

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Quanto a novos projetos?

Vou começar a filmar uma nova longa ainda este ano, na China-Macau, intitulado de “Hotel Império“, uma coprodução portuguesa com atores portugueses e chineses.

Também, estou a preparar um outro trabalho, um filme pesado com um orçamento de igual adjetivo, sobre um tema idêntico a este da Guerra Colonial. Este filme, que terá data para 2018, será sobre as FP25, as Forças Populares 25 de Abril, uma organização terrorista portuguesa.

Perguntam-me constantemente, “mas para quê? Se os que lá tiveram, os que viveram isso não querem falar sobre o assunto, porque raio você quer ?

Como nasceu essa necessidade de falar daquilo que ninguém quer falar? Acredita que temas como este [Guerra Colonial] devem ser abordados para as novas gerações, por exemplo?

Sou fascinado por buracos negros, baús fechados e quartos privados e se sinto que há um assunto interdito, tabu, quero mais que tudo “falar” sobre ele. É muito estranho como é que na nossa História recente, os nossos livros de História passam do Estado Novo com duas ou três imagens, tocamos na Guerra Colonial com duas ou três linhas, passamos por uns indivíduos com cravos nas mãos e pronto chegamos a uma bandeira azul e umas estrelas. É estranho como uma tragédia do século XX não é falada, nem estudada. Claro, é olhando o passado que poderemos preparar o futuro.