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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Noémie, a anti-virgem?

Hugo Gomes, 20.11.24

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Não pretendia seguir este ponto, por isso perdoem-me a hipocrisia ou até mesmo a subjetividade dentro da subjetividade, e vamos encarar como tal: este “Emmanuelle” é, enquanto suposto “filme erótico”, um objeto deveras entendiante. O que supostamente não seria um sentimento vivido neste subgénero tão em queda, mas se nos novos tempos cinematográficos - oscilando pelo progressismo sexual e um certo puritanismo em outras frentes - o erotismo parece não ter espaço lúdico no ecrã. Culpamos o quê e a quem afinal? A expansão da pornografia, enquanto pseudo-indústria ou a acessibilidade virtualmente sem obstáculos? Os novos moldes e pensamentos da intenção erotizada? A expulsão do olhar masculino [“male gaze”, academicamente falando] deste género? Ou a sua desconstrução primordial, muitas vezes ao serviço de uma cultura, que a direita adora exclamar indignamente como, woke? Fica os culpados em suspenso. 

A refilmagem de “Emmanuelle” de Audrey Diwan (“L'Événement”) é uma busca pela dignidade da própria personagem, esta eternizada por Sylvia Kristel num problemático filme de 1974 [de Just Jaeckin], que resultou num franchise enormíssimo e com foz em absurdos (“Emmanuelle no Espaço”, por exemplo). Sem Sylvia, é Noémie Merlant a vestir a personagem criada por Emmanuelle Arsan, que bem poderia chamar-se algo como Patrícia ou até Jéssica que o resultado seria o mesmo (nunca é chamada pelo nome que serve de título), uma mulher bem-sucedida no sentido lato ou intensificado na literatura de cordel, em Hong Kong ao serviço da sua empresa, explorando o biótipo de um hotel luxuoso enquanto debate com o seu (fugido) prazer. Basta reforçar o velho esterotipo do Poder com a frivolidade e daí o sexo sem sabor, preenchido com o mistério de um hospede intrigante e errático. “Emmanuelle” tenta desconstruir a fantasia e o desejo numa extensa conversa de engate de verborreia pouco imaginativa (Rebecca Zlotowski, co-argumentista, foi mais espontânea no seu deleite “Une fille facile” do que na lascividade dos outros), e a câmara de Dwan entende-se como demasiado tímida para prosseguir na aventura desta mulher à beira de um orgasmo. 

O final, talvez o único momento de erotismo no sentido estético, efabulado em jeito softcore a manifestar-se na réplica de Wong Kar-Wai trambolho, não compensa a jornada de uma heroína sem grandes empatias num filme sem grande tesão. Mas já deveríamos esperar tal resultado, os créditos iniciais apresentavam um N vermelho … maldita Netflix, a contribuir para estes objetos assexuados sem eira, nem beira.

Falando com Rebecca Zlotowski: "queria desesperadamente fazer um filme com sexualidade, prazer, paixão e barcos"

Hugo Gomes, 26.12.19

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Rebecca Zlotowski / Foto.: Marie Rouge - Unifrance

A rapariga pode ser “fácil” como o título indica, mas o filme não o é. A francesa Rebecca Zlotowski demonstrou nos últimos tempos ser capaz de entregar um cinema diversificado inserido no universo feminino.

Depois da fantasia de “Planetarium”, onde trabalhou com estrelas do cinema (Natalie Portman e Lily-Rose Depp), a realizadora parte agora de uma figura controversa da nossa “realidade”: Zahia Dehar – antiga prostituta envolvida no famoso escândalo com alguns jogadores da seleção de futebol francesa – para instalar-se numa abordagem libidinosa, mas sobretudo reflexiva quanto aos desejo de uma mulher.

É a “Rapariga Fácil” (“Une Fille Facile”), um filme que para além do tema nos remete ao imaginário erotizado dos anos 60 e 70, encontrando o espectador na imagem da própria Dehar, os “fantasmas” de Brigitte Bardot e Sophia Loren.

O Cinematograficamente Falando … teve o privilégio de conversar com a realizadora sobre o seu novo filme e o trabalho com os atores que preenchem este coming-of-age da Riviera Francesa, incluindo o português Nuno Lopes.

Na sua carreira, todos os seus filmes têm sido extremamente diferentes….

Obrigado… [risos]. Sou apaixonada por cineastas que mantêm uma filmografia diversificada. Penso por exemplo em Sidney Lumet. Nunca fez o mesmo filme. O Elia Kazan, igual.

Como nasceu este projeto?

Quando começamos um projeto, este tem sempre várias origens. Tens uma origem sentimental, outra política, e depois existe o desejo de ficção e o acaso. No desejo de ficção, posso dizer que há muito tempo que tenho esta história – duas mulheres a namoriscar com tipos ricos – em mente. Gosto desta história, mas não sabia o que fazer com ela. Depois o caso Weinstein aconteceu e todas aquelas questões sobre dominação, desejos, personagens subversivas, e abuso de poder levantaram-se e isso fez-me questionar.

Depois, estava a chorar a morte de alguém próximo e queria desesperadamente fazer um filme com sexualidade, prazer, paixão e barcos [risos]. Pensei: vamos a isso. Foi lá que conheci a Zahia Dehar. Estava a pensar nesta mulher, que fez parte de um caso famoso de prostituição [com jogadores de futebol]. E como toda a gente em França ouviu falar desse caso, tive uma empatia imediata. Gosto de defender pessoas que os outros odeiam. Homens e mulheres. E estava interessada no facto das pessoas a odiarem. Por sua vez, ela era uma mulher extremamente sexy, árabe. Isso imediatamente atraiu-me.

Depois, ela fez um pedido para me seguir no Instagram. E gostei do facto dela não ter publicista. Não sou muito famosa, por isso certamente esta pessoa devia ser uma cinéfila. Depois investiguei, talvez ela quisesse ser amiga de toda a gente no cinema, mas não. Nada disso. Ela selecionou apenas algumas pessoas. Posteriormente vi os vídeos que ela publicava e fiquei maravilhada com a sua forma de falar. Nunca a tinha ouvido falar. Há tantas mulheres que vemos constantemente e nunca ouvimos a sua voz. Gostei de a ouvir e gostei mais ainda porque ela falava como uma personagem dos anos 60. Super elegante, super misteriosa, completamente diferente das pessoas que os reality shows nos trouxeram nos últimos anos, que são normalmente grosseiras e vulgares.

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Gosto do kitsch e da vulgaridade, mas ela não fazia parte disso. Ela tinha uma interessante justaposição de elementos que me fizeram projetar alguém no universo rohmeriano. E claro, Itália fazia parte desse imaginário, os anos 60, a estrela de Cannes, todos os filmes que amo, etc. E nisso nasceu o projeto.

E sempre quis situar o filme em Cannes?

Não. O aspecto mítico de Cannes não fez parte do processo, embora se o filme não tivesse sido selecionado para o festival eu estaria bem lixada. [risos].

Eu precisava do imaginário da Côte D’Azur, a Riviera, onde os iates podem estar junto aos restaurantes. Onde encontramos os ricos, nos seus barcos, a jantarem junto aos turistas. E eu via muito isso quando passava férias com uma tia em Nice. Queria uma imagem de obscenidade, exibicionismo e indecência que é o questionado por este filme. Quem é na verdade o mais exibicionista no filme? Quem é o indecente? Talvez todos. Talvez o prazer esteja nos que chegam de iate, mas também nos que assistem a isso. Sucede o mesmo com uma mulher subversiva como a Zahia. Ela é parte do seu próprio prazer e parte do prazer de quem está à frente dela. Por isso, o filme precisava ser feito.

Mas o filme é também um coming-of-age?

Sim, porque sentia-me mais próxima à Nayma. Eu sou muito inofensiva. A minha emancipação veio através dos estudos. Estudei até aos 25 em França e é tradicionalmente assim. Por isso senti-me mais próxima dela, de uma personagem não muito sexualizada que faz o seu caminho normalmente e que assume a famosa frase do Pascal [que surge nos créditos iniciais do filme]: que o mais importante nas nossas vidas é a escolha da profissão. E no final ela decide. E decide porque foi confrontada com a exaustiva liberdade da Sofia, com o comportamento indecente daqueles homens, da mentoria de um tipo – que a aconselha a ser mais brava do que é, porque se sente um escravo – , o desprezo da sua própria turma. Ou seja, é um verão.

É muito terna com todas as personagens do filme, não só com as raparigas…

Sou uma pessoa terna… [risos]

E pode explicar então essa ternura por aqueles homens?

Sinto desejo por eles. Levou-me anos – com o Ken Loach e os Dardenne como mentores. Queria ver no cinema a vida de gente rica. Queria que o cinema trouxesse a vida hollywoodesca. O cinema americano fez parte do meu processo, o cinema italiano também. Queria mostrar a vida dos bonitos e famosos. Claro que tive outros desejos, mas respondendo de uma forma franca, creio que a minha responsabilidade como cineasta é construir personagens de uma forma muito justa. E se olhar para as mulheres de uma forma justa, olho para os homens também de uma forma justa. Às vezes vejo construções de virilidade que de forma alguma reconheço. A minha responsabilidade era mostrar aqueles homens, não como os grandes produtores, de cigarro na boca, a serem abusivos com estas mulheres. Não. Eles também são muito sedutores e sensíveis. E entendo completamente que a Zahia queira ter sexo com o Nuno Lopes.

Pode desenvolver um pouco a forma como lida e mostra a sexualidade no filme, até porque é fabulosa?

A parte mais engraçada é que este filme usa o humor também como uma arma. Por exemplo, a Catherine Breillat que é uma grande inspiração no cinema francês, mas não o é para mim de forma direta. E não é, porque não usa muito humor. É outra geração, outro projeto de cinema que admiro muito.

Eu decidi usar um tom mais terno. E se reparar, nas cenas de sexo, nós vemos o rabo do homem, assistimos a ser ele a dizer “eu sou teu“, e não ela. Ele é que diz: “faz o queres de mim” e abandona-se ele próprio desse prazer. Ou ele ter um dedo no rabo. Desculpem dizer isto [risos], mas é algo muito comum e não se vê nunca isso no cinema. A um certo momento, precisas que a tua realidade seja mostrada pela representação.

Pode comentar a escolha do Benoît Magimel para o papel?

Ele é fantástico. Não faço ideia porque não trabalhei com ele antes. Ele transmite e carrega uma certa melancolia. Nós conseguimos perceber que ele adora o sucesso, que ama a literatura. É uma combinação de várias dimensões. Entendo completamente porque o cinema francês o usa tantas vezes como alguém generoso. Alguém que transforma as outras pessoas em alguém melhor.

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E a escolha de Nuno Lopes?

Tenho uma relação forte com Portugal, por causa da minha mãe – que morreu quando eu era pequena. Ela era professora de Espanhol e de Português e traduzia livros. Por acaso, eu abria livros e estava lá o nome dela. Ela colaborou como tradutora. Queria ter a certeza que a dimensão da colonização não estava no filme. Como a Zahia era uma mulher árabe, aqueles tipos no iate tinham de ser mediterrâneos. Se não fossem, iria adicionar uma camada suplementar social que não desejava.

E porquê o título “Une Fille Facile”, um foco mais na rapariga?

Escolhi “Une Fille Facile” porque não existe [a expressão] “Un Garçon Facile”. Mas os homens são fáceis. É muito fácil ser convidada para ir para estes iates. Era uma forma de comentar, questionar, o que é uma rapariga fácil? O que é uma vida fácil? O que é uma mulher difícil? Foi apenas uma escolha sem qualquer hipocrisia. Olhar para o primeiro cliché que esta mulher transmite e partir daí para acabar com ele.

A erotização da personagem, acha que seria possível se escolhesse alguém que não fosse já famosa por isso?

Acho que sim, mas era mais interessante com estas camadas logo definidas. Acho que é por isso que adoro trabalhar com atores e atrizes profissionais. Ela é uma estreante, mas a sua vida passada era como uma coleção de papeis. Quando se trabalha com a Catherine Deneuve, Isabelle Adjani ou o Benoît Magimel usamos os papeis que eles tiveram no passado. Gosto de jogar com isso. Não quero apagar o seu passado. Era mais interessante ter este filme com o imaginário da prostituição do passado, mesmo que esse não seja o tema de todo.

Não existe um elemento de risco na objetificação do corpo da personagem?

Sinto-me muito corajosa. Acho que temos de ser ousados para fazer declarações firmes. Este tema é interessante de discutir com a audiência. Como sabe, sou uma feminista declarada e muito ativa, faço parte da 50/50, que fundamos com a Céline Sciamma. Sinto que não tenho de sentir aprovação nas atividades neste campo, mas sinto que tenho de trazer algumas nuances e um certo libido, um maior erotismo e clarividência nesta luta em França. Isto talvez seja estranho no seu país: “isto é esquisito, porque ela é um objeto, mas não é uma prostituta”. Acho que esta é uma boa maneira de fazer um tributo a estas personagens.

É um filme complicado sobre uma mulher complicada, subestimada. O que não está no filme são questões de classe. Pode falar um pouco disso?

Sim, claro. Na própria erotização existem logo várias questões de classes. Em todo o lado há questões de classes, questões de corpo, questões sociais, questões monetárias. Em todo o lado, a toda a hora. No filme temos de interiorizar o alcance da sociedade nela. Se não acontecer, o filme está incompleto. Eu não posso fingir que trago esta personagem e a construo, sem trazer gente silenciosa que simplesmente a observa. Mas a violência social que acho mais importante é a violência social que vem de dentro da tua própria classe.

Acha que as mulheres conseguem por vezes ser mais agressivas com as mulheres que os próprios homens?

Sim, sinto isso. É como quando és pobre e depois não és e não queres de todo voltar a ser. Os eleitores de Bolsonaro e Trump são os mais pobres. Por isso, quando sobes um bocadinho tens um tal medo de descer que te tornas mais agressivo com aqueles que te ameaçam. Sim, definitivamente as mulheres podem ser as piores para outras mulheres. Mas, no meu caso, nunca experienciei nada para além de solidariedade e sororidade vindas delas. Mas também, nunca ninguém foi violento comigo. Talvez seja abençoada por isso.

O racismo social foi algo que gostei de jogar no filme, mesmo que de uma forma ligeira.

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Houve algum desafio particular em termos técnicos para este filme?

Sim, no som. Nós filmamos num mês porque tive de filmar algo logo a seguir, uma série que será exibida no Canal+. Por isso sabia que teria de me apressar devido a agenda. O som foi difícil, porque quando estamos na Côte D’Azur, no período do verão, é uma explosão de gente. Mas o meu engenheiro de som foi um génio, ele trabalha com o Bertrand Bonello, Olivier Assayas, Arnaud Desplechin. O som foi um problema, as locações foram outro.

Pode falar da tal série de TV que filmou, “Les Sauvages”?

“Les Sauvages” é uma adaptação de uma obra de Sabri Louatah, é um trabalho político que aborda o primeiro presidente de origem árabe de França, interpretado por Roschdy Zem, que sofre um ataque. Este é o primeiro episódio, que vai para o ar em setembro.

Voltando ao filme, a Sophia Loren é mencionada e você falou da influência dos anos 60 nele…

Sim, ela chama-se Sofia, como a Sophia Loren. A música, que ela canta, é de um filme da Loren. A ligação que temos com a Zahia Dehar é definitivamente no mesmo imaginário cinematográfico do erotismo. Nós partilhamos isso. Não é uma coincidência. Gosto dela e ela gosta das mesmas coisas que gosto. Ela brota um imaginário do cinema italiano dos anos 60 neste filme. E esse é um imaginário que carrego também há muito tempo.

Nuno Lopes: "o cinema e a arte entram sempre em discussão na nossa atualidade"

Hugo Gomes, 22.10.19

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Nuno Lopes em "Une Fille Facile" (Rebecca Zlotowski, 2019)

Nuno Lopes passa do Bairro da Jamaica em “São Jorge” diretamente para os ecrãs internacionais em projetos como “Chamboultout” [“Sem Filtro”, de Eric Lavaine] e “Une fille facile” [“Uma Rapariga Fácil”], o mais recente trabalho de Rebecca Zlotowski, onde contracena com a polémica Zahia Dehar.

O filme estreou na Quinzena de Realizadores em Cannes e, desde cedo, tem captado as atenções do Mundo, não apenas pela estreia da “acompanhante de luxo” na atuação, mas pelas temáticas da luxúria, descoberta sexual e os jogos de poder. Nuno Lopes é o amante da personagem de Zahia, um homem que exibe as suas posses para restringir-se a um mundo sexual.

O ator português, que conquistou o prémio de ator da secção Horizontes na obra de Marco Martins, falou sobre a sua experiência no filme de Zlotowski, o seu trabalho além fronteiras, a política e as suas motivações.

Só este ano encontrámo-lo em duas produções internacionais. Foi o prémio de Veneza que o motivou a romper as fronteiras?   

O facto de ter feito o "São Jorge", aliás, o facto de ter vencido o prémio em Veneza, abriu de certa maneira uma porta que abre tudo, porque altera drasticamente a abordagem do meu agente aos produtores. Existe uma diferença na persuasão entre o “ator português que é bom” e o “ator português que é bom e que tem um prémio de Veneza“. Obviamente, que os produtores irão ouvir melhor a última frase [risos].   

Mas acima de tudo, este ano e meio foi também graças à minha ideia de apostar numa carreira internacional, possivelmente motivado pelo prémio. Não com isto insinuar que pretendo ser um ator internacional, mas como filmo muito e em Portugal são produzidos poucos filmes, tenho que procurar lá fora. Um ator de cinema no nosso país tem pouco trabalho, porque não existe uma indústria, mesmo nós tendo filmes maravilhosos. Não posso ficar à espera que surja uma produção com uma personagem que se adequa à minha idade, por mais que ame o cinema português.

A idade é um problema na carreira de um ator? Em 2018, numa conversa com Luís Miguel Cintra, ele referiu essa escassez. 

Para os homens não, para as mulheres sim, infelizmente. Para a minha idade isso ainda não acontece, mas é óbvio que com mais idade os papéis serão cada vez mais escassos. Há uma realidade em que, qualquer filme que tenha visto nos últimos tempos, tem jovens, protagonistas entre os 20 e 30  anos e raramente existem personagens com mais de 60. Mas isto não é um problema exclusivamente português, mas mundial. E acrescento ainda que é sobretudo no mundo ocidental, porque olhamos para as pessoas velhas de uma maneira adversa que, por exemplo, não existe no Japão. Tal, nota-se na cinematografia nipónica.

Mas no Ocidente, a tendência de produção é sempre direcionada aos mais novos.

Exatamente! Nesse caso, as culpas devem também ser atribuídas ao público. No outro dia estava a ter uma conversa em relação ao drama Martin Scorsese e os filmes da Marvel, e disse que a culpa desta enchente de super-heróis é da nossa geração, porque simplesmente deixamos de ir ao cinema e ficamos em casa a ver séries ou filmes no computador. E aí pensamos, quem são os maiores consumidores de cinema nas salas atualmente? Os adolescentes. E é por isso que os estúdios produzem quase somente estes filmes. Por isso é natural que os cinemas sejam invadidos por histórias de teor adolescente sem grande profundidade. Mas volto a frisar, a culpa não é de quem produz, é nossa, e temos que mudar isso. Temos que voltar aos cinemas e demonstrar aos produtores que há público para filmes sem ser de adolescentes.

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Nuno Lopes e Zahia Dehar em "Une Fille Facile" (Rebecca Zlotowski, 2019)

Enquanto isso, num catálogo da Netflix temos propostas bem mais adultas.

Aí está, as pessoas ficaram em casa. E é pena, porque acho que não se deve perder esta indústria cinematográfica. Bem, até me custa referir o cinema como indústria … mas não se deve perder esta ideia de sala, de Cinema para ser visto no grande ecrã, porque existe uma experiência para além da do filme, que é o ritual de sair de casa, comprar o bilhete para aquela mesma sessão e marcares ou não para veres aquele exato filme. É toda uma experiência. Eu, por exemplo, sei exatamente os filmes que vi no Cinema e nem sequer me lembro daqueles que vi em casa. Depois temos a consideração de que um realizador faz um filme para ser visto em sala. Tu nunca ouves alguém afirmar que fez um filme para ser visto numa Netflix.

Fale-me da sua experiência com Zahia Dehar. Como foi contracenar com uma não-atriz?

Estou muito acostumado a contracenar com pessoas que à partida não são atores. Por exemplo, no “São Jorge” partilhava o ecrã com amadores. Quanto tu usas não-atores no teu filme, é porque pretendes que a “personagem” dela seja muito próxima da pessoa que ela é. Isso é a grande diferença entre atores amadores e profissionais. Os amadores podem ser tão ou mais profissionais que os profissionais, mas estes só se restringem àquela persona quase documental. E isso aconteceu com este filme, que aliás, foi escrito pela Zahia. Ela sabia exatamente o que pretendia da sua personagem.

Na questão desta relação entre ator profissional e não-profissional, era a Zahia que me dava conselhos [risos]. Ela é que virava-se para mim: “se vais falar com uma mulher assim, então nada vai acontecer” [risos]. “Por isso tens que falar de outra maneira“. Ou seja, ela é que me dirigia a mim, e eu teria de aproveitar a experiência visto que a Zahia entende mais deste mundo do que eu. Ela é que discutiu e concebeu o filme com a realizadora. Portanto, fiquei mais a ganhar com esta parceria que ela.

Em relação às cenas de sexo, a Zahia tem uma disponibilidade que não se encontra em quase nenhuma atriz, infelizmente.

E sentiu-se desconfortável em relação às cenas de sexo?

Não. Para dizer a verdade, sou tímido por natureza. Não é uma coisa que desejo, assim como não desejo estar num ringue a levar socos, mas se isso ajuda o filme, farei. Neste caso,  se as cenas de sexo eram importantes para o filme, então fazia.

Considera-se um ator de método?

Não, porque os atores de método constroem as suas personagens através do seu próprio passado e das suas emoções pessoais. Eu, por outro lado, recorro mais à imaginação para criação das minhas personagens. Agora, considero-me um ator metódico, e utilizo algumas ‘coisas’ que muitos consideram de método, como o de viver experiências relacionadas com as personagens. Por exemplo, se vou fazer filme sobre boxe, obviamente vou praticar pugilismo. Contudo, não sei se é método ou uma deficiência minha [risos], porque se pudesse evitar isso, na construção das minhas personagens, evitaria. Mas esta é a minha maneira de trabalhar e aquilo que penso funciona.

Na nossa atualidade, um filme com a exposição e temática do “Uma Rapariga Fácil'' seria mais difícil se o realizador fosse um homem?

Acho que nos tempos de hoje, um filme destes não poderia ser feito por um homem. Porém, o filme coloca questões, sendo isso que o torna bastante divisivo. Conheço pessoas que adoram o filme, assim como outras que o odeiam. No outro dia estava a falar com uma pessoa que o odiou, e disse-lhe que é bom sinal um filme ter suscitado essa reação. Hoje em dia, o politicamente correto – não sou contra a ideia, sou contra a forma como muitas vezes se aplica, por vezes sem o bom senso – tem implicado que a diferença entre um filme bom ou mau é consoante o facto se concordas ou não com o que é dito. Acredito que um filme possa ser maravilhoso só pelo princípio de não concordares com o que ele diz e com isso provocar uma discussão. A arte, em última análise, serve para provocar uma discussão. E é essa mesma discussão que fará mover a sociedade. Mais do que um filme que termine e que tu digas: “olha, esta pessoa pensa exatamente como eu“. E vais para casa e não pensas mais sobre isso.

Este “Uma Rapariga Fácil” faz exatamente isso. Provoca questões e coloca o espectador perante os seus próprios preconceitos, a tua própria ideia do que é uma “rapariga fácil”, e de quem é a Zahia Dehar. Por exemplo, olhas para o escândalo da Zahia e tens isso em mente sempre que vês o filme. Este coloca a câmara no ponto-de-vista destas personagens, ou seja, ele joga perante os nossos preconceitos, desafia-os, assim como afronta a maneira como olhamos para mulheres que de certa maneira são estigmatizadas como um corpo sem voz.

A Rebecca constantemente dava-me o exemplo de que ninguém sabe como fala a Kate Moss, porque essa pessoa é uma imagem. Uma imagem mundialmente conhecida, mas que ninguém teve a atenção de ouvi-la. Acho que o filme é feminista nesse sentido, porque pega na dita objetivação da mulher, que é reduzida a uma vaidade, a um símbolo de sex appeal, e resolve abordar isso como uma outra espécie de emancipação, uma maneira de poder. Obviamente, com isto entramos no território do que é mais exibicionista: a mulher que dança seminua numa coluna de discoteca ou o homem que coloca a chave do Porsche na mesa do restaurante? Qual é o nível de exibição? E qual é o primeiro que a sociedade julga?

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Nuno Lopes em "São Jorge" (Marco Martins, 2016)

Há uma certa ideia de que a luxúria, o sexo explicito e todas essas consoantes são próprias do universo masculino, e nunca do feminino… 

É curioso essa questão das cenas de sexo, porque é muito mais difícil filmar uma cena dessas sob o ponto de vista feminino. Por isso não me importo da minha exposição aqui. Isto é uma maneira da realizadora declarar que também quer olhar para o corpo masculino, que também quer admirá-lo. Não me fez confusão, pois acima de tudo senti que estava a trabalhar por um bem maior.

É sabido que está a rodar com a atriz Beatriz Batarda um novo filme de Marco Martins. O que podes dizer sobre ele?

O filme passa-se em Great Yarmouth [Reino Unido] e irá anexar os temas do Brexit, crise e imigração. Irei contracenar com não-atores, quer portugueses e ingleses, muitos deles trabalhadores daquela região. Sobretudo, será um filme sobre a violência com que os imigrantes são expostos. E irá desafiar-nos a questionar a maneira com que olhamos para os estrangeiros e como eles olham para nós. Sim, focará essa crescente vaga de imigrantes na Europa e na sua crise.

Em jeito de curiosidade, quando aconteceu a polémica do Bairro da Jamaica, o nosso primeiro-ministro António Costa afirmou publicamente que só começou a conhecer a situação dos habitantes desse mesmo bairro através do “São Jorge”. Acredita que com o novo filme de Marco Martins, ele estará ciente dos problemas dos imigrantes portugueses?

[risos] Acho que o cinema e a arte entram sempre em discussão na nossa atualidade. É por isso que nunca me associei a nenhum partido. Não é que eu não tenha nenhum partido ou visão política, mas apenas porque a arte é contrapoder, o oposto do poder. A arte serve para provocar questões, enquanto o poder serve para resolver essas mesmas questões. São duas faces da mesma moeda, mas são completamente distintas.

Mas então o que pensa das associações e procura das facções artísticas em campanhas eleitorais?

Eu percebo o ponto vista deles, não percebo é do ponto vista dos artistas na maior parte das vezes. Também entendo que um artista preocupado, e cidadão, possa não ter a mesma ideia que eu tenho e que deseje o melhor para o país, e que apoie aquela ou outra pessoa. Tem todo o direito.

Em “Sem Filtro”, assim como “Uma Rapariga Fácil”, o Nuno é visto como um galã lusitano [risos]… 

Acho que essa imagem pode mudar [risos]. Entretanto fiz de assassino também num filme francês que ainda não chegou ao nosso mercado.