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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Sol de Carvalho entre "O Ancoradouro do Tempo" e o Moçambique cinematográfico: "o cinema é a transfiguração do real."

Hugo Gomes, 27.06.25

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O Ancoradouro do Tempo (2024)

Da varanda do Frangipani, vemos Moçambique: uma ilha, uma fortaleza, um crime, e, na sua trajetória, um detetive determinado a resolvê-lo e a deter o homicida. Contudo, a investigação escapa pelos dedos deste agente da justiça, a verdade nem sempre é linear: é burlona, trocista, finteira.

O Ancoradouro do Tempo”, a nova longa-metragem de Sol de Carvalho, estreia entre nós após a sua inauguração na última edição do Leffest. Trata-se de um thriller imaginado nas palavras de Mia Couto, num duelo sem ganhos nem vencidos para com o real e o mundo espectral do além. Nesta conversa com o realizador, partimos do ambiente da produção, mas não cedemos à âncora, prosseguimos para outras margens, outros cantos, e, no fim, para um lamento sobre o estado do cinema moçambicano.

Então vou começar pela génese do projeto. O que é que o fascinou no livro do Mia Couto? Já sei que não é a primeira vez que trabalha com um texto dele [“Mabata Bata”, 2017]...

Está a falar d’ “A Varanda do Frangipani”, certo? Porquê que cheguei a essa obra? Há uma história por trás disso. Eu e o Mia somos amigos há muito tempo, já tínhamos colaborado antes. Na altura, eu tinha acabado de fazer "Mabata Bata”, que foi uma criação muito livre a partir de um conto dele. E ele disse-me: “Vamos fazer um trabalho mais estruturado juntos.” E assim surgiu a proposta para adaptar “A Varanda do Frangipani”.

Quando li o livro, a primeira coisa que me fascinou foi o facto de ser uma história que se podia filmar num ambiente mais fechado, mais contido, que é um tipo de espaço que me agrada muito de trabalhar. Um lugar onde tudo acontece, mas onde o próprio ambiente contribui para a narrativa. Depois, quando surgiu a ideia de filmar na Ilha de Moçambique, percebi logo o potencial que aquele espaço tinha para enriquecer a história. A ilha, o seu tempo, a sua arquitetura... tudo isso podia ser mais do que cenário, podia funcionar quase como uma personagem. Nos primeiros guiões, demos muita importância à própria ilha, talvez até demais. Mais tarde, tentámos reequilibrar isso, dar mais peso às personagens, para não dispersar demasiado.

Mas o que me atraiu mesmo foi isso: uma história fechada num espaço onde o ambiente ajuda a revelar a psicologia das personagens. É como se o espaço e a história conversassem.

Gosto muito dessa questão do ambiente, porque em todo o filme sentimos quase uma aura fantasmagórica, muito presente naquela fortaleza, e várias vezes ao longo do filme também se evoca o passado colonial. Neste filme, o Sol brinca com algo que não é bem o sobrenatural, mas talvez uma certa (sobre)naturalidade da memória. Um lado mais... espectral, talvez?

Sim, exatamente. O que acontece é que os “velhos” - e no filme são mesmo chamados assim - acabam por representar, de certa forma, a identidade moçambicana. Há elementos que talvez uma audiência estrangeira não capte de imediato. Por exemplo, o filme é falado em três línguas nacionais, e há ainda um personagem que representa, de certa forma, a comunidade indiana: uma comunidade com muita importância em Moçambique, mas que é, historicamente, vinda de fora.

Mesmo entre os personagens, há trajetórias distintas. Essa personagem, por exemplo, é de origem local, mas acaba por sair do país. É uma espécie de retrato da viagem dos moçambicanos ao longo de 50 anos de história. Temos também a personagem mais “refilona”, a que contesta, e depois o director, mais autoritário, vertical, ligado à ideia de ordem. Tudo isto, de certa forma, reflete o que está a acontecer em Moçambique hoje. Ou seja, dentro daquele espaço fechado, os personagens funcionam quase como símbolos da sociedade moçambicana, da sua identidade, da sua moral. 

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O Ancoradouro do Tempo (2024)

Há uma pergunta que paira no filme: o que é o bem e o mal? O que é a coerência? O que pode ser a integridade de um polícia? A sua determinação em não ceder à corrupção, ao roubo fácil?

Tudo isso me fascinou no livro, e o facto de se passar na Ilha de Moçambique foi muito significativo. Aliás, acabámos por reescrever algumas cenas em função dos cenários que fomos encontrando. Tivemos algumas dificuldades, por exemplo, dois dos espaços principais, como o quarto da personagem Nhonhoso, tinham condições de som muito complicadas. Tivemos de adaptar para conseguir filmar.

Mas visualmente eram muito fortes, tinham aquele impacto que queríamos. Portanto, foi um guião que começou num livro, passou por uma fortaleza, encontrou um espaço concreto… e esse espaço também acabou por influenciar a própria escrita do guião.

Há um lado que me interessou bastante neste filme, e por isso é que fiz aquela pergunta anterior sobre o seu acesso ao livro, mas, na verdade, o que quero destacar é outra coisa: essa estrutura do policial, do detectivesco, a investigação de um crime rodeado de múltiplas verdades. Quase até ao final seguimos essa lógica típica do whodunit, em que vamos juntando pistas até chegar à verdade. E, nesse percurso, o espectador pode assumir duas posturas: ou tenta ele próprio resolver o caso, como um detective, ou então entende tudo como metáforas, entrando num jogo mais simbólico.

Sim, a estrutura de “Crime no Expresso do Oriente” foi, de certa forma, uma inspiração para este filme. Mas há uma nuance e era precisamente aí que eu queria chegar com essa ideia da ambiguidade. Nós colocámos, de forma deliberada, elementos no filme para que o espectador perceba que as histórias que estão a ser contadas pelas personagens podem ser plausíveis... mas talvez não sejam verdadeiras.

Há adereços, por exemplo, que ajudam a sinalizar isso: uma bengala que se parte e depois aparece inteira, e o espectador pode até pensar “ah, erro de continuidade”. Mas não é. Foi feito de propósito. Ou uma pedra com uma mancha de sangue. Pequenos detalhes que piscam o olho ao espectador e dizem: “atenção, isto pode ser mentira.

Outra coisa que fizemos foi dar uma instrução muito específica aos actores: não representem nem como se fosse teatro, nem como cinema realista. Façam algo ali no meio. É difícil explicar, mas a ideia era criar uma certa distância, como se o actor estivesse, ao mesmo tempo, a contar a história e a dar uma piscadela ao espectador, dizendo: “estou a aldrabar este tipo.

No fundo, todos ali sabem que estão a mentir. Mas ao mesmo tempo, e é aí que acho que está a genialidade do texto do Mia Couto, as histórias têm uma base de verossimilhança tão sólida que o espectador pode perfeitamente acreditar que são verdadeiras. Fica ali uma confusão — propositada — no espectador: “Então, há um assassino ou não? Quem será? Será que há mesmo um crime?” Mas isso é um truque. Porque, na verdade, a história é outra. Cheguei a fazer uma versão mais longa do filme, com duas horas e quarenta e tal minutos, e mostrei metade a um grupo de pessoas, só para fazer um inquérito. A maioria dizia: “Queremos saber quem é o assassino!” Ou seja, o filme prende porque entra nesse território do whodunit, mas depois subverte-o completamente.

Ao contrário dos romances da Agatha Christie, por exemplo, onde tudo é resolvido no fim com base nas pistas que foram sendo lançadas, aqui a explicação final está completamente fora dessas pistas. Só quando se revê o filme, com atenção, é que se percebem dois ou três detalhes, como quando a rapariga fala dos olhos vermelhos e das câmaras de pangolins, que já dão a entender que há uma camada mais profunda. Essa ambiguidade foi totalmente propositada, e, sinceramente, é uma das coisas que mais gosto no filme.

Também é uma forma de convidar o espectador a ver o filme outra vez.

Também. É uma forma de o agarrar. Sou da opinião, e estou no campo dos cineastas que acreditam nisto, de que podemos ser profundos, claro, mas não precisamos ser… vou usar um termo talvez feio… intelectualoides. Quando digo -oides, digo mesmo isso: um certo tipo de intelectualismo vazio. Não estou a atacar o pensamento intelectual, que é necessário, mas sim aquela postura que afasta, que se distancia do público.

A ideia que tento sempre construir nos meus filmes é a de criar diferentes camadas. Há sempre uma história mais superficial, digamos, que pode ser seguida como entretenimento. Porque o cinema, antes de mais, tem que entreter. Mas depois, sim, podemos usar essa base para fazer com que as pessoas pensem, reflitam, tomem consciência de algo. Sou adepto desse cinema que entretém, mas também inquieta, que oferece algo a quem quiser ir mais fundo. Mas não acredito na ideia de “agora vou fazer um discurso muito elaborado, complexo, denso” e pronto, esqueço o público. Não. As pessoas têm que gostar do filme, têm que se envolver.

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Sol de Carvalho

Têm que sentir essa verdade …

Exactamente! Penso que o Mia faz isso muito bem. Quando ele brinca com as palavras, está a criar imagens que são quase culinárias, ele é um verdadeiro chefe de cozinha das palavras. Nunca pensei que fosse usar essa expressão [risos], mas pronto. É isso. Nós lemos Mia com um sorriso nos lábios, mesmo quando o conteúdo é denso ou sério. Essa é a ideia: não afastar o espectador, manter essa ligação. Seja com o leitor, seja com quem vê o filme.

Falando em ligação, olhando para a sua carreira, e os seus muitos trabalhos, não consigo deixar de ver neste filme, sobretudo quando os suspeitos contam as suas histórias, uma dimensão quase documental, de investigação.

Sim. Há algo disso. Comecei como jornalista, e o Mia também. Aliás, o nosso primeiro contacto profissional foi enquanto jornalistas. Isso cria uma ligação natural com a realidade. Depois há um outro ponto: o cinema em Moçambique surgiu numa altura em que não havia televisão, por isso, desde o início, o documentário teve um papel central. Mas, com o tempo, comecei a interrogar-me sobre o que era essa “verdade” do jornalismo. O que é que significa, por exemplo, o direito ao contraditório? Se um lado tem 70% de razão e o outro só 30%, faz sentido dar 50% a cada um? Isso é justo? Descobri também que, na história, nunca há uma versão final. A história é escrita pelos vencedores, e está sempre incompleta. Deve ser posta em questão, deve ser divulgada, sim … mas nunca é fechada.

Nessa altura, até por causa do contexto político, o regime era difícil (vou dizer isto como forma simpática), percebi que talvez fosse mais honesto, da minha parte, dizer a verdade a partir da ficção. Mas atenção: essa ficção tem que possuir uma base real, sólida. E mais: acredito muito que o espaço alimenta a narrativa. Se quero fazer um filme sobre as viúvas em Inhambane, vou lá, escuto, observo. Não faço necessariamente um documentário, mas recolho elementos da realidade para construir uma ficção a partir disso.

Por exemplo, “O Jardim do Outro Homem(2007) nasceu de entrevistas com raparigas que tinham sido vítimas de chantagem sexual por parte de professores. Em plena rodagem, chegámos a apanhar uma professora em flagrante, numa dessas situações. Em “A Herança da Viúva” (2000), fiz a mesma coisa. E em “Mabata Bata (2017), quando abordámos as cerimónias e os espíritos, fomos à procura do que esses elementos significavam localmente. A questão simbólica das árvores, por exemplo. Usámos a figueira selvagem — a fig tree — que é uma árvore muito respeitada, onde as pessoas sobem em caso de cheias, uma árvore de salvamento. Por isso mesmo, nunca é cortada. É também o local onde se acredita que habitam espíritos.

Tudo isso nasceu da realidade. Não se inventa do nada. Há uma recolha. Mas depois eu liberto-me disso para criar. Às vezes não me liberto assim tão bem [risos], mas enfim... são os riscos do ofício.

Gostava de falar um pouco desse traço da busca pela verdade. Porque o Sol, tal como mencionou, foi jornalista, fez vários documentários, e muita da sua ficção tem esse lado social. Na verdade, queria fazer duas perguntas numa só: Este filme tem uma dimensão social clara, mas também foi filmado no contexto da pandemia, e isso está presente, até pela simbologia do pangolim. Por um lado, temos a questão da criminalidade contra os albinos, por outro, o contexto da pandemia. A ficção serve aqui como um veículo para trazer esses temas?

Sempre. Sempre. Há duas frases que uso muitas vezes: o cinema é a transfiguração do real. Ou seja, vou ao real, bebo dele, digiro — faço a digestão — e depois vomito. Mas quando vomito, já é outra coisa. Já não é o mesmo. É um processo que se passa dentro de mim: cerebral, mental, às vezes até físico.

Depende da minha aproximação com o tema, do olhar: se olho com grande-angular, se uso uma teleobjetiva, se isolo a pessoa, se a coloco no contexto do espaço. São escolhas do cinema, claro, mas todas ligadas à verdade. Agora, o porquê dessa insistência na verdade?

Já tive esta discussão com o Mia, ele também sente essa ligação com a verdade, está nos livros dele, é evidente, mas ele sente-se mais livre. Ele gosta de deixar o leitor ou o espectador na dúvida: será isto verdade ou não? No meu caso, o que me interessa é essa ambiguidade entre o real e o imaginário, especialmente por causa do nosso universo espiritual moçambicano. Aqui, em Moçambique, tu podes estar sentado numa sala e alguém diz: “aqui ao lado está o espírito”. E sentem mesmo isso.

Não sinto, confesso, cresci de outra maneira, com outras referências - Deus, o Diabo, essas coisas da cultura católica -, mas Moçambique é uma mistura: temos a cultura católica, sim, mas também uma cultura sincrética e uma cultura animista muito forte. Essas culturas misturam-se. Então tens Cristo ao lado do Espírito ancestral. É difícil explicar isso a alguém de fora, mas aqui faz todo o sentido.

Esses elementos são tão fortes que, se os respeitar no meu cinema, não estou a mentir ao espectador. Estou a criar um mundo imaginário, sim, mas esse mundo é verdadeiro dentro da nossa lógica cultural. Quando vejo um filme como o “Black Panther”, por exemplo, aquilo é claramente imaginário, ninguém duvida. Mas nos meus filmes, essa separação não é assim tão óbvia. Essa ambiguidade está muito ligada ao nosso mundo espiritual. Dou um exemplo: uma série que estou a fazer agora, por causa da guerra, tem um episódio sobre o Ritual da Reconciliação. Esse ritual é essencial para os soldados que mataram e sobreviveram. Quando voltam para as suas aldeias, têm que passar por esse ritual, que envolve o sangue, a lavagem, para se purificarem. Se não fizerem isso, não podem viver na comunidade. Porque trazem os maus espíritos com eles. E sabes que mais? Esses rituais de reconciliação foram, em muitos casos, 300 vezes mais eficazes do que os grandes discursos das Nações Unidas. Os panfletos diziam “vamos reconciliar as famílias”. Mas a reconciliação, a verdadeira, acontecia através desses rituais.

Portanto, esse mundo espiritual é tão forte em Moçambique, mas tão forte, que não preciso inventar nada. Só preciso ir lá, escutar, respeitar e beber dele.

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Na rodagem de "O Ancoradouro do Tempo" (2024)

E falando desse mundo espiritual... No filme há aquele ritual ligado aos barcos de pesca, e depois aparece o capataz: “Já disse para vocês não fazerem esta macacada.” Há também uma repressão interna a esse lado tradicional, dentro do próprio Moçambique?

Não, não... Pelo contrário. Houve repressão no início, sim, mas depois veio uma abertura, uma libertação, e hoje isso já está bastante aceite. Os curandeiros e até os chamados feiticeiros já fazem parte do Sistema Nacional de Saúde. Estão integrados.

Porquê? Porque há uma dimensão psicoemocional da cura que, se não passar pelo curandeiro, não acontece. O comprimido, sozinho, não resolve. Foi assim na pandemia, mas já era evidente nos casos de HIV. O próprio curandeiro sabe que não pode curar HIV, ele reconhece que é preciso o medicamento. Mas sem o ritual, a pessoa não acredita que está curada.

Dou-te um exemplo recente: saiu uma reportagem na RTP sobre um ritual chamado Cuxinga. É um ritual sexual em que as viúvas têm que dormir com os irmãos do marido falecido, para serem “purificadas”. Tenho discutido muito esse tema em Moçambique, e as conversas são intensas. Os jovens criticam; os adultos dizem: “Sim, é mau … mas se não houver esse ritual, essas mulheres ficam desprotegidas.” É um pouco como a poligamia: a justificação é que, se formos monogâmicos, 20% das mulheres vão ficar sozinhas (não estou a defender a poligamia, só estou a explicar o raciocínio dentro do sistema social).

Fiz um filme sobre o Cuxinga, e correu muito bem cá. Mas, curiosamente, houve um certo medo. Algumas mulheres diziam: “Não, quero fazer esse ritual. Tenho que fazer.” Mesmo sendo um ato de violência, inclusive sexual, onde não podem mostrar prazer, não podem falar, nada. É um tema duríssimo. Mas existe e mexe com o nosso mundo atual. E porquê abordar isso no cinema? Porque é como no Irão: se não tiveres ligação ao Islão, não entendes as regras. Ou na China, se não tiveres ligação ao Budismo. Ou na Índia, sem compreender o Hinduísmo.

O que quero dizer é que, quando tentamos aplicar políticas novas, às vezes criadas por universidades americanas, sem conhecer as realidades locais, não funciona. Por exemplo, o lobby do “não sexo até aos 16 anos” para combater o HIV... Isso é uma política imposta, completamente desligada das tradições africanas. Há choques e isso é uma discussão essencial no desenvolvimento: tens que desenvolver mantendo a identidade. Se não, vais ser sempre uma cópia, e a cópia é sempre pior que o original.

Isso leva-me à outra pergunta: usar a ficção para trazer estes temas sociais. Que são temas difíceis — e fazer filmes também é dispendioso. O “Jardim do Outro Homem”, por exemplo, foi na altura um dos filmes mais caros de Moçambique, mas continua a trazer temas sociais sensíveis, mesmo quando não são fáceis de abordar dentro da própria sociedade moçambicana.

Sim. Cá, em Moçambique, não tenho problemas com isso. Lembro-me de mostrar “O Jardim do Outro Homem” em Espanha, e houve um espectador que disse: “Gostei muito do filme… mas não sei se gosto da forma como usou um caso excepcional para fazer uma denúncia.” E eu perguntei: “O senhor quer mesmo saber? Mais de 70% das raparigas em Moçambique sofrem chantagem sexual.

Ou seja, não estamos a falar de um caso excecional, estamos a falar de um problema estrutural. É o mesmo com o Cuxinga. Há quem diga: “Mas isso existe mesmo?” Existe. Marca vidas. São temas que muitas vezes estão escondidos debaixo do tapete. E eu, como realizador, gosto de tirar essas coisas debaixo do tapete e pô-las à vista.

Lembro que o primeiro filme seu que vi foi por volta de 2013 ou 2014, no Festin, e foi “Impunidades Criminosas” (2012). Tocava a questão da violência doméstica …

Exatamente. Esse é outro caso. Lembras-te da música?

Sim — “Bate, bate, morre, morre.”

[Riso] Pois. E a pergunta que fazia era: Onde é que está o espírito? No filme, o espírito é o marido morto. Está ali enquanto ela está com outro homem. Ele persegue-a. Só quando ela mata o espírito, é que se liberta. Era essa a mensagem que queria passar: não adianta falar de libertação se, na cabeça, a pessoa ainda não se libertou. Isso é essencial. Também no “Impunidades” quis trazer o espírito para o mundo dos vivos.

Impunidades Criminosas (2012)

Volto ao exemplo do “Black Panther” — não para julgar o filme — mas para mostrar a diferença: Se queres pôr um rinoceronte gigante de ferro, arranjas efeitos especiais e fazes, no meu caso, se quero mostrar um espírito, uso a sombra. Se o espírito sai por ali, mas a sombra anda noutro sentido, há algo errado. Então perguntava sempre: Onde é que o espírito dorme?

Em Maputo, quando mostrei o filme, toda a gente respondia com convicção: “Claro que dorme nos crocodilos.”

E já que falamos dos crocodilos... Vou contar uma história engraçada. Os crocodilos do filme eram pequenos, com cerca de um metro. Fomos buscá-los a uma barragem perto de Maputo. À noite, voltavam numa caixa grande, e eu dizia: “Ficam aqui fechados, e amanhã filmamos.” Mas ninguém da equipa queria deixá-los lá à noite! Então, todos os dias fazíamos 35 km para ir buscá-los de novo. E antes de começar a filmar fizemos uma cerimónia para acalmar os espíritos, porque íamos filmar naquela zona.

Acredito nisso? Não. Mas era importante, para que a equipa e a comunidade se sentissem bem. No “Mabata Bata” fizemos o mesmo, a senhora que fez a cerimónia sacrificou animais — é uma festa, um ritual mesmo — e depois disse ao nosso diretor de fotografia: “Esta tarde vai chover. Mas vocês são muito bem-vindos.” Ela sentiu que o tempo ia mudar, e aquilo criou uma ligação: entre nós, a equipa, e a comunidade. Estávamos numa cidade pequena, toda a gente nos conhecia. Correu tudo bem até ao fim.

Essa maneira de fazer cinema com as pessoas… é isso que me entusiasma. Gosto muito disso.

Você tem um cinema chamado Scala e também faz parte da programação dele. Gostaria que me falasse um pouco dessa experiência.

Os cinemas foram todos nacionalizados depois da independência, e, passado algum tempo, quando se regressou à economia de mercado (devia pôr aqui entre aspas "selvagem", porque na verdade esse regresso foi pior do que uma transição normal), os cinemas foram todos privatizados. Na altura, nós estávamos a tomar conta de três cinemas. Não havia filmes, mas estávamos envolvidos, íamos mostrando o que havia, às vezes com filmes trazidos no avião. Então, quando esse processo de privatização começou, solicitámos a compra do Scala. Foi-nos vendido e demorámos 25 anos a pagar … mas pagámos. O Scala pertence agora à nossa empresa.

Porquê o Scala? Porque é um cinema de 1931, clássico, ainda com as cadeiras originais, foi o primeiro cinema sonoro de Moçambique. No início, fazíamos programações com filmes paralelos, o que aparecesse, passámos até alguns filmes indianos. Depois, uns seis ou sete anos antes da pandemia, criámos a Associação Cultural Scala e entregámos-lhe a gestão do cinema. Aí começámos a focar a programação em cinema africano no geral e moçambicano no particular. Neste momento, somos a única sala que mostra cinema moçambicano regularmente. Todas as quintas-feiras temos uma sessão e fazemos também ciclos de cinema. Em Moçambique, não há praticamente hipótese de ver cinema holandês, argentino, italiano, cinematografias muito interessantes, então estas instituições culturais ajudam-nos a organizar ciclos, como o papel que o Cinema São Jorge tem aqui [em Lisboa].

Agora, claro, não temos tido apoio. A manutenção do espaço é complicada, exige muito, só que somos resistentes. Estamos a resistir enquanto pudermos. Mostramos programação moçambicana e temos agora um projeto para começar uma programação africana mais ampla. Mas não é fácil, há poucos filmes disponíveis online. Temos de contactar diretamente os produtores e estamos a negociar isso.

O cinema também tem uma história cultural rica: já atuaram lá o Gilberto Macuácua, a Amália Rodrigues... Tem teatro, dança, música. O Xiquitsi, que é a companhia que ensina norte-americanos a tocar música clássica, está lá instalado, e temos ainda um restaurante. Portanto, vamos aguentando. Mas não é algo que dê rendimento, fazemos isto mesmo por uma missão: somos a única sala a mostrar cinema moçambicano ponto. E fazemos uma programação constante. Todos os filmes moçambicanos e africanos estão a passar ali, em ecrã grande. Um ecrã de 13, 14 metros.

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Cinema Scala, Maputo

Sem DCP, não é?

Mas com boa projeção.

E passam película também?

Não. As máquinas de película eram antigas, com carvão, projetores enormes. Estão lá, mas ficaram paralisadas, a qualidade já não era boa. Depois recebemos um apoio para montar o sistema de som, mas não temos som 5.1 nem DCP, são investimentos muito caros, e o nosso público em Moçambique é pequeno. Por exemplo, com “O Jardim do Outro Homem”, tive a segunda maior audiência em sala: 3 mil pessoas. Mas tive muito mais audiência com o “Jardim” quando o levámos a todo o país com projetor e jipe — mais de 50 mil pessoas viram o filme assim, em aldeias, ao ar livre.

Em sala, é muito difícil. A massa crítica é pequena.

Sobre isso … sobre a cinefilia e a cinematografia moçambicana hoje … eu, como europeu, noto uma certa ideia de que estamos a evidenciar um “boom” do cinema africano no geral, seja em festivais ou até em plataformas de streaming como o MUBI. Tem sentido isso?

Acho que não estou muito de acordo com essa ideia. Talvez em alguns festivais se veja isso… Houve sim um grande boom nos anos 70, 80, 90. Nessa altura cresceu muito. É importante lembrar que os três grandes apoios ao cinema africano eram: a União Europeia (na altura através do ACP — África, Caraíbas e Pacífico), os franceses e, curiosamente, os portugueses, que tiveram um papel super importante na produção de ficção africana. Sem esse apoio, o cinema de ficção — longa-metragem — está condenado. Os nossos países não têm meios para financiar isso sozinhos.

Digo isto não por diplomacia, porque tenho críticas a Portugal também, mas é um facto: devemos muito ao país. Pelo menos há concursos que ainda permitem fazer um documentário, ou uma ficção, e depois articulamos com a ACP, com a UE, que também dá fundos. Os franceses também dão, mas claro, focam-se mais na francofonia.

E sim, nesses países francófonos há mais desenvolvimento agora, também porque os apoios nacionais lá são mais fortes. No caso do “Ancoradouro”, o primeiro dinheiro que consegui foi do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], depois fui buscar financiamento noutros lugares, como a Alemanha. Agora, muitos fundos africanos viraram-se (com alguma razão) para o grande desenvolvimento que está a acontecer no cinema asiático.

Veja: faz-se um filme coreano, traduz-se para chinês, e mesmo se for um flop, são 4 milhões de espectadores. E não é só a China, há também a Malásia, Indonésia… Se conseguir entrar no mercado chinês, o filme está pago. Veja bem: 800 mil chineses a pagar 1 euro! … o filme está pago!

Eu não consigo nem 30 mil pessoas a pagar 5 dólares em Moçambique. Fora de questão! E é essa a grande diferença.

Daí que as co-produções sejam tão determinantes...

Sim, só os custos de produção já são um obstáculo. É preciso haver massa crítica … e quando digo massa crítica, não estou a falar só de público interessado, mas de pessoas com dinheiro para pagar bilhete de cinema. Sem isso, não é possível. Tem de haver apoio do Estado, para fazer esse equilíbrio. Houve ali um momento de transição entre a película e o digital, em que surgiram algumas manifestações interessantes. Mas, de resto, o que é que temos em África? Só se for a Nigéria?

Quando referi cinema africano conscientemente exclui a Nigéria, que como bem sabemos é uma indústria à parte.

Exato. Veja: eles fazem filmes para 120, 130 milhões de pessoas, que noutros contextos, que adoram cinema. Em Moçambique, se tiver 250 pessoas numa sala, mesmo com preço de estudante, já é muito. Porque só para sair de casa já há custos. E é por isso que Moçambique está como está. As pessoas não têm condições para sustentar uma indústria cinematográfica. Não concordo com isso — claro que não — mas tenho de aceitar que é essa a realidade.

Houve um deslocamento dos fundos. Muitos foram para a Ásia, para a América do Sul que também são mercados grandes (o Brasil, por exemplo, já funciona por si só), e há todo um mercado de língua espanhola. O ACP (África, Caraíbas e Pacífico), que era uma das grandes fontes de financiamento, agora lança concursos de 3 em 3 ou de 4 em 4 anos. E ainda se dividiu: há agora um ACP francês e um ACP alemão.

Se quiseres voltar a concorrer, tens de ir bater à porta de todos esses. Depois há uns fundos pequenos da Suíça, da Noruega, dedicados ao chamado “Terceiro Mundo”. Mas nós, africanos, tirando a parte francófona, que tem o fundo da OIF e da Francofonia, temos cada vez menos.

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O Jardim do Outro Homem (2007)

Portanto, isso limita também o aumento da cooperação...

Claro. Há algumas cinematografias árabes com bons apoios … mas isso já é outro universo. A África subsariana, ou “negra”, como se costuma dizer, perdeu importância. Há sempre quem continue a organizar festivais e dar visibilidade, mas não estamos a crescer como devíamos. O nosso mercado é insípido: o dinheiro vai todo para a produção, e não há retorno. Num mundo como o de hoje, é difícil continuar a defender estas ideias, a não ser que tenhas muito dinheiro para queimar.

No mundo em geral já é difícil...

E no nosso caso há ainda outro problema: os hiatos. Houve um falhanço na passagem de testemunho, que tem a ver com educação, formação, e com o boom das televisões. A televisão é produção rápida, com equipas reduzidas, dois ou três numa sala. Costumo dizer que virou a "televisão de excelência". Hoje, mesmo nas grandes indústrias, como as dos EUA, já se discute se vale a pena lançar um filme no cinema ou diretamente nas plataformas, cuja a única vantagem, segundo essas empresas, é de ver num ecrã maior. Na nossa realidade, essa passagem de testemunho entre gerações falhou.

Mas apareceu uma geração nova, cheia de criatividade, gente que faz “leite das pedras”. Por exemplo, conheço um jovem em Quelimane que faz um filme de ficção por ano... com 100 dólares! É polícia de profissão, chama os amigos, filma e *já está*. Faz um, dois filmes por ano, e são trabalhos com impacto, com caráter. Tem sucesso! São filmes muito bons, e estão na internet. Gosto muito dele, incentivo-o sempre a continuar, porque ele faz mesmo sem condições nenhumas, e consegue contar histórias. 

Há vários realizadores que fazem esse tipo de experiências...

E que resultam. Resultam mesmo!

Assim de repente vem-me à memória Fede Alvarez …

Exatamente. Agora, em termos de produção... É como no desporto: a Lurdes Mutola foi campeã olímpica, mas sem estrutura. Depois dela, deixámos de ter representação olímpica. É tudo uma questão de bases e no cinema é igual.

Temos muitos jovens talentosos, criativos, mas precisavam de mais apoio e essa negociação com a Europa também devia ser mais acompanhada. Porque eu, com um currículo de 30 anos, consigo ir lá e ganhar fundos. Mas se for a alguém, com apenas dois filmes, ou que está a começar, vai perder. Porque o currículo conta muito. Devia haver incentivos para primeiras e segundas obras.

Mas não há muito disso. Vamos ver...

Falando com Rui Simões: "Qualquer realizador é político"

Hugo Gomes, 22.05.24

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Rui Simões

Falou-se numa maldição, um tormento trazido pelo filme “Bom Povo Português” (1980), um documentário sobre as promessas da Revolução com um grau de decepção ao PREC, que colocou Rui Simões de “castigo” nessa questão de subsídios e apoios à realização por mais de 20 anos. Tal “punição” é reavivada através da estreia de “Primeira Obra” (2023), a primeira e única longa-metragem de ficção concretizada pelo realizador de 80 anos, que depositou neste filme-cosmos as suas dores, pensamentos e reflexões acerca de um mundo que está a ultrapassar. O próprio assume durante a nossa conversa que decorreu nos escritórios da sua produtora Real Ficção, em Lisboa, ainda antes das comemorações dos 50 do 25 de Abril, data essa que estreará não só esta sua nova obra, com a enganadora enumeração no título, como também traria de volta às salas o seu “Bom Povo Português”, o tal filme-carrasco, mas que mesmo o seu orgulho cinematográfico. 

Nesta conversa com o Cinematograficamente Falando …, falamos abertamente do novo como do velho, da ficção como do documental, dos arquivos e das cerejas, de Revoluções a Cavernas de Platão. Rui Simões abriu as portas do seu mundo, sentamos e ouvimos.

Começo esta conversa com a questão sobre a génese de “Primeira Obra”. Como surgiu a ideia para este projeto?

Não sei se me lembro exatamente como surgiu a ideia, mas surgiu em reação ao facto de nunca ter sido aprovado em projetos de ficção no Instituto de Cinema, seja no ICA, no IPC, ou no ICAM. Em 40 anos de candidaturas que fiz sucessivamente todos os anos, chegando a fazer até duas por ano, o facto de nunca ter conseguido obter apoio levou-me, ao fim destes anos todos, a um sentimento de desânimo. Ao chegarmos a este período de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, pensei: “estou farto disto!”. Então, decidi escrever uma história relacionada comigo, porque, no fundo, já não tenho mais nada para contar, nem vale a pena tentar. Impediram-me de contar todas as histórias que queria realmente contar. Portanto, vou avançar um pouco da minha própria história. Nunca quis fazer um filme autobiográfico, sempre gostei de contar histórias sobre outros, mas sobre mim nunca pensei tal ‘coisa’. Nem memórias, nem nada do género. Mas, ao seguir por esse caminho, juntamente com a pessoa com quem trabalho regularmente na escrita, optámos por essa direção e com isso analisamos um pouco o meu percurso, os meus filmes, e o meu passado.

Escrevemos uma história inspirada num facto real: há uns anos, um jovem estudante de cinema na Sorbonne, descendente de portugueses, pediu-me para consultar os meus dossiês, os meus papéis, falar comigo, em suma, preparar o seu doutoramento em cinema. Achei interessante, pois já tinham sido feitos vários estudos sobre o meu trabalho, mas nenhum com essa perspetiva. Ele veio, instalou-se aqui, esteve durante muito tempo, depois foi embora, mas voltou. 

A partir desta história, inventámos outra, baseada na relação de um jovem [Zé Bernardino] que procura um velho cineasta da Revolução [António Fonseca], porque está interessado no cinema militante, comprometido, de causas. Esta é a sua especialidade, e é sobre isso que quer fazer o seu doutoramento, pelo que vem ter comigo para obter material para trabalhar e estudar. Ele escreveu uns textos que foram publicados, de que gostei bastante, e acabámos por construir esta história a partir da sua chegada a Portugal, onde procura o velho realizador que já não mora em Lisboa. E depois, numa sucessão de circunstâncias que misturam a realidade que vivemos hoje em Portugal, o meu próprio passado e a minha história, o jovem desvia-se enquanto faz este trabalho, apaixona-se por uma jovem de origem africana [Ulé Baldé], uma ativista ambiental que lhe mostra e faz descobrir o Rio Tejo, onde, de certa maneira, me refugiei após sair de Lisboa devido às situações difíceis, como o caso da ordem de despejo na produtora, as rendas muito altas, enfim, toda esta situação contribui para a construção de uma história.

O filme é a minha primeira obra autobiográfica. Ainda é estranho para mim, ainda não consigo assimilar bem o que fiz, mas está feito, e agora é seguir em frente.

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Primeira Obra (2023)

Vamos fazer algumas curvas e contracurvas até regressarmos novamente ao filme propriamente dito. Uma coisa curiosa nos créditos finais é que se encontra expresso que o argumento é da autoria de Sabrina D. Marques - realizadora de "Os Fotocines" (2021), filme que você produziu - com a ideia de Rui Simões e algum improviso. Poderia explicar-me isso?

É uma ideia minha, como normalmente são os trabalhos que faço com a Sabrina. A ideia é minha e depois passo para ela a tarefa de escrever o que quero. E ela faz isso muito bem. Gosto muito do trabalho dela, entendemo-nos muito bem, não é o primeiro filme que escrevemos juntos. Estamos a trabalhar num novo projeto que ela está a escrever neste momento, também baseado numa ideia minha. Assim como foi com o "No País da Alice" (2021), ideia da minha autoria que ela desenvolveu. No fundo, a Sabrina tem uma capacidade que eu não tenho, que é a de dialogar com os outros que leem. E essa capacidade é talvez a solução para o meu problema. Ela é como a minha médica de família. Consegue salvar-me da minha dificuldade em comunicar com quem analisa os projetos.

Nunca fiz um filme, seja documentário ou ficção, que não tivesse alguma forma de improviso. Embora numa longa-metragem tenhamos uma equipa muito grande, um plano de trabalho rigoroso e custos elevados, para mim fazer cinema não é propriamente seguir regras estipuladas. O improviso é fundamental, tanto na construção do filme como no trabalho com os atores. Todos os atores sabiam que tinham um guião, diálogos e uma história, mas aceitava e encorajava o improviso. Eles podiam transformar o que estava escrito com base nas suas próprias interpretações e experiências. Fiz isso com o Zé Mário Branco e com outros projetos também. Dou sempre espaço aos outros para contribuir com as suas ideias, desde que não sejam completamente contrárias ao espírito do projeto.

Os atores prepararam-se, estudaram o argumento, falaram comigo e até fizemos uma pequena residência na casa do Ribatejo, onde parte do filme seria rodado. A partir daí, o improviso era total. Eles não tinham obrigatoriamente de seguir os diálogos à letra. Podiam respeitá-los ou não, desde que capturassem a essência de cada cena. Algumas vezes, seguiam o texto, outras vezes usavam-no como inspiração para adicionar algo pessoal, e outras vezes, eu próprio sugeria alterações. O improviso foi uma constante durante todo o processo, até ao fim. E mesmo agora, ainda estamos a improvisar porque nunca estou totalmente satisfeito, estou sempre à procura de algo mais.

Já existe o cognome da "maldição do Bom Povo Português". Inclusive, na entrevista que deu à Esquerda.net, você expressou um desejo de não falar muito sobre isso. No entanto, durante a antestreia na Cinemateca, na primeira fila da sala Félix Ribeiro, onde estava sentado, encontrava-se ao meu lado, nada mais nada menos, que Fernando Matos Silva, um realizador contemporâneo seu que, durante muito tempo, também esteve, de certa forma, esquecido e a quem a Cinemateca dedicou um ciclo integral em janeiro deste ano, que esperamos que seja finalmente revisto. Tendo em conta este filme, a sua “Primeira Obra”, faço esta pergunta, um pouco direta: deseja, de certa forma, ser resgatado do esquecimento, se é que existe esse lado de esquecimento?

Eu acho que me fizeram um favor, porque sou muito positivo, normalmente, em tudo e na vida. Já passei por muitas coisas e, se não tivesse este espírito tão positivo, teria-me dado mal na vida. O que eu acho é o seguinte: o que me aconteceu é evidente que não foi bom. Mas também vejo isso como um prémio, um grande prémio. Como é possível alguém castigar-me desta maneira pelo mal que fiz, que foi fazer os meus filmes? Para mim, é uma medalha. Porque quiseram eliminar-me por receio daquilo que poderia vir a fazer. Portanto, para mim, é um prémio enorme. E é assim que compenso, porque, se não compensar assim, vou sofrer muito mais. E eu não quero, porque tenho a certeza que o trabalho que fiz foi honesto, exprimi aquilo que pensava, olhei para o que aconteceu em Portugal com o máximo de transparência e independência dentro do quadro que estávamos a viver, com as minhas opções também muito claras, sem as esconder. E tendo o poder tanto receio de me deixar continuar a pensar sobre o meu país, vejo isso como uma medalha muito grande, que me diz que, “quando fores velho, serás compensado por esta tua grande virtude, que foi resistires a todo o mal que te fizemos”.

Por isso, de certa maneira, acho que sou um cineasta feliz. A verdade é essa. Apesar de ter passado muitos momentos infelizes, devido ao facto de não ter trabalho e ter vivido de uma maneira muito dura todos estes anos. É evidente que isso paga-se com o corpo, com a família, com os filhos. Enfim, é uma vida de facto difícil economicamente, difícil sobreviver dessa maneira. Mas, em termos criativos, em termos profissionais, em termos de realizador, não. E aquilo que não consegui fazer como realizador na ficção, acho que consegui fazer como documentarista. E, além disso, consegui ser produtor, o que é um sucesso. A Real Ficção é uma produtora que se tem mantido ao longo de quase 40 anos de vida. Não é uma produtora gigante, mas é uma produtora que tem uma linha coerente e que vai fazendo aquilo que acha que deve ser feito. E, nesse aspecto, não nos podemos queixar, porque a produtora tem bastante mais sucesso, talvez, do que eu em termos de funcionamento. Damos oportunidade a muitos jovens, que é algo que gosto também. Temos a nossa linha de trabalhar com os países de língua portuguesa e desenvolver as relações com esses países.

Extraindo do seu personagem alter-ego em “Primeira Obra”, considera-se um cineasta da Revolução? 

Sim.

still22028129-1.jpgPrimeira Obra (2023)

No filme, o jovem “pupilo” em conversa com o cineasta “mestre”, este último afirma afirma que todo o cinema é político, inclusive as grandes produções. O entretenimento é também uma política ao serviço da produção.

Claro, tudo é político. Qualquer gesto, qualquer ação que envolva financiamentos, concessões, contrapartidas, responsabilidades, atitudes, expressões artísticas, tudo isso é político. Qualquer realizador é político. Não considero que os realizadores sejam ignorantes. Considero que sabem exatamente o que estão a fazer. Uns optam por fazer apenas entretenimento porque é isso que gostam e que os satisfaz. Outros escolhem temas mais preocupados com a sociedade, outros ainda se dedicam à vida animal e à ecologia. Enfim, acho que tudo é sempre político. Mesmo quando algo não parece político, é político. É como quem não vota: ao não votar, também está a fazer uma escolha política.

Como em “American Pastoral” do Philip Roth: “tudo é político, até lavar os dentes é político.

Exatamente, depende de que escova se usa, com que produto se lava e de que maneira se faz a limpeza. E ainda resta saber se tem dentes ou não. [risos]

Aproveitando isso, como o relançamento de "Bom Povo Português" no dia 25 de abril, que carga simbólica espera trazer nesses 50 anos de comemoração?

Quer dizer, a minha decisão de revisitar o "Bom Povo Português" e reprogramá-lo para o dia 25 de abril foi planeada e pensada, assim como igualmente a “Primeira Obra” no 25 de Abril. Embora o filme esteja pronto há um ano, pois teve uma apresentação pública numa sessão especial no IndieLisboa. Na verdade, para mim, aquele filme comemora os meus 80 anos. Foi filmado antes de os ter, mas já tem 80 velas na ficção, embora, na realidade, ainda não os tivesse completado. Mas é um filme de ficção, e gosto destes cruzamentos entre a realidade e a ficção. Gostava que este filme estreasse quando já tivesse 80 anos e estivesse a comemorar, tal como comemorei na Cinemateca, com a antestreia. Portanto, tudo isso faz parte do meu pacote: 25 de abril, 50 anos de carreira e 80 de vida. E a partir daqui, mesmo que não faça mais nada, já posso me dar por satisfeito. Mas, claro, não estou satisfeito. [risos]

Noto no “Bom Povo Português” um lado de decepção com o caminho da Revolução.

Sim, é o oposto de “Deus, Pátria, Autoridade” (1976), que é um filme que ainda tenta integrar-se, ser útil ou contribuir para que a Revolução vá mais longe. As revoluções são períodos momentâneos, nunca duram muito tempo. As revoluções duram o tempo que cada povo é capaz de fazer rodar a esfera, mas ela para em dado momento e começa outra rotação. Mas a rotação da revolução, eu já sabia que tinha um prazo. Não sabia qual, não conseguia prever, mas a minha distância, por viver na Bélgica e estar exilado lá há muitos anos, permitia-me olhar para este país com grande distanciamento. Quando voltei, achei tudo fantástico, mas não acreditei completamente. Nunca acreditei. Só que não podia partir desse ponto de vista; tinha que partir do ponto de vista de que ia contribuir para que as coisas acontecessem.

Por isso, "Deus, Pátria, Autoridade" é um filme muito militante, muito didático. Eu até lhe chamo primário, de certa maneira, mas é um filme...

… muito otimista também.

Sim. É um filme que ainda vai a tempo, porque ainda cria situações muito fortes de ruptura. Lembro-me das greves que foram feitas para que "Deus, Pátria e Autoridade" passasse na televisão. Por exemplo, a Sorefame [Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas] e a Lisnave pararam simbolicamente de trabalhar para pressionar a exibição do filme. No entanto, não conseguiram, porque o Governo não autorizou. Apelaram ao Presidente da República, que na altura também achou que não devia ser exibido, e a RTP também não autorizou. Mas o facto de não terem conseguido não significa que não tenham lutado. O filme continuou em movimento.

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Bom Povo Português (1980) / Foto.: Memoriale Cinema Português

Posso afirmar que "Deus, Pátria e Autoridade" é o meu maior sucesso enquanto realizador. Embora "Bom Povo Português" seja o meu filme mais importante, "Deus, Pátria e Autoridade" foi o mais bem-sucedido. Foi visto em todo o país, em todo o lado, até em pequenas aldeias, projetado nos muros das igrejas, nas paredes das igrejas, e sei lá onde mais. Havia imensas cópias a circular. Beneficiei dos circuitos militantes da altura, que se aproveitaram para mostrar o filme e fazer o seu trabalho militante, fosse qual fosse o partido.

O filme situa-se numa espécie de fronteira e não rompe com nenhum partido político de esquerda. Todos os partidos marxistas estavam, de certa maneira, a coabitar com o que está em "Deus, Pátria e Autoridade". Até o Partido Socialista não se opunha, era tolerante. Talvez, por esse motivo, o filme perca em termos criativos, mas ganha em termos militantes. E essa era a minha intenção. Queria perder o lado de autor para ganhar no lado militante e ativista, e ainda conseguir contribuir para que a Revolução fosse mais lógica. Acho que "Deus, Pátria e Autoridade" foi muito útil, apesar de só ter estreado em 1975, quando a Revolução, aparentemente, já tinha terminado. Mas não é verdade, ela continuou até definhar, até as pessoas se marginalizarem e realizarem que estavam numa nova era.

"Deus, Pátria e Autoridade" tem essa forma, enquanto o "Bom Povo Português" é diferente. Foram feitos ao mesmo tempo, mas cada um com um propósito distinto. O propósito de "Bom Povo Português" não surgiu logo de imediato, mas, perante o que estava a sentir e a realidade que estava a filmar, achei que havia uma ideia na cabeça das pessoas, na nossa cabeça. A prova é o 1º de Maio de 1974, com aquela massa humana de milhões de pessoas.

Bem representada em “As Armas e o Povo” (1975) … 

Exatamente, está bem explícito nesse documentário a unidade e união das pessoas que se libertaram do fascismo e dessa prisão totalitária, e que estavam todos juntos com uma ideia em mente. O que eu quis fazer foi mostrar que havia uma ideia na cabeça dos portugueses, especialmente nas correntes mais politizadas e nas pessoas mais conscientes da política. Queria mostrar que essa ideia começou a crescer, crescer, crescer, e depois, em dado momento, morreu. Para mim, em determinado momento, consegui sintetizar e dizer: isto é o nascimento, crescimento e morte de uma ideia.

Demorou tempo até chegar lá. Comecei o filme de uma maneira caótica, como mostro na “Primeira Obra”. A primeira sequência que montei chamava-se "Caos", porque eu não sabia como pegar no filme, não sabia o que ia agarrar. Portanto, tive que construir uma história de ficção, no fundo. Estes filmes documentários, quando se fala que o “Rui Simões não pode fazer ficção porque é documentarista”, não faz sentido. Eu não fiz documentários, fiz 30 ficções com aspectos documentais, porque ninguém sabe se a revolução é do "Bom Povo Português" ou de outra coisa qualquer.

Esta é que ficou, mas ninguém pode dizer que construiu, em cinema, a História da Revolução ao vivo. Tudo o que há são fragmentos. "1º de Maio" é um fragmento de um dia. O filme é um fragmento desse dia. Outros filmes são fragmentos de lutas, seja nas fábricas, seja nas ruas, seja onde for …

… “Torre Bela” (1977)?

Torre Bela” é um fragmento, é uma ocupação muito específica. O filme é construído e montado desde o princípio até o fim pelas pessoas que estavam lá a filmar, a organizar, pela minha equipa. Não é uma equipe que vem 50 anos depois de fazer um filme sobre o 25 de Abril. Não é isso. Quando vejo esses filmes, vejo-me porque me acho ridículo em tudo isso, o que nos leva a ter cuidado com o que se faz.

Por isso, para mim, não me custa nada ser considerado o cineasta da Revolução. Assumo isso perfeitamente. Paguei o preço, é verdade, porque acho que isso tem um preço, mas também esse preço me permite dizer exatamente isso. Sim, fui um cineasta da Revolução!

Há ironia no título “Bom Povo Português”?

Sim, exatamente. O título "Bom Povo Português" é irónico e encerra em si muitos significados. António de Spínola utilizou-o de uma maneira específica, e eu utilizo-o de outra. Busquei essa frase de Spínola num discurso que ele fez no Alentejo, onde, de certa forma, tentava comunicar com o povo, chamando-o de "bom". Mas é evidente que o que ele estava tentando fazer era mobilizar as pessoas para a sua causa. Portanto, quando eles chamam o povo de "bom", as coisas ficam caricatas na boca deles, inclusive. E ao pegar nesse título, há toda a ironia que se pode imaginar, mesmo sem ver o filme. 

E faz um paralelismo com a Caverna de Platão nesse seu filme …

Para que o “bom povo português” possa deixar de ser o “bom povo português” e se tornar apenas o povo português, ele precisa justamente de ser iluminado por essa luz que é o conhecimento, o saber, de forma ser capaz de evoluir. Com isso sair do fundo da caverna da escuridão e, ao chegar cá acima, não ficar encadeado e evoluir. É todo um jogo que não sou capaz de explicar como me surgiu. Os filmes constroem-se de uma maneira muito complexa e muitas vezes não sabemos por que é que vamos buscar este ou aquele elemento. Não sei se na altura, por alguma razão, estava a ler Platão; penso que não. Não sou propriamente apaixonado por Platão nem um estudioso, mas talvez tenha pensado naquilo ao lado do mito, por alguma razão, por alguma dúvida, por alguma coisa que tinha ali uma solução para poder explorar ou procurar essa solução.

Os mitos também servem para alguma coisa, porque fazem parte da nossa cultura. E este mito é muito forte, e Platão é um filósofo muito forte, com a sua maneira de pensar e de exprimir o seu pensamento. E isto partia da ideia também de que achava que o povo português era pouco... Não é cego, mas que não conseguia ver além de uma certa situação. Portanto, aquela representação do cego também ajudava a transmitir o mito da caverna e a dar esta ideia de que era preciso ir mais longe para poder ter mais cultura, mais informação, mais educação, mais saber, para poder fazer uma revolução mais completa e não ser enganado, que é o que acontece nestas revoluções. Estas revoluções, no fundo, param porque o povo está cansado daquele modo de vida; é cansativo estar sempre em revolução. O povo também tem direito a descansar um pouco e a olhar para a televisão. E por isso, se calhar, aquela ideia surgiu-me para dar certo impulso às pessoas, para que estas possam fazer um esforço e entender na plenitude da sua realidade. Penso que é isso.

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Deus, Pátria, Autoridade (1976)

50 Anos depois: saímos da caverna, ou continuamos nela?

Estamos menos na caverna, isso é um facto. Acho que houve uma evolução muito grande. Os jovens têm hoje em dia uma preparação muito maior do que nós tínhamos na altura; vejo isso pelos meus filhos mais novos, estão muito bem preparados para enfrentarem uma sociedade que é muito mais difícil do que era no passado. Neste momento, é muito mais complicado, tudo é mais complexo, e por isso também estão mais bem preparados, porque precisam de estar para enfrentar estes tempos presentes e os que estão por vir no futuro. De certa maneira, tenho a opinião de que nunca iremos sair totalmente dela, porque haverá sempre este contrapeso. Temos mais formação, sabemos mais, estamos melhor, evoluímos, já não há tantos analfabetos, já não há tantas crianças a morrer, já não há fome, enfim, já não há uma série de coisas nefastas do antigo regime. Mas surgiram novos desafios, por isso acredito que isso nunca terá fim. É tudo relativo. Estamos num estado, os suecos estão noutro, eles construíram a sua própria versão do "bom povo", não será da mesma maneira, nem com os mesmos tipos de atores e personagens.

Se eu tivesse que fazer agora o "Bom Povo Português", não iria buscar as velhinhas do Norte, todas vestidas de preto. Seria outra coisa qualquer. Na verdade, não quero pensar nisso, não quero fazer nada agora.

Na ante-estreia do seu filme na Cinemateca, como também a sua apresentação no IndieLisboa, mencionou, e reforçou aqui nesta entrevista, que não gosta particularmente deste filme [“Primeira Obra”].

Estou proibido de dizer isso [risos]. A minha equipa, os meus amigos, a minha família, todos os meus filhos acham disparatado eu dizer isto. Não é que “não goste” seja a palavra certa. Simplesmente, não estou contente com o que fiz, mas também não sei fazer de outra maneira. Por outro lado, quando vejo, parece-me bem, mas depois fico na dúvida. Nunca antes tinha tido tantas dúvidas em relação a um filme. Por isso, não consigo falar muito sobre ele, porque há pessoas que me dizem coisas como "é o melhor filme da tua vida", outras que não me dizem nada, percebo logo que não gostaram. Sei perfeitamente que outros acham que é um pouco longo, entre outras críticas. E é assim que os filmes são. Acredito que vou enfrentar uma avalanche de críticas, mas não me preocupa. Aliás, a crítica já há muito tempo que nem sequer escreve nada sobre os meus filmes, ou muito pouco, ou são poucos os críticos que ainda me acompanham.

Não estou preocupado com isso. Preocupa-me mais a opinião do público em geral, do público mesmo. Como irão eles olhar para este filme, que não segue a linguagem convencional do cinema? Alguém disse-me: "Gosto muito da forma como o filme começa, pensamos que vamos entrar numa história e de repente já não sabemos onde estamos, estamos por todo o lado e a história que estávamos a seguir já não está lá, torna-se outra coisa". Fiquei assim: "Pois é, é verdade, mas é isso que eu gosto". Outros dizem: "Está sempre a abrir e a fechar coisas, até ao fim é cansativo, parece que está sempre a fechar histórias, e não sei o quê". Cada pessoa vê de maneira diferente, eu acho. E acho que os filmes deste género demoram tempo a ser compreendidos e a ganhar estatuto. Gosto muito mais do filme hoje do que gostei quando o mostrei pela primeira vez [no Indielisboa de 2023]. E a realidade, todos os dias, dá-me mais razão em relação ao filme que fiz. Acredito que, quando estrear, estará no ponto. [risos]

E para finalizar esta conversa, falou-me à pouco de um possível “novo projeto”. Pode-me falar dele?

O novo projeto é um bocadinho inspirado no que está a acontecer hoje no mundo. É uma visão, é um filme de ficção científica, de certa maneira. Portanto, não tem nada a ver com a realidade, é uma construção completamente ficcional. É uma invenção de espaço, um mundo irreal, fabricado, construído em estúdio, com personagens que não são reais também. No fundo, é um submundo, onde as pessoas se isolam, saem da realidade para procurarem no passado e nos arquivos o que falhou para que as coisas não tenham tomado outro rumo. Elas dedicam-se apenas a este estudo, não têm convívio com o exterior, que apenas lhes chega através dos canais televisivos, tudo construído por inteligência artificial. A realidade é este movimento, este grupo de pessoas que vai construindo, sem nenhum contato físico com a realidade, trabalho de pesquisa, de desenvolvimento de ideias, mas que também têm os seus próprios conflitos e têm uma heroína, uma mulher, Vera.

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Primeira Obra (2023)

Sim, ela chama-se Vera, o qual também será o título do filme. Vera de verdade. Vera de veritas, é bom. A construção é muito complexa e tenho muitos arquivos. Sempre foi um sonho meu, o de montá-los, fazer deles um documentário. Este arquivo foi construído maioritariamente nos 22 anos em que não trabalhei, pois além dos 40 de ausência de ficção, houve 22 em que não fiz nada, nem ficção, nem documentário. Estes anos foram mesmo assim, e falo sobre isso no filme, justamente, na primeira hora. 

Estes 22 de 80 anos vão de 1980 a 2002, onde me vi obrigado a procurar um outro mundo, uma outra vida. Isso levou-me para uma aldeia em Sintra, onde as rendas eram mais baratas, agora são caríssimas, mas na altura eram muito baratas. O Penedo, hoje é luxo, na altura era apenas para miseráveis, para os refugiados da cidade. Há aqui uma certa inspiração deste novo filme, no passado que vivi também, e nesses 22 anos, trabalhei para outros produtores, realizadores, ou com outras pessoas, seja como assistente de realização, por exemplo, de António Pinto Vasconcelos, numa série que ele fez internacionalmente, ou como assistente de realização de um realizador chileno, ou assistente de realização de um belga, que filmava na Lixeira, ali na Amadora.

Tive de trabalhar em lugares subalternos, onde me aceitavam para trabalhar, visto que como realizador não podia. Fui diretor de produção do Animatógrafo durante muitos anos, sobretudo para as produções francesas, aproveitando a vantagem da língua. Depois, também trabalhei como assistente de motorista para uma pessoa americana ligada à família Coppola, em Cascais, era uma função bem paga, devo dizer. Já tinha sido motorista quando era jovem, na escola de cinema, motorista de atores e atrizes, e era uma função que queria voltar a desempenhar. 

Estes anos foram de escritório, mas, apesar de tudo, andava sempre numa caminhada pequena, amadora. E fui filmando coisas. Tenho centenas de horas de gravações. São armários cheios de cassetes. Estão ali cheios [aponta para os armários], cheios, cheios, cheios, cheios, de tudo e mais alguma coisa. Portanto, todo este material eu queria documentar. Fazer algo em relação a esses 22 anos. Apresentei este projeto, intitulou-se "As Imagens são como as Cerejas", mas infelizmente não foi selecionado.