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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Ouro, para que te quero?

Hugo Gomes, 03.12.24

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Oh preguiça … Tem piedade sobre a nossa longa miséria."

Não penso que um crítico deva pedir desculpa pelas passadas tentativas de premonição, e por isso não o farei, até porque ainda não há motivos para me descolar da afirmação convicta que fiz há alguns anos, mais precisamente aquando da estreia de Ico Costa à mesa dos “crescidinhos” da longa-metragem, com “Alva”. Referi, nessa ocasião, que o realizador, com essa sua façanha, estava longe de me motivar ou até mesmo de remexer o caldeirão cinematográfico em que o “cinema português” se encontra. Contudo, com “O Ouro e o Mundo”, mesmo notando os vestígios do filão do “criminoso a monte”, consigo encontrar neste novo olhar uma vontade intrinsecamente forte que me leva a reconsiderar o meu julgamento.

Filmado em Moçambique e inteiramente ligado a Moçambique (com fotografia de Raul Domingues), este é um filme sobre a precariedade, sobre juventudes violentamente arrasadas pela passividade, pela desconexão com a ambição e pelo estatuto de “fura-vidas” que se esforçam por ostentar. Talvez nesta fúria de viver um sonho de esquina resida um reflexo crítico de um pensamento ocidental sobre sucesso e conquista, ou do árduo trabalho numa sociedade ultra-capitalista, monologados, resumidamente, num beco, de um protagonista relatando a sua experiência longínqua e desaconselhada em Portugal, enquanto sente o momento, o imediato, como o seu único lugar de pertença. Há uma ideia vinculada de felicidade a ser rastreada fora do radar do capitalismo e dos seus dogmas.

As marcas de “Alva” estão lá: os constantes tracking shots, o esforço da câmara à boleia das suas personagens, como se deslocasse lado-a-lado por deslocamentos sem tempo, por trilhos “ordinários” – capim, mangais, terra batida – à procura de ouro ou de qualquer outro mineral reluzente que os resgate do martírio do trabalho-escravo. São delírios por carreiras espontâneas de hip-hop, de sucessos instantâneos, daqueles que as redes sociais premiam; são ânsias de partir, de ir para longe – longe de tudo e, sobretudo, longe das responsabilidades (até das suas consequências).

Ico Costa não filmou uma nova “cantiga dos desgraçadinhos”. Pelo contrário, desafia-nos a encontrar um estado de alma, de jovens presos a uma carcaça que renegam por completo. O trabalho – essa palavra maldita – é vista como conselho, dica ou sugestão passivo-agressiva acorrentada a uma convencional ideia de “adulthood”, do qual é respondido apenas com a invocação da “mãe preguiça”, que dizem ser prima do progresso, porque, segundo consta, se não fosse ela, o Homem não teria inventado a roda.

E coincidências das coincidências, o nosso protagonista chama-se Domingos [Marengula] – talvez o nome perfeito para ilustrar os dias da semana mais preguiçosos e molengões possíveis, mas que para Ico Costa é a sua grande fonte de energia. 

Para segundo filme estamos num bom caminho!

A terra que os une

Hugo Gomes, 10.10.23

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Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)

No auditório da Moagem, em plena reta final dos Encontros Cinematográficos do Fundão, com Raul Domingues a apresentar a sua segunda longa-metragem - “Terra que Marca” (2022), um rugoso e bruto poema bucólico sobre o vínculo gradualmente perdido entre carne [Homem] e terra [Natureza] - e como é “tradição” nestes eventos, é posteriormente proposto um debate após a projeção. Nesse diálogo entre o realizador e o público, dois nomes são constantemente proclamados, citados em forma de comparação, ou simplesmente uma referência a uma herança, quer no olhar cinematográfico, quer na incessante procura neste meio. Os nomes eram Manuela Serra e António Campos, que de tudo têm e nada o possuem, excepto uma ruralidade captada e até mesmo tremeluzidas no progresso o qual muitos vincam, ou desejam vincar. 

Domingues abertamente falou dos seus avós como inspirações, os "objetos" de uma resistência em transformar o espaço, a terra neste caso, das suas sujidades convertidas em purezas fabricadas. É a agricultura como domesticação do selvagem, a imprevisibilidade da Natureza, de certa forma cíclica, como uma teimosia por eles decretada. Do outro lado da "barricada", a persistência nunca comovida, com consequências na decadência das mãos ou das pernas marcadas por feridas há muito infligidas, daqueles que enfrentam o esforço contínuo como "trabalhadores de solo". A idade aqui é representada como um iminente fim, não apenas das vidas que a câmara segue em planos pormenorizados, num tremor que se disfarça na naturalidade do seu dia-a-dia, mas também na função de "trabalhar a terra", termo mencionado várias vezes por Domingues.

Na chegada a Manuela Serra, a inspiração das inspirações modernas no que se trata do regresso ao campo, às tradições e ao rural num exotismo cultivado, e como a terra aí desvendada é trabalhada. A realizadora e o seu único filme "O Movimento das Coisas" (1985) serviram de bandeira, incentivo ou a 'palmadinha' nas costas para as seguintes gerações, com câmara em punho e histórias de infância, ou a partir daqueles avós "marginalizados" nos enésimos confins do mundo, desenterrando as raízes da sua portugalidade. A relação Domingues - Serra advém dessa intenção para com a terra e as pessoas que a marcam, no entanto, é entre Serra e Campos que o elo, não aparente, surge-me. “O Movimento das Coisas”, a partida da realizadora à aldeia de Lanheses, em Viana do Castelo, resultou numa cápsula temporal; de pessoas, quotidianos, costumes, tradições ou relevos, à beira da sua extinção, ou meramente ultrapassados, ideia reforçada por aquele plano final no qual Serra lutou para que no filme integrasse. Aí “contemplamos” uma fábrica, a indústria figurada como modernidade, o epílogo de todas aquelas imagens, desde a, hoje quase impraticável, festa da desfolhada. 

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Terra que Marca (Raul Domingues, 2022)

Campos, por outro lado, dedicou uma parte da sua vida em etnografias estudadas por Jorge Dias (apesar de desviar-se de qualquer designação de “cine-etnógrafo”), na procura destas especificidades, não só remetentes à portugalidade, mas aventurando num país “obscuro”, ora vivacio em praias em ilhas inexistentes [“A Almadraba Atuneira”, 1961], ora em territórios quase inacessíveis do qual se formaram reinos à parte [“Falamos de Rio de Onor”, 1974], ou como é aqui o caso mais evidente, o captar da extinção de um lugar - o “não-lugar” - e consequentemente uma identidade. Realizador de poucos meios - esquecido, sendo nos últimos tempos recuperado (a descatar os esforços da iniciativa a FILMar, promovida pela Cinemateca), e elevado a autor trágico, igualmente único nestas nossas bandas (e não só …) - Campos prosseguiu ao Gerês, em direção a Vilarinho Da Furna, aldeia comunitária secular, atualmente “submersa” na barragem de Vilarinho das Furnas (o plural, por si apropriado pelo título do filme, é entendido como um carrasco a esta identidade). Após ter conhecimento do local e do seu povoado através dos estudos de Dias, o realizador permaneceu um ano na aldeia, sob constante resistência e agressividade, contou ele, por parte dos habitantes que o encaravam como um “infiltrado” do Estado. Ao longo desse período, e tentando conquistar a “boa graça” dos iminentes despejados, registou os costumes e os cantos que futuramente [um ano após a rodagem] seriam “afogados” pelas próprias águas que um dia geraram Vilarinho da Furna. Como se pôde ler na última legenda da obra - “Morreu Vilarinho da Furna sob o manto que lhe deu vida” - enquanto é “contemplado” o paredão cinza e verticalmente sem fim à vista da barragem aí sonhada, projetada e materializada. Este último plano dialoga com o dito plano final da (tal) ambição de Serra, de igual espírito com que a água une os dois documentos - com 14 de anos de diferença entre si. 

Em “O Movimento das Coisas” seguimos o fluxo do Rio Lima ao encontro do “paraíso perdido”, enquanto em “Vilarinho das Furnas”, sob a narração do seu trovador local [que eventualmente nos surge no mesmo nível de olhar para com a câmara, subscrevendo a intenção de Campos em nunca superiorizar-se aos demais], somos aludidos à primeira e pequena porção de água gerada pelas figurativas “pedras parideiras” (que pariram Homens e não outros minerais como o fenómeno de Arouca). Aqui estão as rochas que preencheram o cenário que anteriormente albergava a comunidade, paisagens essas, desaparecidas. 

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O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)

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Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)

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O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)

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Vilarinho das Furnas (António Campos, 1971)

Campos voluntariou-se em conhecer o local e os respetivos habitantes, sem saber que o seu ato iria preservar para a posterioridade a sua cerimónia fúnebre (a procissão aí desfilada surge-nos como uma coincidência terrível), “acidentalmente” (aspas porque não acreditamos que fora totalmente”) persiste na negociação (invasivas e abusivas) entre o Governador civil e os “furnenses”, estes últimos conscientes do “roubo” que ali estava ser executado. Trocas de palavras em vão, mas visualmente ditadas como sentenças, recortadas pelo quotidiano filmado e emanado por Campos como um urgente testamento (era necessário “arquivar” aquilo de alguma maneira). Hoje Vilarinho da Furna “sobrevive” na memória dos “poucos” que ainda restam entre nós, e sobretudo neste trabalho cinematográfico, os seus vestígios de existência são as ruínas que numa eventualidade ou outra se revelam ao “mundo” em ares mais áridos e tórridos, os fantasmas permanecem como que acorrentados a um “não-lugar”, a uma assombração, recusando abandoná-las para um descanso, digamos eterno, pairando no definitivo esquecimento.

Furna de Campos está desaparecida, Lanheses de Serra está alterada, distorcida e irreconhecível [ver o regresso da realizadora ao local décadas depois “35 Anos Depois, O Movimento das Coisas” de Mário Fernandes e José Oliveira] e quanto a Domingues, até um dia aquele seu ambiente desintegrará com o tempo. Como o próprio indicou no contacto do público, é só uma questão dos seus avós … já sabem, não é preciso especificar.

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Encontro-debate entre o realizador Raul Domingues ("Terra que Marca") e o professor e investigador Manuel Guerra, com moderação de José Oliveira, na A Moagem - Cidade do Engenho e das Artes

Arranca o 13º Encontros Cinematográficos: "um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade."

Hugo Gomes, 10.08.23

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Paradise Alley (Sylvester Stallone, 1978)

A proposta é a seguinte: a 40 km da fronteira com Espanha, mais precisamente na cidade do Fundão, realiza-se um seminário para cinéfilos com o intuito de ver, discutir, debater e apreciar o Cinema, seja através de filmes variados, modernos, clássicos, cultos e ocultos. Trata-se de um seminário anual que chega à sua 13ª edição, um número associado à má sorte para os supersticiosos, mas à sorte para aqueles para quem o Cinema é uma religião única e absoluta. Referimos, sim, aos Encontros Cinematográficos, que acontecerá de 11 a 14 de agosto, na Moagem do Fundão. 

Este ano, o evento prestará homenagem à animação portuguesa, na sua fase ascendente e resgatada, e as primeiras imagens da obra (ainda em fase de montagem) “Senhora da Serra”, de João Dias (editor de alguns trabalhos de Pedro Costa), que remete-nos a lendas oriundas do interior português, com especial atenção ao misticismo da Gardunha. Além disso, o Serge Daney será o signo destes quatro dias, não apenas pela apresentação do livro "Perseverança" (editado em português pela The Stone and the Plot), mas também porque será o ponto de partida para a exibição de dois clássicos amados por este crítico e eterno cine-amante: "Hiroshima Mon Amour" de Alain Resnais e "Paradise Alley" ("O Beco do Paraíso") de Sylvester Stallone.

No entanto, não revelaremos mais detalhes sobre o programa desta intensa peregrinação cinéfila, deixaremos isso para o programador Mário Fernandes, nesta conversa que traz à baila surpresas e destaques deste “encontro entre cine-amigos”.

Na 13ª edição e com uma perspetiva / retrospectiva, o que podemos esperar dos novos Encontros Cinematográficos, para onde se direcionam e quais são as ambições deste evento?

No essencial, dar a ver um cinema diferente de uma forma diferenciada: um Encontro na verdadeira acepção da palavra, assente na partilha e não na competição. Todas as edições são naturalmente diferentes, mas creio que o maior desafio para o futuro será manter o nosso espírito identitário ou linha editorial: «posicionados ao lado dos que resistem, dos que fazem do ofício um acto de amor, dos que divergem da unanimidade premiada, das “anomalias” dos pequenos e grandes gestos cinematográficos.» [Catálogo da XI edição dos Encontros Cinematográficos, p. 6].

Ao tentarmos definir os Encontros Cinematográficos, podemos considerá-los um festival? Uma mostra? Uma comunhão entre cinéfilos?

Diria que os Encontros Cinematográficos são essa comunhão, não apenas entre cinéfilos. Podemos defini-los como um poema colectivo de louvor ao cinema e de amor à liberdade.

Celebrando o centenário da animação portuguesa, que nos últimos meses ganhou destaque, em grande parte devido à nomeação para o Óscar de "Ice Merchants" de João Gonzalez. No entanto, nem sempre foi assim, uma vez que já foi considerada um subproduto do cinema nacional. Sem questionar se concorda ou não com esta depreciação, acredita que são necessárias mais iniciativas como esta para promover e divulgar este tipo de produções? O que mais acha que deve ser feito?

O cinema de animação começou por ser uma das vanguardas cinematográficas por excelência, em linha com as vanguardas artísticas do início do séc. XX, pelo menos era esse o entendimento do Henri Langlois, que nunca teve qualquer problema em programar filmes de animação ao lado dos maiores filmes da vanguarda francesa, por exemplo. Talvez tenha sido ele o primeiro a perceber a relação visceral entre o cinema de animação e a pintura, a música, a dança, o desenho, etc. Muitos animadores são, na verdade, extraordinários artistas, além de cineastas de corpo inteiro. Desde o Émile Cohl, o Picasso da animação, ao Theodore Ushev. No caso português, penso que o filme do João Gonzalez foi fundamental para o cinema de animação recuperar uma certa “carta de nobreza”, pelo menos em Portugal, onde há grandes talentos, com um universo muito próprio e muito poético, desde o Abi Feijó ao Nelson Fernandes, entre muitos outros. Seria perfeitamente possível programar blocos de filmes de animação na televisão em horário nobre…  Falta-nos o Vasco Granja!

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Ice Merchants (João Gonzalez, 2022)

Olhando para a programação, não apenas deste ano, mas também dos anos anteriores, constatamos que existe muita produção portuguesa que não tem tido divulgação nem distribuição em grande parte do país. Os Encontros Cinematográficos têm a intenção de quebrar essa barreira, realçando um cinema independente (um dos poucos no nosso panorama 'industrial') ou de criar um polo criativo-artístico?

Um dos objetivos dos Encontros é, de facto, resgatar do esquecimento ou dar visibilidade a importantes obras e autores, muitas vezes fora dos circuitos comerciais ou festivaleiros. Assim tem acontecido com várias obras e realizadores do cinema português. Chegámos mesmo a organizar ciclos paralelos, como os Filmes Proibidos, onde programávamos filmes portugueses censurados pela ditadura política ou económica ou, mais genericamente, pela ditadura da estupidez. Talvez a grande (re)descoberta nos Encontros tenha sido um dos mais belos filmes de sempre, “O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra. O filme foi aqui exibido várias vezes, desde 2011, com a presença da realizadora. Escrevemos vários textos sobre o filme, entrevistas para o nosso catálogo, etc.. Para nós era inconcebível que pouca gente conhecesse essa maravilha. Como a própria Manuela Serra reconheceu em entrevistas recentes, agora que o filme já circulou pelo país e pelo mundo, foi fundamental a persistência dos Encontros Cinematográficos.

Em relação à programação desta 13ª edição, o que destacaria, seja em termos de filmes ou convidados? E já agora, sobre a recente reavaliação da carreira de Sylvester Stallone, que José Oliveira considerou um autor numa crónica do jornal Público no âmbito dos Encontros Cinematográficos?

Além do bloco dedicado ao cinema de animação, com as presenças de grandes realizadores (Abi Feijó, Regina Pessoa, João Gonzalez, Nelson Fernandes e Bruno Caetano), destaco a estreia do filme “Senhora da Serra”, de João Dias, um filme belíssimo e surpreendente, que transforma a Serra da Gardunha num palco giratório onde se debatem as grandes questões universais, como numa tragédia grega. E o filme “Terra que Marca”, de Raul Domingues, um dos grandes filmes portugueses dos últimos anos, de imensa poesia telúrica, concreto e abstracto, absolutamente extraordinário, único. 

Pela raridade, o épico terreno “Uma Aldeia Japonesa: Furuyashikimura” ("A Japanese Village", 1984) de Ogawa Shinsuke. Quanto ao filme “O Beco do Paraíso”, julgamos que será uma boa revelação para muita gente. É mais um filme que urge descobrir e talvez ajudar a derrubar o preconceito que existe em relação ao Stallone. O grande músculo de Sly é mesmo o coração e, no caso deste filme, conseguiu uma realização totalmente à altura das personagens, com momentos de grande emoção. Foi, de resto, um filme muito importante para cineastas tão diferentes como Carax ou Tarantino, que escreveram sobre ele. No fundo, ao programá-lo, continuamos o esforço de recuperação de realizadores pouco consensuais, como quando organizamos retrospectivas de Michael Cimino ou Sam Peckinpah

Para lá dos filmes e dos realizadores, os excelentes convidados que irão conversar sobre os filmes, a apresentação do livro do Serge Daney (outro admirador de “O Beco do Paraíso”), a caminhada na Serra da Gardunha, o concerto dos Blue Velvet.  

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Senhora da Serra (João Dias, 2023)

A importância de iniciativas cinematográficas como esta, realizadas fora das metrópoles como Lisboa e Porto.

Em 13 edições, sem apoio do ICA e com a paixão e dedicação de 3 ou 4 voluntários, a importância dos Encontros Cinematográficos é manifesta: 192 convidados de nacionalidades diferentes, 200 filmes exibidos e discutidos, 13 catálogos com textos inéditos e entrevistas aos realizadores convidados, um livro de celebração do 10º aniversário, diversas colaborações, lançamentos de livros, concertos, exposições, exibições especiais para a população escolar, projecções descentralizadas, extensões anuais na Cinemateca Portuguesa, vários artigos nacionais e internacionais a elogiar o trabalho desenvolvido e um número crescente de participantes com algumas sessões esgotadas nos últimos anos.

E, claro, a qualidade dos convidados que têm passado pelos Encontros Cinematográficos do Fundão: Victor Erice, Pedro Costa, Billy Woodberry, Manuela Serra, Pierre-Marie Goulet, Andrea Tonacci, Peter Nestler, Miguel Marías, Chris Fujiwara, Luís Miguel Cintra, Virgínia Dias, Pablo Llorca, Adolfo Luxúria Canibal, Bruno Andrade, Patrick Holzapfel, Andy Rector, Mercedes Álvarez, Rita Azevedo Gomes, Pierre Léon, Vítor Gonçalves, Paulo Faria, Manuel Mozos, Mike Siegel, entre muito outros.  E, sem dúvida, os Encontros também contribuíram para a fixação de cineastas no concelho do Fundão, como o próprio João Dias, realizando nesta região muitos dos seus filmes que depois viajam pelo mundo.

 

A entrada é livre. Ver toda a programação aqui.

O regresso do Festival Internacional de Cinema de Santarém: o cinema enquanto terra que nos marca

Hugo Gomes, 23.05.23

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Após três décadas, Santarém volta a receber de ”braços abertos” o seu Festival Internacional, uma vontade de consolidar os cinéfilos da região e, quem sabe, do restante país e globo. O Internacional descrito no título sugere esse apelo, essa vontade e ambição de arrancar por caminhos há muito atravessados. 2023 marca, por fim, essa idealização, materialização, algo terreno como o tema que o acompanha, a Terra, a nossa, da mesma forma que não existe outra. 

Ao Cinematograficamente Falando …, Rita Correia, Presidente do Cineclube de Santarém e diretora do FICS [Festival Internacional de Cinema de Santarém], “descortinou” a celebratória programação, contando com filmes (que mais?) que conectam com a região, com o espírito e com o futuro. 

O Festival Internacional de Cinema de Santarém decorre de 24 a 28 de maio, quatro dias a “apoderar” o Teatro Sá de Bandeira e transformá-la no pólo cinematográfico scalabis [ver programação completa e mais informações aqui]. 

Após trinta anos de ausência, pergunto o que levou a encarar este como o momento oportuno para o regresso do festival?

Na verdade, estamos a reativar o Festival há cerca de 5 anos. Desde o início da reativação do Cineclube de Santarém, há cerca de 12 anos, percebemos que a cidade queria o Festival de volta; havia uma geração de cinéfilos que ainda tinha memórias dos festivais antigos, e uma nova geração que queria trazer de volta o Festival Internacional de Cinema de Santarém. Criámos um dossier de projeto, que trabalhámos e melhoramos ao longo dos anos, e fomos procurar apoios. Entretanto, os anos de pandemia atrasaram o processo e agora, com o apoio imprescindível da autarquia, foi possível fazer esta 16ª edição do FICS.

O que poderá dizer sobre a programação deste ano, e a importância dos filmes de realizadores scabilitanos na seleção?

Vamos programar 31 filmes, oriundos/produzidos por 21 países. Temos 4 secções: a Competição Internacional, a Competição Nacional, Panorama e Em Foco.

Em Foco vão estar obras dedicadas às agro-poéticas de libertação e às lutas ecológicas. Os filmes propõem uma reflexão sobre a devastação das paisagens naturais e uma visão da história de violência colonial e extrativista em torno das práticas agrícolas de comunidades na Índia, Palestina, Moçambique e Mali. Na secção Panorama propomos uma visão da produção cinematográfica contemporânea, onde destacamos a estreia mundial do filme “Nomadic Island” de Mattia Mura Vannuzzi.

Na competição nacional destacamos os realizadores scalabitanos do coletivo Waves of Youth. Para a equipa do FICS era muito importante dar oportunidade aos jovens realizadores para mostrarem o seu trabalho a um público crítico e cinéfilo, e criámos um prémio especial para o Melhor Filme Regional.

Tendo em conta o período de “hibernação” (chamaremos assim) que desafios encontraram na seleção de filmes a integrar na programação, principalmente os da Competição Nacional, e com que critérios irão abraçar daqui para a frente?

O principal desafio da programação foi o tema do Festival, tínhamos algum receio de não encontrar muitos filmes portugueses dentro da temática. Na competição internacional recebemos muitas inscrições e fizemos também alguns convites a filmes. De um modo geral, a nossa principal preocupação foi criar um diálogo entre obras, e que isso pudesse ser sentido através da programação do festival. Este foi um critério fundamental para nós, e que pretendemos manter daqui para a frente.

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Boca Cava Terra (Luís Campos, 2022)

O tema rural e agro’ revelou-se ao longo da história do festival numa espécie de tradição, tende em manter esse espírito para além da secção Em Foco deste ano ou estabelecer o FICS como um festival especializado a esses territórios? Tendo em vista que a maior parte dos filmes da programação acentuam essas temáticas da relação humana com a natureza.

Desde o início deste projeto foi decidido manter a temática original: agrícola, rural e ambiental e assumimos que o FICS pretende ser um festival especializado nessas temáticas da relação humana com a natureza e o seu meio envolvente.

No início do festival, 1971, a temática foi uma forma inteligente de contornar a censura do regime do estado novo. Ao assumir-se como um Festival de "temática rural", não só estava a valorizar o seu território de origem - o Ribatejo - como lhe permitia uma aceitação que à época seria mais difícil. O que sabemos da história do Festival foi que muitos filmes estrangeiros, especialmente de origem russa, foram possíveis de ser exibidos em Portugal por ter existido uma "permissividade" da censura, que de outra forma não podia ter acontecido.

Este ano, no início do séc.XXI, no meio de uma crise climática, depois de uma pandemia, e em que as questões do impacto do homem sobre o seu meio estão na ordem do dia, foi unânime manter a temática do Festival, e fazê-lo através de obras contemporâneas, que de certa forma captem a urgência de pensar sobre estes temas, sob diversos pontos de vista, usando a linguagem cinematográfica.

Sobre os convidados, o que pode dizer sobre eles? 

Temos vários convidados, nomeadamente os realizadores portugueses José Filipe Costa, Marta Pessoa, Pedro Mourinha, Miguel Canaverde, Tiago Melo Bento, Maria Simões, Luís Campos, Diogo Cardoso, Paulo Antunes e Raúl Domingues. Como convidados internacionais teremos o realizador Mattia Mura Vannuzzi na estreia mundial do seu filme Nomadic Island, a realizadora indiana Radhamohini Prasad do filme “Farmer Collectives of North Bengal” e o bailarino Ramon Lima, participante do filme “Tes Jambes Nues” um filme que funde o trabalho coreográfico e o trabalho agrícola.

Ambições para o festival, resiliência ou expansão? 

A maior ambição é fazer desta edição um sucesso. Queremos que este seja um regresso em grande, e que nos permita alcançar outros apoios para que a próxima edição seja ainda melhor, com mais condições e durante mais dias. Queremos ainda fazer extensões do Festival, tanto a nível local, numa perspectiva de descentralização cultural, levando o FICS às freguesias rurais do concelho, como a nível nacional, nomeadamente através da programação dos Cineclubes. Não nos podemos esquecer que este Festival é organizado por um Cineclube e da importância que isso tem no movimento cineclubista nacional.