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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Próxima paragem: Estónia e arredores, com Porto no coração do 7º BEAST IFF

Hugo Gomes, 25.09.24

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Dark Paradise (Triin Ruumet, 2023)

Depois da Eslováquia, o “comboio” BEAST IFF embarca na Estónia, novamente com uma mostra rica de cinema proveniente daquelas andanças e ares, sem nunca olhar a meio às suas periferias. É o Cinema do Leste novamente a encher o Porto, a partir de hoje (25 de setembro) até ao próximo dia 29, com projeções no Batalha Centro de Cinema, Cinema Trindade, Cinema Passos Manuel, e eventos paralelos, conversas, exposições e DJ sets, na Livraria Térmita e no OKNA

A abertura traz ao grande ecrã três curtas-metragens que definem, e bem, o tom desta sétima edição, com destaque para “Sauna Day” (estreado no último Festival de Cannes), de Anna Hints (que o circuito nacional a reconhecerá de uma outra sauna confessional - “Smoke Sauna Sisterhood”) e Tushar Prakash, um olhar a uma sauna masculina com invocação quase xamânica. Além do filme de Hints / Prakash, a sessão inaugural contará ainda com “Heiki on the Other Side” (2022), de Katariina Aule, comédia negra com o submundo pós-vida à mistura, e “Miisufy” (que teve estreia no último Sundance), de Liisi Grünberg, animação sobre a dualidade real / virtual com inspirações reconhecíveis ao fenómeno Tamagotchi, reforçam a oferta rica e variada deste ano. Os realizadores de “Sauna Day”, a realizadora Katariina Aule e a produtora de “Miisufy” (Aurelia Aasa) estarão presentes na sessão.

Contudo, o Cinematograficamente Falando … dará voz a quem esteve realmente por trás deste evento, desta seleção e desta perspectiva que encherá o Porto nos próximos quatro dias, Radu Sticlea e Teresa Vieira, os diretores artísticos e programadores, repetiram o convite de responder e de desvendar os cantos e recantos desta sétima celebração do BEAST. O comboio não pára!

Com a Estónia enquanto país-homenageado desta edição, pergunto quais foram os critérios usados na selecção dos filmes e eventos que melhor representam o panorama cinematográfico contemporâneo e histórico do país?

O trabalho de desenho de programação advém de uma combinação de factores. Desde logo com os materiais a que o festival tem acesso, graças ao apoio dos nossos parceiros institucionais (como o Instituto de Cinema da Estónia e do Centro de Arte Contemporânea da Estónia, por exemplo). Materiais que advêm de pedidos já de si direcionados pela equipa curatorial do festival. 

O BEAST tem, no seu core, uma atenção para com trabalhos com assinatura de pessoas dentro do amplo espectro da identidade de género (que se traduz numa preocupação de criar uma programação com diversidade de género), uma atenção para trabalhos tanto do presente como do passado, uma atenção para com trabalhos de escola, uma atenção para com obras de videoarte, entre outras. A partir desta base, a equipa permite-se à descoberta: muitas vezes desconhecendo o caminho, este surge através de um longo e profundo trabalho de investigação. 

O programa emerge como resultado das aspirações iniciais da equipa, revelando-se como o fruto da inspiração que surgiu a partir de todos os filmes com os quais entrou em contacto. Assim, temos este ano uma secção de país de foco diversa: de curtas a longas-metragens; de documentários a ficção; de anúncios televisivos a videoarte.

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Sauna Days (Anna Hints & Tushar Prakash, 2024)

Este ano, a competição oficial conta com uma variedade de géneros e formatos, desde ficção até animação. Como garantem um equilíbrio entre a inovação artística e a acessibilidade ao público nas selecções de "Experimental East" e "AnimaEast"? 

Desde a sua primeira edição que o BEAST conta com as secções competitivas East Wave, East Doc e Experimental East. A secção competitiva AnimaEast foi introduzida o ano passado e mantém-se nesta nova edição. Uma adição que consideramos dar o espaço justo ao universo do cinema de animação num festival dedicado a regiões de forte impacto nesse contexto cinematográfico. 

Os filmes de cada uma destas secções são escolhidos pelos respectivos comités de selecção, que contam com especialistas em cada uma das áreas e com pessoas de diferentes nacionalidades - e isto aplica-se igualmente no caso da competição de animação e experimental. Os critérios de selecção têm diversos parâmetros e aquilo que ressalta é a alta qualidade e a relevância política dos trabalhos que procuramos trazer junto do público. Um público que vemos, desde sempre, tanto com interesse em entrar em contacto com narrativas e formas mais normativas, como com espaços de maior expansão das possibilidades da forma do cinema (que não se fechará nunca numa só caixa - e aqui estaremos, em conjunto com o público, sempre curioses e ansioses por navegar em todas as suas possibilidades).

A secção "Visegrad Film Hub" apresenta um conjunto diversificado de filmes de diferentes origens e temas. De que forma os programas como "LAPILLI" e "Fairy Garden" contribuem para a discussão sobre a memória e identidade da Europa Central e de Leste?

A selecção do documentário húngaro “Fairy Garden" foi feita em conjunto com o HU Verzio Film Festival, um dos festivais com os quais o BEAST colabora no contexto do programa Visegrad Film Hub. Este documentário de Gergő Somogyvári, vencedor do prémio do público da última edição do HU Verzio, encaixa na linha de programação do BEAST de representação queer. Este filme mostra-nos a (tanto dura como bela) realidade de vida de Fanni, uma jovem mulher trans e Laci, um homem de 60 anos sem-abrigo. Vivem juntos num lugar longe do centro de Budapeste. E nesse lugar, que surgiu devido à opressão social, à violência, cria-se uma casa de apoio mútuo, de trabalho para construção de uma realidade melhor para ambos. Uma família cria-se neste contexto: e a beleza surge dos gestos de ternura e amor que observamos e acompanhamos. Neste filme temos um equilíbrio entre o negativo e o positivo: mostrando os potenciais de salvação através de comunidade, de família escolhida, não deixando de lado todas as questões problemáticas da sociedade que essa mesma comunidade (ainda) tem que enfrentar. Questões presentes na região da Europa Central e de Leste mas também em Portugal e no resto do mundo. 

Lapilli” é a mais recente longa-metragem de Paula Ďurinová. Um filme-ensaio de homenagem à vida dos seus avós, tal como um filme que cria espaço para a realizadora lidar com os diferentes estágios de luto. Uma observação cuidada, uma abordagem sensível (como um sussurrar cinemático-geológico) que retrata, através do processo individual e único, algo universal. Ďurinová é uma de várias vozes de grande força no contexto cinematográfico da Eslováquia, e consideramos que este filme é um diamante que deve ser partilhado com o público no Porto

Com iniciativas como o CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, vemos uma abordagem histórica e social ao cinema. Como consideram que estas narrativas dialogam com a actualidade sociopolítica, e qual o impacto que esperam gerar no público português? 

CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL abre uma conversa sobre a riqueza da troca cultural — como as interações diversas entre a Europa de Leste e as nações africanas deram origem a alguns dos movimentos criativos mais profundos. Num mundo muitas vezes dividido pelo racismo e discriminação, percebemos que a 'alteridade' não é algo a temer, mas algo essencial para o nosso crescimento e compreensão de quem somos. Com este programa, esperamos mostrar ao público português que, do outro lado da exclusão, está uma força vibrante e poderosa, alimentada pela diversidade. É ao abraçar essas diferenças que construímos as coisas mais impactantes e significativas, uma filosofia que está no coração do nosso festival e de muitos membros da nossa equipa.

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Queer Fighters of Ukraine (Alex King & Angelika Ustymenko, 2023)

A inclusão do primeiro festival de cinema queer da Ucrânia na secção "Queer Ukraine: Sunny Bunny" (que teve primeira edição no ano passado) merece destaque nesta programação. Que papel esperam que o BEAST desempenhe na promoção de cinema queer no contexto de um festival focado na Europa de Leste?

A ligação entre o BEAST e a Ucrânia tem acontecido ao longo de várias edições de diferentes formas, fora do contexto da secção competitiva do festival. Já tendo sido o País de Foco do festival, e com alguns programas especiais fora de competição, desde 2023 que temos uma colaboração com o Sunny Bunny (que teve nesse ano a sua primeira edição). Consideramos que, tendo em conta o contexto actual do país, torna-se ainda mais urgente criar um espaço para as vozes, as visões cinematográficas da Ucrânia - e, em particular, de narrativas sobre e vidas da comunidade queer.

No geral, BEAST tem tido uma forte presença de filmes queer na sua programação, além de muites des elementes da equipa fazerem também parte da comunidade. Desde o ano passado que decidimos formalizar essa atenção curatorial permanente com a criação de uma secção: How To Care for Cosmos. Um título inspirado no livro-diário de Derek Jarman, “Modern Nature”. Consideramos de extrema importância ter este espaço, e tentamos representar tanto filmes de países cujo contexto relativamente aos direitos e vivências da comunidade LGBTQIA+ não sejam positivos, como também os movimentos progressivos que acontecem na região da Europa Central e de Leste, que permitem um avanço para uma realidade mais igualitária. Uma junção de inquietação com esperança: tentando cuidar do presente para criar um futuro melhor. 

No ano passado, por exemplo, dedicámos um espaço a filmes queer da Eslováquia: país onde duas pessoas queer foram assassinadas a tiro. Uma tentativa de gesto de homenagem às suas vidas e de lançamento de um alerta para com as atitudes homofóbicas, transfóbicas que ainda acontecem em regiões de nossa proximidade. Este ano, por exemplo, temos a presença da Polónia: um país que, durante 8 anos, esteve sob um regime de direita que impediu o avanço dos direitos LGBTQIA+ e que instigou uma narrativa anti-”propaganda LGBTQIA+”. Com a saída desse governo do poder, quisemos criar um espaço que aponte para um futuro que esperamos melhor: “Such Feeling”, um filme de gestos de intimidade, que nos mostra como o apoio dentro da comunidade permitiu a sobrevivência de muites nesse contexto sócio-político. Um filme de lutas fora do ramo da violência (no extremo oposto): uma luta de arte política, de corpos e identidades reivindicativas, que esperamos que, nos próximos anos, alcancem os merecidos e devidos direitos.

A presença destes filmes e destas narrativas é fulcral para um maior entendimento do espectro de situações um pouco por toda a Europa. O BEAST é e quer-se manter como um espaço para a exibição de filmes sobre - e com - essas realidades, para a criação de um diálogo entre os diferentes pontos da Europa, incluindo Portugal.

O que poderá dizer sobre os convidados desta edição? 

Este ano, o festival conta com uma vasta e forte presença de realizadores, produtores e curadores da Estónia (País de Foco): Anna Hints, Tushar Prakash, Katariina Aule, Aurelia Aasa marcam presença na cerimónia de abertura e apresentam os filmes que dão início à 7ª edição do festival. Além disso, vamos contar com a presença de Lyza Jarvis da EKA, que irá apresentar os filmes selecionados para a Carte Blanche da escola de animação de Tallinn. Junta-se também a Marika Agu - gestora de arquivos do CCA, com quem o BEAST colaborou para a criação do programa de videoarte -, que irá apresentar o CCA, além de fazer parte do Júri deste ano.

O júri é constituído por Tadeusz Strączek (Polónia), Heleen Gorritsen (Alemanha), Jakub Spevák (Eslováquia), Eugen Jebeleanu (Roménia) e Juliana Julieta (Portugal). Do contexto da secção Visegrad, contamos com a presença das curadoras do programa CINE-GEOGRAFIA: Blackness and Race in the PRL, Monika Talarczyk e Magda Lipska, que farão uma apresentação deste que é um dos programas de grande destaque do festival. Contamos também com a presença de dois realizadores de realizadores de longas-metragens presentes nesta secção: Paula Ďurinová (“Lapilli”) e Gergo Somogyvari (“Fairy Garden”). No contexto da talk de Festival Makers do contexto Visegrad, teremos um momento de encontro, conversa e partilha com Eniko Gyuresko, Ewa Szablowska e Szymon Stemplewski, que partilharam as suas experiências na direcção ou direcção artística de festivais. São alguns dos destaques deste ano.

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Fairy Garden (Gergő Somogyvári, 2023)

A programação desta edição parece privilegiar não apenas o cinema, mas também as intersecções com outras artes, como a instalação imersiva de Štefan Oliš. Qual é a visão por trás da incorporação destas vertentes e que contributo esperam que tragam ao festival como um todo? 

Este ano, estamos a focar na integração do cinema com outras formas de arte para enriquecer a experiência do festival. Teremos elementos interativos por todo o festival, começando no nosso ponto de informação OKNA. A nossa colaboração com a TRAKT, liderada por Štefan Oliš, uma organização da Eslováquia que se especializa em media interativos e programas educativos para jovens, já dura há vários anos. Os visitantes podem contar com características interativas, como instalações sonoras e arte em vídeo, em vários locais. O nosso objetivo é criar um ambiente mais envolvente que estimule a participação e a interação com a arte apresentada.

Com uma sétima edição, para onde o festival irá, ou que fronteiras falta transpassar ou deseja fazê-lo, numa oitava edição? Por outras palavras, que ambições tem o BEAST?

“Para onde Vamos?” é o mote do festival deste ano. Algo que se relaciona inevitavelmente com um questionamento interno, de tentativa de entendimento do caminho pelo qual o festival quererá atravessar e para onde quererá chegar. Teremos mudanças já para o próximo ano - ainda por anunciar. E esperamos que o público nos siga nos novos passos que o festival irá tomar. 

Mas o mote deste ano não se prende somente com isso: é um reflexo de uma inquietação generalizada. Não é possível definir o futuro, mas queremos fazer parte de um trabalho comunitário - na área da cultura, na área do cinema -, contínuo, de criação de propostas que possam encaminhar para um mundo melhor, para um futuro possível. Ambições de utopia, que esperamos que nos levem a um lugar o mais próximo possível dela - é assim que todes caminhamos na vida. O cinema tem um grande papel nesse sentido: e queremos que o nosso trabalho se mantenha relevante no sentido de melhorar o estado das coisas.

Arranca o 6º BEAST IFF, da Eslovénia cinematográfica a finais (nada) felizes: "uma procura por novas fórmulas, por novos destinos e por novos caminhos"

Hugo Gomes, 26.09.23

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I Miss Sonja Henie (Karpo Godina, 1971)

A Eslovénia torna-se assim no centro geocultural desta sexta edição do BEAST IFF, o Festival Internacional de Cinema que acontecerá já no dia 27 de setembro, estendendo-se até ao primeiro dia de outubro em vários pontos da cidade do Porto. Este ano, para além do país homenageado e do melhor cinema do leste o qual tem dedicado com coração, poderemos contar (e continuar a contar) com um enorme foco feminino - com especial destaque para argumentista e figurinista Ester Krumbachová, uma das parceiras da “mãe” Věra Chytilová nos seus devaneios que lançaram a nova vaga checoslovaca para o holofote do mundo - e uma forte aposta no cinema queer originário das Balcãs. Sem esquecer Karpo Godina, um dos nomes maiores do cinema esloveno, que marcará presença numa retropectiva à sua figura.

É "no happy ever after" a inundar a cidade invicta nestes cinco dias, mas apesar do slogan pessimista, o BEAST IFF promete ser um festival "feliz", porque Cinema haverá, logo a felicidade é garantida. Só que esta felicidade está nas longitudes longínquas das utopias e dos "we are the worlds" hollywoodescos. Mas deixemos de descrições baratas e passemos aos nossos diretores e programadores - Radu Sticlea e Teresa Vieira - que, respondendo ao convite do Cinematograficamente Falando …, desvendam a rota desta edição.

Ao chegar a uma sexta edição do festival, e olhando em modo retrospectivo, quais os objetivos atingidos e o que poderá ainda atingir?

Radu Sticlea: Acredito que com cada edição conseguimos curar com sucesso um programa que não só mostra o trabalho de realizadores de renome, mas também dá destaque a talentos emergentes. Esta abordagem permitiu-nos nutrir e promover a próxima geração de realizadores da Europa de Leste, enquanto nos estabelecemos como uma plataforma única.

Como festival, a nossa missão é a seguinte: construir uma plataforma dinâmica para colaborar e fazer networking entre Portugal e a Europa Central e de Leste, enquanto simultaneamente desafiamos e desfazemos estereótipos associados à região. Nós acreditamos que um programa reflexivo e provocante não é só um testemunho da nossa dedicação para os talentos cinematográficos, mas também é uma oportunidade para expor a diversidade e densidade criativa do cinema da Europa de Leste. Ao abraçar conteúdos provocativos e quebrar barreiras, temos como objetivo incentivar conexões significativas e contribuir para uma compreensão mais extensa desta paisagem cinematográfica vibrante.

Sobre a Eslovénia, o país-homenageado, o que poderá dizer sobre a sua cinematografia e como resumi-la para o seu Focus. Que impressões os espectadores terão com esta viagem?

Teresa Vieira: Todos os anos, o BEAST dedica-se à criação de uma programação focada no panorama cinematográfico de um país, apresentando trabalhos de realizadores de renome e realizadores emergentes, num leque de diferentes temporalidades (das marcas do passado, ao presente e apontando para um futuro). Este ano, a escolha do Foco na Eslovénia surgiu por diversas razões. Desde logo, por sentirmos uma falta de representatividade do país - ou um certo desconhecimento da sua cinematografia - no panorama nacional, procurando criar um espaço para uma mostra mais aprofundada de produções passadas e presentes. A tal adicionado o facto de ser o primeiro país pós-comunista a legalizar a adopção e o casamento entre casais do mesmo sexo, o que se liga à nossa atenção para com as questões queer na Europa Central e de Leste

Em termos de programação específica, decidimos alterar o modelo de selecção para a cerimónia de abertura (que, ao longo da história do festival, se concretizava com a exibição de uma longa-metragem do País em Foco), seleccionando três curtas-metragens de três realizadoras da Eslovénia. Consideramos esse gesto representativo do festival de diversas formas: o formato de curta, sobre o qual trabalhamos um pouco por toda a programação, como forma de lançamento do mote para esta 6ª edição; e a escolha de três obras realizadas por mulheres, que traduz a nossa atenção para com questões de género na programação. 

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Věra Chytilová e Ester Krumbachová

Aquilo que o público poderá esperar, após esse ponto de partida, é uma viagem por diferentes pontos: uma retrospectiva de curtas metragens dos anos 60 e 70 de Karpo Godina, realizador de renome (aqui num ponto de passado estabelecido e fortemente marcado na história do cinema); duas sessões de trabalhos de duas escolas de cinema (criando uma mostra dos futuros nomes da cena cinematográfica, dando também um espaço para estas produções circularem noutros territórios e contactar com outros públicos); uma sessão especial de LGBT_SLO_1984, parte do programa queer do festival, para um maior entendimento dos movimentos artísticos, activistas e históricos associados à evolução dos direitos LGBTQIA+ do país; uma retrospectiva de video-art, um formato que foi (e ainda é) marcante da cena artística do país, e que consideramos fundamental para um maior entendimento das abordagens artísticas e cinematográficas da Eslovénia, procurando ao mesmo tempo enfatizar o nosso ângulo de criação de espaço para “outros formatos”, por vezes afastados das salas; um cine-concerto de “No Reino Do Chifre De Ouro” (“In the Kingdom of the Goldhorn”, 1931), com o artista sonoro Ivo São Bento, em que exibiremos a primeira longa-metragem realizada na Eslovénia acompanhado por um trabalho musical e sonoro original e exclusivo para este evento.

Procuramos, no fundo, apresentar uma seleção diversificada de múltiplas formas - e despertar todos os sentidos do público pelo caminho.

Em BEAST IFF existe uma “apetite”, chamaremos assim, em se focar num cinema feito por e para mulheres, descortinando nomes emergentes como a de Tereza Nvotová [“Nightsiren”] ou de heroínas como Ester Krumbachová, colaboradora de Věra Chytilová, ambas representadas nesta edição. Gostaria que me abordasse esta abordagem, se é algo coincidente ou uma convicção político-social-artística do festival?

TV: A resposta poderá passar pelas duas partes: surge de uma convicção político-social-artística e aconteceu igualmente (de forma não coincidente mas) natural - sendo que tal advém, desde logo, por exemplo, de escolhas em pré-criação de programação. A nossa atenção para com questões de representação de género está presente, em primeiro lugar, na constituição da equipa do festival: procuramos ter um grupo de vozes diversas, o que de forma natural influencia os resultados nas escolhas curatoriais e na programação. 

Não tendo uma maioria de programação cis masculina, implica que, regra geral, a questão (necessária, urgente, fundamental) que tem de ser muitas vezes apresentada e reforçada noutros contextos - e firmada constantemente -, de atenção para com a representação de género, se tornou quase “redundante” no nosso processo colectivo de trabalho. No sentido em que, enquanto pessoas que não fazem parte de uma categoria de “privilégio”, tal implica inevitavelmente um posicionamento individual e colectivo - um olhar - que carrega em si estas questões de forma contínua - é a nossa vida, a nossa luta, a nossa história. Faz parte de nós e a programação reflecte isso mesmo. 

Relativamente a elementos de secções não-competitivas, o caso do programa de retrospectiva de video-art da Eslovénia poderá ser ilustrativo: após a selecção de grande parte das obras que vão ser agora exibidas ao público, foi possível observar que o programa, de si, já representava uma maioria feminina. Assim, foi mantida a programação exatamente como estava após essa análise. Em relação a outros programas temáticos (fora de competição e do Foco Eslovénia), dar destaque a Ester Krumbachová é dar uma atenção para o trabalho criado por uma mulher mas também para uma pessoa cuja função não recaiu somente na realização. É igualmente um posicionamento do festival de que é necessário criar e fortalecer espaços de foco em áreas além da realização e produção: o caso da Ester, multi-facetada e fundamental set designer, costume designer, guionista da New Wave Checa, é uma forma de demonstrar essa vontade.

Uma questão pertinente, visto que o festival foca este ano numa mostra de cinema Queer (ou simplesmente de temática LGBTQIA+), o qual decorrerá em simultâneo com o Festival Queer Lisboa e posteriormente com a extensão no Porto. Existe diálogo entre os dois festivais, ou há um sentimento de concorrência?

TV: O BEAST tem dedicado ao longo de diversas edições um espaço para programação de cinema queer. Este ano, o festival decidiu criar um título para essa secção: “How to Care for Cosmos”. Um título que surgiu, entre outras coisas, de inspiração a partir de “Modern Nature”, de Derek Jarman. Uma ideia de um jardim que tem de ser cultivado, com flores que representam o “tudo”, o “universo” - o “nós e es outres”. É um programa que procura o cuidado, a atenção para com questões que consideramos urgentes, de forma a procurar um futuro melhor para todes. 

Este foco transparece uma identidade queer que não é somente uma secção: faz parte do ADN do festival, composto maioritariamente por pessoas da comunidade LGBTQIA+. O programa desta secção, este ano, resulta em grande parte de colaborações com dois festivais de cinema queer da Europa de Leste: Sunny Bunny (Ucrânia) e FFi (Eslováquia). O Sunny Bunny é o primeiro festival de cinema queer da Ucrânia e teve este ano a sua primeira edição. Exibir estas curtas-metragens ucranianas neste momento é também um statement do BEAST, que tem reforçado o seu foco - já existente em edições passadas - no cinema ucraniano durante este período de guerra, com uma vontade explícita de dar voz aos cineastas do país - e, este ano em particular, à comunidade queer. A colaboração com o FFi resulta de uma preocupação para com a situação sócio-política do país: em 2022, duas pessoas da comunidade LGBTQIA+ foram assassinadas à frente de um bar (safe space para pessoas queer). 

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Before Curfew (Angelika Ustymenko, 2023)

Mostrar curtas-metragens da Eslováquia é também uma forma de demonstrar o nosso apoio para com a comunidade do país, e uma procura para um alerta de movimentos de ódio que ainda (ou desde sempre) acontecem na Europa. Os programas que serão apresentados foram criados colaborativamente: uma selecção que uniu diversos olhares de diferentes pontos geográficos - todos a partir de perspectivas de indivíduos queer.

Esta resposta passou, primeiro, por uma mostra do gesto programático desta secção: colaboração, diálogo e trocas. Não foi por acaso: serve de ponte para aquilo que poderá ser dito em relação ao Queer Lisboa e a sua extensão no Porto. Não só não existe qualquer concorrência entre festivais, como almejamos que existam cada vez mais e mais espaços para vozes, visões e identidades queer - algo que consideramos crucial. Felizmente, nos tempos que correm, é possível ver cada vez mais a presença de cinema queer em programações não dedicadas exclusivamente ao cinema queer

No entanto, a existência do Queer Lisboa/Porto, que têm notoriamente das identidades mais firmadas e estabelecidas no panorama de festivais nacionais, é algo que consideramos absolutamente fundamental, insubstituível e de um valor imenso. A sua linha de programação denota preocupações partilhadas - desde logo, por exemplo, exibindo filmes que relatam as questões da Guerra na Ucrânia - , também com produções de países como a Roménia, o Kosovo, mas também de múltiplas regiões além-Europa (filmes da Nigéria, do Brasil, da Colômbia, entre tantos outros). Partilha de preocupações, um olhar atento para com as questões da comunidade LGBTQIA+ e uma selecção de excelência a nível de qualidade de produção cinematográfica são ingredientes para a receita perfeita para aquilo que diremos de seguida, em jeito de conclusão.

O Queer Lisboa e o Queer Porto são festivais que respeitamos, que admiramos, com quem claramente partilhamos (para além das datas de calendário entre Queer Lisboa e BEAST) uma simpatia imensa e com quem obviamente gostaríamos de um dia colaborar (se elus nos quiserem também ;) ).

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

TV: Um dos destaques inevitáveis da programação é a retrospectiva de Karpo Godina, realizador que marcará presença no festival. As obras produzidas entre os anos 60 e 70 por esta figura incontornável da história do cinema são uma magnífica amostra da originalidade, frescura e a abordagem satírico-politizada (com uns óptimos travos musicais e de humor à mistura) que marcam o espólio deste cineasta e um pouco do seu trajecto inicial no universo cinematográfica - essa descoberta que podemos ter dos primeiros passos que o realizador deu nessa sua própria (e única) viagem.

Destaque igualmente para o programa “Post Porn - Radical Visibility”. Criado em colaboração com o Post Pxrn Film Festival Warsaw, surge como resultado de uma curadoria conjunta entre os festivais, de apresentação de uma selecção de curtas-metragens polacas de post porn. O encontro com os diretores deste festival, que estarão presentes na sessão, será uma excelente oportunidade para conhecer melhor o “post-pxrn” mas também a relevância da produção destas - e outras obras -  no contexto sócio-político e artístico particular da Polónia.

Em relação ao programa queer, não só destacamos todas as sessões — Sunny Bunny, FFi e LGBT_SLO_1984 — como também consideramos importante mencionar a Queer Talk que decorrerá durante o festival, onde será possível participar numa conversa com todos os directores desses festivais, aos quais se juntará Romas Zabarauskas, cineasta lituano reconhecido pelo seu trabalho no cinema queer, convidado do evento de indústria do BEAST.

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In the Kingdom of the Goldhorn (Janko Ravnik, 1931)

Por fim, destaque para o regresso da secção CINE-GEOGRAFIA SOCIALISTA | ÁFRICA - EUROPA DE LESTE. Este ano, com um programa em que será exibido um documentário de Traian Cocoș e Răzvan Marchiș “Viagem... longe da África” (1972-194), seguido de uma talk com Iolanda Vasile. Este programa, que conta com o apoio do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, através do projecto EDU-AM, e do Instituto Cultural Romeno, criará espaço para uma conversa que terá como ponto de partida a investigação de Iolanda Vasile sobre as ligações que a República Socialista da Roménia teve com vários países do continente africano entre os anos 1965- 1989. Será discutido como os câmbios educacionais, principalmente no cinema, mas também em outras áreas, contribuíram para as transições políticas no continente Africano colocando as bases do processo de transição pós-colonial.

O festival contará com a presença de realizadores das diversas secções, para além de convidades de indústria que estarão presentes durante esta edição.

Muito deste cinema do leste que aposta enquanto tema do evento é normalmente ignorado pela distribuição comercial nacional. Existe um preconceito para com estes filmes, ou entendimento (provavelmente pelo senso comum adquirido pelo experimentalismo de muitas destas cinematografias) como pouco acessíveis a públicos maiores.

RS: Nós reconhecemos o panorama evolutivo do consumo de cinema português. O público português está a demonstrar um interesse cada vez maior pelo cinema de nicho, incluindo as particularidades únicas e cativantes da Europa de Leste. Esta mudança na preferência do público é encorajadora e sinaliza um desejo crescente por experiências cinematográficas diversificadas, para além dos filmes comerciais mainstream.

Além disso, observamos uma tendência positiva no sector da distribuição. Os distribuidores estão a começar a reconhecer a mudança dos gostos do público português e estão mais abertos a atribuir espaço a conteúdos de nicho, incluindo filmes da Europa de Leste. Esta abordagem progressiva reflete um reconhecimento amplo do valor cultural e do significado artístico destes filmes.

Enquanto festival, esforçamo-nos ativamente para estar na vanguarda desta onda de transformação. O nosso objetivo é tornarmo-nos num ponto de encontro fundamental para os profissionais da indústria, incluindo cineastas, produtores e distribuidores, tanto de Portugal como da Europa de Leste. Acreditamos que a promoção de ligações entre estas duas regiões pode levar a oportunidades interessantes de colaboração e co-produção.

Sobre um eventual crescimento do festival, alguma vez colocou-se em cima da mesa extensões das vossas mostras? Ambições para o futuro?

TV: O festival tem realizado extensões ao longo dos anos, vendo esses momentos como forma de reforçar a presença do festival mas acima de tudo de criar a possibilidade de expansão de visibilidade de obras de cineastas. O BEAST, estabelecido, nutrido e com raízes no Porto (onde se pretende manter) já realizou mostras em espaços em Lisboa, como no Cinema City Alvalade e na Galeria Zé dos Bois (neste último caso, em colaboração com o Cineclube Aparição, com uma mostra de cinema ucraniano - o país de foco em 2021 - e os filmes vencedores da competição desse ano).

Em relação ao próprio festival, apostamos na criação de uma plataforma de networking e colaboração — East, Match, Go! —, que terá este ano a primeira edição. Um evento de Indústria que procura aproximar — e fomentar ligações — entre profissionais de Portugal (com ênfase no Porto) e profissionais da Europa Central e do Leste.

Nesse sentido de aproximação de Portugal a esta região da Europa, o festival tem realizado a curadoria de programas de cinema português. Nomeadamente, o exemplo mais recente, foi a criação de um programa de curtas-metragens queer portuguesas, que chegaram a diversos festivais da Europa Central e de Leste (como o BRNO 16, o Sunny Bunny, entre outros).

O objectivo do BEAST — como o de todos os festivais — será sempre o de crescer, mas também de amadurecer e de se fortalecer de forma consciente e atenta àquilo que o rodeia, tendo sempre presente a atenção para com a forma através da qual tal evolução poderá ser sustentável e adequada para a manutenção da qualidade e dos valores do festival. Para o futuro é possível dizer que pretendemos criar uma ligação cada vez mais forte com festivais e mostras com quem partilhamos ideais - e ideias -, num gesto de manter activa e em funcionamento a nossa perspectiva de que, através da colaboração, será possível crescermos — equilibradamente — em conjunto.

no happy ever after”, o tema desta 6ª edição, é um reflexo de uma procura por novas fórmulas, por novos destinos, por novos caminhos. É nesse percurso, de construção, de análise, de escuta e aprendizagem, em que queremos — e precisamos de — estar.

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Toda a programação poderá ser consultada aqui