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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O mundo acabará num dia qualquer ... a espera é o essencial

Hugo Gomes, 03.05.24

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Nina Hoss em "Do Not Expect Too Much from the End of the World" (2023)

Aproprio-me do seu título - "Do Not Expect Too Much from the End of the World" -, que por sua vez foi apropriado de uma frase do poeta polaco Stanislaw Jerzy Lec (1909-1966), para refletir sobre uma das naturezas de Radu Jude nos seus mais recentes passos: a apropriação, e com isto um caminhar em direção ao possível apocalipse. Ao contrário das fantasias de Fim do Mundo que impregnaram tanto a nossa cultura popular quanto a intelectual, o cineasta romeno despoja essas ideias das suas eventuais distopias e imaginários estabelecidos, concentrando-se num mundanismo com que a Humanidade se vê envolvida, num perpétuo movimento à sua decadência moral onde a selvajaria capitalista reina e subjuga.

Não tão diferente do seu anterior e galardoado "Bad Luck Banging or Loony Porn" [Urso de Ouro em Berlim], Jude continua a fazer uso do presente para expor uma espécie de antologia de empatia ausente, aqui, através da história de uma assistente de produção com condições precárias (Ilinca Manolache), que trabalha estrada fora na concepção de um filme institucional ("todos os filmes são institucionais", como se ouve a certa altura). Nas suas breves pausas, ela filma-se em brejeiros reels de Tik Tok com camadas e camadas de filtro em cima, pregando as lições emuladas de um Andrew Tate e outros "ismos" que isso pode acarretar. É a criação de um alter-ego, Bobita e as múltiplas e imaginárias vaginas com que atravessa, uma distorcida caricatura à moda de Charlie Hebdo como a própria autora orgulhosamente clama em oposição do “putinismo” que a acusam.

Em paralelo, segmentos intermitentes da obra conterrânea, "Angela merge mai departe" (Lucian Bratu, 1982), remixados e recontextualizados, uma anomalia de um tempo modelado numa diferente fluidez, emaranhado algures num passado que vai tocando e tocando na narrativa central, posando como uma musa perante o seu pintor, neste caso a Jude que parece induzir como um ensaio, gerando uma recriação modernizada. A nossa protagonista parece confinar-se a essa inovação, visto que o filme intrusivo nos apresenta uma mulher taxista, fazendo da sua viatura mais do que via de passagem, a sua casa ambulante com abraços rotos à condição precária.

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Não só na aproximação com o seu material, Radu Jude parece estabelecer outra ponte com Godard que é o convite-cameo de realizadores de cinema, neste caso o alemão e infame Uwe Boll 

"Do Not Expect Too Much from the End of the World" não esconde a sua inclinação pela experimentação narrativa (acima dos suas estéticas), como é natural do realizador, deparamos com uma fome intensa de abocanhar tudo e todos numa crítica mordaz, que tanto aponta para norte como para sul. No fundo, é como as nossas redes sociais, uma cascata de informações, lixo e conteúdo atropelando-se num ciclo caótico, como sinistralidades rodoviárias, um cemitério de cruzes que se estendem ao longo da estrada,como daquela, em direção à cidade de Buzau, que a protagonista compartilha numa conversa fiada com Nina Hoss (a anterior musa de Christian Petzold), o destino sombrio que todos nós esperamos contra a nossa vontade.

Talvez seja este o fim do mundo medíocre que Jude menciona, sem espetacularidade nem salvação, porque os maniqueísmos resumem-se apenas a perspectivas que se cruzam sem nunca se aliarem, enquanto que essa Empatia, meramente um acidente de percurso. A seu tempo podemos encarar o cineasta fora dos habitués da anteriormente decretada Nova Vaga Romena (salpicando o formalista realista com que uma geração de cineastas mantiveram como manifesto), um homem godardiano com uma visão no mundo, e desse ponto de vista entendido como uma matéria de improvisação fílmica, e ao mesmo tempo, fala-nos de Cinema, de um modo cínico, por vezes falsamente ingénuo, dando conta ao seu óbito e ao renascimento enquanto arte de inquietar.

Inquietante, sem dúvida, mas não esperem muito desse armagedão ou do filme, sem ser a sua viagem interior que nos mantém colados após o seu visionamento. Portanto, temos um filme da nossa modernidade, como Radu Jude já nos familiarizou, porque já não nos espantamos com o extraordinário, apenas residimos ao ordinário.

É mais fácil imaginar o fim da sua vida do que o fim do capitalismo

Slavoj Zizek

Radu Jude em edição Unrated

Hugo Gomes, 31.08.22

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Bad Luck Banging or Loony Porn (Radu Jude, 2021)

Em “Bad Luck Banging or Loony Porn” (“Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”), a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o Festival de Berlim de 2021 (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel.

O filme inicia assim como um choque frontal. Pornografia explícita e real frente aos nossos olhos, o dispositivo narrativo que culminará toda esta paródia tragicómica de perspetiva quase apocalíptica. Como tal, seguimos a professora Emi (Katia Pascariu), de uma reputada escola, que irá enfrentar o dia mais desafiante da sua vida. Em plena pandemia, ela será sentenciada por um bando de pais raivosos, com a responsabilidade de ditar o seu futuro. O porquê? Porque a nossa protagonista é estrela de um filme de sexo caseiro com o seu marido, que por obra, ainda desconhecida, “cai” na internet à mercê de qualquer um, principalmente dos seus alunos.

Radu Jude não é um nome praticamente desconhecido para os espectadores portugueses, os seus filmes são presença habitual em festivais nacionais, principalmente o Indielisboa  onde conquistou o Grande Prémio com “Aferim!”, em 2015, e “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental” não foi excepção nessa mesma tradição, garantindo lugar cativo na programação do festival lisboeta de cinema independente em 2021. Foi nesse período e através desse evento para o qual o contactei para falarmos sobre o seu filme. Dessa conversa nasceu uma troca de ideias que para além da sua nova produção, pandemia, Roménia e até mesmo cinema português eram igualmente mencionados.

[Abaixo segue a entrevista, versão integral e completa da publicada no Sapo]

Gostaria de começar por lhe perguntar de onde surgiu a ideia para este filme e ao mesmo tempo questionar se a pandemia teve um papel fundamental na inspiração do projeto?

Na verdade, a ideia veio antes da pandemia, só que a vinda dela me obrigou a adaptar a tal cenário.

Sendo assim, que desafios trouxe a pandemia ao filme?

Influenciou-se de duas maneiras. A primeira foi a adaptação da história ao contexto pandémico e tivemos de alterar alguns pormenores ali e acolá. A outra, talvez a mais importante, esteve relacionada com a segurança e proteção da equipa e do elenco. Quando estávamos a rodar, no final do Verão do ano passado, os casos de COVID estavam a subir e todos nós estávamos preocupados. Tínhamos alguns atores vulneráveis e que solicitavam mais proteção, por isso tive que mudar. Como se pode ver, no último ato de “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, a ação era para decorrer numa sala de aula, mas talvez por razões dramáticas, visto que durante a pandemia tais reuniões em sítios fechados não eram recomendados, alteramos a sequência para o ar livre, com distância social e máscaras. E é isso também, o uso das máscaras, não só entre a equipa, mas no filme. Queria captar aquele momento em que vivíamos, a cidade “vestida” nesse medo pandémico. Como tal, as máscaras não só funcionaram como um método de segurança na rodagem, mas também como um marco temporal para o filme.

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Radu Jude na rodagem de "Bad Luck Banging or Loony Porn" (2021)

Teve que lidar com algum caso de anti-máscara na equipa?

Sim, mas... no caso dos anti-máscaras ou anti-vacinas... compreendo que, para se ser rebelde, tem que se quebrar regras, ser contra as autoridades. Apoio totalmente isso... só que, nestes casos, julgo que vão numa direção oposta. Porque ser contra as máscaras é ser contra o outro, a saúde do próximo. Não usar máscara não é só um risco para quem não quer utilizar, mas para os outros, é como ir na autoestrada a 200 km/h, torna-se um perigo, quer para si como para os outros. Nisso não vejo rebelião alguma, mas sim narcisismo e egoísmo. Expus isto à minha equipa e apenas alguns é que resistiram. Claro que custa fazer um filme ou atuar com máscara, rodamos com tempo caloroso e durante várias horas. É normal que torne o processo ainda mais fatigante. Mas há uma diferença entre esse cansaço e o sacrifício que todos nós fazemos para levar a cabo o projeto. Ou seja, todos, de alguma maneira, cedem para pertencer a uma equipa.

No terceiro e último ato do seu “Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental”, aquela reunião entre pais e a professora, foi quase como olhar para a atualidade das nossas redes sociais. Ouvimos teorias da conspiração, antissemitismo, racismo, misoginia, homofobia, um conservadorismo prejudicial, entre as outras barbaridades, é como se o Facebook ganhasse um corpo e rosto.

É verdade. Houve um crítico romeno, Andrei Gorzo, que escreveu que se assemelhava a um conflito de Facebook. Penso que têm razão porque baseei-me realmente no tipo de interações e no dito "barulho" de como saltamos de tópico em tópico nas nossas discussões no espaço virtual. É por isso que tento artificializar essa mesma discussão, tratando-a como uma "sitcom" ou uma comédia de arte, afastando do realismo e abraçando a caricatura. É como Picasso disse uma vez sobre as caricaturas, se não são realistas é porque são verdadeiras.

Para ser sincero, não fiquei convicto que essas figuras fossem totalmente caricaturas, por vezes pareceram-me tão … familiares. 

Sim, claro que juntar todas aquelas vozes no mesmo espaço por mais de meia hora seja meio exagerado. Mas hein? Não é isso que são as redes sociais? Agregadores de discursos díspares? Infelizmente, como bem sentes, aqueles discursos podem ser encontrados exatamente daquela maneira.

Há uma frase que não é literalmente citada no seu filme, mas que parece ser constantemente invocada – “Não há revolução, sem revolução sexual”. Tal que foi vezes sem conta mencionada no clássico jugoslavo de Dusan Makavejev, “WR: Os Mistérios do Organismo” (1971), que acredito que tenha sido uma influência para si, principalmente na forma como a sociedade descrita no seu filme lida com o intimismo e o desejo sexual da Mulher.

Antes de mais, temos que ter em conta que existe uma diferença entre países. O que se passa na Roménia é bem diferente do que ocorre na Alemanha, ou do que ocorre na Holanda, ou até mesmo em Portugal. Não existe bem um senso comum na Europa ou Ocidente, como quisermos chamar.

Porém, é verdade que na Roménia estas atitudes sexistas, misóginas, homofóbicas são mais acentuadas que em outras sociedades como aquelas que mencionei … pelo menos em comparação com a Holanda e Alemanha, nisso tenho a certeza. Claro que o Makavejev foi uma influência para mim, e aqui tentei prestar a sua devida homenagem, não sei se reparou, mas a certa altura é possível ouvir parte da banda sonora do “WR: Os Mistérios do Organismo”. E não só Makavejev, mas uma fatia importante do cinema jugoslavo. No meio deste turbilhão de influências também posso garantir que me baseei na Vaga Francesa, desde Rivette a Godard, e “pitadinhas” de literatura modernista, propícias a esta fragmentação narrativa.

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Katia Pascariu em "Bad Luck Banging or Loony Porn" (2021)

Mantendo a questão da sexualidade, gostaria que me falasse sobre aquela primeira sequência.

O filme porno?

Exatamente.

Foi a única cena filmada antes da pandemia. Um mês antes. Tivemos um ator pornografico e a Katia Pascariu o qual devo-lhe todos os elogios. É uma grande atriz, que tem feito bastante teatro independente e político, e que demonstrou zero complexo para com esta sequência. Aliás,a rodagem desta cena foi bastante cómica, e curiosamente o ator porno mostrou-se mais inibido que a Katia

No segundo ato, intitulado “Pequeno Dicionário de Anedotas, Signos e Maravilhas”, quando chegamos à definição da palavra 'Cinema', somos confrontados com a seguinte ideia: “O cinema reflete os horrores do Mundo, os quais estamos demasiados amedrontados para ver na sua realidade”. Isto, entrando numa metáfora alusiva ao mito de Medusa. Gostaria de confrontar esta mesma definição com o seu cinema.

A citação, em si, do contexto da Medusa e do seu olhar para atribuir significado para com a nossa relação com o cinema, foi retirada do livro “Theory of Film”, de Siegfried Kracauer. É uma frase poética, mas que penso não se enquadrar totalmente com a ideia de cinema. No fundo, gosto desse paralelismo com as imagens visualizadas no ecrã para com a mitologia ateniense de Perseus e o seu escudo espelhado, como única forma de olhar para a monstruosa Medusa. Neste caso para os horrores do mundo que os nossos olhos “a nu” são incapazes de lidar. Colocando dessa maneira, são levantadas mais questões do que respostas. Susan Sontag falou disso no seu livro “Regarding the pain of others” [“Diante da Dor dos Outros”], sobre a complexidade e questionabilidade da realidade. A imagem, em si, é questionada consoante a sua natureza. Por isso mesmo, não tenho com isto uma resposta concreta, nem sequer uma solução para permanentes dúvidas sobre a que imagens deveremos assistir, quais as que devemos rejeitar. Se é eticamente correto vermos imagens de horrores ou se as devemos desprezar. Julgo que nós, enquanto Humanidade, teremos uma resposta absoluta para isto.

Mas no seu filme “I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians” (2018), você exibe essas “imagens de horror” com o propósito de captar as reações a elas. 

Sim, é verdade … por vezes mostro “imagens de horrores”. No filme que mencionas não era bem o ato de mostrar, quer dizer era impossível reconstruir um massacre, mas foi uma tentativa com um propósito. Só que sim, é um problema e um interminável dilema. 

Em muita da sua obra, assim como neste filme, critica a Igreja Ortodoxa ...

Não tanto como queria. [risos] Deixe-me só salientar isto: não tenho problema algum com religião. Claro, desde que não apelem à violência. Nem com os crentes, com a fé em geral. Por mim, as pessoas podem acreditar no que quiserem, até mesmo no horóscopo [risos]. O meu problema com a Igreja, a Ortodoxa neste caso, é ela como instituição, que por diversas vezes se associou a movimentos fascistas. Desde a sua origem turbulenta, que levou à criação daquilo que foi comummente designado como “Ku Klux Klan Ortodoxo”, passando pela ditadura comunista, onde a Igreja fez parte do regime, até posteriormente ligar-se ao poder político e difundir sempre uma mensagem racista, homofóbica e aí fora. É neste sentido que estou contra a Igreja. Quer dizer, se fosse simplesmente para cuidar dos seus fiéis não me oporia, mas pelo facto de se assumir como uma força política com ambição de mudar a sociedade não só para crentes, mas para todos nós... não posso apelar a qualquer simpatia por uma instituição destas.

Tendo em conta o tipo de produção que nos chega, nomeadamente a dita Nova Vaga (Cristian Mungiu, Cristi Puiu, Corneliu Porumboiu ou até mesmo você), na qual o podemos incluir, e até, recentemente, pelo documentário “Colectiv”, ficamos com a sensação de que a Roménia é um país terrível para se viver. [risos].

É uma questão demasiado complexa, e tem, obviamente, uma relação de comparação e perspetiva. Por exemplo, se eu vir os filmes de Pedro Costa, a minha primeira impressão é que Portugal é um país horrível para viver. Mas depois assistimos a um Manoel de Oliveira, ou até mesmo ao “Diamantino”, e já não partilhamos essa ideia. A verdade é que os cenários oferecidos pelo cinema não são 100% coerentes. O que acontece é que nós, romenos, sofremos com a comparação. Comparamo-nos com muitos dos países ocidentais e sentimo-nos mal com essa comparação. Sentimo-nos pobres, incultos ou pequenos. Como referiu, um "terrível país para viver”, com imensos problemas, pobreza e maus políticos. Temos muito para resolver, mas equivalente aos nossos problemas, muita boa gente que forma este país.

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Colectiv (Alexander Nanau, 2019)

Mas nem tudo é mau, e voltando à comparação, se fizermos com, talvez, uma Albânia ou uma Ucrânia, reparamos que, na Roménia, possuímos algumas liberdades que faltam a esses países. E poderíamos ser grandes com uma boa direção, com os ditos bons políticos. Mas como dizia, são questões complexas e a culpa não é concreta. Pode ser nossa, como pode ser da União Europeia, sei lá, é simplesmente complicado. E nisso, é para mim, um dos grandes problemas com o "Colectiv, porque o filme praticamente nos diz que o problema vem da velha política e sistema, e que isso pode ser resolvido com a entrada de novos políticos. Como Vlad Voiculescu, que se especulava que teria a possibilidade de alterar o cenário se fosse promovido a ministro da Saúde. Como tal, fica “bem” no filme, mas é bastante ingénuo e simplista. Porque isso aconteceu, esse tipo converteu-se no ministro da Saúde num novo governo no ano passado e o que resultou foi um desastre. Não por ser corrupto, ele não é corrupto, mas por ser um incompetente e narcisista. Obviamente, que a culpa não seja só dele, o sistema é demasiado grande e profundo para ser alterado apenas pela vontade de uma só pessoa. É uma ideia ridícula e ridiculamente inocente. E é esse o meu problema com o “Colectiv”, o de dar a ilusão de que o sistema pode ser combatido por apenas uma pessoa.

Referi “Colectiv”, porque o filme teve uma forte expressão aqui em Portugal. 

Atenção, acho o “Colectiv” um bom filme, nada contra e não estou a menosprezar o seu impacto, só que traz a ideia errada de que algo tão entranhado pode ser mudado com a força quer de um político ou de um jornalista, é mais complicado que isso.  

Se grande parte do cinema romeno que atravessa as fronteiras é um cinema político e contra as forças políticas em atividade, como é a sua relação com elas? Existem boicotes, “censuras” ou impedimentos para que esta visão seja transmitida para o mundo fora?

Na Roménia, o cinema é tão insignificante que não se torna cúmplice do poder local e gere como cresce de uma forma independente. Apesar de existirem certos aspetos, estamos satisfeitos com essa independência que nos garante uma certa liberdade que, novamente voltando à comparação, alguns países não possuem. Por exemplo, a Hungria. Claro, que temos alguns jornalistas, políticos, conservadores e 'influencers' que se revoltam contra o nosso cinema, mas, na minha perspetiva, acho isso ótimo [risos].

Quanto a novos projetos? É sabido que apresentou recentemente em Locarno uma curta experimental.

Bem, tenho dois projetos. O que foi apresentado em Locarno [“Caricaturana”], o outro que será em Veneza [“Plastic Semiotic”]. E estou a trabalhar em mais duas curtas, sobre a história da Roménia e da Europa. Acabei de receber financiamento para um novo filme, que espero começar a rodar já para o próximo ano. Tenho reescrito o guião, será um filme bastante simples mas que sempre tive vontade de concretizar e espero conseguir fazê-lo. Será sobre relações entre indivíduos e grandes empresas.

De que maneira a pandemia o afectou, ou afecta, a si enquanto realizador?

Tirando todos os elementos que abordamos, sinceramente não me afetou de todo. Para mim é como se não tivesse tido confinamento [“lockdown”]. Trabalhei neste filme e fiz muita ‘coisa’ online, incluindo casting, encontros e preparações, como também viajei, mesmo que difícil se tenha tornado. Fui à República Checa e ao Luxemburgo para a correção de cor e a edição de som. Depois entrou a Berlinale, de seguida trabalhei nas minhas curtas, tenho ido aos festivais quando consigo. Para mim é como se não tivesse havido uma pandemia, quer dizer, estava ciente e a minha vida social foi afetada, mas a nível profissional continuei a minha jornada como realizador. Nada mudou na trajetória, só os meios. 

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I Do Not Care If We Go Down in History as Barbarians (2018)

Em Portugal, o cinema saiu bastante afetado com pandemia …

Ah sim, os cinemas … Obviamente que sim, aqui na Roménia também muito do nosso cinema foi afectado e as salas de cinemas. Mas o que posso fazer? Apenas continuo o meu trabalho enquanto posso e pelas suas possibilidades. Resistimos e acredito que o cinema resistirá.

Há pouco citou nomes como Oliveira, Pedro Costa e o filme “Diamantino”, segue ou costuma ver Cinema Português?

Oliveira, Costa, Miguel Gomes, Susana Sousa Dias e … bem, agora está-me a faltar o nome … o realizador do “Comédia de Deus”.

João César Monteiro?

Isso. Gosto de cinema português e sigo aquilo que consigo. Mas do que vi encontro muitas parecenças como cinema romeno, não consigo bem explicar, mas deve ser algo de espírito. Mas não é só de cinema, sou um admirador do Fernando Pessoa, amaria visitar a casa dele aí em Lisboa

Nunca veio a Lisboa?

Não, nunca meti os pés em Portugal. [risos]

Mas os seus filmes são “habituèes” dos festivais de cá, principalmente o Indielisboa, onde o seu “Aferim!” ganhou o prémio principal no certame de 2015. 

Eu sei, e nunca faltou oportunidades para ir aí.

 

* O filme está disponível na Filmin Portugal [ver aqui]

Os Melhores Filmes de 2021, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 29.12.21

Depois da tempestade vem a bonança, pelo menos seguindo os ditados populares poderemos considerar que 2021 foi o ano revitalizador do cinema. Contudo, os ecos da pandemia e as ameaças de novas variantes têm indicado um regresso tímido às salas, em oposição de um cinema-fénix que surge das cinzas da modernidade que conhecíamos e que muita tristeza nossa apelidamos de “normalidade”. São filmes que nasceram dessa decadência civilizacional e que debruçam na nossa "barbárie" como foi o caso de Radu Jude e o seu “Bad Luck in Banging or Loony Porn”, ou que remetem-se a paraíso longínquos da nossa memória [“O Movimento das Coisas”], ou questionam a nossa identidade nos confinamentos da existência [“Titane”]. No fim de contas, o Cinema sobreviveu, o que nos basta é procurá-lo nos meios das proclamadas ruínas! Segue a lista dos 10 filmes imperdíveis do ano de 2021, que (privilegiadamente) tiveram estreia portuguesa.

 

#10) Compartment Number 6

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"Nunca me canso de citar Fernando Lopes na sua breve aparição de "The Lovebirds" de Bruno De Almeida - “Existe uma beleza triste na derrota” - e tendo esse signo em vista, é de facto inegável a beleza nas ferrovias de “Compartment Nº6”. Resistindo à melancolia como uma falhada festa!" ler crítica

 

#09) Les choses qu'on dit, les choses qu'on fait

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"“As Coisas que Dizemos, As Coisas que Fazemos” percorre por vias de palavras essas dúvidas supostamente existenciais das personagens, que se vão cruzando e entrelaçando umas com as outras através de relato e discursos. Está feito aqui um universo a merecer ser explorado, de felizes e tristes acasos, e de conflitos discretos, de ênfases dramáticas subtilmente embutidas nos gestos, nas carícias ou nos beijos trocados antevendo despedidas. Sensibilidade é o que é aqui pedido, porque casos amorosos todos nós vivemos, nem que seja por um dia. Dentro dos tais ditos “filhos de Rohmer”, eis um filme que é, de facto, um pedaço de céu." Ler crítica 

 

#08) Bad Luck Banging or Loony Porn

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Em “Bad Luck Banging or Loony Porn”, a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o último Festival de Berlim (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel. Ler crítica

 

#07) The Human Voice

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A atriz britânica é das forças maiores deste projeto, que requer mais do que a sua capacidade de assimilar, a sua expressão em nos convencer de uma veracidade poética tida nas suas palavras, nas suas angústias, na sua linguagem corporal, enquanto emana um monólogo justificado. Esta é a história de uma mulher em jornadas existencialistas cuja ausência do seu "mais que tudo", o impulsor de toda a postura trágica, a leva a tomar medidas. Ler crítica

 

#06) Nomadland

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Inspirado no livro “Nomadland: Surviving America in the 21st Century”, de Jessica Bruder, Chloé Zhao marca a sua posição, quer na definição de realismo, separando qualquer simulacro "hollywoodesco" e submetendo McDormand, bem como outros atores, a um convívio de constante aprendizagem com não-atores, as tais pessoas de carne-e-osso que tanto procuramos nos filmes. Trata-se de um processo de criação que funde ficção em território documental e o híbrido daí gerado percorre os trilhos de um "império" deixado ao abandono. Império que aqui não é citado por acaso: remete para a ironia do destino, em que a cidade Empire onde vivia a protagonista, outrora industrializada e habitada, se tornou um endereço postal inexistente. Ler crítica 

 

#05) Titane

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Portanto, “Titane” opera consoante a interpretação e representação que lhe quisermos dar e visualizar, nunca prescrevendo em absolutismos ou propagandas. É terror, choque, sangue e bizarrias. E, ao mesmo tempo, política, identidade e sociedades espremidas numa só arte. Uma complexa panóplia disfarçada num gesto de repugnar o espectador, com uma atriz titânica como Agathe Rousselle a servir-nos de compaixão e incómodo e um dos mais excêntricos desempenhos de aclamado ator Vincent Lindon. Ambos em figuras presas às suas maldições, que ambicionam pelo aço o que os seus corpos invejam. Ler crítica

 

#04) O Movimento das Coisas

São poucos os que ainda preservam essa veia cinematográfica na ruralidade, ao invés de ceder ao facilitismo formal, diversas vezes elogiado por elites de pensamento crítico cinematográfico. E é por isto, e não só, que “O Movimento das Coisas” é um filme crucial na nossa História, um modelo ora acidentado, ora poetizado sem bucolismos latentes. Ler crítica

 

#03) Undine

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Undine torna-se Berlim, e Berlim torna-se Undine, uma cidade, um corpo, que não morre, simplesmente dá a vez a outro. Christian Petzold pode não ter aqui a essência bruta e já flexível da sua cooperação com Nina Hoss (saudades), mas sabemos que temos, não um desfecho, e sim, uma aurora. Um reinício do seu Cinema. Não querendo banalizar um termo, por si só, tão banalizado, eis um belo filme. Ler crítica

 

#02) Another Round

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Pelo que sabemos, a tragédia bateu à porta de Vinterberg a pouco tempo do início da rodagem, automaticamente virando uma possível comédia de “velhotes” que ousam sonhar com uma juventude embebida em martinis, numa superação ao seu luto, uma história pessoal e experiencial (não confundir com experimental) sobre o retomo da vida, à “normalidade” que foi configurando perante as mudanças. Nesta lufa-lufa de confinamentos e desconfinamentos, chegar a nós um filme assim, tão antiquado e igualmente vívido é um quasi-antidoto da melancolia contraída pelo nosso quotidiano. Aliás, Cinema é também isto – sentimento – até porque é Vida. Então brindemos à Vida … mais um shot!Ler crítica

 

#01) Gunda

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Kosakovskiy conseguiu mais uma experiência a merecer, de forma digna e obrigatória, o grande ecrã, porque no fundo o cinema transporta quem o vê para uma outra dimensão, realidade ou linguagem. “Gunda” fala-nos com exatidão de um mundo tão perto de nós, mas tão ignorado pelo nosso antropocentrismo. São animais a serem simplesmente animais e as imagens de crua beleza assumem exatamente aquilo que são e nada mais. Não existe engodo, tudo respeita a natureza e a sua autenticidade. Obrigatório. Ler crítica

 

Outras menções: Begining, The Father, Cry Macho, Colectiv, Prazer Camaradas

 

Simplesmente, "mau porno"!

Hugo Gomes, 12.03.21

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Em “Bad Luck Banging or Loony Porn”, a questão não se resume a “mau porno”, ao invés disso, como a atualidade transformou-se em “pornografia rasca”. A mais recente longa-metragem de Radu Jude (cineasta que tem dado cartas na pós-vaga romena e realçando um cinema muito crítico à história do seu país) venceu o último Festival de Berlim (mesmo que virtual) com distinção, provando além de mais estar ao desencontro do dito radicalismo que muitos querem vender perante o seu formalismo algo tosco, é um cinema que fala na contemporaneidade por vias de uma ridicularização cruel.

O filme inicia assim como um choque frontal. Pornografia explícita e real frente aos nossos olhos, o dispositivo narrativo que culminará toda esta paródia tragicómica de perspetiva quase apocalíptica. Como tal, seguimos a professora Emi (Katia Pascariu), de uma reputada escola, que irá enfrentar o dia mais desafiante da sua vida. Em plena pandemia, ela será sentenciada por um bando de pais raivosos, com a responsabilidade de ditar o seu futuro. O porquê? Porque a nossa protagonista é estrela de um filme de sexo caseiro com o seu marido, que por obra, ainda desconhecida, “cai” na internet à mercê de qualquer um, principalmente dos seus alunos.

Bad Luck Banging or Loony Porn” aborda uma suposta “obscenidade” para a confrontar com outras presentes, e cada vez mais, na nossa sociedade. Enquanto Emi é atacada pela sua exposição sexual, os argumentos vindos destes encarregados são recheados de discursos extremistas, misóginos, antissemitista, homofóbicos e com algumas teorias da conspiração à mistura. Porém, o alvo é a sexualidade da mulher (e podemos colocar em letra maiúscula porque as nossas mencionadas sociedades “modernas” lidam mal com a libertação sexual, muito mais proveniente da área feminina), o resto, esse caldeirão de perversidades, mau-caracteres e gestos antiéticos são banalizados.

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O que resta é uma reação, um impulso aos estímulos que mantêm viva uma sociedade decadente, ainda conservadora e reprimida. “Não há revolução sem revolução sexual”, os ecos do tão atípico “W.R.– Os Mistérios do Organismo” (Dusan Makavejev, 1971), mencionada invocação pelo próprio Jude, inserem-se como um espírito condenado por um fantasiado armagedão. O Mundo à beira do seu ponto final, não por culpa de um vírus, mas por culpa da nossa natureza, rude e apática (mesmo que a palavra empatia seja a segunda mais pesquisa na internet na Roménia, um passo atrás de “felácio”, segundo o dicionário de idiossincrasias romenas que surge como interlúdio dos seus atos narrativos).

Aproveitando o “palanque”, esse dicionário assumido, irónico e mórbido, gostaria de transcrever a passagem de “Cinema”, o qual essa mesma definição invoca a lenda de Perseus, guerreiro mitológico grego, e o seu encontro com a temível rainha das górgonas, Medusa. Como bem sabem, a outrora mais bela mulher do mundo, castigada pelos deuses e reduzida a uma hedionda criatura, tinha como habilidade (talvez seja mais maldição) transformar carne em pedra através de um simples olhar. Perseus conseguiu o feito de dizimar a tal criatura, utilizando um escudo espelhado. Graças a esta ferramenta, o herói pôde enfrentar Medusa sem olhar diretamente para esta. A lição retirada é a seguinte – o Cinema reflete os horrores do mundo para nós, o qual somos demasiado amedrontados para olhar na sua realidade.

Bad Luck Banging or Loony Porn” é, isso mesmo, um espelho da nossa contemporaneidade.

Um Urso pornograficamente corajoso!

Hugo Gomes, 05.03.21

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Houve coragem em consagrar "Bad Luck Banging or Loony Porn" do romeno Radu Jude com o Urso de Ouro numa edição, longe do normal, do Festival de Berlim. Uma alegoria aos tempos modernos ... e pandémicos, um mundo perverso pronto demonizar a "perversidades" dos outros. Estamos cada vez mais apáticos, incoerentes e sós, Jude apenas dá-nos o nosso "Muro das Lamentações".
 
PS: filme que será abatido quando chegar à nossa praça, até porque o "cinema confortável" ainda mora nas fachadas.