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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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O talho self-service da Disney

Hugo Gomes, 18.03.25

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Sim, há polémicas a serem abordadas, decisões recuadas ao ponto de servir a gosto ao sedento público e as críticas daí geradas, bem como a cedência às transições políticas. Há muito por onde começar enquanto contexto desta produção, só que não desejo vergar por aí — são outros tópicos e outros esclarecimentos. Gostaria, antes, de falar deste fenómeno: o dos “live-action remakes” da Disney. Para que servem? Para onde querem ir? O que se passa, afinal?

Snow White” era, desde a sua génese, um dos mais tremidos nesta transcrição humana, não havia volta a dar, o material com que se reflete, o filme de 1937, foi um dos pioneiros da História da Animação — a primeira longa-metragem nesse género — e, para a Disney, um dos seus diamantes brutos, que tal como a Coroa Inglesa, ostenta e insufla a mística de incalculabilidade e, mesmo assim, exibida no centro de todo o ambiente museológico. Este processo de transformar as suas animações em ação real — muitos deles meras fotocópias — é, perversamente, mais do que uma simples captação de nostalgia; em termos psico-sociológicos, configura-se como uma via mercantil que se apresenta como abrigo a uma nova geração de espectadores-adultos, refugiados no medo constante do quotidiano e da atualidade, que encontram neste gesto um alívio provisório para a sua ansiedade permanente. “Aqui não vos acontece nada” — a relembrar a propagandista frase de Vasco Santana em “O Pátio das Cantigas" (1942) sob as letras garrafais de Salazar, e segurança é o que prometem: um antídoto proustiano, efémero e reconfortante.

Contudo, há também um ego e, simultaneamente, um egoísmo por parte do estúdio nestes projectos: o de se pavonear com estes contos enquanto exclusividades criações suas. Ignora-se, assim, que “Snow White”, tal como grande parte daquilo que compõe a chamada “magia Disney” (com o castelinho nos créditos iniciais em plena festividade), não é mais do que uma reinterpretação disneyliana de velhos contos, lengalengas, tradições orais ou até romances e magnus opus da literatura mundial. Mas o sucesso tem destas ‘coisas’: ultrapassa, ou melhor, sobrepõe-se e reconta a História, sob uma única perspetiva — a dos vencedores. Sabiam que a Disney detém os direitos dos sete anões? Daí que grande parte das adaptações alheias do famoso conto dos Grimm apresente um outro número desses seres amigáveis e de personalidades definidas na unilateralidade. A Disney criou a narrativa de que estes domínios intelectuais são obras suas, peças de marca registada da sua fábrica, e trata-os como tal. O público vai na artimanha e segue a lógica apresentada — os alter-factos.

Snow White” faz dessa entrada a reinvenção da reinterpretação, com claras fidelidades ao produto que o estúdio apresentou há décadas. Trata-se de um canibalismo convicto: produzir e consumir a sua própria carne. E aqui, com o realizador Marc Webb (“(500) Days of Summer”) a dançar valsa com a sua própria insignificância autoral, assumindo-se um tarefeiro estandardizado numa obra que trespassa uma única voz. Para além de se notar, gratuitamente, a sua esquizofrenia, depois de ter sido adiado da sua data original e subjugado a refilmagens e reversões, o filme parece não querer esconder a sua desorientação — o seu dilema entre manter o clássico ou ceder ao avant-garde sociológico. Nem uma coisa, nem outra.

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Artificial, falso até às costuras, sem personagens desenvolvidas e com uma abruptidade no seu final. Rachel Zegler é um boneco, Gal Gadot outro, e o resto são adereços. Nesta feita, perante um trabalho que raspa o fundo do tacho, volto à questão que me levou a este texto: vale a pena fingirmos que a Disney construiu “Branca de Neve” de raiz e é a única com direitos para a reavivar e assassinar constantemente, como bem entender?

A animação original continua lá, sem nostalgias, porque é História do Cinema a ser fabricada em frente aos nossos olhos — os seus movimentos e a perfeição com que a dinâmica destes se conjugava numa ação-narrante em 80 minutos de duração (inédito para o seu tempo), para além de ter sido um dos primeiros jumpscares das nossas infâncias coletivas (mas isso já são outros contos e recontos). Em tempos, a instituição arriscava. Hoje, reage apenas ao medo do trambolhão financeiro.

À procura e novos tempos e de uma nova Maria

Hugo Gomes, 08.12.21

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Ele “conheceu e beijou uma rapariga chamada Maria”, encontro que depressa transformou todo o seu mundo. Um romance de contornos shakespearianos no quente do asfalto de Nova Iorque, questionando a rivalidade mortal entre duas facções particulares de gangues, de um lado aqueles que julgam que a América pertence apenas a eles por mérito próprio, e do outro, os latinos que procuram na Terra das Oportunidades a sua chance de vingar. Uma história secular que alcança a contemporaneidade dos confrontos raciais num modo escapista, apropriado de um musical de igual nome estreado na Broadway em 1957. Não é “Maria” a faísca para a ebulição de todo conflito, mas sim, “West Side Story: Amor sem Barreiras” (1961), uma partitura dividida por Robert Wise e Jerome Robbins, feito que conquistou 10 Óscares (incluindo o de Melhor Filme) e se tornou um dos filmes norte-americanos mais populares décadas após décadas.

Atualmente, com a assertividade dos debates étnicos e o calor do ativismo pós-Black Live Matters, a existência longínqua de “West Side Story” era motivo que bastasse para uma revisão, até porque o romance, hoje em dia, não é o suficiente para o culminar de prolongados efeitos político-sociais, e a matéria de que compunha o bailado de navalha na mão continua presente no nosso “agora”, e de forma mais reagente. À sua maneira, tivemos recentemente essa reconstrução modernizada pelo cunho de Lin-Manuel Miranda em “In the Heights”, pregando e salientado uma maior importância latina nos bairros nova-iorquinos. Porém, a necessidade era outra, não a de pensar sobre o material trazido pelo lado oeste, e sim o de prolongar um legado, o musical dito e feito que vingou há 60 anos.

Steven Spielberg é assim responsável por essa busca da luz eterna de Hollywood através de um “West Side Story” que, antes de mais, se cola ao legado do anterior e perpetua um desejo nostálgico de um género outrora moribundo. Talvez seja por esse enfoque pela ingenuidade que a versão Spielberg agrade aos mais saudosos e os suspirantes pelo cinema com que cresceram. Sendo isso, a pílula temporal joga a seu favor, demonstrando a mestria de Spielberg no espetáculo cinematográfico, no encantamento do musical “à antiga” e na acentuação do biótopo envolto do fulcral e crucial romance.

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Sim, o “West Side Story” spielbergiano está a léguas do desastre que se avizinhava (para os crentes de Spielberg tal afirmação é uma heresia do tamanho do Mundo), mas fora essas qualidades técnicas é uma produção desnecessária mesmo com o contexto atual. O gesto de suposta homenagem do realizador proclama-se como ingratidão, uma sobreposição à “velha” versão, como se de uma segunda demão se tratasse. À mercê disso, o romance (com Ansel Elgort e a “estreante” Rachel Zegler a herdar a tragédia amorosa de Richard Beymer e Natalie Wood) é pálido, e por vezes de ênfase plastificado, face à hercúlea construção da comunidade que orbita nas suas dores e juras. Nesse sentido, é no secundário, nos vibrantes alicerces, que esta atualização faz merecer o seu lugar ao sol, entre os quais, e com principal destaque (sublinhamos os seus nomes sobre o casal protagonista), Ariana DeBose e Mike Faist, que atribuem, ora fisicalidade, ora perversão, ora afinco, nas suas respectivas personagens. Aliás, há mais esses elementos neles que propriamente numa restante produção, algures entre a decoração pujante ao serviço de uma memória (sem esquecer o vínculo direto com o original graças à presente de Rita Moreno).

É a memória de uma Hollywood no limiar da sua Era Dourada e do limbo pré-Nova Hollywood que definiria o cinema moderno norte-americano. Sim, os anos 60 foram uma fase estranha na produção cinematográfica do outro lado do Atlântico, uma disputa entre o conservadorismo e as novas linguagens que despertavam. Contudo, não serão esses os mesmos campos de batalha que também experienciamos de momento em tela?