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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O meu corpo, os meus géneros ...

Hugo Gomes, 26.06.24

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Chegamos a mais um trio de curtas emparelhadas como uma sessão única, utilizando a sua temática unificadora como “desculpa” para a sua aliança. “Ovnis, Monstros e Utopia: Três Curtas Queer” [“Entre a Luz  o Nada”, “Sob Influência”, “Uma Rapariga Imaterial”] reúne três obras, fruto de três produtoras diferentes [“Primeira Idade”, “Promenade”, “Terratreme”], mas cujas vertentes artísticas parecem saltitar de filme para filme. Enquanto o seu cuidadoso lançamento em junho assinala o içar da bandeira arco-íris e o punho certeiro em nome do Pride, como soa ordenar este calendário temático.

Contudo e quanto aos filmes, mesmo entrelaçados no selo queer, é curioso encontrar uma voz antagónica a essa mesma categorização, e é dela que gostaria de partir. Odete, atriz , performista e personagem principal de “Sob Influência” de Ricardo Branco - e também participante do festival de “Entre a Luz e o Nada” de Joana de Sousa, e compositora musical de “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho -, brindou-nos com um questionário habitual, sempre pontuado pela produtora Promenade nas suas redes sociais. É um hábito na sua conta de Instagram: os atores e agentes artísticos desta casa são desafiados a enumerar cinco coisas que adoram e cinco coisas que odeiam, curiosamente, Odete assinala o termo “queer” na lista dos ódios. 

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Não entendendo bem o seu contexto, mas junto-me a ela, não em odiar [palavra demasiado forte], mas em questionar essa gravidade orbital trazida pelo uso da palavra queer. Mesmo conhecendo a “estética queer” no cinema - uma prolongação do camp com mais requinte visual - neste caso, oponho a categorização como um catálogo, um sectarismo que vai contra aquilo que as três curtas parecem/desejam manifestar – o romper de barreiras (leia-se géneros, sexualidades, códigos pré-socialmente estabelecidos).

Quanto às curtas propriamente ditas, os três elementos impostos no título da sessão são referências simbólicas, signos presentes em cada uma delas, ou por um lado, alegorias e personificações. Comecemos então com os “Ovnis”: “Entre a Luz e o Nada”, o lado intergaláctico de uma rave organizada em edifícios ao abandono, um filme sensorial que se apresenta como o segundo trabalho de Joana de Sousa, reconhecida no meio como ex-programadora do Festival Doclisboa (2015 - 2023). 

Dos três, é o mais convencional na dita estética queer, impondo uma brincadeira de luzes, purpurinas, constelações e música techno que se avançam em sonhos coletivos e em loop. Parte dessa brincadeira para se impor como uma mostra de uma fauna única deste mesmo universo, consolidado numa festa à moda daquilo que Portugal faz bem, seja em juventudes inquietas [“Verão Danado”], seja em territórios cavernícolas [“Ruby”], são convívios marginalizados, algo escapistas para com a uma realidade que os aterroriza, e os obriga a “banalizarem-se”. “Entre a Luz e o Nada”, o festim (quase) nu possui não só essa evasão de uma normalidade, como um culto de apelo a forças maiores que elas próprias, uma vinda extraterrestre quem sabe, que os liberta das suas amarras e a apresenta num único corpo, uma utopia [calma, já lá vamos!]. Joana de Sousa brinca aos misticismos como uma nova religião.

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Monstros”: não dos saídos do armário, mas daqueles cujas garras nos sacodem para forma dos nosso parâmetros, aqui, Odete, a tal protagonista contra o termo Queer, é emborcada de alucinógenos que a empurram para fora do seu terreno, da sua realidade, torna-se um corpo alheio, abananado, deambulando para lá onde for. “Sob Influência”, de Ricardo Branco (também assistente de realização de “Entre a Luz e o Nada”), faz a sua fuga pro vai desse estupefaciente e o coloca a mente e o corpo de Odete na demanda da sua alegoria, é um “objeto” perdido e simultaneamente encontrado no limiar da sua fronteira (convenhamos, há um elemento abstracto conformidade com a alusão de não-pertença, Odete não pertence a etiquetas, géneros, nem seja o que for, povoa na sua exclusividade como a sua plena característica). 

Branco brinca a outros géneros, o do cinema, com sugestões de um terror psicadélico e de criaturas escuras como breu, voyeuristas e famintas, tudo envolvido num exercício de “nem carne, nem peixe” mas com atributos estéticos e produtivos que colocam “Sob Influência” num quadrante de um sonho acordado, e drogado. 

Contemplamos então a “Utopia”: “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho, o dos três o mais conseguido esteticamente, mas o mais ambíguo na sua temática / abordagem. A história tem tanto de fantástico-erótico como onírico-febril, um encontro mesmerizante entre Tiago (João Duarte Costa) e uma “rapariga” de nome João, que reside numa isolada casa no meio da floresta. Existe um choque inicial que nos guia à parcialidade do cinema de João Pedro Rodrigues, dos travestis caçadores-de-gambuzinos em “Morrer como um Homem” (2009) ou das amazonas agressoras de observadores de aves em “Ornitólogo” (2016), mas é nesses cantos e recantos obscuros do feral e do silvestre que se esconde sexualidades a ser exploradas nos confins da empestada civicionalidade que termina essas comparações. 

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Odete em "Sob Influência" (Ricardo Branco, 2023)

João Pedro Rodrigues não é tão favorável às mulheres como Godinho encanta neste registo com sonho de diluir géneros, corpos e genitálias, e isso torna-se evidente na sequência de sexo erotizado e hipnótico em que a tal rapariga de nome João assume e encorpora três carnes, distribuídas em três géneros (João Abreu, Aurora Pinho e Mafalda Banquarte), quebrando os limites do seu erotismo direccionado, nesse termo relembra o “faz de conta” de Bertrand Mandico na sua fantasia surrealista “Les Garçons sauvages”, ao trocar os papeis dos géneros e com isto desafiando o sexualismo dessas imagens e desses corpos. 

Só que “Uma Rapariga Imaterial” termina exatamente nesse registo erotizado e prossegue com uma agenda escancarada de revolução, contrapondo os “eles” contra os “outros”, os normalizados, os males do mundo materializados. Aí, a confusão instala-se, invocando e desinvocando todos os temas e mais alguns, propagando uma ideia de utopia (a cena final resume-se a isso). Infelizmente, o resultado é o contrário: uma distopia, um confronto sem decretos e declarações convictas.

É uma pena que um filme que desbrava as ervas-daninhas da sexualidade através de uma montagem perfeccionista e encantatória (a cargo de Francisco Moreira, responsável pela montagem de “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos e “Alva” de Ico Costa) se deixe deslumbrar pela necessidade de transmitir uma mensagem imperativa, ou múltiplas mensagens, num ativismo algo tosco. A subtileza dos primeiros minutos era mais do que suficiente.

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Uma Rapariga Imaterial (André Godinho, 2023)

O fácil engate de Lisboa

Hugo Gomes, 24.04.24

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Sobre “Amo-te Imenso” há pouco para dizer e ao mesmo tempo muito para falar; como nos vemos, como os outros nos veem e como desejamos ser vistos. Três formas de exposição que num género, que tão formado nos soa moribundo parece indicar, mas nada de relevante na qualidade do filme do brasileiro Hermano Moreira [primeira longa-metragem], nesse aspecto, escassamente ou nada o faz relevar das atitudes de “Lisboa para gringos”, tudo perfeitinho, tudo esplendoroso e “tapas” como tradição. 

Enredo de viajantes e amores casuais, filme esse que cheira-nos a fragrância cosmopolita efêmera, de “para entender um brasileiro basta ouvir samba, já o português …” - uma pausa dramática e uns acordes de guitarra portuguesa - “basta ouvir fado”. É neste catálogo turístico, vendendo a nossa característica melancolia sem a entender, e o resto pela capital portuguesa em rigor dos seus postais turísticos. Tal faz-se pela ótica de um paulista recém-chegado à outra margem do Atlântico, deparando-se com um país colorido e de Sol presente, de fanfarra e farras, enquanto São Paulo, em breves cenas, nos é pintado em dominantes tons cinza, céu nublado e monos arquitetônicos, uma floresta tropical de betão que contrasta com os maneirismos paisagistas da "cidade-alfacinha". É a sua visão que conta, e nós, espectadores portugueses consentimos esse ‘julgamento’ positivo, adoramos a aprovação e o deleite encantado dos estrangeiros nas nossas terras, do selo “país de brandos costumes” a “povo que sabe bem receber”. Faz-se por via da comédia romântica, daquela importada de Nova Iorque cuja ilha metropolita é um mundo aparte, respiramos esses ares de modernidade despreocupada, porque esquecemos, por momentos, do nosso cinzentismo e deixamos escapar um sorriso amoroso agraciado nas luzes ... essa tão elogiada luminosidade ... de Lisboa

Muitos dirão que a comédia romântica está morta, ou não tem lugar no público atual, ou entenda-se não faz sentido noutras cinematografias, e esta co-produção luso-brasileira da Promenade (“Leviano”, “Frágil”) e Paramount Pictures Brasil é um tiro ao lado do alvo que se designa gosto da audiência. Para afrontamentos ‘gringos’ na Lisboa cinematográfica, tentou-se e igualmente fracassou-se, Leonel Vieira em modo Globo da alternância com “Alguém como Tu” (2017), havia um elemento fantasioso na sua fantasia, no caso de “Amo-te Imenso” (com um casal deveras tóxico) a fantasia morre pela boca.

Pedro Henrique: "Se não nos dedicarmos a subverter e a transformar o mundo, de que é que vale a pena?"

Hugo Gomes, 31.01.23

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"Frágil" (2022)

Chegamos ao tão pretendido *Club*, a ambição acima do humanamente possível que o protagonista Miguel (Miguel Ângelo Santarém) deseja concretizar, como último desejo da sua juventude de abanões e abandonos. Esta é a premissa, ora rasurada, ora minimizada de “Frágil”, um dos mais falados filmes portugueses de 2022 (graças aos protestos na sua sessão de apresentação no Indielisboa), a primeira longa-metragem de Pedro Henrique (sob o nome artístico de João Eça), que marca presença no calendário de estreias comerciais no primeiro mês de 2023. 

Convidado pelo Cinematograficamente Falando … para responder a algumas questões sobre a sua obra, sobre a sua órbita e sobre o estado formal e intelectual do cinema poruguês, eis as suas respostas e quiçá, statements

Gostaria de iniciar, não como uma questão limitada à génese deste projeto, mas dando uma festa ao “elefante na sala” [o protesto na sessão de apresentação do “Frágil” no Indielisboa e no Festival de Turim], como tal gostaria de fazer a pergunta desta maneira: o que pretende atingir com o seu projeto?

Nunca é demais lembrar a máxima que diz que o processo é mais importante do que a meta. Na verdade, só há uma “meta”, no sentido em que falamos de um “fim”, porque vivemos num sistema que nos dita que as coisas têm, forçosamente, de acabar. Ou seja, o “fim” ou a “finalidade” não são existências ontológicas do mundo, são sim efeitos políticos e performativos do discurso e das nossas práticas. 

É perfeitamente possível imaginar um mundo alternativo em que umx cineasta poderia trabalhar num filme o tempo que quisesse, justamente porque não haveria estruturas nem instituições económicas e políticas que estabelecessem e/ou regulassem os seus poderes através da performatividade da meta e do prazo: “tens de acabar isto até dia X, senão vais fora!” Ora, esta lógica do poder só existe, no fim de contas, fruto dos mecanismos de competição que devem definir xs vencedorxs em prole dxs vencidxs (é justamente porque vivemos num sistema de vencedorxs a que chamamos o capitalismo que devemos competir a todo o custo). A competição (em primeiro lugar económica, mas não só) entre indivíduxs (isto é, entre átomos sociais) veio substituir outros tipos de hierarquização e distribuição do poder: a linhagem de sangue e o sistema de vassalagem feudal, por exemplo; os sistemas de castas; certas práticas religiosas de beatificação ou canonização…

Foi justamente contra esta ideia de competição que dirigimos o nosso protesto-performance no IndieLisboa, ou seja, contra o facto de os festivais de cinema nos obrigarem a competir contra xs nossxs amigxs e colegas de profissão(e não apenas de forma directa e violentíssima, como também tornando essa competição num espectáculo performativo de massas). Mas, para além desse facto mais evidente ao qual nos opusemos de forma clara no nosso discurso e ações, há outras coisas (também elas fruto da competição) que temos criticado para nós mesmxs com veemência: por exemplo, toda a pressão que implica termos de estar ali, naquele momento de apresentação do filme, com um objecto absolutamente terminado que deve ser considerado melhor que os outros. O que a competição e a lógica da vitória produzem é a quase total obliteração da liberdade de experimentação, do erro, da criação partilhada, do trabalho que dure no tempo, da possibilidade da crítica construtiva, da reformulação dos projectos... 

Segundo a regra da competição tudo deve estar pronto o quanto antes, e o melhor possível, claro! Esta pressão do tempo é intrínseca ao capitalismo, porque é de uma verdadeira corrida que se trata. Ora, o que temos pretendido atingir com o nosso “projecto”(como lhe chamas) é, tanto quanto possível, não fazer disto uma corrida. Tomar o tempo necessário (o tempo justo, diria mesmo), seja esse tempo de seis meses ou seis anos. E ir pensando em cada fase do processo (à medida que o próprio processo se vai desenrolando) para que possamos tomar, com calma e justiça, as decisões que nos deixem num espaço político e artístico confortável. É evidente que algumas destas decisões são de uma enorme complexidade: por exemplo, queremos estrear o filme comercialmente, ou não queremos? E se queremos, estamos dispostxs a estreá-lo em qualquer cinema, ou queremos escolher o “tipo” de sala? Quais as implicações políticas em estrear um filme (sobretudo um filme como o nosso) num multiplex, provavelmente situado dentro de um centro comercial e que o público irá consumir da mesma forma que consome fast food ou um produto estandardizado de supermercado? Etc., etc., etc. 

As perguntas, as dúvidas e as decisões, claro, são infinitas. Mas temos de fazer o esforço (político, ético) de ir tentando respondê-las uma a uma, mesmo que muitas vezes possamos não estar inteiramente certxs das respostas. Assim sendo, a minha resposta à tua pergunta é esta: o que pretendemos é adquirir o máximo de controlo sobre o nosso filme e sobre o seu destino e isso envolve preocuparmo-nos menos com uma qualquer meta final e mais com o processo e a forma como ele é conduzido. Talvez não tivéssemos esta consciência quando começámos a rodar o filme (eu pelo menos não tinha), mas foi algo que fomos adquirindo com o processo de o fazer e, sobretudo, de o mostrar.

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“Greed'' (Erich von Stroheim, 1924)

Este processo envolve não só a forma como lidamos uns e umas com xs outrxs (as pessoas que trabalharam no filme), mas também a forma como lidamos com as instituições. Os nossos protestos no Indie ou em Turim falam por si mesmos: não só queremos dizer um “NÃO” à competição e ao elitismo dos festivais como também queremos aproveitar o momento de visibilidade que implica estar em cima de um palco a apresentar um filme para denunciar a violência subjacente ao “fazer-cinema” em Portugal (e no mundo, claro, mas a nossa realidade é sempre a que conhecemos melhor). Uma coisa que se tem tornado muito evidente para mim é que os filmes, de certa maneira, se tornaram numa espécie de traição ao próprio cinema. Ou seja, justamente porque olhamos para os filmes como objectos fechados (e por isso finalizados; o que é a mesma coisa que dizer: como fins em si mesmos) tendemos a esquecer todo o processo que existiu por detrás: isto é, todo o esforço, toda a injustiça, toda a exploração. 

O cinema, dada a sua dimensão industrial, é uma arte especialmente violenta e o cinema clássico (americano e não só) tentou esconder isso a todo o custo: a permanente associação do cinema ao sonho, as mitologias por detrás das grandes stars de Hollywood, as narrativas heróicas e escapistas, os happy endings... Mas por detrás disto tudo temos o Irving Thalberg a remontar o “Greed”, do Stroheim, de 8 horas para 2 horas e meia; temos a Judy Garland medicada (barbitúricos, anfetaminas, sabe-se lá mais o quê) pelos próprios estúdios para perder peso e ter energia; e, claro, todxs xs tarefeirxs anónimxs a trabalharem em dias de 11 horas, com 1 folga por semana, a filmarem durante 3 meses fora da sua cidade, senão mesmo fora do seu país (são estes os horários de trabalho no mundo do cinema neste nosso Portugalinho de hoje em dia...). 

De alguma forma, habituamo-nos a que os filmes invisibilizassem o próprio cinema, isto é, a forma como se faz cinema. Ou seja, o objecto-filme esconde ou dissimula o processo-cinema.Por isso, poderíamos mesmo dizer que cada filme é uma espécie de mentira sobre a forma como foi feito: uma verdadeira traição! Há poucxs realizadorxs que procuraram dar a volta a isso (Godard é, sem dúvida, um delxs, especialmente no período Dziga Vertov). Acho que o que tentámos fazer com os nossos protestos foi tornar visível esta violência que geralmente é invisibilizada, isto é, tornar essa violência num assunto público. Mais do que fazer bons filmes (isto é, objectos “finais”, perfeitos ou imaculados, portanto,objectos que sejam um resultado ou uma meta em si mesmos) queremos transformar os processos de fazer cinema. E não vejo como poderia ser de outra forma. Porque, no fim de contas, o cinema é muito mais importante do que os filmes.

Mas quanto aos protestos, e sabendo que hoje [com a estreia do filme em circuito comercial], será difícil dissociar a sua ação do filme. Publicidade gratuita? Ou uma maldição para o mesmo?

A ideia de que aquelxs que protestam são “uns ou umas desesperadxs em busca de atenção” é uma ideia muito comum entre gente mesquinha e sem grande horizonte de sentido (crítico e sobretudo autocrítico). Ora, curiosamente, umas horas antes de responder a esta entrevista estive a ver o vídeo do protesto da Keyla Brasil, artista trans e prostituta que interrompeu a peça “Tudo Sobre a Minha Mãe”, no Teatro São Luiz, denunciado o facto de uma das personagens trans ser interpretada por um actor cisgénero (dessa forma ocupando o palco de um dos teatros mais famosos de Portugal enquanto ela e outras artistas trans têm de se prostituir na rua para conseguirem sobreviver economicamente). Ora, no post de Facebook da página do Expresso (como sabemos, um jornal de direita) era assustador reparar (para além da falta de sensibilidade e evidente transfobia dos comentários) no quão frequentemente se atacava o protesto da Keyla pelo ângulo do mediatismo. Basta citar alguns desses comentários:

«A julgar pelos contornos e desenvolvimentos do episódio, sou levado a crer que toda esta situação foi "armada" para publicitar a peça teatral em questão. Nos dias de hoje, o marketing pela polémica tem muita força e alcance.»

«5 min de fama!!!!! Pior é quem dá crédito a isto.»

«Um mero golpe publicitário. Já que a peça é o que é...e o público anda desinteressado...»

Numa sociedade onde a purga do conflito se tornou um imperativo moral (tout va bien, como diz o título de um filme do Godard) qualquer sobressalto, crítica ou disrupção será visto como um “chamar à atenção”, ou seja, como um golpe publicitário ou de mediatismo. Na verdade, quão mais se insiste na ideia de que o importante não é o conteúdo crítico, mas sim o gesto (individualista, narcísico, etc.) dx performer que comete o acto disruptivo, mais atenção se dá a estx últimx. Ou seja, aquelxs reaccionárixs que pretendem desmontar o interesse (supostamente cínico)de quem fez o protesto acabam por contribuir para a causa que criticam: ou seja, não param de chamar a atenção sobre a figura do performer, mesmo quando pretendem o contrário. Ora, a meu ver, essa “publicidade gratuita” (citando atua pergunta) é absolutamente irrelevante perante a dimensão do protesto. O que importa que o nome de Keyla Brasil seja agora conhecido por mais algumas centenas, senão mesmo milhares de pessoas? O que importa é a dimensão, ou o conteúdo,implicado pelo seu gesto e creio que ela estava absolutamente consciente dessa dimensão (política, estética, histórica, performativa...). 

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A atriz trans Keyla Brasil interrompendo a peça "Tudo Sobre a Minha Mãe" no Teatro São Luiz, em protesto à representação "trans" do espectáculo / janeiro de 2023

O resto (o mediatismo) vem logicamente por acréscimo e será sempre tão instável como qualquer ideia de sucesso ou de fama ao longo da história da humanidade (pode durar 5 segundos, 5 anos ou 5 séculos...). De qualquer modo, quem somos nós para dizer que Keyla Brasil não merece agora um pouco mais de reconhecimento, diríamos mesmo, um pouco mais de “publicidade”? Não foi o gesto dela muito mais artístico do que qualquer coisa que em muito tempo tenha estreado no São Luiz? Porque segundo esta lógica retorcida do ressabianço daquelxs que integram o status quo, uma performer merece sucesso e reconhecimento se estrear uma peça num palco de renome e se xs críticxs forem lá dar muitas estrelinhas (cumprindo assim toda a expectativa normativa, institucional e burguesa em torno do “fazer-arte”), mas uma performer que faça um gesto verdadeiramente artístico (porque verdadeiramente disruptivo e político) como o de Keyla Brasil, aí só está à procura de publicidade gratuita?!! Ora, para quem quer que ocupe lugares de visibilidade para fazer protestos políticos, sejam eles o palco do Indielisboa, do São Luiz ou o Ministério da Habitação (por exemplo, em várias acções em que participei ao longo dos anos com o colectivo Stop Despejos), é evidente que o mediatismo é um factor importante. 

À partida, diríamos que ninguém faz um protesto para que ele morra no momento em que acontece. Mas daí a extrapolar para uma espécie de oportunismo parece-me apenas uma contra-estratégia muito baixa (e muito fácil) por parte de quem não é capaz sequer de criticar o conteúdo político do protesto em si. Quando os meus filmes não tinham estreado em nenhum festival e eu passava a vida a criticar a competição e o mundo do cinema, havia quem me chamasse ressabiado porque ainda não tinha tido nenhum sucesso (do tipo: “ele só diz mal dos festivais porque os filmes dele nunca foram seleccionados para nenhum”). Agora que um dos meus filmes, este “Frágil” de que aqui falamos, de alguma forma foi “reconhecido” pelo sistema, há quem venha questionar (como na tua pergunta) se o nosso protesto não foi publicidade gratuita... 

Bom, o que isto quer dizer é que não podemos ter nenhum gesto político hoje em dia porque há sempre alguém que vem dizer que ou somos ressabiados (porque ainda não fomos aceites pelo sistema) ou somos oportunistas (porque estamos a usar a crítica ao sistema para entrar no próprio sistema, ou seja, para nos valorizarmos)! Se calhar devíamos passar menos tempo a tentar rebaixar ou desmascarar aquelxs que ousam criticar o status quo e dar mais atenção ao conteúdo das suas críticas, que é o que realmente importa.Mas é sempre mais fácil a tentativa do rebaixamento pessoal... especialmente para quem não tem muito jeito para a argumentação política ou para quem ao longo da sua vida muito pouco tem feito para mudar seja o que for.

Quanto à segunda parte da pergunta, não percebo em que sentido é que o protesto poderia ser uma maldição para o filme. O protesto é, na verdade, um prolongamento necessário do próprio filme e dos seus temas mais evidentes: ora, troque-se o “Club” do filme por um festival de cinema e o resultado político é mais ou menos o mesmo.

“Frágil” foi automaticamente apelidado de “OVNI no Cinema Português” pela crítica antecipada e pelo público recorrente do Indielisboa, este termo provoca-lhe alguma “aflição”? Ou é um sintoma de uma cinematografia que durante anos envolve-se nos mesmos temas, estéticas e pensamentos? O que realmente pensa do cinema português atual?

Ser um OVNI é sempre bom. Significa que não estamos a seguir uma manada, para usar uma expressão muito bonita do Saramago. Sobre o cinema português, acho que há pouca gente que esteja realmente a experimentar novas formas cinematográficas: ou fazem-no durante um tempo, quando são jovens, antes de se acomodarem ao sucesso e às fórmulas que “resultam” (porque vendem, porque dão boas críticas, porque dão prémios: veja-se o caso do Pedro Costa, de quem gosto muito de alguns filmes, mas que já não é capaz de arriscar em nada, portanto, que já não é capaz de mudar a própria “fórmula” segura que encontrou com o tempo). Contrapomos o “cinema de autor” ao “cinema mainstream”, o que é uma forma fácil de evitar grandes questionamentos sobre como mesmo a “autoria” está sujeita à reprodução acrítica de fórmulas, de tiques, de maneirismos. O facto de haver certas linguagens ou certas formas de fazer cinema que “vencem” (por exemplo: o cinema do Oliveira, do Pedro Costa, do César Monteiro) faz com que surjam uma série de imitadorxs menos interessantes. Não digo que essa “imitação” seja consciente, até pode não ser, mas o que ela revela é que acabamos por nos subordinar, ainda que inconscientemente (o que até é mais perigoso, de certa maneira), aos modos vitoriosos de fazer cinema, isto é, aos modos que triunfam nos festivais, na crítica, etc. Mas sobre a questão que falava a propósito do cinema tardio do Pedro Costa, é muito frequente que quando umx cineasta faz um ou dois ou três filmes aclamados se acomode de repente a esta coisa tão fácil que é fazer pastiches do seu próprio cinema. 

É como se umx cineasta já não tivesse nenhum objecto de reflexão ou de interesse a não ser uma ideia formatada do que deve ser o seu próprio cinema, como se não pudesse senão repetir ad infinitum aquele filme ou dois que o tornaram famosx. Neste caso, já não são cineastas a imitar outrxs cineastas, mas cineastas a imitarem-se a si mesmxs (basta ver os filmes mais recentes do Tarantino ou do Woody Allen, óptimos exemplos desta decadência para o pastiche quase caricatural da própria obra de umx realizadorx). Há alguns e algumas cineastas portuguesxs de que admiro os primeiros filmes, mas que depois cedem a esta pressão “maneirista” de se repetirem (e de se esvaziarem) até à exaustão.

Fora estas questões mais estéticas (mas que em todo o rigor também são profundamente políticas), o que me deprime mais é o elitismo e o tribalismo do fazer cinema em Portugal. Há uma fragmentação muito grande das produtoras e é muito difícil conseguir os grandes financiamentos do ICA (porque são demasiado poucos). Por isso, as produtoras só apostam em projectos de alguém que já tenha um certo currículo: ou seja, ganho um prémio, circulado em vários festivais, recebido este ou aquele financiamento. Isto conduz-nos a um ciclo vicioso: precisamos de financiamento e de uma produtora para fazermos um filme, mas, veja-se o paradoxo!, o financiamento e as produtoras só vêm se já tivermos (não se sabe bem como) arranjado forma de fazer um filme antes (e, claro, se ele tiver tido algum sucesso!). Ou seja, para conseguirmos fazer um filme de maneira convencional (isto é, com financiamento, produtora e com possibilidade de pagar decentemente à equipa e actores ou actrizes...) temos de já ter um BOM (seja lá o que isso for...) filme para exibir no currículo. Ora, como é que se sai deste imbróglio? Anda-se seis anos a fazer um filme sem financiamento e quase sem dinheiro, com a boa-vontade de um grupo de amigxs e colegas de profissão, esperando que um dia se consiga acabar o filme e que alguém tenha a paciência de lhe dar um pouco de atenção. 

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"Frágil" (2022)

Aconteceu com o “Frágil”, é verdade, mas conheço casos de filmes maravilhosos (que demoraram 5 anos a ser feitos) e que não tiveram a mesma sorte no processo de distribuição (ou seja, que praticamente não foram vistos em festivais, nem tiveram estreia comercial, nem sequer qualquer atenção por parte da crítica...). O processo de começar a fazer cinema depois de sairmos da escola é especialmente ingrato, violento e muitas vezes desesperante. Há muita gente que faz um filme e depois desiste, há mesmo quem não chegue a fazer nenhum.Por outro lado, aquelxs que triunfam tornam-se nas divindades bem-apetecidas das produtoras, sobretudo porque o ICA valoriza de forma absurda o currículo dxs realizadorxs, em vez de se focar na proposta artística dos projectos, como acontece com os outros financiamentos de menor escala (GDA, Gulbenkian, SPA). 

Isto conduz a um fechamento das produtoras nestx ou naquelx realizadorx e só contribui para aumentar o tribalismo e o exclusivismo, bem como a lógica atomista da competição. Resultado: o cinema português (de sucesso) resume-se a estx (grande) realizadorx a competir contra aquelx outrx (grande) realizadorx, cada umx delxs apoiadx pela sua produtorazinha mascote... Já imaginaram o que seria se um puto saído da Escola de Cinema se virasse para o Pedro Costa e lhe dissesse que queria corealizar um filme com ele? O Costa nem lhe respondia: virava-lhe a cara e fechava-se outros seis anos a fazer o seu próximo filme numa solidão quase masturbatória. E, no entanto, o que é que há assim de tão estranho nesta ideia? Quer dizer, de que miúdxs e graúdxs pudessem colaborar uns e umas com xs outrxs. De que não houvesse esta divisão absurda entre o sucesso e o insucesso, entre a experiência e a falta dela. Vivêssemos nós num mundo onde a cooperação e a solidariedade fossem a norma...

Em 6 anos de concepção de “Frágil”, sentiu que durante esse período a noite lisboeta e dos noctívagos “transformaram-se” (não referindo apenas ao contexto pandêmico)? Que o retrato, mesmo que meio abstrato e satírico desse mundo nocturno, é hoje reconstituição histórica do seu filme? Ouvi após uma sessão de “Frágil” que os “afters” já não existem mais, apenas os resquícios … 

As minhas ressacas são a prova de que os afters estão tão vivos quanto antes. A noite de Lisboa mudou muito, é verdade... os afters não diria tanto. O que posso dizer é que dantes o meu grupo era mais afunilado, basicamente a malta toda que aparece no filme e mais umas quantas pessoas. Também o que é certo é que na altura conhecia muito menos gente (na verdade, comecei a sair à noite “a sério” em 2015 e o filme foi filmado em 2016/2017: foi tudo muito rápido, muito vertiginoso). Hoje dou-me com mais grupos distintos, por isso é evidente que algumas coisas mudaram nas dinâmicas sociais. Mas o core (dos afters) continua o mesmo. Quanto à noite em si, creio que a pandemia veio piorar a situação toda. Houve espaços que ficaram em grandes dificuldades financeiras com os lockdown se por isso se viram forçados a aumentar os preços de entrada: espaços onde o acesso era gratuito e onde agora se paga um valor à porta, ou espaços associativos onde a quota subiu exponencialmente de preço. 

Outra coisa que aconteceu foi alguns espaços terem mantido os horários pandémicos e agora fecharem às 2h ou mais cedo em vez de fecharem às 4h, como antes da pandemia. O que isto significa é que a oferta geral (sobretudo a preços acessíveis) diminuiu bastante e, em contrapartida, os espaços foram invadidos por turistas. Havia lugares que dantes eram “meeting points” e que agora deixaram de o ser. A cidade ficou com uma energia meio centrífuga e dispersa, não sei, parece meio deserta às vezes. É preciso ir-se para a porta do Lounge para tentar encontrar alguém... E é evidente que se arranja sempre alguma coisa, mas lá está, muito mais em casas de amigxs do que propriamente na noite. 

Festas fixes há muito poucas: os espaços fecham cedo, estão mais caros, cheios de turistas e a malta já não vai lá como antigamente.É uma espécie de gentrificação da noite que não passa necessariamente pelos espaços fecharem, mas pela sua reconfiguração, encarecimento e turistificação. O que é bastante triste, na verdade. E pronto, lá continua o “Club” de Lisboa, à beira rio, hegemónico como sempre...

Há um outro filme português - “Verão Danado” de Pedro Cabeleira - que fora das suas “festividades” e “viciosos néctares" [álcool, drogas, e mais] contemplamos uma juventude no seu limite, mal-amparada, precária e sem sorrisos guardados para o futuro. Encontrei isso no seu filme, excepto a “juventude fora-de-prazo”, mas esse silencioso desespero de esbarrar num “beco sem saída” e cujas festas e seus ingredientes servem de escapismo. 

Apesar das inspirações ao Cinema dos Safdie e do Korine que o filme tem suscitado entre os demais, é certo, que reprova esse cinema como sua influência, tendo em conta as entrevistas dadas nos mais diferentes órgãos, o qual responde com muito do clássico e fora da entropia juvenil e febril que associamos a muita produção atual.

O cinema contemporâneo interessa-me pouco. Um dia, com mais tempo, hei-de escrever algo sobre isso, mas assim esquematicamente creio que uma série de fatores históricos e políticos vieram um bocado arrumar com a “sétima arte.” Não se trata de dizer que “antigamente é que era bom”, isso é um discurso reacionário para o qual não tenho paciência. Mas a ideia oposta (de que as coisas nunca mudam, de que é sempre tudo bom) é uma ideia que recusa a própria noção de História (e, por isso, de transformação do mundo). Ou seja, a meu ver, há de facto momentos e períodos específicos da história humana que permitem e permitiram certos acontecimentos estéticos, formais e, sem dúvida, inovadores. 

O cinema soviético dos anos 1920 é qualquer coisa de inigualável: um momento maravilhoso para a humanidade! Mesmo o clássico americano (mas também o francês, por exemplo), com toda a sua formatação e aparente simplicidade produziu alguns dos filmes mais arrebatadores da história do cinema (é preciso não esquecer que, fruto do nazismo, houve centenas, senão milhares de realizadorxs, técnicxs e actores/actrizes que fugiram da Europa para o core do studio system americano: basta mencionar o caso de um dos meus favoritos de sempre, o Fritz Lang!). Ou seja, o clássico americano, por causa de um acontecimento histórico (o nazismo e a segunda guerra mundial), foi invadido pelo “crème de la crème” do cinema europeu de vanguarda (pelo que o clássico nunca foi, em todo o rigor, inteiramente clássico...). 

Mas regressando ao cinema contemporâneo: acho que o cinema está cada vez mais formatado pelas linguagens televisivas e agora pela internet; mas, sobretudo, acho que o começo do reinado do blockbuster nos anos 1970/1980 veio destruir esta merda toda. A lógica no interior do studio system sempre tinha sido a do dinheiro, é verdade, mas ainda assim havia uma competição (mesmo entre os estúdios) que era também ela artística. Isso perdeu-se com os rios de dinheiro que os blockbusters começaram a fazer, mas principalmente porque o tipo de filme que dá dinheiro se modificou e se veio a focar cada vez mais na lógica do efeito especial e do estímulo sensorial imediato. 

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"After Hours" (Martin Scorsese, 1985)

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que o “efeito” (e não o drama, a narrativa ou a forma) se tornou preponderante sobre tudo o resto, os filmes não pararam de ficar mais realistas. Uma verdadeira seca: filmes cheios de monstros, mas onde tudo é o mais real possível... O realismo (ou a convenção do que é o realismo) implica a destruição da arte. Vivemos uma crise da imaginação e poderia escrever páginas sobre isto, mas de forma muito resumida acredito cada vez mais que quão menos a imaginação for estimulada, menos opções ou alternativas a este sistema vão surgir. Tudo isto é profundamente político, portanto: refiro-me à ditadura do realismo (que não é apenas um realismo artístico ou estético, é todo um sistema ideológico a que o Mark Fisher chamou “realismo capitalista”). Nos anos 1930, ’40 e ’50 havia cinema mainstream bom, isto é, a produção dominante era muitas vezes desafiante, arrojada, crítica, estimulante (e isto apesar de toda a censura, formatação, etc.). Hoje em dia isso não acontece. Claro que há cineastas que me interessam, mas é quase impossível ver os filmes delxs. 

Falando sobre o caso americano: onde é que eu consigo ver um filme da Deborah Stratman ou do Jon Jost numa sala de cinema? Tenho de esperar que a Cinemateca se lembre de fazer uma retrospectiva... Mesmo "sacar" os filmes desta gente é difícil, às vezes impossível. Resultado: raramente vejo um filme contemporâneo que me interesse. Os que estreiam no cinema são já formatações do que deve ser o cinema “sério”, de autor, o cinema que resiste ao mainstream. Mas também isso é já uma produção industrial, ou seja, uma reprodução de uma ideia dominante e burguesa de fazer cinema. Filmes de festivais, poderíamos dizer. E a maioria deles mais secas realistas. Não tenho paciência... Dêem-me os lagos do James Benning.

Ora, como já disse noutros lados a comédia musical, a paródia e o slapstick foram os géneros ou estilos “clássicos” que inspiraram o “Frágil”. Mas falar em clássico é sempre enganador porque, justamente, estes géneros (ou estilos) eram os mais disruptivos (o musical porque fazia suspender a narrativa, mudava a função dos objectos ou introduzia a abstracção do gesto coreografado, entre tantas outras coisa, claro; o slapstick porque fazia emergir as situações mais absurdas e disruptivas no interior da expectativa dramatúrgica; etc, etc, etc.). Estou a simplificar tudo isto, como é óbvio, podia escrever um livro sobre a radicalidade da comédia musical no interior da formatação do studio system. O que quero dizer é que aquilo que me inspira no clássico é justamente o quão moderno ele consegue ser. 

Vivemos na pós-modernidade (peço desculpa pelo chavão) e por isso não posso deixar de me interessar pelas zonas de intersecção, ou seja, por tudo o que ponha em causa os dualismos fáceis e as oposições confortáveis. A comédia musical situa-se numa zona de intersecção entre o clássico e o moderno. Creio que é esse o território que o “Frágil” ocupa, porque esse é um território necessariamente lúdico, de experimentação entre várias formas e modelos. E o mundo que nos propomos a filmar é também ele um mundo lúdico, um mundo de intersecção entre várias oposições: a noite e o dia, a festa e o mundo das obrigações, o imaginário (infantil) da brincadeira e a expectativa (adulta) da normalidade… No after, tal como na comédia musical, a “narrativa” (dominante) é suspensa temporariamente e podemos dar asas a um mundo onde tudo pode ser reconfigurado. A citação da Alice no País das Maravilhas (o guarda-roupa do Miguel na cena dos ácidos) não é por acaso... 

Ora, um musical em ácido em que descemos cada vez mais fundo pela toca do coelho da Alice, não é isso que são os nossos afters? 

(Espero que sim, senão é porque não andam a ter afters de jeito.)

Senti em “Frágil” um espírito muy “After Hours” de Scorsese, ambos os filmes seguem a simples premissa de uma tarefa aparentemente fácil (no filme de 1985 o protagonista apenas desejava regressar a casa, aqui, o desejo de ir ao *Clube*), mas impossíveis de serem executados devido a um intenso malapata. Pertinente, gostaria de trazer à tona a longa gestação desta obra com esse conceito de tarefa “impossível”…

O filme do Scorsese é, sem dúvida, uma influência. Embora com o passar do tempo vá gostando menos do filme, confesso que acho a premissa extremamente sedutora. De qualquer forma, esta concentração temporal da narrativa numa única noite ou, pelo menos, num bloco aparentemente sequencial não é uma invenção do Scorsese. Mas é algo que funciona extremamente bem neste registo alucinado pois, como é evidente, a sucessão de peripécias é ainda mais acentuada quando o tempo aparece concentrado ou, pelo menos, o mais contínuo ou linear possível. Nesse sentido,para mim sempre foi bastante claro que a ação do “Frágil” deveria decorrer no seguimento de uma única saída (estendida, como acontece muitas vezes, ao longo de um fim-de-semana inteiro...). 

Sobre a ideia do filme como tarefa impossível, creio que o que (quase) impossibilita (ou poderia ter impossibilitado) a concretização do mesmo é este sistema doentio que montámos para nós mesmxs. Um sistema de elites e de exclusão, de vencedorxs e de vencidxs, de frustradxs e de invejosxs, de gente sozinha com os seus filmezinhos. O cinema devia ser uma festa, uma coisa colaborativa e de aprendizagem mútua, uma forma de nos relacionarmos com e de transformarmos o real. Em vez disso, tornou-se numa coisa de egos, de competição, de narcisismo e de solidão. E de alienação, no fundo. Estamos separadxs uns e umas dos outrxs. Mais impossível que acabar um filme, é superar esta separação fundamental. Ou seja, reconfigurar toda a forma como fazemos cinema.

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"Frágil" (2022)

“Acho que é preciso corroer a academia a partir de dentro”, disse numa entrevista à “À Pala de Walsh”, acrescentado que se encontra no meio de um doutoramento. Deseja ser professor para subverter e desafiar os próprios moldes acadêmicos? Acha possível o fazer num futuro próximo? 

Se não nos dedicarmos a subverter e a transformar o mundo, de que é que vale a pena? Quero muito vir a dar aulas porque apesar de estar muito consciente da estratificação e da rigidez da academia acredito bastante no poder de umx professorx, não enquanto figura autoritária, mas enquanto figura de autoridade (autoridade no sentido descrito pela filósofa Marie-José Mondzain no seu livro “Homo Spectator”: a autoridade, distinta do poder, seria uma forma de reconhecimento: por exemplo, x alunx que reconhece a sapiência de umx professorx e que quer, de forma voluntária, aprender com elx; e isto é uma coisa bastante distinta da forma disciplinar como funciona a academia e a relação com o ensino e xs docentes). 

Por mais que possamos ter detestado a escola ou a faculdade creio que toda a gente teve pelo menos umx ou mais professorxs que nos cativaram (pelo menos eu tive). Às vezes basta umx para mudar a nossa vida. Apesar do meu cinismo e descrença relativamente às instituições, acredito neste poder tão humano que é o de uma pessoa querer aprender com outra. E acho que, nesse sentido, umx bom ou boa professorx pode ser capaz de criar na sala de aula uma zona temporária autónoma, para usar a expressão do Hakim Bey, ou seja, uma zona onde as hierarquias são suspensas ou contornadas e onde as estruturais institucionais podem, e devem, ser questionadas. No fundo, acredito que uma sala de aula pode constituir-se como uma bolha à parte, ou à margem, no core mesmo da academia. Posto isto, quero demorar o meu tempo a terminar o doutoramento, não tenho pressa de me tornar professor já. Tenho muita coisa para aprender eu mesmo, antes de assumir esse papel. E quando o fizer, quero fazê-lo bem feito. Se calhar na altura vou ter de aprender a fazer menos afters. Vamos ver.

Gostaria que me falasse sobre o “We Live In Fear”, o qual tem declarado em diferentes meios como o seu “primeiro filme com um financiamento a sério”?

Se falar agora sobre o filme, depois perde a piada! A paciência é uma virtude. A única coisa que posso adiantar é que, tal como o “Frágil”, vai demorar o seu tempo. E ainda bem.

'Bora ao *Club*?

Hugo Gomes, 15.01.23

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Club”, uma palavra censurada, um destino interdito, o “fruto proibido”, a tentação (ou será melhor obsessão) de Miguel (Miguel Ângelo Santarém), jovem que lida com a sua frágil existência, desejando conquistar o lugar (essa tal “heresia”) como fim de uma longa e “desmerecida” viagem. O que não será fácil, porque Lisboa, cidade que alberga esse “Shangri-lá” da diversão noturna, é um espaço labiríntico, e quiçá “carroleano”, habitado por personagens caricatamente excêntricas, “chapeleiros loucos” ou “rainhas de copas”, todas elas, presas aos “seus respectivos mundinhos” o qual tentam prevalecer acima das vontades do nosso protagonista. 

A esta altura do campeonato, difícil será dissociar “Frágil”, a primeira longa-metragem de Pedro Henrique [sob o nome artístico de João Eça], com o seu gesto de protesto, esse, materializado na sua badalada passagem no Indielisboa e no Festival de Turim, e o outro, projetado em forma de filme, produzido e concebido sem (ou poucos) apoios e resultante de um esforços mútuo entre amigos e devotos, uma ode a uma ideia utópica sobre como e deve o cinema português ser produzido para garantir a sua resiliência identitária. Portanto, é nesse aspecto que muitos aproveitam a deixa da sua concretização para tecer textos e repertórios sobre o futuro incerto deste cinema, construindo pontes para uma História ainda “alive and kicking”. 

Frágil”, em certo jeito, ejecta-se diretamente para o território do filme “malapata”, espiritualmente invocando o possível maestro dessa fronte - “After Hours”, de Martin Scorsese - cuja uma simples tarefa reverte-se na impossibilidade de concretizá-la graças às peripécias e encontros acidentais que são invocadas como pragas bíblicas. Para Miguel, essa “toca do coelho” é recheado de todas as distrações que a noite reserva, e por entre elas, o dito “coelho branco” sempre no seu estado lufa-lufa -  o “Club” - esse lounge de uma cidade em estreita mudança, e consequentemente o “after”, tradição em plena convulsão pelas passagens geracionais. Diria mesmo, e entendo, a facilidade com que encostamos o filme a uma específica quadrilha fílmica composta pelos irmãos Safdie ou Harmony Korine, mesmo que Henrique negue com todos os “dentes que têm” tais influências, dando como alternativa o cinema clássico, aquele confundido às gerações que revêem nesta Lisboa de fantasias e estupefacientes como passivos e rígidos estados canonizados. 

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Pois bem, esse classicismo encontra-se presente, camuflado e até configurado àquela lente inconsequente e entrópica. Basta estabelecer uma ligação aos “musicais de sapateado” à moda de Gene Kelly ou Fred Astaire naquele pseudo-momento de musical-contrafeito, um “fail-safe” que “Frágil” guarda como aperitivo alusivo, retirando a ação do terreno slapstick e das idiossincrasias satirizadas desta “Juventude Inconsciente”. Até porque “Frágil” não se sustenta na mera “sai o que sair” como aspeto formal, há um cuidado de não ceder-se ao desleixo como muito do “cinema-jovem” hoje produzido graças ao boom digital. Convém, afirmar que “Frágil” é cinema de vaidades e de malabarismos, mas nunca subjugando-se ao espectáculo grotesco ou desalinhado. 

Em “língua de Camões”, existem outras aproximações a sublinhar, uma delas, também ele um produto “entre-amigos”, “O Verão Danado” de Pedro Cabeleira, o retrato, ora festivo, ora de tragédia de uma última festa do Planeta, de uma juventude nos seus confins, precária, mal-preparada e mal-amparada (de um jeito ou de outro, “Frágil” corresponde nesse esquema de uma Terra do Nunca em cacos, adultos-crianças restringidas ao manual da última balbúrdia). Do outro lado, e sintonizando a sua produtora - Promenade (para além de Videolotion do mencionado "Verão Danado")- encabeçada por Justin Amorim ("Leviano"), um espaço cultivador de “sangue fresco” e de temáticas absorventes dessa mancebia, jogando-se numa estilização pop que se revê como disrupção de uma estabelecida tradição cinematográfica. 

Frágil” é todo ele uma orgia, um protesto, uma ideologia, um escape, uma burguesia, uma afronta, um devaneio, um clássico e um progresso. Mas acima disso, é como uma noite inesperada e mal planeada, nunca prevemos o que irá “sair-nos na rifa”. Desta feita, partimos então em direção ao *Club* … a nossa e possível última estância. 

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, "Our Madness", de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

Júlia Palha: “Tenho a vontade, tenho a paixão e sei que tenho o talento”

Hugo Gomes, 08.09.20

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As inundações das Terras Baixas da Papua Nova-Guiné sempre me fascinaram”, frase, no mínimo curiosa, que marcou um dos filmes mais singulares e recentes do panorama português – “John From” de João Nicolau – tendo como proclamadora uma, na altura, adolescente de nome Júlia Palha. Isto aconteceu em 2015, onde já se adivinhava um promissor percurso para a rapariga que suspirava pelos trópicos em pleno bairro de Telheiras (Lisboa).

Dois anos passaram, e a vimos com tamanha sedução na curta celebrada “Coelho Mau” de Carlos Conceição, uma fantasia em lençóis de fábula onde a atriz assumia o papel de uma hipotética “rapunzel” que no cimo da sua torre aguardava pelo príncipe encantado, este, facultado pelo seu irmão (João Arrais). Depois de uns quantos papéis em telenovelas e séries que tornaram Palha numa atriz cada vez mais requisitada e admirada, voltamos a contar com a sua presença no cinema sob a batuta de Mário Barroso e da escrita de Carlos Saboga – “Ordem Moral” – com produção de Paulo Branco.

Aqui, desempenhando Sophia de Azevedo, a amante deslocada de um triângulo amoroso que escandalizava a alta sociedade portuguesa no início do século XX, a atriz opera como uma voyeurista do enredo principal que serviria de inspiração para a escritora Agustina Bessa-Luís no seu “Doidos e Amantes”. Palha contracena com um dos grandes nomes do cinema português (que também retorna a “casa”), Maria de Medeiros que lidera um elenco de luxo nesta obra que veio para desvendar um desafiante caso na nossa cultura intrinsecamente patriarcal.

A jovem falou comigo sobre a sua experiência neste novo projeto do realizador de “O Milagre Segundo Salomé”, assim como a responsabilidade de se tornar numa das “cabeças de cartaz” de um novo cinema português.

Começando pelo início: como chegou a este projeto? O que pode-nos dizer sobre a sua personagem e a sua experiência em contracenar com Maria de Medeiros?

Foi um convite feito diretamente pelo Mário [Barroso], não havia como negar. A minha personagem foi muito desafiante. É uma personagem mais velha, mais madura, com o pé entre dois mundos, o saber estar em alta sociedade, a voz, a postura, e o saber viver bem com a infidelidade.

Nas cenas com o Marcello [Urgeghe], acabamos por ir fazendo pequenos resumos da história e por isso, sei a importância da personagem. A Maria para além de muito querida é uma atriz como nunca tinha visto, de uma profundidade e naturalismo equiparáveis, é uma honra saber-me num filme com ela.

“Ordem Moral” resgata uma mulher, em certa maneira, apagada da nossa História (sabendo que na literatura foi imortalizada por Agustina Bessa-Luís), muito devido às suas constantes “afrontas” a uma sociedade intrinsecamente patriarcal (basta ver como a vida de Maria Adelaide é decidida, assim tentam, por homens de poder). Conhecia esta história previamente? Considera esta a melhor altura para contar narrativas de mulheres progressistas (à sua maneira) na nossa História?

Apenas fiquei a conhecer a história quando li pela primeira vez o guião, fui pesquisar e fascinou-me o facto de ser uma história real, e de ter acontecido cá em Portugal. Soube instantaneamente – “tenho que fazer parte disto e tenho que o fazer bem”. Eu própria considero-me uma “progressista” na medida em que, por muito que as ‘coisas’ estejam melhores e tenham mudado, ainda existe muito que possa ser trabalhado.

Este filme é um grito de alerta que demonstra como as ‘coisas’ já foram, o que para nós, mais jovens, é ainda mais difícil de acreditar. Acho que o filme vai ser lançado numa altura importantíssima, incentivando as pessoas, por fim, a pensar.

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Júlia Palha e Marcello Urgeghe em "Ordem Moral" (Mário Barroso, 2021)

Voltando à sua personagem, ponto curioso é o facto de ela ser, como digamos, a “outra” de um matrimónio, mas ao mesmo tempo o filme não tende a criminalizá-la nem sequer dar uma de “palanque de condescendência”.

Era uma coisa muito comum na altura, e a minha Sophia, na verdade, tem um bom fundo, como se pode ver na última cena que tem com o Alfredo da Cunha e até em algumas cenas com a Maria Adelaide.

Sobre os seus novos projetos, o que nos pode dizer sobre o seu papel de Loira no “Campo de Sangue”, de João Mário Grilo e sobre o filme de Hermano Moreira, “Amo-te Imenso”, para a Promenade?

A minha Loira será um papel pequenino, não exigirá muito de mim enquanto atriz, mas sei que é um papel muito relevante e estou muito honrada de ter sido escolhida pelo João Mário Grilo. Já em “Amo-te Imenso” serei a Tessa, uma personagem leve, divertida, mas com uma energia que se sente a quilómetros, chamada “alma velha”. Estou muito entusiasmada com ambos os projetos. Fazer cinema é a minha paixão e vou continuar a privilegiar nas minhas escolhas o grande ecrã.

Visto a sua carreira ser maioritariamente televisiva (em novelas e séries), atingiu um certo reconhecimento internacional com “John From”, de João Nicolau. Nesse filme, contracenava com Clara Riedenstein, que mais tarde tornar-se-ia protagonista de “A Portuguesa”, de Rita Azevedo Gomes, ambas são tidas como duas das principais caras de um certo e novo cinema português. De alguma forma, se vê como tal, alguém capaz de representar e içar esse mesmo cinema, e já agora, como encara o cinema português atual, antes e depois do Covid-19?

O meu querido “John From” foi quem me fez descobrir este amor à representação, a minha querida Clara, com quem tanto me diverti e o meu “Coelho Mau” que me levou tão nova ao Festival de Cannes e me deu a conhecer um mundo de glamour e de emoções.

Acho que todos sabemos, que pela falta de oportunidades, de BOAS oportunidades também, é mais difícil fazer cinema, ainda assim acho que com a minha idade já tenho um bom percurso nesta área. Se me considero capaz de içar esse novo cinema? Acho que sim. Sim. Tenho a vontade, tenho a paixão e sei que tenho o talento.

Acho que se tudo correr bem o COVID’ não vai afetar a arte, claro é, as salas têm que estar mais vazias, e tal, acabará sempre por ter consequências. Mas acredito que as pessoas têm saudades de ir ao cinema, e que este vírus não as vai impedir disso.

Alba Baptista entre "Warrior Nun" e "Patrick". Uma conversa com a estrela internacional de coração português.

Hugo Gomes, 27.07.20

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Patrick (Gonçalo Waddington, 2019)

Os holofotes estão apontados para Alba Baptista, a portuguesa que conseguiu quebrar fronteiras tornando-se na protagonista na série de ação sobrenatural "Warrior Nun", da Netflix.

Porém, o cinéfilo mais atento já tinha reparado que a jovem atriz andava a conquistar o seu espaço desde que se destacou como a menina obsessiva da curta “Miami”, de Simão Cayatte, trabalhado posteriormente com realizadores como Edgar Pêra (“Caminhos Magnétykos”), Justin Amorim (“Leviano”) e Ivo Ferreira (“Equinócio”).

Agora na primeira longa-metragem assinada pelo também ator Gonçalo Waddington "Patrick", que chega esta semana aos cinemas portugueses, ela é Marta, uma jovem com a missão de recuperar o Mário que conheceu e que espera ainda existir em Patrick, rapaz detido em Paris e que se vem a descobrir tratar-se de uma criança portuguesa desaparecida há vários anos (papel de Hugo Fernandes).

Tendo o papel crucial de expor este confronto identitário, Alba Baptista orgulha-se da sua prestação e do filme, manifestando o desejo de permanecer ativa na produção portuguesa apesar do reconhecimento internacional que lhe trouxe "Warrior Nun".

Antes de tudo, gostaria que me falasse sobre a sua integração neste projeto e o trabalho de desenvolvimento em relação à sua personagem.

Fui chamada para casting, como qualquer outra atriz. Foram três, se não estou em erro. A escolha final demorou algum tempo, mas sim, tive que demonstrar o meu valor ao realizador. Quanto à personagem, o Gonçalo [Waddington] trabalhou connosco durante a nossa estadia numa residencial artística na Sertã, onde filmamos. Portanto, isto aconteceu antes da rodagem, ou seja, estivemos uma semana juntos, a conhecer-nos melhor, a ensaiar e a criar cenários hipotéticos no passado destas personagens. E é então que, quando arrancou a rodagem, já estávamos todos conectados uns com os outros e bastante entranhados nas nossas respetivas personagens.

Em “Patrick” notamos um constante confronto identitário e existencial, não só do protagonista, mas de outros personagens. Não pude deixar de notar que é, na sua forma geral, um filme preenchido por silêncios, olhares e (não)olhares, e nesse sentido, a sua personagem é a que mais fala, tentando resgatar o Mário em Patrick. Sentiu essa importância no guião?

Sim, sem dúvida que senti. Esta personagem é um tipo de luz para a vida (muito) densa que ele leva, assim como para a jornada em si. Uma lufada de ar fresco. E o facto de esta personagem possuir bastante falas em comparação com as outras, é um sinal do quanto descomprometida está com a vida em geral, e sem filtros. É por essa razão que ela é a única personagem que não julga o Mário à partida, não possui qualquer tipo de preconceito. Encarei isso como uma personagem muito especial.

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Patrick (Gonçalo Waddington, 2019)

E, no entanto, ela, provavelmente, será a pessoa que mais sofrerá com a resistência intrínseca de Patrick.

Ela funciona como um mártir. É um pouco uma metáfora em relação a tudo da sua vida [Patrick]. Ele é incapaz de relacionar algo positivo ou amoroso na sua vida.

Sabendo que este filme já se encontrava pronto desde o ano passado, tendo estreado no Festival de San Sebastián, e ter atingido a fama em 2020 com “Warrior Nun”, como insere este “Patrick” no estado atual da sua carreira?

É um assunto complicado falar de um filme que já fizemos há mais de um ano, mas nunca é uma má altura para inserir mais um no nosso currículo e tenho muito orgulho neste “Patrick”. Acho que é neste tipo de assinatura que desejo criar nos próximos anos, em futuros projetos, e com realizadores de cinema de autor genuínos. Por isso fico muito feliz que o filme esteja a estrear na mesma altura que a série. Obviamente que, em termos de comparação, são dois pólos extremos – algo comercial e outro … bom, não comercial de todo, e mais pesado de certa maneira. É um filme especial, até porque está a representar o marco da reabertura dos nossos cinemas [após o fecho por causa da COVID-19], e por isso e muito mais, esta é uma razão para que os portugueses possam retornar novamente às salas.

Para um português, a intriga do filme invoca-nos o caso Rui Pedro [a criança desaparecida em Lousada em 1998]. Acha que foi inspiração para “Patrick”?

Sem dúvida que é uma inspiração para a personagem do Mário, mas atenção, o Gonçalo trabalhou neste guião com tanto perfeccionismo e sensibilidade para que não fosse ofensivo para ninguém, e, como qualquer outra coisa do filme, fosse só uma personagem. Sim, é um filme que demora a digerir, mas falo por mim, que gosto de sair do cinema com uma sensação quase desconcertante que me deixa a remoer e refletir durante algum tempo.

Além disso, é um filme que desafia a nossa perceção de maternidade/paternidade.

Sim, sem dúvida. E é um tópico que não se fala muito no cinema português. Pelo que me lembro, não existe nenhum filme do nosso panorama com esta abordagem. Por isso, acho que estamos bem encaminhados com a assinatura do Gonçalo. É sensível, claro que sim, mas é um tipo de filme que vale a pena vê-lo para poder discutir. “Patrick” é rico em termos de discussões, argumentações e trocas de ideias. E gosto disso no cinema. Desafia-nos.

Em relação a novos projetos, gostaria que me falasse de “Nothing Ever Happened", de Gonçalo Galvão-Teles [“Gelo”], e sobre a sua experiência com o ator Filipe Duarte, que também integra o elenco e possivelmente este seja o seu último papel.

Em relação ao papel do Filipe Duarte vou deixar para os espectadores descobrirem. Mas é um papel muito bonito, e ele representou brilhantemente. Não contracenei diretamente com ele, mas nos momentos em que nos cruzavam, o Filipe partilhava muita luz. Ele era uma pessoa muito luminosa. A minha personagem lida com o existencialismo da vida e que se identifica com mais dois colegas e amigos, que acabam por desenvolver uma relação, cujo trio, na verdade, confronta estas questões filosóficas do que representa a vida para eles, do que é o amor … Lá está, também é uma assinatura dedicada, muito sensível e identificável.

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 Leviano (Justin Amorim, 2018)

Quanto à nova obra de João Mário Grilo [“Os Olhos da Ásia”], “Campos de Sangue”? Segundo consta, a sua personagem chama-se apenas de “Loira 1”.

Sim. [Risos] É a adaptação de um livro que bem se poderia resumir desta maneira, um homem que encontra uma jovem loira por quem se apaixona perdidamente. Fica obcecado, sendo que esta rapariga loira se materializa em mulheres diferentes. E pronto, sou uma delas. [risos]

Confesso que sou um defensor de “Leviano”, outro filme em que participou. Veremos uma nova colaboração com o realizador Justin Amorim?

Bem, o “Leviano” levantou muita discussão também. Também sou uma defensora eterna do filme, é uma raridade ter um tipo de obra como essa no nosso cinema. Por isso, sem dúvida que queremos voltar a trabalhar juntos. Para já as nossas agendas estão totalmente opostas, mas … estamos a criar algo juntos. Como somos bastante próximos na vida real, é só juntar o útil e agradável, e o facto ser ambos criativos e discutirmos o que ele gostaria de realizar e o que eu gostaria de representar e portanto conceber um projeto especial para os dois.

Quer partilhar como foi a experiência numa produção de outra escala como “Warrior Nun”, da Netflix?

Foi fantástico, uma experiência diferente de tudo aquilo que já vivi em Portugal em termos profissionais. É uma equipa abismal, muito grande, foi também um processo muito diferente. Nunca lidei com tanta pressão na minha vida, mas tendo em conta o resultado, acho que compensou. Foram os melhores anos da minha vida. Agora, em termos de produção, os EUA estão bastante mais evoluídos do que nós, mas chegaremos lá com o nosso tempo e à nossa maneira.

Vai prosseguir numa carreira internacional?

Sim, é o foco neste momento. Sem nunca querer perder o pé aqui em Portugal. Vou querer chegar a esse meio-termo e juntar-me a projetos em Portugal por querer e não por ter que fazer. Nunca desvalorizando o meu país, nem a nossa cultura.

Justin Amorim, e agora?

Hugo Gomes, 15.02.20

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Em 2018 surgia entre nós um OVNI no cinema português, um projeto altruísta e fora dos parâmetros que designavam no nosso panorama, quer o dito autoral, quer o dito "comercial". Falamos de “Leviano”, o drama da família Paixão, as três irmãs (Adelaide, Carolina e Júlia) e a mãe (Anita), que guiavam o espectador para um turbilhão de luxúria, sonhos encantados e realidades destroçadas. Por detrás deste projeto que desde do início foi descrito como uma espécie de “Bling Ring” (Sofia Coppola, 2013) com “Spring Breakers” (Harmony Korine, 2012), encontramos Justin Amorim, que contra todas as hipóteses, executaria um trabalho hercúleo e multifacetado; produtor, realizador, argumentista, editor e responsável pelo guarda-roupa. Mesmo com o marketing apostado na altura, o filme não caiu nas graças do público (pouco menos de 5 mil espectadores, muito inferior à expectativa inicial) nem da crítica, sendo grande parte dela arrasadora.

Mas do seio dessa mesma crítica deparávamos com algumas vozes que tentariam resgatar um jovem realizador do automático desprezo que se avizinharia. Amorim era dotado de uma estética fabulista e pimba que repescava no encanto os seus limites, assim como as suas farsas, por outro lado, tínhamos um realizador de olhar tecnicista, avante nos planos-conjuntos e dos travellings vibrantes (talvez dos mais na história do nosso cinema) que nos faziam esquecer das fraquezas de um guião episódico e descosturado.

Contudo, sempre questionamos, o que é feito de Justin Amorim?

Um leviano caso de cinema português

Hugo Gomes, 09.07.18

36880804_10211913330165515_1033910366016372736_o.jPor entre abusos e (des)abusos, algumas manias que poderia esquecer e uma delinquência em resolver dramas criados, Leviano é ... longe de todo os preconceitos ... uma obra portuguesa que respira saudosismo com o grande ecrã. Desde planos puramente cinematográficos (o atento aos planos gerais e aos travellings duradouros), até à fotografia estetizada e as reinterpretações do cinema “oliveiriano”, sim, a melhor experiência de juventude na nossa cinematografia desde Verão Danado de Pedro Cabeleira. Vamos ficar de olho em Justin Amorim.