Paolo Marinou-Blanco: "Fala-se muito de uma 'terceira via': um cinema inteligente, mas ainda acessível ao público. É nesse espaço que gosto de estar"

Denise Fraga e Paolo Marinou-Blanco durante a rodagem de "Sonhar com Leões"
A Morte é um tabu, um assunto a evitar, apesar de estar inserida nos nossos pensamentos constantemente, até porque duvidamos que exista alguém que não pense, direta ou indiretamente, sobre a morte no seu dia a dia. Gilda (Denise Fraga) fá-lo de uma forma intensa: deseja morrer e tudo tenta para cumprir esse desejo, mesmo que o seu redor a impeça cada vez mais, ou que a promessa de um abraço lhe dissipe essa vontade de finitude.
Como solução, Gilda inscreve-se na Joy Transition, uma empresa clandestina que promete guiá-la para um suicídio rápido e indolor. Lá conhece Amadeu (João Nunes Monteiro), um jovem com a capacidade de falar com os mortos, dom (ou maldição) que lhe arrancou qualquer traço ou ambição de felicidade, e ambos formam uma dupla improvável nessa busca incessante pelo seu ponto final.
Paolo Marinou-Blanco regressa a Portugal, 18 anos depois da sua longa (“Goodbye Irene”), com uma obra tragicómica que aborda temas pesados através de uma troça satírica e caricatural de uma sociedade ultra-capitalista. O filme “Sonhar com Leões”, estreado entre nós em maio deste ano, integra-se na programação do 10.º Cine-Atlântico, mostra de cinema português promovida pelo Cineclube da Ilha Terceira.
O Cinematograficamente Falando… celebra a passagem do filme à beira do Atlântico plantado com um encontro com o realizador e uma discussão sobre a obra, o guião, a comédia enquanto tratado social e o sonho, não com os felinos africanos, mas com uma terceira via no cinema português.
Começo pela seguinte questão: o seu filme, “Goodnight Irene”, estreou entre nós em 2008. No meio disso, houve uma curta [“Nada nas Mãos”, 2021], e agora chegamos a “Sonhar com Leões”. Porquê tanto tempo até uma nova longa-metragem?
Sim... Depois do “Goodnight Irene” fiz um telefilme para a RTP, que estreou em 2010, mais ou menos, e nessa altura decidi tentar trabalhar nos Estados Unidos. Fiz o mestrado de cinema na NYU e tinha vários amigos e contactos lá, por isso pensei: “Por que não tentar?”. Passei meio ano em Nova Iorque, a trabalhar como produtor associado em programas de televisão, mas percebi rapidamente que não era o meu caminho. Depois mudei-me para Los Angeles e comecei, aos poucos, a estabelecer-me como argumentista. Entrei para a WGA [Writers Guild of America], vendi guiões à Paramount e à MGM, fiz script doctoring, vendi pitches... enfim, comecei a criar uma vida como argumentista lá e acabei por me especializar em certos géneros — dramas históricos e thrillers de espionagem, normalmente baseados em factos reais, mas ficcionalizados.
Dois géneros muito difíceis de fazer em Portugal [risos].
Sim, exatamente. Mas há imenso material cá para isso. Aliás, o “Glória”, do Tiago Guedes, a primeira série portuguesa da Netflix, tentou explorar esse tipo de território: histórico e de espionagem.
A grande diferença é que lá [EUA] não tens a liberdade que existe no sistema europeu ou latino-americano. Nunca entrei muito na realização lá, porque vi muitos amigos meus, realizadores, que passavam anos à espera de conseguir financiar um filme. Mudava o actor, o orçamento caía, os investidores desistiam… e tinham de começar tudo de novo. Enquanto argumentista não é assim. Claro que também há momentos difíceis, mas no fim do dia ninguém te pede para trabalhar anos de graça “pela tua visão”.
Pois, nos Estados Unidos não há muito essa ideia da “visão do autor”. É quase tudo um sistema.
Sim, alguns realizadores conseguem ter liberdade, os que tiveram muita sorte com o primeiro filme, como o Wes Anderson, só que no geral, é como dizes, é um sistema. Por isso há uma grande atração pelo modelo europeu ou latino-americano, onde há financiamento público e maior liberdade criativa. Os Estados Unidos são o único país do mundo sem financiamento público para a cultura.

Então, desse sistema europeu, porquê regressar a Portugal para fazer um filme?
Porque sou português: metade grego, metade português, mas ainda assim português. Onde é que faria este filme? Não seria na Bulgária [risos].
Ou na Grécia? [risos]
A questão da eutanásia, que está no centro de “Sonhar com Leões”, parte de experiências pessoais mais ligadas a Portugal do que à Grécia. Além disso, a Grécia é mais conservadora nessas questões sociais. Ter uma conversa sobre eutanásia lá seria quase impensável, estamos décadas atrás desse debate. Aqui, senti que podia contribuir de forma mais concreta para a discussão. O filme não é um manifesto político, nasce de algo pessoal e também da minha estética, mas em Portugal faz sentido. Na Grécia, seria como falar de naves espaciais [risos].
É triste ouvir isso da Grécia, o país dos filósofos, da política…
Pois é [risos]. Mas, em resumo: fiz o filme aqui porque sou português.
Tendo em conta que já tinha trabalhado em Portugal com “Goodnight Irene”, e sabendo que é um país difícil para certas actividades artísticas, o que te levou a voltar a filmar cá?
Sim, é verdade, e é uma pena. Fala-se muito de uma “terceira via”: um cinema inteligente, mas ainda acessível ao público. É nesse espaço que gosto de estar, e espero ter conseguido com este filme.
Gosto muito dessa ideia da terceira via. Também não gosto da trincheira entre “cinema de autor” e “cinema comercial”, muitas vezes o que se chama cinema comercial é quase uma prima afastada da televisão…
Exacto, e esse é o problema. O apoio ao cinema em Portugal está muito dividido. Temos uma tradição forte de cinema de autor, e com mérito, mas falta um cinema que tente atrair o público às salas sem deixar de ser inteligente e exigente. O chamado cinema “comercial” muitas vezes tenta apenas replicar modelos televisivos. Acho que o caminho devia ser outro: contar boas histórias, bem escritas, com substância, mas que também comuniquem com o público. Nenhum termo é perfeito, mas é isso que falta cá.
Falando então do seu projeto … e do teu trabalho de argumentista … nota-se que “Sonhar com Leões” possui um guião sólido, muito bem trabalhado. Foi por aí que começaste o projecto?
Sim, claro. O começo é sempre o argumento. Como dizia o Hitchcock: “argumento, argumento, argumento”. Trabalhei muito o guião. Acho que, para podermos quebrar regras, temos primeiro de conhecer bem a tradição da escrita. Só assim se pode inovar de forma consciente. Só quando o argumento está realmente sólido é que podes chegar à rodagem com liberdade para improvisar, adaptar, alterar. O guião não deve ser seguido de forma rígida, mas para isso tens de o conhecer profundamente, só assim sabes o que estás a mudar e porquê.
Sim, e é uma ideia interessante. Sou fascinado pela questão do humor. Recordo que o humorista Ricardo Araújo Pereira, que também é um obsessivo pelo tema e tem imensos livros publicados sobre isso, define que o humor foi criado pela humanidade como forma de lidar com a sua consciência da mortalidade.
Aliás, há uma frase de um escritor francês (não me lembro agora qual) que me ficou desde miúdo: “O homem pode estar à beira da falésia, mas tem de rir.” E é isso. Até pus uma citação do Mark Twain na capa do guião quando ele circulava: “A humanidade só tem uma arma verdadeiramente eficaz: o riso.”
É curioso, porque o filme ri do tema, mas ri connosco. Não ri de nós, mas connosco.
É isso mesmo. Ao mesmo tempo, é preciso ter consciência de que estamos a lidar com temas muito sérios. Nunca quis, e penso que consegui, não menosprezar as experiências das pessoas que realmente vivem situações de doença terminal ou sofrimento psicológico. Elas estão “dentro da piada”, por assim dizer, participam dela connosco. Sobretudo a Gilda.

E era aí que queria chegar. A personagem da Gilda, enquanto argumentista, como é que a construiu? E olhando agora para a Denise Fraga no papel, foi ela a tua primeira opção?
Sempre quis que a personagem não fosse portuguesa. Sempre a imaginei estrangeira, porque, em parte, é inspirada em aspectos da minha mãe, que também não é portuguesa, e, para a história da eutanásia, fazia sentido que Gilda fosse uma outsider, alguém isolada.
Se fosse portuguesa, o público iria naturalmente pensar: “Mas ela não tem família? Um primo? Um sistema de apoio?”, e isso criaria outra camada de leitura. Sendo estrangeira, essa solidão é mais credível.
Quanto à Denise, descobri-a durante a pandemia. Vi uns trabalhos que ela fez com o marido, o realizador Luís Vilaça, pequenos filmes caseiros que acabaram por virar uma série [“Horas em Casa”]. Ela falava diretamente para a câmara, num tom muito poético, muito íntimo, muito parecido com o da Gilda. Não havia uma narrativa linear, mas percebi logo: “É ela.” Foi uma sorte tremenda. A Denise Fraga é uma dádiva ao mundo da representação.
Em relação ao tema, e porque o filme joga constantemente com ele, há uma grande coragem em abordá-lo desta maneira. A opção de Gilda não ser portuguesa reforça esse isolamento, essa falta de rede afetiva. E isso faz-me lembrar certos debates sobre eutanásia aqui em Portugal, quando surgem artigos contra e dizem: “Essa pessoa precisa é de um abraço.”
Sim, sim! Lembro-me de ter escrito, numa versão inicial do guião, uma cena de manifestação pró e contra, e usava slogans reais que achava absurdos. Um deles era “Vida sim, morte não”. Sempre achei graça, quer dizer, é uma ótima ideia, mas expliquem-me como é que isso se faz [risos].
E essa coisa do “abraço como solução para tudo”... Confesso que, a certa altura do filme, temi que o final fosse cair num moralismo, ou que ela acabasse por sobreviver.
Exactamente! [risos]
Torcia para que isso não acontecesse. [Risos]
Pois, isso seria a pressão americana [risos].
Mas há algo no filme: na relação entre Amadeu (João Nunes Monteiro) e a Gilda (Denise Fraga), que traduz isso muito bem: pode haver afeto, pode haver humanidade, mas isso não obriga ninguém a continuar a viver “por arrasto”.
Ou por obrigação. A vida é uma dádiva fenomenal, maravilhosa, mas também deve haver certos requisitos para que valha a pena vivê-la, e esses variam de pessoa para pessoa. Por exemplo, alguém com um diagnóstico de demência iminente pode não querer continuar se perder aquilo que considera essencial — a lucidez, a ligação intelectual ao mundo. Outra pessoa, para quem o corpo é central, pode definir a mobilidade como esse limite.
Temos de aceitar isso. Dizer “não, temos de viver a qualquer custo” não é defender a vida, é o contrário. Paradoxalmente, ao defender o direito de escolher, estamos a afirmar o valor da vida, a dizer que ela é preciosa e deve ser vivida plenamente. Se isso não é possível, deve existir o direito de decidir.
Queria falar agora da personagem do João Nunes Monteiro, porque acho-a fascinante. A certa altura é-lhe atribuída uma espécie de “fobia à felicidade”.
Sim … chama-se “anhedonia”.
O papel parece ser uma crítica viva à ideia de felicidade consumista em que vivemos, à indústria que nos vende um conceito vazio de “felicidade”.
Há hoje quase uma obrigação de ser feliz, mesmo sem se saber bem o que isso significa. A palavra “felicidade” é tão vaga que pode significar tudo e nada. Um psicopata pode sentir prazer em matar. Será isso felicidade? É absurdo. O Amadeu representa essa crítica a uma sociedade que impõe a felicidade como dever moral. E isso alimenta uma indústria bilionária: quanto mais falta de felicidade crias, mais produtos e experiências vendes para tentar suprir essa ausência. Esses dois lados estão interligados, e a Joy Transition International [a empresa fictícia do filme] faz parte dessa crítica.
Sim, porque a Joy Transition tem uma estética muito próxima das igrejas pentecostais. Dentro daquele barracão, há todo um ritual…
É inspirado nesse tipo de ambientes. Já estive em vários retiros, de naturezas diferentes, alguns bons, outros mais ao estilo da Joy Transition [risos]. Faz-se lá de tudo: mantras absurdos, frases como “Eu sou o mundo, o mundo sou eu” ditas em coro... há sempre um tom quase religioso. A crítica do filme é mais a esse lado, ao fervor quase espiritual que o capitalismo consegue apropriar, do que a uma religião específica.

Porque tudo se transforma em negócio: os retiros, os coaches, o “sair da zona de conforto”... No fundo, até na morte, é tudo capitalismo.
Sim, exatamente, “como saber morrer” também vira um produto. E a única forma, ainda que nunca totalmente eficaz, de nos protegermos disso é através de legislação, de supervisão civil, que, em democracia, é o Estado. Sem isso, é a lei da selva — o capitalismo puro —, e abre-se o espaço para este tipo de exploração, inclusive no fim da vida.
Mudando de assunto. Tenho pena que a personagem da Victória Guerra apareça tão pouco. Aquela influencer de funerária possui um absurdismo que podia ter sido mais explorado.
Tens razão, concordo. Mas há sempre o dilema do “kill your babies” … tens de cortar coisas de que gostas.
Podemos então dizer que o filme, de certa forma, é também sobre esta sociedade ultracapitalista? Onde a morte é lucrável e mercantilista?
Sem dúvida. E acrescento hedonista. Uma sociedade onde a procura constante de felicidade e prazer está sempre ligada ao lucro, tudo é subordinado a isso. É uma crítica, sim, mas feita através da sátira, que por sua vez é uma forma de crítica, sem dúvida.
Por vezes a comédia é muito eficaz nesse ramo. Mas sobre a constante quebra da quarta parede — essa comunicação direta da Gilda para com o público. Veio um pouco da ideia da Denise Fraga, do programa que ela fazia durante a pandemia, certo? E o facto de termos uma personagem assim… e isto talvez seja spoiler… mas esse narrador, a Gilda … já está morta?
Pois, essa é uma boa pergunta… [sorri] mas não quero revelar essa questão, estaria a descortinar em demasia o final do filme.
[risos] Está bem, não insisto. Então, para última pergunta. Fiquei muito curioso com o título — “Sonhar com Leões”. Tentei perceber se havia alguma metáfora escondida.
Há, um bocadinho, mas é tangencial.
Porque o leão, e a associação mais próxima que encontrei está igualmente presente “Crónicas de Nárnia”, do C.S. Lewis, onde o animal é uma representação de Deus. Encarei o título do seu filme como uma espécie de “sonhar para além da vida”.
É uma leitura próxima, sim. Mas deixa-me explicar. Apesar de ser uma pessoa bastante analítica, gosto de seguir o instinto. Se algo me parece forte numa certa direção, sigo-o, seja na escrita ou na encenação. Por exemplo, a cena em que o cão morto fala nunca foi uma decisão prévia, simplesmente estava a escrever: o Amadeu entra numa sala vazia e, de repente, há uma voz. Perguntei-me: “Que voz é esta?” Percebi: só pode ser a de um cão. E se é um cão, então é a de um cão morto. Continuei a partir daí. Foi puro instinto. Inspiração e prazer em seguir uma ideia que surge do nada.
Com o título aconteceu o mesmo. “Sonhar com Leões” vem de “O Velho e o Mar”, do Hemingway. A imagem dos leões aparece no início e no fim do romance. O velho pescador vive uma existência miserável (pobre, esgotado, derrotado), mas tem essa recordação de juventude, quando navegava na marinha mercante e viu uma família de leões a brincar na costa africana. Essa imagem representa paz, refúgio, a fuga à dor. É o seu lugar de serenidade.
Quando encontrei essa imagem, senti que era perfeita. Comecei por instinto. “Vamos por aqui”, e ficou. Curiosamente, durante todo o processo de financiamento que foi longo, com apoios difíceis de conseguir, como da Eurimages, do Ibermedia, e várias idas a mercados de coprodução, ninguém nunca nos questionou o título. Achei engraçadíssimo, porque pensei que seria a primeira coisa que nos iam perguntar: “O que é isto de ‘Sonhar com Leões’?” Mas não. O título ficou, e ficou mesmo.
Para finalizar, tenho uma questão em duas partes. A primeira toca, indiretamente, nos “novos projetos”, embora imagine que, com “Sonhar com Leões”, ainda esteja a repousar sobre ele…
Não senhor. É o contrário, já estou a pensar no próximo! [risos]

[risos] E a segunda parte é: como é que este filme pode funcionar, ou relacionar-se, com o público português? Tendo em conta que o público português, muitas vezes, é um pouco preconceituoso com o seu próprio cinema.
Sim, esse é um grande problema. Espero, e voltamos aqui à questão de tentar criar um cinema narrativo, inteligente e acessível que “Sonhar com Leões" funcione como um passo nesse sentido. Mesmo sendo um tema difícil, eu reconheço isso e não fujo dele. Quando é suposto doer, dói.
Acredito que a cultura deve estar na vanguarda da mudança. Caso contrário, o que estamos aqui a fazer? Se for apenas para validar o que já está validado, então nem vale a pena começar. Mas atenção: não se trata de “quebrar ídolos” por quebrar. A questão é, se tens uma ideia que diverge do status quo, então propõe, arrisca, faz.
Isso faz-me lembrar o Dias Gomes, dramaturgo brasileiro que escreveu “Roque Santeiro”, primeiro como peça, depois como novela. Ele dizia: “Toda a gente nasce para irritar alguém, e se não estás a irritar ninguém é porque não estás a fazer nada.”
[risos] O George Bernard Shaw tem uma parecida: “O segredo do sucesso é ofender o maior número de pessoas.”
A minha esperança é que, mesmo sendo um tema sensível e polémico, a linguagem narrativa e o ritmo do filme sejam suficientemente acessíveis para que um público alargado se queira sentar, ver e partilhar essa experiência, e, com isso, a criar um pouco de erosão nesse preconceito contra o cinema português: dessa ideia de que é sempre lento, pesado, distante.
E o tal novo projeto?
Estou a trabalhar em vários neste momento, mas o mais avançado segue um pouco o mesmo caminho deste filme, em termos de produção e também com a Denise. Será uma comédia negra e satírica sobre os lares de idosos e a crise habitacional que estamos a viver.


























