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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

“Que Mulheres serão estas?”: a questão que vira sessão de curtas sobre mulheres ... e que mulheres!

Hugo Gomes, 04.10.24

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“Que mulheres serão estas?”, a pergunta que se faz de título, e o título que se faz de pergunta, talvez na persistência do dilema do que é uma mulher, e o que se faz para ser mulher. Decretos feministas, portanto, mas mais que isso, é a vontade de esmiuçar um género, ou além disso uma identidade, a partida dela nasce a iniciativa cinematográfica, três curtas portuguesas para fazer jus à tendência que desejamos tornar tradição. Essas sessões triplas, três produções cada uma delas oriundas de uma diferente produtora, cada uma correspondendo a uma visão e a uma definição própria de mulher. “Que Mulheres Serão Estas?” a questão que vira sessão.

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As Sacrificadas

Seguimos à tradicional e à sacrificada se não fosse esse também o título deste projecto - “As Sacrificadas” - sobre martires e forças, segundo se crê sobrenaturais, que o sexo feminino parece apresentar, neste caso a Otília (Tânia Alves), dividida entre o trabalho, em ser cuidadora da sua mãe e ainda, sob a ameaça dos fogos estivais. Uma curta que chega-nos ao circuito comercial com sabor de zeitgeist, um drama que borboleteia por esses temas e que revela “mão firme” de Aurélie Oliveira Pernet. Contudo, é um filme ausente, pertinentemente e perversamente, do seu lado incendiário. Entende-se a sensação de drama semi-rural enclausurado (mas sem fascínio algum para com esse meio), continuamente fechado a esta mulher de força avassaladora, e em consequência, cada vez mais apagada enquanto identidade, a tradicional e igualmente oprimida, nem que seja pelos códigos estabelecidos sociais, a da mulher, e aí está, sacrificada em prol de outros. 

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By Flávio

Depois segue a emancipação de uma outra mulher “aprisionada”, e não por menos desprezada, Márcia (Ana Vilaça), uma experiente em questões de redes sociais, sendo esse o seu escape, contrariamente condenatório à sua persona. Jovem, solteira e mãe, e com um pouco de inconsequência pelo meio, ela é, à partida, olhada de vesga pelos restantes, a irresponsável vista à lupa da tal sociedade que ordena e julga. “By Flávio”, curta de Pedro Cabeleira, uma das grandes ‘promessas’ do cinema português o qual não canso de insistir (basta conferir “Verão Danado”), trabalha aqui um filme sobre duplas vidas e de duplos desejos, com humor ácido e estéticas embebidas numa artificialização da fantasia pop. É um gag prolongado sobre as ditaduras visuais e aquilo que se prende nos “padrões socialmente seduzidos” do que é uma “mulher de descarte”. Vista as ‘coisas’ é uma emancipação feminina, da improvável, a suposta que “não vale um chavo”, corpo acima do resto, contra as convenções que a aprisiona. No final - “Sou eu e a puta da shotgun” - o grito de guerra da luta de quem por direito anseia uma nova feminilidade.  

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Um Caroço de Abacate

Já a terceira e última curta - “Um Caroço de Abacate” - de Ary Zara (cuja história da sua transpassagem encontra-se presente no documentário “Ary” de Daniela Guerra), lida com uma sombra preconceituosa, a do fetiche inicialmente, aqui representado por Ivo Canelas, homem cis que sente o fascinio pelo mundo de Gaya de Medeiros, aqui como mulher trans e prostituta, que numa certa noite decide mostrar-lhe um caminho alternativo ao lascivo da fantasia oculta. Das três é a historieta mais arriscada, até porque “puxa o tapete e sacode o pó” dela em temas e dilemas que numa sociedade ainda presentemente conservadora tende em negar, e curiosamente, o filme de Zara poderia funcionar nesse panfleto do que é mulher ou não é mulher, as fronteiras da identidade com o seu género, e agressão ao conceito de cisgenero e heteronormatividade. Poderia … mas para quem viu “Ary” apercebe que da sua experiência o ativismo é humano, é sentido, daí “Um Caroço de Abacate” jogar com o seu maior trunfo, a sua delicadeza e carinho para com as suas personagens, deixa de lado o discurso demolidor e transgressivo e se concentra num episódio “After Hours” com “Before the Sunset”, sem malapatas e nem romances acima da carne, apenas dois indivíduos de traços quase almodovarianos partilhando um mundo, uma dança, e uma expectativa. Empatia sobretudo, é a arma de guerra de Ary Zara, e nesse sentido faz mais pelas supostas “causas” que muitos irão realçar do que os verdadeiros “filmes de causa”. Somos humanos, e é o que importa, o resto é “conversa de tesão”. 

O meu corpo, os meus géneros ...

Hugo Gomes, 26.06.24

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Chegamos a mais um trio de curtas emparelhadas como uma sessão única, utilizando a sua temática unificadora como “desculpa” para a sua aliança. “Ovnis, Monstros e Utopia: Três Curtas Queer” [“Entre a Luz  o Nada”, “Sob Influência”, “Uma Rapariga Imaterial”] reúne três obras, fruto de três produtoras diferentes [“Primeira Idade”, “Promenade”, “Terratreme”], mas cujas vertentes artísticas parecem saltitar de filme para filme. Enquanto o seu cuidadoso lançamento em junho assinala o içar da bandeira arco-íris e o punho certeiro em nome do Pride, como soa ordenar este calendário temático.

Contudo e quanto aos filmes, mesmo entrelaçados no selo queer, é curioso encontrar uma voz antagónica a essa mesma categorização, e é dela que gostaria de partir. Odete, atriz , performista e personagem principal de “Sob Influência” de Ricardo Branco - e também participante do festival de “Entre a Luz e o Nada” de Joana de Sousa, e compositora musical de “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho -, brindou-nos com um questionário habitual, sempre pontuado pela produtora Promenade nas suas redes sociais. É um hábito na sua conta de Instagram: os atores e agentes artísticos desta casa são desafiados a enumerar cinco coisas que adoram e cinco coisas que odeiam, curiosamente, Odete assinala o termo “queer” na lista dos ódios. 

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Não entendendo bem o seu contexto, mas junto-me a ela, não em odiar [palavra demasiado forte], mas em questionar essa gravidade orbital trazida pelo uso da palavra queer. Mesmo conhecendo a “estética queer” no cinema - uma prolongação do camp com mais requinte visual - neste caso, oponho a categorização como um catálogo, um sectarismo que vai contra aquilo que as três curtas parecem/desejam manifestar – o romper de barreiras (leia-se géneros, sexualidades, códigos pré-socialmente estabelecidos).

Quanto às curtas propriamente ditas, os três elementos impostos no título da sessão são referências simbólicas, signos presentes em cada uma delas, ou por um lado, alegorias e personificações. Comecemos então com os “Ovnis”: “Entre a Luz e o Nada”, o lado intergaláctico de uma rave organizada em edifícios ao abandono, um filme sensorial que se apresenta como o segundo trabalho de Joana de Sousa, reconhecida no meio como ex-programadora do Festival Doclisboa (2015 - 2023). 

Dos três, é o mais convencional na dita estética queer, impondo uma brincadeira de luzes, purpurinas, constelações e música techno que se avançam em sonhos coletivos e em loop. Parte dessa brincadeira para se impor como uma mostra de uma fauna única deste mesmo universo, consolidado numa festa à moda daquilo que Portugal faz bem, seja em juventudes inquietas [“Verão Danado”], seja em territórios cavernícolas [“Ruby”], são convívios marginalizados, algo escapistas para com a uma realidade que os aterroriza, e os obriga a “banalizarem-se”. “Entre a Luz e o Nada”, o festim (quase) nu possui não só essa evasão de uma normalidade, como um culto de apelo a forças maiores que elas próprias, uma vinda extraterrestre quem sabe, que os liberta das suas amarras e a apresenta num único corpo, uma utopia [calma, já lá vamos!]. Joana de Sousa brinca aos misticismos como uma nova religião.

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Entre a Luz e o Nada (Joana de Sousa, 2023)

Monstros”: não dos saídos do armário, mas daqueles cujas garras nos sacodem para forma dos nosso parâmetros, aqui, Odete, a tal protagonista contra o termo Queer, é emborcada de alucinógenos que a empurram para fora do seu terreno, da sua realidade, torna-se um corpo alheio, abananado, deambulando para lá onde for. “Sob Influência”, de Ricardo Branco (também assistente de realização de “Entre a Luz e o Nada”), faz a sua fuga pro vai desse estupefaciente e o coloca a mente e o corpo de Odete na demanda da sua alegoria, é um “objeto” perdido e simultaneamente encontrado no limiar da sua fronteira (convenhamos, há um elemento abstracto conformidade com a alusão de não-pertença, Odete não pertence a etiquetas, géneros, nem seja o que for, povoa na sua exclusividade como a sua plena característica). 

Branco brinca a outros géneros, o do cinema, com sugestões de um terror psicadélico e de criaturas escuras como breu, voyeuristas e famintas, tudo envolvido num exercício de “nem carne, nem peixe” mas com atributos estéticos e produtivos que colocam “Sob Influência” num quadrante de um sonho acordado, e drogado. 

Contemplamos então a “Utopia”: “Uma Rapariga Imaterial” de André Godinho, o dos três o mais conseguido esteticamente, mas o mais ambíguo na sua temática / abordagem. A história tem tanto de fantástico-erótico como onírico-febril, um encontro mesmerizante entre Tiago (João Duarte Costa) e uma “rapariga” de nome João, que reside numa isolada casa no meio da floresta. Existe um choque inicial que nos guia à parcialidade do cinema de João Pedro Rodrigues, dos travestis caçadores-de-gambuzinos em “Morrer como um Homem” (2009) ou das amazonas agressoras de observadores de aves em “Ornitólogo” (2016), mas é nesses cantos e recantos obscuros do feral e do silvestre que se esconde sexualidades a ser exploradas nos confins da empestada civicionalidade que termina essas comparações. 

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Odete em "Sob Influência" (Ricardo Branco, 2023)

João Pedro Rodrigues não é tão favorável às mulheres como Godinho encanta neste registo com sonho de diluir géneros, corpos e genitálias, e isso torna-se evidente na sequência de sexo erotizado e hipnótico em que a tal rapariga de nome João assume e encorpora três carnes, distribuídas em três géneros (João Abreu, Aurora Pinho e Mafalda Banquarte), quebrando os limites do seu erotismo direccionado, nesse termo relembra o “faz de conta” de Bertrand Mandico na sua fantasia surrealista “Les Garçons sauvages”, ao trocar os papeis dos géneros e com isto desafiando o sexualismo dessas imagens e desses corpos. 

Só que “Uma Rapariga Imaterial” termina exatamente nesse registo erotizado e prossegue com uma agenda escancarada de revolução, contrapondo os “eles” contra os “outros”, os normalizados, os males do mundo materializados. Aí, a confusão instala-se, invocando e desinvocando todos os temas e mais alguns, propagando uma ideia de utopia (a cena final resume-se a isso). Infelizmente, o resultado é o contrário: uma distopia, um confronto sem decretos e declarações convictas.

É uma pena que um filme que desbrava as ervas-daninhas da sexualidade através de uma montagem perfeccionista e encantatória (a cargo de Francisco Moreira, responsável pela montagem de “A Metamorfose dos Pássaros” de Catarina Vasconcelos e “Alva” de Ico Costa) se deixe deslumbrar pela necessidade de transmitir uma mensagem imperativa, ou múltiplas mensagens, num ativismo algo tosco. A subtileza dos primeiros minutos era mais do que suficiente.

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Uma Rapariga Imaterial (André Godinho, 2023)

Curtas, curtinhas, a origem: 1ª edição dos Prémios Curtas

Hugo Gomes, 13.03.23

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Os premiados e os jurados / Fotografia.: Ricardo Fangueiro

Foi através de uma curta que Portugal desbravou caminho em direção à Kodak Theater, a nomeação à tão cobiçada estatueta norte-americana automaticamente entrou para a História audiovisual do nosso país, e então porquê de estarmos constantemente a reduzi-los a "protótipos" de futuras longas-metragens?

André Marques teve um sonho, criar uma cerimónia de festividades, premiações e de comunhão a esse universo bem português, a resistência do Cinema na sua mais natural essência, a simples e de rápida dicção, a curta. Para isso juntou oito magníficos* e fundou um júri, aliciou e arrecadou apoios, e “convidou” a todos os participantes a inscrever o seu trabalho. A sua vontade fez com que o seu desejo se materializasse. No passado dia 10 de março, sexta-feira nervosa devido à nomeação de “Ice Merchants”, cujos Óscares seriam revelados no domingo seguinte (“será desta?” pensavam todos os que presentes), o Auditório Fernando Pessa em Lisboa encheu-se (deve-se sublinhar), para receber a primeira edição, modesta, ainda com o seu quê de improviso, muitas vezes ocultado graças ao malabarismo e carisma de Rui Alves de Sousa, radialista da Antena 1, que assumia o papel de anfitrião. Intercalado pela dita premiação e pela projeção de três curtas referentes aos três géneros-base (ficção, documentário e animação), a cerimónia ficou marcada pelas promessas do seu fundador, ambicionando seguintes edições em maior escala e a ambição de um “microfestival” em celebração daquilo que a curta-metragem tão bem representa - o Cinema, aqui e agora.   

Quanto à premiação, a noite consagrou “Azul” de Ágata de Pinho com cinco prémios, no qual incluem as categorias de Curta de Ficção, Realização, Argumento, Atriz (também Pinho) e Fotografia (assinado por Leonor Teles). “O Homem do Lixo” de Laura Gonçalves arrecada três distinções (Curta de Animação, Curta Documental, Banda-Sonora), igualando com “Punkada” de Gonçalo Barata Ferreira (Montagem, Caracterização, Guarda-Roupa). Os outros prémios; Vítor Norte recebe o de Melhor Ator (“O Caso Coutinho” de Luís Alves), Nuno Nolasco como Ator Secundário (“Tornar-se um Homem na Idade Média” de Pedro Neves Marques), Rita Tristão na categoria de Atriz Secundária (“As Feras” de Paulo André Ferreira), Rodrigo Manaia em Interpretação Infantil (“By Flavio” de Pedro Cabeleira), e ainda a animação “Garrano” de David Doutel e Vasco Sá no campo dos Som / Efeitos Sonoros juntamente com a ‘dobradinha’ de “2020: Odisseia no 3.º Esquerdo” de Ricardo Leite (Direção Artística, Efeitos Visuais).

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Rui Alves Sousa e eu / Foto.: Ricardo Fangueiro

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Vítor Norte brama ao Cinema após vencer o Prémio de Ator / Foto.: Ricardo Fangueiro

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André Marques, fundador do evento, discursa / Foto.: Ricardo Fangueiro

*Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger do Hoje Vi(Vi) um Filme), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico e fundador do Fio Condutor) e André Pereira (videografo e editor de vídeo da Renascença).

“Aqui não vos acontece nada”

Hugo Gomes, 01.02.23

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"A Primeira Idade" (Alexander David, 2023)

Em “A Primeira Idade” existe a prolongação de um sentimento (ora também transferido para esferas político-sociais portuguesas) de que necessitamos da “disciplina” ou da regulamentação, tão bem infiltradas como “tradições”, para nos movimentar numa falsa-sensação de liberdade. Possíveis migalhas de uma "indústria" crescida sob o “asilo” salazarento, bastando recordar um particular “episódio”, que no apogeu de uma balbúrdia, as crianças são abrigadas nas promessas de seguranças de Vasco Santana e do garrafal lettering Salazar em “O Pátio das Cantigas” (“Aqui não vos acontece nada”). 

Fora as propagandas de regime, e a passagem do militarismo quase panfletário que muitas produções pós-25 de Abril se revelaram, chegamos ao novo século nas juras de liberdade existencial, porém, enganadas pelo ditame de regras e normas comportamentais por escrito. Em “A Cara que Mereces” (2004), a primeira longa de Miguel Gomes, o protagonista (José Airosa) refugia-se do “mundo” [da sua realidade] e para isso constrói o seu próprio regimento, a lista de normas que não só o próprio, mas como todos os seus participantes anseiam cumpri. O seu cumprimento não é mais do que o merecido numa instantânea fábula de imposição. Por outro lado, alicerçado a uma satírica alegoria política, “A Espada e a Rosa” de João Nicolau (2010), requisita a inspiração corsária na demanda de um quotidiano regido pelas suas limitações, em confronto direto para com o embuste liberal da suas anteriores vidas (aqui, é a substituição de uma doutrina por outra, sublinhando apenas a ideologia a abraçar em cada uma dessas “realidades”). 

Nesta trajetória chegamos a bom porto à ilha de crianças-adultas cujo medo da segunda e derradeira parte do seu crescimento leva-os a conceber uma “mini-sociedade” politizada e interagida em costumes ancestrais. A existências destes jovens é contada, cronometrada e concentrada, a passagem para a fase seguinte os conduz a uma cerimónia de dissidência. Abandono ou suícido é o que espera destas outrora crianças deixadas ao desconhecido e na “companhia” da sua maturidade.

Esta primeira longa-metragem de Alexander David (que "bebe" de iguais e mencionadas regulamentações presentes na filmografia de Miguel Clara Vasconcelos, o qual trabalhou diversas vezes como ator) é uma quimera de “O Senhor das Moscas” [o romance por William Golding], crianças à mercê da sua kantiana consciência de preservação, para trespassar numa alegórica Caverna de Platão, no preciso momento em que um grupo de desertores aventura-se para longe do seu, temporariamente, conformista território. Nessa demanda, a paragem única e possível é uma cabana no meio do mato, uma armadilha “desenhada” pelos adultos monstruosos que os observam atentamente. 

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Vampyr” (Carl Theodor Dreyer, 1932)

Aí livros, objetos nunca vistos para estes olhos inocentes e cinema entram em contacto com os exilados. Assim, prescreve-se o anterior ato de descrição daquela improvisada sociedade distópica, prosseguindo num questionando do próprio regime perpetuado no entusiasmo das suas personagens quanto às respectivas descobertas. Entre elas, o encontro imediato de terceiro grau com imagens desvirginadores, o cinema mudo a assumir esse papel-guia por temáticas desconhecidas para os demais. A morte presenciada em “Vampyr” (Carl Theodor Dreyer, 1932), por exemplo, preenche a pedagogia em falta, é como se David encantasse com a ideia de uma hipotética redescoberta do cinema (mimetizando o construção do alfabético semiótico suscitado com a proximidade das “imagens em movimento” de há um século). 

Contudo, essa descoberta é efêmera, até porque a deambulação persiste ao invés do proativismo que poderia emanar. “A Primeira Idade” [coincidentemente da produtora Primeira Idade] é interiormente um filme de amarras com a cobiça de se libertar e vaguear pelo paraíso das “coisas”, mas acaba por ser incapacitado face à sua prisão, e nisto entra uma certa tendência portuguesa, mais por culpa da nossa inerência do que da produção em si, o de encostarmos a este senso utópico da regra enquanto único harmonista.

Serão Danado ... e há fotos que o comprovem!

Hugo Gomes, 10.04.22

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“Sou eu e a puta da shotgun”

Lembro como se tivesse sido ontem … Foi na projeção de imprensa de “Verão Danado”, na sede do ICA, pronto para ver uma prometida “primeira longa-metragem”, "saidinha do forno” para se “enfiar” em Locarno. Benzi-me inicialmente mesmo não sendo religioso, possivelmente tratei daquele ato como um ato de superstição (ou de preconceito), e como previsto (julgava eu), as imagens começaram a rolar … ou em modo de trocadilho manhoso - “rural”. “Mais um relato de fascínio pela nossa ‘portugalidade’”, revirei os olhos após os primeiros minutos, contudo, e como havia insinuado, “lembro como se tivesse sido ontem”, esse momento, esse filme e esse realizador [ler crítica e entrevista].

Francisco (Pedro Marujo) pode muito bem ser um jovem do interior, mas é em Lisboa, essa cidade-perdição (não se via tal desde “O Sangue” de Pedro Costa), que a sua viagem começa, e como grande parte delas, o trajeto revela-se mais entusiasmante do que a sua derradeira paragem. Já nos seus vinte, o protagonista mal-amparado, de precariedade mas desinteressado na estabilidade, vive o dia como fosse noite e a noite como fosse dia. Ou seja, o que parecia mais um nos relatos abundantes, converteu-se num retrato de uma juventude alimentada pelas últimas luzes da sua “imortalidade” e, mesmo assim, à deriva do seu limbo criado e socialmente gerado. Pedro Cabeleira, o realizador do qual “tivesse sido ontem”, nos enganou bem. Felizmente nos enganou!  

Com “By Flávio" (a sua nova curta-metragem, que estreou no Festival de Berlim), o engodo também acontece, desta feita na forma da atriz Ana Vilaça, aqui Márcia, uma jovem mãe solteira cujas suas decisões parecem remeter-nos a um caminho predestinado, de extrações moralistas ou reflexivo conforme seria a previsão de uma geração refém das redes sociais e das suas ditaduras estéticas. Contudo, retém-se a segunda - ditaduras estéticas - para sermos embalados num filme estetizado sobre a estética que desejamos definir para nós próprios. Por outras palavras, e apoiando-se no primeiro momento da curta, onde aquela foto destinada ao Instagram é cuidadosamente seleccionada, mas sem nunca descartar dos seus devidos retoques (requisitadas manipulações), centra-se na imagem de como nos vemos e como desejamos que os outros nos vejam. A rede social, esse idealizado avatar, converteu-se na nossa identidade priorizada, cuja nossa existência deve-se ser manuseada e comprovada com fotografias ou “pegadas tecnológicas”. 

By Flávio" é em pouco de meia-hora de peripécias um caderno de rascunhos passageiros sem nunca instalar-se, e por um lado, funcionando na “mouche” em nunca persistir nem perseguir os temas (Cabeleira é tudo menos realizador de “filmes-de-tema” e mais autor de "filmes com vida", talvez sangue na guelra seja a palavra adequada). Foi o que aconteceu com “Verão Danado”, os tópicos estão lá para consumo rápido, mas não de jeito efémero, ao invés disso, nómada. O engano, feliz golpe, é já a sua marca. Danado do rapaz!  

'Non' ou Vã Glória de Salvar o "Cinema Português"

Hugo Gomes, 14.03.21

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Fade to Nothing (Pedro Maia, 2017)

Recordo vagamente de um diálogo à saída de uma das sessões da 14ª edição do Indielisboa. Estávamos em 2017 e o filme em causa era o ensaio visual e sonoro “Fade to Nothing”, a estreia de Pedro Maia no universo da longa-metragem, com a participação do artista musical Paulo Furtado, ou como é renomado de The Legendary Tigerman. A conversa em questão surgiu devido a uma certa indiferença por parte de quem debatia comigo quanto à experiência, finalizando com uma pergunta sem resposta alguma para devolver – “É este filme que salvará o Cinema Português?”.

Há muito, mas muito, quase como uma cruz pelo qual arrastamos praça adentro, discute-se um eventual “salvamento” do nosso cinema. Para satisfazer os prazeres da carne, ou entretenimento, como muitos defendem, ou por fim, restaurar uma ligação emocional com o perdido espectador que depara com uma instituição demasiado hermética e umbiguista. Conforme seja a causa trazida, uma ‘coisa’ é certa, todos nós esperamos por uma entidade sebastiana, aquele que irá romper o nevoeiro com a finalidade de colocar a nossa cinematografia no mapa. Enquanto essa figura messiânica não chega, arrecado com uma certeza, o cinema português não precisa de ser salvo, além disso, o que precisará, é de uns certos ajustes. Diria mais, localizados, mas isso são “outros cinco tostões”.

Em conversa com Rui Alves de Sousa no seu podcast À Beira do Abismo, reforcei o meu amor pelo cinema português, o “cinema que mais amo, porque é o meu”. Talvez um sentimento algo familiar nasce em mim no que refere a defender este universo, até mesmo durante os seus expositivos fracassos. Mas o cinema português é o meu maior interesse no que refere a cinematografias, é o nosso mundo, e é aquele que mais dialoga ou partilha o nosso espírito identitário, mesmo que muitos do espectadores não o revejam, esse é o Cinema que nos acompanha, que nos faz discutir com os nossos “eus” enquanto nação (para o bem ou para o mal).

Mas o cinema português não fala do real Portugal.” Muitos argumentarão desta maneira. Contudo, o que é o real Portugal? O Portugal rural? Esse, sempre presente em muitos dos nossos ensaios documentais, etnográficos ou memorialistas que buscam esses biótopos desgastados pela decadência e os fluxos migratórios dos mais jovens para as metrópoles. Portugal cosmopolita? Lisboa que sempre foi o focus de atenção nas nossas lentes e o Porto que serviu de berço à nossa atividade cinematográfica. Mas afinal, qual Portugal estamos nós a falar ao certo?

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Sangue do meu Sangue (João Canijo, 2011)

Então os problemas do nosso país? O nosso cinema só quer saber de artistas e lirismo.” Se o distanciamento pode ser traduzido por isso, então há uma novidade para vocês – a ordem natural (novos realizadores, novos olhares) que tem apostado cada vez mais em temas raros na nossa cinematografia, e porque não, de cariz social. Abordamos a austeridade num prisma humano e por via de uma narrativa centrada no realismo encenado (“São Jorge” de Marco Martins ou “Sangue do meu Sangue” de João Canijo, dois exemplos que me vem automaticamente à mente), um constante interesse pela descolonização e no tabu que sempre fora a Guerra do Ultramar (“Mosquito” de João Nuno Pinto, “As Cartas da Guerra” de Ivo M. Ferreira, "Our Madness", de João Viana), ou as vozes silenciadas do nosso “querido” Portugal a conseguir o seu palco, por fim (“O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, “Vitalina Varela”, de Pedro Costa).

Mas o cinema português não consegue ser político?" O “ser político” é um terreno mais que pantanoso, as tão acarinhadas comédias portuguesas “estreladas” por Vasco Santana e António Silva eram por natureza materiais politizados (com o seu quê evidente de propagandismo), e na década de 50, Manuel Guimarães trouxe à nossa atividade o neorrealismo (que por si é uma estética politizada) e assim adiante o Cinema Novo (sem falar da vaga militante pós-25 de Abril), ou até mesmo João César Monteiro, que não escondia as suas ideologias (“Sou um intelectual de esquerda”). Na nossa contemporaneidade, quase tudo o que é produzido é formado por gestos políticos, de Miguel Gomes a Teresa Villaverde, de Pedro Pinho a Welket Bungué, de Cláudia Varejão a João Botelho. E se o problema é o ponteiro da rosa-dos-ventos estar direcionada exclusivamente à esquerda, então fica o registo de “Snu” de Patrícia Sequeira ou “Camarate” de Luís Filipe Rocha.

Mas é um cinema demasiado intimista. O cinema português deveria exaltar os nossos grandes heróis”. Mesmo sob uma tremenda estigmatização, não poderemos acusar de Manoel de Oliveira invocar os “bens preciosos” da nossa História, onde até mesmo as derrotas são fruto de inveja entre nações (“'Non', ou A Vã Glória de Mandar”). Como estafetas de tal legado, João Botelho encontrou nos últimos anos, um propósito em consolidar o cinema com a divulgação de trabalhos literários, ou Francisco Manso a tentativa de reafirmar o “filme de época” numa “indústria” de baixos recursos. Enquanto isso, o êxito de “Variações”, projeto de longa data e resistência de João Maia, abriu portas para uma eventual vaga biográfica e musical – “Bem Bom", de Patrícia Sequeira, está na fila para persistir no estilo produtivo.

“Porque é um cinema ‘velho’, não fala com, nem para os jovens”. Como assim? Pedro Cabeleira estreava em Locarno de 2017 com o esteticamente febril “Verão Danado”, um retalho de jovem mal amparados que vivem a noite como não houvesse amanhã, da mesma maneira que Mariana Gaivão exibia a rebeldia numa caverna (uma imagem marcante em “Ruby”), ou o cinema energeticamente pop de “Leviano” de Justin Amorim. Entre outros, basta olhar para as curtas vindas de sangue novo, aquele sangue na guelra que tanto o cinema português deseja e muito bem.

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'Non', ou A Vã Glória de Mandar (Manoel de Oliveira, 1990)

Sim, e antes que perguntem em relação novos géneros, simplesmente deixa acontecer, temos experiências, umas satisfatórias, outras … bem, tentou-se. O tempo é uma ferramenta útil para essa dita diversidade, basta só aguardar. Calmamente …

Quanto ao leitor, a esta altura deverá estar ele próprio a questionar – “então e esses ajustes?”. Se o cinema português precisa de um ajuste, esse seria o de não ser pequeno, ou de pensar como tal. Sabendo que este meio é um nicho que tropeça constante uns nos outros, o refugiarmos na nossa pequenez (um vício tão português) leva-nos automaticamente aos mais variados problemas que acirram ainda mais este panorama. A desunião, a ideologia (não política, mas no modo cinema português deveria ser concebido ou “canonizado”), os egos e o amiguismo que prejudica mais autores do que beneficia-los, “obrigando-os” a abrigar nos seus próprios conformismos.

Não se trata de salvamento, ao invés disso, trata-se de apelo às correntes e olhar para cima. Somos mais do que meras vítimas. 

Júlia Palha: “Tenho a vontade, tenho a paixão e sei que tenho o talento”

Hugo Gomes, 08.09.20

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As inundações das Terras Baixas da Papua Nova-Guiné sempre me fascinaram”, frase, no mínimo curiosa, que marcou um dos filmes mais singulares e recentes do panorama português – “John From” de João Nicolau – tendo como proclamadora uma, na altura, adolescente de nome Júlia Palha. Isto aconteceu em 2015, onde já se adivinhava um promissor percurso para a rapariga que suspirava pelos trópicos em pleno bairro de Telheiras (Lisboa).

Dois anos passaram, e a vimos com tamanha sedução na curta celebrada “Coelho Mau” de Carlos Conceição, uma fantasia em lençóis de fábula onde a atriz assumia o papel de uma hipotética “rapunzel” que no cimo da sua torre aguardava pelo príncipe encantado, este, facultado pelo seu irmão (João Arrais). Depois de uns quantos papéis em telenovelas e séries que tornaram Palha numa atriz cada vez mais requisitada e admirada, voltamos a contar com a sua presença no cinema sob a batuta de Mário Barroso e da escrita de Carlos Saboga – “Ordem Moral” – com produção de Paulo Branco.

Aqui, desempenhando Sophia de Azevedo, a amante deslocada de um triângulo amoroso que escandalizava a alta sociedade portuguesa no início do século XX, a atriz opera como uma voyeurista do enredo principal que serviria de inspiração para a escritora Agustina Bessa-Luís no seu “Doidos e Amantes”. Palha contracena com um dos grandes nomes do cinema português (que também retorna a “casa”), Maria de Medeiros que lidera um elenco de luxo nesta obra que veio para desvendar um desafiante caso na nossa cultura intrinsecamente patriarcal.

A jovem falou comigo sobre a sua experiência neste novo projeto do realizador de “O Milagre Segundo Salomé”, assim como a responsabilidade de se tornar numa das “cabeças de cartaz” de um novo cinema português.

Começando pelo início: como chegou a este projeto? O que pode-nos dizer sobre a sua personagem e a sua experiência em contracenar com Maria de Medeiros?

Foi um convite feito diretamente pelo Mário [Barroso], não havia como negar. A minha personagem foi muito desafiante. É uma personagem mais velha, mais madura, com o pé entre dois mundos, o saber estar em alta sociedade, a voz, a postura, e o saber viver bem com a infidelidade.

Nas cenas com o Marcello [Urgeghe], acabamos por ir fazendo pequenos resumos da história e por isso, sei a importância da personagem. A Maria para além de muito querida é uma atriz como nunca tinha visto, de uma profundidade e naturalismo equiparáveis, é uma honra saber-me num filme com ela.

“Ordem Moral” resgata uma mulher, em certa maneira, apagada da nossa História (sabendo que na literatura foi imortalizada por Agustina Bessa-Luís), muito devido às suas constantes “afrontas” a uma sociedade intrinsecamente patriarcal (basta ver como a vida de Maria Adelaide é decidida, assim tentam, por homens de poder). Conhecia esta história previamente? Considera esta a melhor altura para contar narrativas de mulheres progressistas (à sua maneira) na nossa História?

Apenas fiquei a conhecer a história quando li pela primeira vez o guião, fui pesquisar e fascinou-me o facto de ser uma história real, e de ter acontecido cá em Portugal. Soube instantaneamente – “tenho que fazer parte disto e tenho que o fazer bem”. Eu própria considero-me uma “progressista” na medida em que, por muito que as ‘coisas’ estejam melhores e tenham mudado, ainda existe muito que possa ser trabalhado.

Este filme é um grito de alerta que demonstra como as ‘coisas’ já foram, o que para nós, mais jovens, é ainda mais difícil de acreditar. Acho que o filme vai ser lançado numa altura importantíssima, incentivando as pessoas, por fim, a pensar.

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Júlia Palha e Marcello Urgeghe em "Ordem Moral" (Mário Barroso, 2021)

Voltando à sua personagem, ponto curioso é o facto de ela ser, como digamos, a “outra” de um matrimónio, mas ao mesmo tempo o filme não tende a criminalizá-la nem sequer dar uma de “palanque de condescendência”.

Era uma coisa muito comum na altura, e a minha Sophia, na verdade, tem um bom fundo, como se pode ver na última cena que tem com o Alfredo da Cunha e até em algumas cenas com a Maria Adelaide.

Sobre os seus novos projetos, o que nos pode dizer sobre o seu papel de Loira no “Campo de Sangue”, de João Mário Grilo e sobre o filme de Hermano Moreira, “Amo-te Imenso”, para a Promenade?

A minha Loira será um papel pequenino, não exigirá muito de mim enquanto atriz, mas sei que é um papel muito relevante e estou muito honrada de ter sido escolhida pelo João Mário Grilo. Já em “Amo-te Imenso” serei a Tessa, uma personagem leve, divertida, mas com uma energia que se sente a quilómetros, chamada “alma velha”. Estou muito entusiasmada com ambos os projetos. Fazer cinema é a minha paixão e vou continuar a privilegiar nas minhas escolhas o grande ecrã.

Visto a sua carreira ser maioritariamente televisiva (em novelas e séries), atingiu um certo reconhecimento internacional com “John From”, de João Nicolau. Nesse filme, contracenava com Clara Riedenstein, que mais tarde tornar-se-ia protagonista de “A Portuguesa”, de Rita Azevedo Gomes, ambas são tidas como duas das principais caras de um certo e novo cinema português. De alguma forma, se vê como tal, alguém capaz de representar e içar esse mesmo cinema, e já agora, como encara o cinema português atual, antes e depois do Covid-19?

O meu querido “John From” foi quem me fez descobrir este amor à representação, a minha querida Clara, com quem tanto me diverti e o meu “Coelho Mau” que me levou tão nova ao Festival de Cannes e me deu a conhecer um mundo de glamour e de emoções.

Acho que todos sabemos, que pela falta de oportunidades, de BOAS oportunidades também, é mais difícil fazer cinema, ainda assim acho que com a minha idade já tenho um bom percurso nesta área. Se me considero capaz de içar esse novo cinema? Acho que sim. Sim. Tenho a vontade, tenho a paixão e sei que tenho o talento.

Acho que se tudo correr bem o COVID’ não vai afetar a arte, claro é, as salas têm que estar mais vazias, e tal, acabará sempre por ter consequências. Mas acredito que as pessoas têm saudades de ir ao cinema, e que este vírus não as vai impedir disso.

Catarina Vasconcelos: "o que de extraordinário tem o cinema é a sua capacidade de repensar o mundo"

Hugo Gomes, 04.09.20

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Com "A Metamorfose dos Pássaros", premiado no Festival de Berlim, a artista Catarina Vasconcelos vai ao encontro das mulheres do seu passado que nunca conheceu: a mãe e a avó, Beatriz, carinhosamente apelidada de Triz.

A realizadora aborda a sua família como uma galeria de quadros animados e de natureza morta, um gesto de criação poeticamente visual que desenha um legado enriquecedor para contagiar emocionalmente os espectadores.

Conversei com a artista que encontrou no cinema o seu possível vínculo com memórias e afetos. A Metamorfose dos Pássaros” chegou finalmente a terras lusas através da 17ª edição do Indielisboa.

O seu filme foi uma intenção de “resgate” ou de criação de memórias, sendo que a Catarina as resolve num terno poema visual. Foi uma forma de criar um certo refúgio para que o espectador não possa “infiltrar-se” esse intimismo?

Há dois aspetos importantes que devo mencionar. Primeiro, não estudei cinema, sou de Belas Artes, e isso é crucial na forma como me aproximo do cinema. Venho desta estrada, portanto todo o universo que trago para o cinema é de arte, um tratamento algo plástico, como de "tableau vivant", de quadro, de pintura. Ao mesmo tempo, quando comecei a fazer o filme, que foi há cerca de seis anos — e tem toda a razão em usar a “palavra” resgate — foi porque o meu avô teve a necessidade de queimar a correspondência entre ele e a minha avó Beatriz.

Na altura, esse seu ato chocou-me e muito, até porque nunca cheguei a conhecer a minha avó e estava crente que iria conhecê-la melhor através dessas mesmas cartas. Portanto, tive essa ideia de resgatar alguém que nunca conheci, e durante esse processo, comecei a ir mais fundo. Seja através de entrevistas aos meus familiares, como ao meu pai. Embora tenham sido muitos generosos, tive sempre a singular sensação de que não estavam a contar-me tudo. Escondiam-me algo. Foi algo de que me fui apercebendo e apelidando de ‘mistério das famílias’, os “não ditos”, o que não é contado. Não por mal, mas que são uma espécie de regra de ouro entre famílias.

Como tal, acabei por ter muito espaço em branco. Tinha que preencher esses espaços! Por um lado, senti alguma frustração, por outro foi uma espécie de carta-branca para criar, inventar o que não sei. Com isso, o filme foi adquirindo esses contornos, entre o documental e a ficção, e de um momento para o outro existiam ‘coisas’ que eram fabuladas, repensadas, até porque não se sabia como eram verdadeiramente. Como eram os meus pais e tios quando eram novos, apesar de ter relatos do que eram famílias e mulheres a viver nos tempos da ditadura. O que mudava na essência dessas famílias. Esse carácter do filme entre as memórias resgatadas e de uma poesia que gira à volta disso tem a ver com o processo de construção do filme. Um não vive sem o outro. Hoje penso "que bom que não disseram-me tudo". Para que fosse possível criar esta linguagem, toda esta não só poesia, não seria só sobre esta família, mas partindo dela mesmo para abordar elementos ainda maiores.

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No preenchimento dos espaços em branco, existe também toda uma criação de um panorama sociopolítico da juventude dos seus avós, pais e tios, como o retrato do Portugal pré-25 de Abril. Queria que me falasse sobre essa reconstituição.

Esta família cresceu entre os anos 50, 60 e 70 [Estado Novo]. Para mim era importante abordar, primeiro, a família e o seu desenvolvimento, mas também do que se passava à volta deles. Reconstruir um panorama político. Por isso utilizei a coleção de selos do meu avô Henrique e percebi que, olhando através deles, conseguiria traçar, de modo geral, a história de um país e das suas ditas colónias ultramarinas. Como se pode constatar no filme, quase todos os selos oriundos de Angola ou Moçambique tinham uma alusão a António Oliveira de Salazar, seja através de barragens, pontes ou outras construções, o que dá uma ideia do sufoco vivido na época. Tudo que este homem tocava, automaticamente ganhava o seu nome.

Tentei implementar essa ideia no filme para transmitir a juventude asfixiante de Jacinto e dos seus irmãos. Outro elemento que tento abordar é o dito choque geracional. O meu avô nasceu em 1926, no início do Estado Novo, enquanto o meu pai nasceu em 1950. E como tal, desencadeará um desajuste geracional e político, não com isto afirmando que os meus avós eram pró-Salazar, mas a verdade é que nunca conheceram outra realidade sem ser aquela. E os meus pais e tios já estavam atentos ao que se estava a passar em França, Bruxelas [Bélgica], entre outros [países], tendo um termo de comparação que suscitou consciências políticas. Em “A Metamorfose dos Pássaros” tentei, com pormenores, criar um conjunto de apontamentos do cenário político-social desta família, uma espécie de pano de fundo para o enredo.

Gostaria que me explicasse o porquê da escolha da realizadora Cláudia Varejão (“Amor Fati”, “Ama-San”) como incorporação da sua avó.

Primeiro que tudo, tem uma voz extraordinária. Depois, porque é uma pessoa muito próxima e este é um filme feito com relações emocionais. Todas as pessoas que foram trazidas possuem uma proximidade. Certo dia estava a ouvir a Cláudia na rádio e nunca tinha ouvido assim a voz dela, dessa maneira, e fiquei impressionada. E admiro o trabalho da Cláudia, aliás, admiro a Cláudia. Portanto, ter ela no meu filme a interpretar a avó que não conhecia, mas pela qual era fascinada, marcou-me enquanto realizador, mulher e portuguesa.

Existe um momento curioso: quando o seu pai, Henrique, confronta-a com o porquê da sua mudança de nome no filme para Jacinto. Este diálogo tem como finalidade romper o lado “verídico” da obra, dando a ideia que aqui há espaço para a criação ficcional.

O que de extraordinário tem o cinema é a sua capacidade de repensar o mundo. “E se isto fosse assim” ou “se o meu pai se chamasse assim”. Todas estas possibilidades são-nos dadas com enorme generosidade pelo cinema. Ao mesmo tempo, essa mesma generosidade e capacidade de construção são notórias se as desfizermos. A única forma que tinha para mostrar essa mesma construção no filme era se se desconstruísse um "bocadinho" … e esse confronto com o meu pai foi real [risos].

Por um lado, percebo o lado dele, estou a fazer um projeto sobre a família e altero o nome dele! Achei interessante incorporar essa sua reação e de certa forma vai ao encontro com a natureza de "A Metamorfose dos Pássaros", a diluição do que é verdade ou ficcionado. Esta sequência é crucial para entender que existe essa vertente. Creio que toda essa construção/desconstrução, o de mostrar e esconder, percorre em todo o filme.

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E porquê Jacinto como nome fictício?

Uma coisa que percebi da minha avó Triz é que existia um amor à Natureza, às plantas, uma capacidade extraordinária de fazer nascer e crescer "coisas". Senti-o em várias fotografias, nas plantas que plantou. Era algo que sabia dela, não foi preciso contarem-me. Às tantas, certamente queria usar esta metáfora para batizar o primogénito de Jacinto, um filho com raízes em terra enquanto o marido está constantemente no mar. Essa explicação acontece no início para que no fim ocorra a desconstrução. E o mais, já bastava a confusão que era ter dois Henriques [avô e pai] na história. Era o fim da picada!

A situação pandémica alterou por completo o calendário de estreias. Veremos “A Metamorfose dos Pássaros” nos cinemas portugueses?

Gostaríamos muito que o filme estivesse estreia comercial. Aguardamos pelas datas para verificar qual a mais apropriada. Seja este ano ou no próximo, mas como referiu, com esta situação muitos filmes ficaram com as suas estreias atrasadas, o que causou uma espécie de linha de espera. Anteriormente, as pessoas já iam pouco aos cinemas, atualmente têm que trabalhar ainda mais e pensar em novas estratégias para novamente levá-las às salas.

O que pensa do streaming como solução de estreia?

“Ninguém” gosta que os seus filmes sejam vistos em streaming porque são feitos para serem vistos no cinema. As salas são as casas para os filmes. Mas neste caso especial, se o filme está selecionado num festival, mais vale acontecer, porque imaginamos que, para o ano, estas obras de 2020 não terão o devido espaço e outras mais recentes. Não se deve matar a carreira a estes filmes, apesar de não terem as estreias dignas projetadas pelos seus autores, produtores e todos os envolvidos. Sei que é um tema que tem dado discussão de certa forma fraturante na nossa comunidade, mas creio que isto foi tentar dar uma resposta rápida a uma situação que ninguém previa. Este cenário do streaming garantiu o destaque a filmes de 2020 que, de certa forma, não entrariam nos festivais do ano que vem.

E quanto a novos projetos?

O que tenho é mais uma ideia de filme, ou seja, está em fase de escrita. Foi um processo intenso a da produção de “A Metamorfose dos Pássaros”. De certa forma, esta quarentena serviu para me obrigar a parar um bocadinho e repensar. A ideia já está formada, o filme vai acontecer, só que, aviso, vai demorar um tempo.

Três Realizadoras Portuguesas: o desconfinamento português faz-se no feminino

Hugo Gomes, 13.07.20

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Cães que Ladram aos Pássaros

Após uns sensíveis três meses de distância das salas de cinema, esta reaproximação, chamaremos assim, serviu como oportunidade para um lançamento corrente de muitas das obras portuguesas agendadas e outras, um tanto, “engavetadas”. São provas de desconfinamento, diriam muitos, uma das novas palavras de ordem ao nosso vocabulário quotidiano, uma servitude exercida pelo espectador de forma reaprender o seu lugar enquanto … isso mesmo ... espectador, ao mesmo tempo que se dedica a “memorizar” novos hábitos, provavelmente inseridos numa renovada e conquistadora normalidade.

Uma dessas estreias portuguesas, possivelmente das menos improváveis a comportar-se como chamariz desesperado fruto das distribuidoras e exibidoras às suas salas, é esta coligação de três curtas que auto-definem uma geração. Se o mundo pede mudanças e sobretudo vinda de divergentes vozes para alimentar as propostas audiovisuais, esta, intitulada aposta de Três Realizadoras Portuguesas, é além do mais um trabalho de curadoria, o da seleção e reunião de um trio de cineastas emergentes com vias de conquistar o páreo. E esta, digamos, cooperação igualitária, tem como intuito fazê-las [essas vozes] ouvir neste panorama atual de cinema restaurado, estrategicamente como uma só, e apontá-las neste confinamento como guias para essa fase reiniciada.

Das três, o nome mais expectável, visto já andarmos de olho nela, é o de Leonor Teles, realizadora que venceria o Urso de Ouro de Curtas de Berlim com A Balada de um Batráquio (2015), filme-ensaio misto de “prank” que refletia num preconceito entranhado na nossa sociedade, focando na relação tóxica entre os sapos de loiça e a comunidade cigana. Teles viria a conhecer o outro formato, o da longa, com Terra Franca (2018), em que acompanha e esquematizava um ano - quatro estações - na vida de Albertino Lobo, habitante de um comunidade piscatória nas margens do Tejo, e um resistente ao tempo e a austeridade insertada pela consistente falta de investimento no sector e às "politiquices" que a geraram.

Mas aqui, em Cães que Ladram aos Pássaros, a realizadora não aborda desconfinamentos, mas indicia-se também em readaptações, neste caso a de uma família portuense que defronta o fenómeno de gentrificação, onde as metrópoles “empurram” os seus habitantes mais economicamente desfavorecidos, para fora dos seus centros, explorando estes “vórtices” para fins turísticos ou em nome do progresso paisagístico. Sob uma fotografia “granulada” assinada pela própria autora, o pequeno filme segue os seus “condenados” em um misto de festa e tormento perante a situação que se instalam. Uma resistência silenciosa, algo desleixada quanto ao destino que se avizinha mas sob um olhar otimista no seio daquele caos iminente. Leonor Teles bebe daqui a realidade para o contorcer em prol de uma ficção à sua imagem, onde entramos na intimidade destes peões, sentindo a sua autenticidade como simultaneamente a sua exposta manipulação ao serviço (sempre) da narrativa.

 

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Dia de Festa

Porém, burla minha, comecei a narrar a viagem através da sua meta! Possivelmente o meu lapso temporal deriva do facto de já compreendemos Leonor Teles como uma consolidada cineasta, enquanto que as outras duas do “bunch” detém uma tarefa maior em ofuscar ou igualar um nome já por si atrativo pelos mais atentos cinéfilos. Felizmente para Mariana Gaivão e Sofia Bost, o desafio é superado com o melhor dos aproveitamentos, e a mais entusiasta faceta autoral que nos faz salivar pelo futuro garantida destas, até então, “maçaricas” de vanguarda.

Assim embarcamos no último nome e primeiro da sessão -Dia de Festa, de Bost (formada na London Film School) - o qual ostenta uma articulação para com o dito “storytelling”, este por vezes ignorado no panorama português. Nesta história, enxugada por um sentimento constante de defraudação, o dispositivo-narrativo é uma comemoração que ressoa os alarmes da festividade, assumindo-se como vestes da insegurança vivida por uma progenitora sem “formação” para tal. Como diz a certa altura, uma das personagens, argumentando que se informou teoricamente num documentário qualquer, existem espalhadas na sociedade mães isentas de instintos maternais e, opostamente, contraídas por sentimentos de repugna para com os seus próprios rebentos (uma espécie de ódio irracional, o bode expiatório perfeito para a insatisfação existencial). Pois claro, Dia de Festa é um filme sobre amor maternal sem o amor maternal, é a laboração de um estatuto estabelecido imposto pela sociedade e não pela natureza. Sofia Bost compõe o membro mais inteligível desta trindade, mas não menosprezemos as acessibilidades neste campo, a curta é pragmática no seu diálogo para com o espectador, assim como a vida por vezes, e a destacar a subtileza de Rita Martins, atriz que traja a farsa das festa improvisada, a herdeira do legado sem afetividade e na confiança dos estranhos passageiros. É uma das confirmações deste tratado narrativo que faria furor em metragens de maior duração, mas por enquanto fiquemos com “aperitivo” … e que bem!

Já por último, o seu meio para dizer a verdade, Mariana Gaivão concentra-se em Ruby um enredo de resistência e consequentemente libertação por via do desapego afetivo. Filmado na região de Góis, local ardido e povoado por “estrangeiros” que fazem dessa terra de cinzas a sua casa. Nele, deparamos com a protagonista-título (Ruby Taylor), jovem que se apercebe do desaparecimento do seu cão no meu desde dia que recebe a notícia de despedida da sua melhor amiga para Inglaterra. Há uma negação que advém com o corte de afinidades para fazer do seu horizonte sua nova morada. Gaivão demonstra a sua idoneidade em casar a desilusão com um misticismo (in)existencial, uma beleza artificial naquilo que o futuro nos reserva, demonstrando, como a sensorial sequência da rave cavernosa, que basta ceder-nos à experiência e deambularmos pela corrente do desconhecido. Aonde chegaremos, automaticamente o chamaremos de casa.

E foi Casa, a proclamação vinda destes três nomes ascendentes em relação ao Cinema, esperando que o espectador faça o mesmo nesse seu regresso.

 

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Ruby

"A Metamorfose dos Pássaros": a primavera silenciosa da nossa saudade

Hugo Gomes, 29.02.20

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A particularidade de “A Metamorfose dos Pássaros” encontra-se na sua incessante busca pela memória, um processo que executa através dos objetos afetivos que se indiciam como atalhos para essas réplicas emocionais. Da mesma forma que existe genuinidade e ternura neste gesto proustiano de perpetuar o passado (mais do que experienciar o presente), há também uma farsa cometida que instala-se como uma readaptação ao seu cerco cinematográfico. As recordações, essas, são verídicas, mas a realizadora Catarina Vasconcelos recorre à encenação, aos pseudónimos, aos embelezamentos que a própria revela para tornar todo esta genealogia de alma numa belíssima galeria de quadros pintados, muitos deles remetendo à natureza morta, pelo qual delineia a fronteira deste microcosmo.

Começamos então no primeiro ato, no isolamento que atormenta mentes que navegam por mares de saudade e de exaustão emocional, aqui, o “ancião” Henrique (avô de Catarina) assume-se como o voluntário dessa condição de eremita, falando e mencionando fantasmas, o amor que nunca esqueceu e que igualmente nunca verdadeiramente possuiu. Na sua sala de estar, o náufrago memorial pendura um quadro, diríamos mais uma cópia, um Joaquín Sorolla (“Madre”, 1895), como o próprio informa, remetendo automaticamente a essa ausência afetiva – Beatriz, ou como gostava de ser chamada Triz – a “assombração” que nos levará para o passado das coisas, para à ante-existência da autora.

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"Madre", Joaquín Sorolla (1895)

“A Metamorfose dos Pássaros” é um filme verdadeiramente pessoal e falsamente desencadeado na sua estética, é íntimo como igualmente exibicionista e incômodo como confortável. Catarina Vasconcelos demonstra constantemente a sua posição de “contadora de histórias”, seja pela narração omnipresente e coletiva, seja pelo visual que vai acompanhando a “ditadura das palavras”, prevalecendo a sua estética quase eclética e sobretudo trabalhada para original metáforas visuais (“observamos o mundo como fosse um quadro“).

Esta sua primeira longa-metragem (Vasconcelos concretizou um curta em 2014, “Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso”) paraleliza com “Elena, da brasileira Petra Costa (filme que não canso de referenciar, não vá cair no esquecimento ou no desprezo dos “privilegiados”), devido à sua recriação de revivescências e sentimentos vividos, pela carta pessoal aberta que acolhe o espectador e o familiariza como “seu”. Existe sim, um fabricado poema, proclamado com todas as suas estrofes. Em “A Metamorfose dos Pássaros” é a beleza desse encontro que suscitará a mãe de todas as alegorias, aliás, é essa mesma, Mãe, a palavra-chave desta jornada de diário escancarado e subitamente “violado” por curiosos.

O mistério nascia nos detalhes“, ouve-se a certo ponto, conferindo nesses pormenores a riqueza escondida pelas “fachadas” de beleza nos planos confinados à confidência de Vasconcelos. “A Metamorfose dos Pássaros”, ao contrário do seu título, não contrai nenhuma transformação no seu processo de criação; é acima de tudo um filme que merece encanto mas de um universo demasiado fechado, e talvez por isso, um adquirido e requerido tom privado.