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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Abril Sempre!

Hugo Gomes, 24.11.24

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Na procura de uma memória coletiva sobre os preponderância da Revolução, Luciana Fina “resgata” do arquivo uma montagem, quase a cheirar a coletânea, de ventos que se defrontam numa ideia conceptual num ato. O 25 de Abril, ponto-chave, e de lá o Antes, o Durante e o Depois: o que se ganhou, o que se perdeu e o que se manteve. “Sempre, título ou grito afirmativo das promessas, acalora corações, como a “venda” de um Abril retirado da normalização do seu calendário e transformado numa Primavera ideológica. Assim, deparo-me com os conselhos de “não descansar até o Abril se concretizar”.

Leia-se nos murais, nas faculdades, ouça-se das bocas dos idealistas, dos otimistas, dos sonhadores. Sonhar é fácil; acordar é mais difícil, porque é nessa sobriedade que nos damos por vencidos pelas frustrações do tempo. “Sempre é um ensaio de intenções, imagens e sons costurados, projetados dias e dias numa parede de tijolos do átrio da Cinemateca de Lisboa. Ali encontrou uma textura que lhe condizia: o picotado retangular de cada peça compunha cada imagem como um puzzle, algo apenas sustentado pelo “poder da projeção” — essa luz tremeluzente como uma acidental alegoria de um país imaginado.

Porém, 50 anos de Abril levam-nos a estas comemorações. Mas a comemoração adquire asas próprias: chega Veneza, e a oportunidade de esta instalação virar filme é outro sonho acordado. Os italianos também comemoram o 25 de Abril — não o nosso, outro. Será que entenderão o peso das imagens que Fina acarreta no seu “Sempre? Ou apenas as olharão como uma curiosidade de arquivo?

Para nós, portugueses, essas mesmas imagens são sentimentos: ora de compreensão, ora de indignação. As forças opostas — os saudosistas ou os que consideram que se perdeu a “essência” (qual, não sei) do primeiro cravo — encontrarão em “Sempre uma propaganda contra o seu paladar. Os críticos “pés-de-barro” virarão costas, como sempre (e “Sempre). Não foi para eles que o filme foi feito.

Luciana Fina demarca-se num ensaio cujo sabor difere conforme o espectador. Há quem o veja como uma continuação de uma luta. Há quem o entenda como uma desilusão: às influências de Abril, ao engodo, à traição e, sobretudo, à decepção trazida pela engrenagem política. “Bom Povo Português”, de Rui Simões, documento crucial dessas paradas, igualmente serviu-se de imagens para demonstrar o fracasso acima da exaltação. Muitos viram o ato como uma traição à Pátria, uma patranha, sem conceber a hipótese de que a crítica é o avanço da sociedade.

Sempre nunca obtém tal sentimento, até porque é um objeto do seu tempo, deste tempo, em que se olha para a Revolução tentando encontrar um fio condutor. Quem sabe, para seguir até esse sonho, cada vez mais distante, de um Abril Sempre.

Os Verdes Anos já foram ... excepto Isabel Ruth, ela fica entre nós

Hugo Gomes, 02.12.23

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

Lisboa, minha Lisboa, em tempos vi-me incrustado nas tuas ruas, enraizado nas respetivas calçadas, tal que nasceu em mim um desejo de não apartar-me de ti. Resistir a sair, mesmo quando forças antagonistas me empurram para longe dos teus braços, é o meu intento. Meu Ubbos, minha maravilha de Ulisses. No entanto, foi através do Cinema que me uni a ti. Os "nossos" cineastas, dispostos a encantar e a propagar as tuas virtudes, a cidade-destino para muitos vindos do “campo”, a nossa Las Vegas para alguns provincianos em busca de novas oportunidades, em direção à modernidade que lhes foi negada no berço. Vejo isso nas comédias da chamada "Idade de Ouro", em tempos, foi assim que me foi vendido, a mim e aos meus, através de um mito, tal como o mito da Expansão Marítima, onde auto-intitulamos de os "melhores" e cuja a desgraça caímos por descuido. Lendas forjadas e hoje debatidas perante uma objetiva que não se deixa envolver pelo saudosismo, mas não importa. Vasco Santana passeando no Jardim Zoológico, contando macacos ou diagnosticando problemas de fígado à girafa - "Chama-me doutor" - dizia ele ao seu acidental assistente para impressionar.

E o que dizer dos olhares estrangeiros? Que belos olhares trouxeram até nós! Desde Alain Tanner a Wim Wenders, sem esquecer o passeio fora do Teatro de S. Carlos de Christine Laurent. Fascínio ou turismo, era uma diversidade, uma Lisboa não única, mas multifacetada. E hoje, testemunhamos essa cidade em constante transformação, com mudanças atrás de mudanças: de Manuel Mozos a Jorge Cramez, de Teresa Villaverde a Pedro Cabeleira, e tão recentemente Telmo Churro pisando o solo sagrado em histórias e historietas, mas apesar de tudo, a capital alfacinha já havia escolhido o seu filme-estandarte - "Os Verdes Anos" de Paulo Rocha, e quem mais? Não irei prolongar a importância cinematográfica e histórica do filme de 1963. Não é o tempo nem o momento para me perder quanto ao seu impacto geral, e sim envolver-me nas suas paisagens. A Lisboa em ‘crescimento’, entre o campo baldio e agreste e o Areeiro que acenava ao asfalto.

O sapateiro da cave, com a sua janelinha apontada para o passeio, onde poucas vistas mereciam ser apreciadas através dela, a não ser Isabel Ruth. Ela, a menina e moça da cidade, que mais tarde, em cenas seguintes, encostada corpo a corpo com Rui Gomes, dançando ao som de "Os Verdes Anos", num travelling naturalmente decorrido pelo salão a direito. Sempre afirmei que era a dança mais bela, e terna, que a tela projetou, ou talvez seja a cobiça de integrar esse mesmo bailado, nessa época desvairada e desconcentrada, onde um senso inquieto nos fazia desafiar a falsa estabilidade de um regime. Mais algumas cenas depois, Rui Gomes descia a escadaria em direção ao Cais do Sodré, penetra numa casa de alterne, mas aí o lápis azul teve que funcionar, já era demais segundo as sensibilidades da época. "Os Verdes Anos" é isso, um filme imutável apesar de tratar de mutações e gerações instáveis. É através dele que deparamos com o coração de todo o cinema português, que despoletou ao longo de anos, mesmo para aqueles que repudiam o seu cinema em favor de fórmulas televisivas ou telenovelescas, isso nem sabemos ao certo. Toca-se Carlos Paredes, acordes reconhecíveis que se tornaram um hino citadino, apenas equivalente ao chamamento do amolador de facas, e eis a obra-prima portuguesa.

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Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois (2022)

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Os Verdes Anos (1963)

Ou, não façam caso de todo este “textão”, o amor por este filme é imenso; apenas poucos ultrapassaram a mera fronteira do belo e alcançaram o íntimo, onde morar e onde sonhar. Talvez seja por esse amor que rejeitei "Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois", o suposto tributo de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata ao mesmo filme. Uma manifestação de amor vindo de outros sobre o meu amado, e para embarcar em tal declaração, é necessário aceitar essas carícias e beijos de mão. Infelizmente, o amor proclamado pela dupla levou-me a negá-lo, mesmo que os gestos sejam pré-concebidos e reconhecidos como uma "carta de paixões proclamadas" - filmar Lisboa de "Os Verdes Anos" plano a plano como se fosse um trajeto turístico e memorialista. A prática revela-se mais como umbiguismo da dupla do que supostamente um beijo encenado ao vento. Contudo, fiquemos com Isabel Ruth, em dois momentos cruciais: um pairando como um fantasma, negligenciando o seu próprio desaparecimento e renegando a sua redução a mero ícone, desejando com isso viver acima da sua própria imagem (fora Paulo Rocha, foram poucos aqueles que souberam captar a essência da atriz); e por último, despertando da passividade do filme, cantarolando para uma cidade aberta e vazia, uma pin-up tardia e colorida, a protagonista do seu próprio filme sem imposição dos realizadores. 

Mas estas duas aparições de Nossa Senhora fazem pelo registo in local de "Os Verdes Anos", aproveitando o confinamento para induzir a liberdade de filmar e movimentar-se na metrópole. Ao espectador, é oferecida uma viagem às suas recordações, constatando as alterações vincadas do cenário de Paulo Rocha, um contracampo, e sim, a projeção original. Só que a subversão do projeto leva-me a questionar as reais ambições dos autores perante a sua ideia de "Os Verdes Anos", entre as quais a estrutura aparentemente mimetizada, abalroada pela instintividade do ato de filmar, numa câmara por vezes trocista e individualista.

É a Lisboa de Rodrigues, aqui, em mar plantado, com a sua "fauna" (personagens que também poderiam integrar o seu rol fílmico) a pavonear nos bastidores de Rocha e mais alguns (o projeto não se limita a seguir os "lugares-comuns" do filme anterior, inventa-se... ou reinventa-se). O que indica é o uso do "tributo" como uma desculpa para impor a sua marca, o seu mundo que 'engole' o outro, separando o objeto do propósito inicialmente 'vendido', e recompensados como "brinde" de bolo-rei em forma de Isabel Ruth (não canso de mencionar a diva, e sempre será a nossa diva). Portanto, não consideramos uma homenagem ao clássico, mas sim uma via para uma Lisboa entre confinamentos, desertos artificiais, necessitadas de uma transformação político-social. Se fosse isso, teríamos um filme a elogiar; de outro modo, fomos enganados acriticamente.

"Devemos permitir que o filme e o material falem mais alto do que o nosso ego": uma conversa com Inês T. Alves, uma portuguesa entre os Achuar

Hugo Gomes, 06.09.23

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Águas do Pastaza (2022)

Inês T. Alves convidou-nos a explorar os confins do mundo através dos olhos das crianças, apresentando-nos uma perspectiva universal e quase utópica que transforma a Amazónia num recreio e, ao mesmo tempo, numa sala de estudo. Após passagem por Berlim, por surpresa da realizadora, "Águas do Pastaza" segue agora  por novos caminhos [festivais, mostras e cineclubes] para demonstrar essa visão num exercício imersivo e sensorial. Não observamos esta tribo enquanto meros turistas privilegiados; estamos com eles, unicamente com eles, sendo a montagem a condutora desta experiência. É para isso que o cinema existe, acima de tudo, para nos tirar do nosso comodismo.

Conversei com a realizadora sobre o projeto, sobre os "achuar" e sobre a ocidentalização que muitas vezes tentamos impor a tudo e a todos.

Algo que me fascina no seu filme é a sua determinação em sair de um lugar e chegar a um sítio remoto, longe da civilização. 

Já sentia uma grande vontade de sair da Europa e explorar novos horizontes. Não desejava voltar apenas para seguir o roteiro tradicional de viagens. Em vez disso, ansiava por estar num lugar diferente e aprender com as pessoas desse local. Queria envolver-me e contribuir ativamente nesse encontro. A Amazónia, por vários motivos, sempre exerceu um fascínio sobre mim, despertando um forte desejo de conhecê-la. No entanto, não possuía nenhum contato ou conexão na região, o que me levou a procurar na internet por possibilidades de locais onde pudesse ir, ficar e ser bem recebida. Foi então que descobri um projeto independente iniciado há alguns anos por um casal na comunidade que eu decidi visitar, pertencente à comunidade Suwa da tribo indigena Achuar.

Entretanto, esse casal teve o privilégio de conhecer essa comunidade há alguns anos, pois eram professores na escola primária local. Ao partir, propuseram à comunidade a continuação de receber pessoas de fora com o objetivo de apoiar e colaborar na escola, especialmente com os novos estudantes. Entrei em contacto com eles e receberam-me de braços abertos, explicando-me como o projeto funcionava e como poderia chegar lá no tempo mínimo necessário. Embora não tivesse interesse em ser professora, especialmente num lugar tão distante do meu e com uma cultura tão diferente, senti que essa poderia ser a minha porta de entrada para a comunidade. Além disso, como já realizava oficinas de cinema com crianças em Portugal, pensei que poderia contribuir com esse conhecimento. Fui em busca de um projeto que me permitisse realizar sessões de filmes, e ao conversar com o casal responsável pelo projeto, tomei a decisão de embarcar nessa experiência. É claro que também seria uma oportunidade incrível poder ficar alguns meses imersa nesse ambiente.

Mas antes tinha feito um projeto em Moçambique, certo?

Fiz uma curta-metragem em Maputo, sim.

De Moçambique prossegue para esse local entre o Equador e o Peru, ou seja, encontra no cinema uma forma de viajar?

É também uma forma de viajar dentro de mim, de me conhecer e de conseguir expressar-me e compreender. Compreender o mundo e compreender o mundo à minha própria maneira. Além disso, vejo os filmes como uma forma de perceber como o mundo se comunica comigo e, de certa forma, eles também se tornam um veículo para os encontros. Para mim, fazer filmes é sobre o encontro entre a minha realidade e as pessoas que entram no filme. Estou interessada nesse encontro entre o eu e os outros.

E em que momento desta sua viagem a incentivou a concretizar um filme?

Mesmo assim, o fascínio de conhecer aquelas crianças e testemunhar a forma como se conectam com o ambiente, a floresta e a sua independência e autonomia, bem como o conhecimento que possuíam, que de certa forma também já existiu na nossa cultura ocidental e que faz parte do conhecimento humano. Não se trata apenas de viver de forma direta em relação à alimentação, de acender fogueiras, cozinhar ou colher frutos, mas sim de algo que sinto que estamos a perder. Foi esse encontro com essas crianças que despertou isso em mim. Passei tanto tempo com elas e elas generosamente partilharam a sua vida comigo e eu comecei a perceber que seria interessante fazer um filme sobre essa experiência.

Concordo plenamente com essa perspetiva de que estamos a perder, talvez inconscientemente, algo muito valioso. Quando assisti ao seu filme, pude perceber de forma subtil uma narrativa sobre a liberdade das crianças. Cada uma delas imersa no seu próprio mundo, conectada à natureza. No entanto, à medida que o enredo se desenrola, é introduzida uma máquina, um telemóvel, que se torna um segredo. Há uma cena particular no seu filme em que vemos uma menina e um menino, ele está profundamente envolvido com o telemóvel, ouvindo música, aliás, enquanto ela está a segurar um pauzinho, prestes a fazer alguma coisa. De repente, ela larga-o e vai verificar o ecrã na mão do menino, a partir daquele momento a curiosidade da menina à tecnologia a levou à sua dependência. 

Essa sequência, de certa forma, funcionou como um espelho para a dependência que a nossa sociedade tem em relação às telas. E não estou a falar apenas do cinema, que é algo diferente, mas sim da dependência generalizada dos ecrãs, que nos leva a perder o contacto com o nosso redor.

Sim, a tecnologia traz consigo o risco da alienação. Sentimos isso de forma muito presente. Hoje, estamos extremamente dependentes dos telemóveis e das tecnologias. E não é que eu seja contra todas as tecnologias, acredito que elas trazem coisas boas, mas é importante utilizá-las conscientemente. Na verdade, eles nunca tiveram uma televisão, apenas um rádio, e de repente, sem necessidade, quando cheguei, há apenas dois meses, já tinham telemóveis. Às vezes, era o meu telemóvel, outras vezes o dos pais, mas ainda assim era algo novo e fascinante para eles, e ainda mais porque antes não havia nada disso. O telemóvel é uma porta para o mundo, mas também para um mundo doente. No entanto, também traz muitos desafios que eles terão que aprender a lidar. Espero que eles consigam encontrar uma forma de ser como nós, de refletir sobre como queremos nos relacionar e como queremos interagir com a tecnologia. Talvez, de facto, o filme seja um espelho dessa dicotomia entre estar conectado com a vida, a floresta e o meio ambiente, por natureza.

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Inês T. Alves

E no sentido de que essa invasão dos ecrãs também traz um certo contágio àquele que é o ambiente que dirige a tecnologia? Até porque eles vão ter contacto com um mundo que muitos deles nunca vão conseguir atingir.

Sim, eu percebo a pergunta. Acho que para mim, o mundo em que vivemos é inevitável. Se isso acontecer, e acredito que aconteça, não sinto que tenha o papel de dizer o que é certo ou errado, nem entrar em moralismos. Acredito sim, que é uma realidade sobre o que está a acontecer e eles, como é óbvio, têm curiosidade em perceber o que existe no resto do mundo e que é uma forma de compreender os perigos envolvidos. Então, a mudança também começou com essa introdução. E é, sem dúvida, importante refletir sobre isso. Mas acho que temos que refletir em conjunto, porque é um problema global instalado e claro que aqui temos outra situação, o contacto com a tecnologia foi mais gradual, enquanto lá chegou de repente. Acredito que existem muitos perigos desconhecidos nesse contacto. No entanto, eles também são seres capazes de pensar.

Perante o filme tentei não dar uma resposta, dizer o que é certo ou errado, mas sim observar a realidade e perceber que este é o mundo globalizado em que a tecnologia está presente em tudo. Hoje em dia, até eles têm internet e trabalham com ela. Nós, enquanto humanidade, temos que compreender como queremos nos relacionar com esse acesso quase infinito ao mundo e às diferentes realidades.

Fale-me sobre essa Oficina de Cinema, e desta vontade de trazer para perto da comunidade um pouco de cinema. Houve e quais as reações das crianças ao experimentar aquelas primeiras imagens e de que forma aquilo tornou-se numa narrativa na cabeça deles? Recordo que os Lumiére e os seus instantâneos sucessores também tentaram levar Cinema para o resto do mundo. Havia sempre uma espécie de “tradutores de imagens” nessas projeções, para auxiliar na compreensão de como aquelas imagens se encaixavam / conjugavam numa narrativa aos automáticos espectadores.

Não era a primeira vez que viam filmes; já tinham visto, seja através do telemóvel, seja em projeções organizadas para a comunidade, mas antes da minha chegada, era muito raro essas exibições. Nós colocávamos um lençol... clássico [risos]... e, em pouco tempo, a pedido deles, estávamos a fazer isso todas as noites. Já me encontrava cansada de ter que montar constantemente o projetor [risos]. Também tentava explicar em alguns momentos o que é o cinema, o que é a imagem e o poder da imagem e do som, como se constroem narrativas, a realidade e a ficção. Procurei abordar alguns desses temas, especialmente com as crianças, e por vezes percebia que tinham alguma dificuldade em entender o que era realmente a fantasia. Eles perguntavam: "Mas aquilo existe mesmo?", e tudo o que não fazia parte daquela realidade deles poderia ser real ou não? Poderia ser verdade. Lembro-me de estarem a ver um filme do "Harry Potter" e não saberem que aquilo não era real.

Existem comunidades indígenas que têm uma abordagem diferente em relação ao que chamamos de fantasia. Lembro em uma conversa com o João Salaviza e Renée Nader Messora sobre o seu “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, em que referiam que os krahôs interpretavam os sonhos como passeios do espírito fora do corpo.

Esta coisa de que a fantasia não é real é também uma questão. De repente, começamos a pensar que ela é uma realidade também. Mas é importante compreender o que é que define estes mundos que vemos no cinema. O objetivo foi também permitir que eles percebessem como as coisas são construídas e que alguém as constrói. Há uma construção de uma realidade no cinema e nós fizemos um exercício de stop motion, por exemplo, para os ajudar a entender. A combinação de imagens, numa sequência que cria movimento e com uma determinada velocidade, produz a ilusão de movimento. Então, a partir dessa ideia, surge a ilusão da imagem colocando a criança como criadora de imaginários. Também reconheço a importância de adentrar em conceitos sobre a realidade material e no que é mais real do que a própria realidade.

Foram curiosas reações aquelas que conseguiu desencadear?

Sim, embora tenha tido apenas dois meses, o que não foi muito tempo, foi o suficiente para desenvolver uma relação com a comunidade e aos poucos pudessem expressar para comigo. Havia momentos em que não havia comunicação verbal, e sim uma comunicação corporal ou das reações ao que estavam vendo. Eles expressam-se mais por meio de sensações do que por palavras.

Eu também mostrei filmes que nós próprios filmávamos entre nós, para que pudessem ver em tela e adquirindo a consciência do que viam era uma seleção da realidade que eles vivenciaram. Eles percebiam que o que viam era apenas uma seleção de acontecimentos.

Acho que, no final das contas, isso os ajudou a compreender, mesmo estando bastante isolados do mundo Ocidental e da tecnologia em geral. Como disse, eles já tinham acesso a alguns filmes e livros, não foi assim tão difícil de entender, apesar das diferenças culturais.

Havia escola?

Sim, pré-escola e escola primária.

Pois, no filme eles falam espanhol.

Sim, aquelas comunidades já falam espanhol. As crianças falam sobretudo espanhol entre elas, embora saibam que é uma língua estrangeira, e os adultos falam "achuar" entre eles, a sua língua nativa. De alguma forma, os adultos começaram a sentir que fazia mais sentido falar espanhol com as crianças, mesmo que estas não tenham total domínio do idioma.

O que as crianças transmitem é bastante básico, no sentido de que usam o espanhol no dia-a-dia e, em seguida, desenvolvem formas de expressão e de comunicação. Contudo, as crianças compreendem o idioma “achuar” só que não praticam muito entre elas, e o seu espanhol é muito simples em termos de vocabulário. Na escola, as aulas são dadas em espanhol maioritariamente, mas também tem aulas de “achuar” para não perderem a ligação com a sua identidade. 

Saliento que a escola foi reconhecida pelo Estado. Portanto, é necessário seguir o programa do Estado, o que também envolve uma questão de coerção.

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Águas do Pastaza (2022)

Porquê? 

Porque a infância está muito distante da realidade imposta pela escola. Por exemplo, eles estão a aprender a Roda dos Alimentos, e muitos dos alimentos que estudam não fazem parte da sua alimentação, ou até mesmo nunca verão algo idêntico na vida. É importante considerar que, na fase inicial, muitos deles nunca tiveram a oportunidade de experimentar alimentos como queijo ou maçã. Até mesmo a textura de uma cenoura pode ser desconhecida para eles. Assim, coisas que podem parecer óbvias para nós não o são para eles. Eles estão constantemente a aprender e a descobrir imagens que percebemos como naturais, mas que também são novidade para eles. É uma realidade diferente da deles que estão a experienciar.

Além disso, quando falamos sobre as comunidades indígenas, frequentemente fazemo-lo da perspetiva do 'outro' e não a partir da sua perspetiva interna. No sistema educacional, podemos ensinar sobre os indígenas e as suas comunidades, mas frequentemente é feito como se fosse algo distante, algo que não faz parte de quem somos. É uma abordagem de 'outro' e não uma compreensão a partir de dentro. Portanto, é importante considerar estas perspetivas.

Eles sentem-se marginalizados com esta questão do “outro”?

Acho que sim. Em relação à escola, por vezes, sinto que se torna uma abstração, pois está frequentemente desconectada da realidade prática das crianças. Essa sensação é ainda mais acentuada porque, na verdade, eu próprio vivi muita frustração na escola. Questiono por que o processo de aprendizagem muitas vezes se afasta tanto da realidade deles. Certamente, eles fazem adaptações e tentam integrar conhecimento em seu dia a dia, mas acredito que ainda existe muita frustração nesse processo. Não era um ambiente em que eu me sentisse totalmente à vontade. Como colaboradora na escola, também não estava preparada para lidar com questões relacionadas à leitura, o que contribuiu para essa sensação.

Voltando à Oficina de Cinema, que filmes exibia a eles?

Charlie Chaplin, principalmente! Porque apresenta uma linguagem universal e são filmes bastantes divertidos. Um deles, o The Kid era importante exibir para que criassem uma empatia com a criança, apesar dos filmes serem de uma realidade distante a deles, essa perspetiva infantil o conseguia integrá-los nessa “estranheza”. 

Sinto que não fui tão bem preparada como pretendia em termos de seleção cinematográfica, agora, olhando para trás, tenho ideias do que pode ser mostrado a eles, possivelmente o pratique no meu retorno. Mas, recordo, que na altura que cheguei à aldeia tinham mostrado o “The Jungle Book”, da Disney, o qual deixou-os maravilhados. A toda a hora pediu para rever o filme, sinto que se identificaram com o Mowgli de alguma forma [risos]. 

Mas também mostrei alguns documentários como o “Baraka”, de Ron Fricke, o qual ficaram encantados com aquelas imagens de culturas provenientes dos quatro cantos da Terra. No geral, tentei apresentar um programa de filmes com poucos diálogos, como por exemplo, a curta “Le Ballon Rouge” de Albert Lamorisse.

Não é segredo, mas ao captar todas estas imagens durante as filmagens, ao sentar-se olhando para aquele expositor e ao planear a ordem em que o filme seria construído, tinha uma visão clara em mente? Além desta narrativa o qual estou a descrever, “Águas do Pastaza” resultou num filme bastante atmosférico, que nos permite entrar no seu ambiente e simplesmente pairar dentro dele.

Sim, por isso é que considero um filme importante para ser visto no cinema, precisamente porque não se trata apenas de uma história, e sim uma proposta aventureira com um desfecho envolvente. Não sei, é uma experiência que nos permite mergulhar profundamente na floresta, através da imagem, como também do som.

Os cheiros e os sons da floresta são particularmente impressionantes, especialmente quando ouvimos os animais e a chuva a cair durante a noite. Este tema é intensificado pelo ambiente sonoro. O nosso objetivo era realmente imergir o público nesse mundo por meio da sensação, não apenas por meio de uma narrativa convencional. Mesmo que não tenha uma história clara, é um filme que nos faz sentir parte da floresta e da vida das crianças de uma forma contemplativa nos lugares mais tranquilos.

E conseguiu levar essa ambiência a Berlim …

É verdade, quando fui para a Amazónia, não tinha a expectativa de estrear um filme em Berlim. Na altura em que 'Águas do Pastaza' se transformou num filme, imaginei que o veria em festivais de menor dimensão, com um foco mais etnográfico. No entanto, Berlim proporcionou uma maior visibilidade e permitiu que fosse visto por um público mais vasto do que inicialmente antecipava. Após isso, com o apoio da Oublaum, o filme continuou a sua jornada em festivais, como o Indielisboa, o Cine Eco, Porto/Post/Doc, bem como exibições em cineclubes e eventos especiais. A natureza atmosférica do filme, como mencionaste, e o seu afastamento das narrativas convencionais fazem com que se enquadre numa variedade de temáticas para além do puramente etnográfico. Ele fez parte do Festival de Arquiteturas, por exemplo, e do Festival de Cinema e Literatura de Olhão.

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Nana (Valerie Massadian, 2011)

O seu filme me fez recordar outro, o “Nana” da Valerie Massadian. Não sei se chegou a ver? 

Não …

Deixe-me contextualizar: "Nana" leva-nos até uma criança de 4 anos que vive com a mãe numa zona remota, numa casa no meio da floresta. Certo dia, por motivos não muito claros, a mãe morre, e a menina fica sozinha naquele lugar, desconhecendo a condição da progenitora, mas "sobrevivendo" graças à sua imaginação. O filme nunca assume um tom fantasioso; em vez disso, somos convidados a adotar a mesma perspetiva da protagonista, que nada conhece e pouco desconhece. Ficamos à mercê dela. Em "Águas do Pastaza", também são as crianças que ditam a nossa perspetiva. São as anfitriãs daquele mundo, e o vemos através da sua percepção.

Parece-me válida essa comparação, tenho que ver esse filme.

Aviso … porque sempre nos dias de hoje fica sempre bem avisar devido à sensibilidade do público … o filme inicia com uma matança do porco. Bem, se formos a ver o seu filme também nos apresenta algumas morte nesse sentido, o que me deixa questionar sobre esta relação ocidental com a morte e como estamos a lidar com ela.

Tem a ver com isso, com esse sentimento de alienação, não é sobre o que temos. Estamos a afastar-nos da perda de conhecimento, mais do que da própria vida, do ciclo natural da vida. Viver é também uma forma de morrer. E, de certa forma, estamos a consumir a nós próprios. Ao falar assim sobre a natureza, o que acontece? É claro que a forma como o fazemos hoje em dia, com as florestas a serem destruídas, os aviários e o consumo abusivo de carne, é um grande problema. Mas, ao mesmo tempo, não podemos fechar os olhos a isso. Não é porque não queremos mostrar na tela, às vezes é necessário mostrá-lo, é preciso confrontar-nos com essas realidades. Essa é a parte difícil, não é sobre a vida da qual temos consciência. Como nos relacionamos com ela? Não podemos ignorá-la, não podemos esquecê-la. 

A morte é um tabu que precisa ser desconstruído. Vemos a morte de animais, mas a nossa própria morte, para mim, não é apenas uma questão de matar, é sobre como lidamos com ela. O que significa alimentarmo-nos uns aos outros? É importante perceber como estas coisas são representadas, como são sentidas. Não é deixar de mostrá-las, não é deixar de refletir sobre elas. É confrontar-nos com as complexidades. Não é pecado observar carne embalada no supermercado mas é pecado experienciar a morte de um animal para fins de alimentação? Acho que é importante reconhecer esta desconexão que estamos a viver, essa separação que criamos, e também garantir que as crianças não se afastem dessa realidade. Acho que é um tipo de alienação que estamos a perpetuar.

Mudando de assunto, em alturas de Berlim recordo algumas entrevistas da altura em que referia a um projeto coletivo na Mouraria …

[risos] Está um pouco parado, especialmente depois de termos recebido os resultados do apoio da Câmara de Lisboa. Não está esquecido, mas, de facto, está parado. Agora, tenho outro projeto, envolvendo uma senhora cabo-verdiana. Este surgiu de forma espontânea, mas ainda não obtive qualquer apoio para ele. Portanto, estamos neste ponto, ainda estamos a processar e a perceber o que pode surgir a partir deste filme.

Apesar de também permitir que as coisas se manifestem por si próprias, para mim, o que descobri em relação à criação de filmes é que sempre se trata de encontros. É sobre como esses encontros acontecem com as pessoas, com o material dos filmes, e permitir que eles se manifestem de maneiras por vezes muito misteriosas para mim. Portanto, na fase de montagem, quando o filme realmente se materializa, é um processo em que nós, como realizadores, não sabemos ao certo o que vai acontecer. É como se nos dispuséssemos a ser veículos para algo que está para além de nós.

Como última questão, tenho consciência de que muitos realizadores têm um forte apego às imagens que captam, o que dificulta a seleção. Em muitos casos, isso leva à intervenção do produtor para "forçar" o corte, se é que posso colocar dessa forma. Neste contexto, observei que o seu filme tem apenas 60 minutos, em comparação com muitos dos seus colegas que apresentam trabalhos de longa duração. Quero deixar claro que não é uma crítica à duração em si, mas tenho a sensação de que houve um intenso trabalho de seleção e edição em 'Águas do Pastaza'.

Sem dúvida, acho que o trabalho mais difícil, talvez até mais importante do que vencer, é o desapego. Isso se aplica a tudo na vida, mas também envolve perceber o que realmente contribui para a narrativa do filme e o que está ali apenas por causa do nosso apego. Incomoda-me quando assisto a um filme e percebo que o realizador não quis eliminar uma determinada imagem, simplesmente porque tem um apego a ela, mesmo que essa imagem não contribua mais para a história. Isso é um exercício muito difícil para mim, mas extremamente importante. Tive que lidar com muitas imagens e ainda hoje sinto pena de algumas que não estão presentes no filme. É um desafio perceber o que é essencial, o que já está lá, e o que precisa ser deixado de fora.

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Águas do Pastaza (2022)

Acredito que quando estamos verdadeiramente conectados, devemos permitir que o filme e o material falem mais alto do que o nosso ego. Portanto, este exercício é sobre entender o que realmente serve ao filme, em vez de servir aos nossos desejos pessoais. Não é fácil, não é um exercício simples.

Filmei muitas coisas escondidas, porque quando estava lá, não sabia o que iria capturar, e os adultos faziam parte do filme. Foi somente durante a edição que percebi que precisava remover quase completamente a presença de adultos, tal ajudou-me a fazer seleção de muitas cenas das quais, hoje, sinto pena não terem sido incluídas, não por causa do que estava acontecendo nelas, mas porque havia um adulto, mesmo que fosse ao fundo. Decidi removê-los posteriormente.

As crianças se tornaram no foco. Mais tarde, percebi que poderia criar um lugar utópico e fantasioso. Acho que isso é o que torna essa experiência especial, única. Afinal, ser um mundo exclusivo das crianças não deixa de ser uma realidade. No filme, quase tudo aconteceu sem a presença dos adultos. A ideia era que as pessoas sentissem isso. Claro, os adultos existem, mas na realidade, as crianças fazem a maior parte das coisas por si próprias. São muito autónomas e têm muita confiança. Deixamos que vivam as suas vidas e aprendam. Claro que aprendem com os pais, mas também ensinam uns aos outros. Existe um forte senso de colaboração entre elas. São dois mundos paralelos: o dos adultos e o das crianças.

O filme será exibido na 4ª edição do “Imagens no Tejo - Mostra de Cinema Português”, no dia 16 de setembro [ver programação completa aqui]

Sangue Azul ...

Hugo Gomes, 20.11.22

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Reininho, o Rei, o Rui Rei ou Rei Rui, figura errante em territórios mesclados que o próprio apelida de sonhos, vangloriando a sua capacidade de os idealizar e controlar. É fruto da sua ambição, da sua excentricidade, da sua destrutiva aura em encontrar razão para o irreal da sua existência. Rui Reininho (deixemos os “trocadilhos” de lado), é do conhecimento de todos, a imagem, a voz, a musicalidade com que as palavras “expulsas” da sua boca são proferidas, o esoterismo motivado pela sua presença, o nosso GNR (o nosso artista-a-solo da Companhia das Indias)

Cantautor, poeta e artista, de braços estendidos para nos receber nesta estância cinematográfica, a sua vendida não-biografia, uma confissão decorrida no seu estado onírico. “A Viagem do Rei”, com o nosso Rui a servir de modelo perante a assinatura de João Pedro Moreira e Roger Mor, esboça-se como um protótipo de videoclipe, chanfrado, xamânico, chamado a depor. É uma jornada como o título indica, da realeza pelo real, um conjunto de formas que fazem “vai-e-vêm”, pelo passado, pelas memórias, pelas mágoas, atravessando o desejo, a criação e o abraço à morte, a próxima paragem entre as mil e uma paragens. 

"Descobriste o que podes ver dentro de ti! Sabes o que é que isso significa? Foste promovido. Já não és mais um vagabundo, és um artista”, a frase de Hans Richter em “Dreams that's Money Can Buy” (1947) pode ser enxertado, convidado inesperado, aqui. É o sonho e o que fazer com eles, essa essência rara que torna Rui Reininho no autor, no dito artista. Mas as comparações terminam aqui, o experimentalismo vanguardista de Richter não encontra páreo (nem influência) com as camadas entre camadas de dimensões e extorsões à realidade desta “A Viagem’”. Das ameaças ao Sol, às valsa entre detectives, da saliva que nos afoga e a poeira quente do sangue oculto, João Pedro Moreira e Roger Mor construíram um vídeo-musical prolongado, de ideias atiradas e conjugadas a imagens avulsas. 

Não é dos gestos mais originais, nem mesmo em panorama nacional - The Legendary Tigerman ousou converter-se a nada em 2017 (“Fade into Nothing”, Pedro Maia) - mas a performance de Reininho desculpa o vasto leque de sonhos limitadamente representados. A sua benção nos guia, e o ouvimos com mais gosto, ambicionando por mais e mais, sem fim de cumprir. Um exercício de estilo, de música pop e psicadélica, de vénia ao artista com prestação do mesmo. 

Rui Reininho é cá um personagem! Tem todo o direito de o ser e de o fazer. A viagem prossegue …

A Panóplia Cinematográfica do Verdadeiro Sabichão português

Hugo Gomes, 22.01.20

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“Nunca comas cornetos no café do Aires, ele desliga a arca durante a noite e a bolacha fica mole“

Bruno Aleixo atravessou fronteiras e plataformas e é hoje defendido por um “exército” de ávidos seguidores. “O Filme do Bruno Aleixo” é encarado como o próximo passo nessa tremenda “salta-pocinhas” de territórios criada por João Moreira e Pedro Santo em 2008 mas, ao contrário do expectável, o humor chico-esperto "aportuguesado" opera como um olhar satírico à nossa indústria do audiovisual, o oposto do que se poderia esperar e do que se viu nas conversões de outras marcas da cultura popular-nacional como "Morangos com Açúcar", "O Filme da Treta" ou "Sete Pecados Rurais".

Um pouco como se vê no filme, a dupla Moreira e Santo foi abordada pela produtora O Som e Fúria, a casa de muito do cinema dito autoral português (como Miguel Gomes, Salomé Lamas e João Nicolau) para fazer uma longa-metragem ao seu livre critério. Aos autores foram somente propostos os meios e as ideias foram debatidas por vias de um “brainstorming de meia hora” (citando João Moreira): o (não) conflito do filme que estende o sketch aos seus limites estéticos e narrativos é, nada mais nada menos, do que um uso da não-criatividade em prol da criatividade (convém afirmar que, nesse pequeno detalhe, o universo caricaturesco e desleixado de Aleixo assume-se como um filme “baseado em factos verídicos").

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Aqui, o espectador vai ver Bruno Aleixo à procura de ideias para o seu filme, que encena deliberadamente diferentes géneros, que vão desde o manhoso "thriller" até à "sitcom" de um só cenário, passando pelo policial com tiques de "Sam Peckinpah" embriagado, que remetem para exemplos que todos podemos reconhecer. A grande questão de “O Filme do Bruno Aleixo” é se o nicho a que se destina o vai limitar e se consegue ser transmissível para fora de Portugal. Não se pode pedir tudo, mas é verdade que a sátira destes "episódios em géneros" se perde na tradução e, com isso, os seus atores e as respetivas conotações sociais, sejam eles Adriano Luz ou Rogério Samora, ou o recurso a Fernando Alvim (com muito abuso de imagem) ou o "zeitgeist" do cinema português de Manuel Mozos.

Fora isso, este é um dedo médio esticado às fórmulas estabelecidas do dito cinema autoral português … sim, porque queira-se ou não, “O Filme do Bruno Aleixo” é a palavra autoral no poder.

O luto que falta!

Hugo Gomes, 22.10.18

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Rithy Panh prossegue na sua demanda pessoal e igualmente identitária de um Camboja que ousa em não ser esquecido, principalmente no seu registo cinematográfico. Depois de “The Missing Picture” e “Exil”, o realizador retorna às suas histórias pessoais para exorcizar o “Karma pesado do Camboja”, os horrores cometidos por um regime intolerante e ditatorial e os testemunhos (para além do seu) que perpetuam o fantasmagórico tecido da ocultação.

São relatos impressionantes e raros, novamente sublinhados pela insaciável busca do autor em conduzir toda uma memória em imagens, que aqui não faltam. Existe a criação dessas, nem que seja pelo diálogo direto da fotografia, as únicas provas de vidas passadas e obliteradas. São pessoas exclusivamente para serem “espancadas e deitadas foras” (o termo segregativo de Vay Tchaol), prisioneiros de quotidianos forçados que as reduzem a objetos viventes, arrastados por uma automatizada noção de sobrevivência (os avisos quanto à necessidade de “comer carne para sobreviver” que levam a não intencionais atos de canibalismo) e contidos aos seus “mundinhos” de miséria (quando o sal se torna a traição de um grupo de subsistência). Elementos que vão contaminando a poesia atentada de Panh que avança em paralelo por cemitérios sem dono, ao encontro de espíritos condenados a uma eternidade em vão. E por entre as florestas, que o próprio evidencia neste documento, habitadas por almas violentadas, as árvores sangram, as mediums choram pelos seus entes queridos e as máscaras confundem cada vez mais com a vegetação.

Lutando com as imagens, continuo a chorar”. “Graves without a Name” é um objeto pessoal, sentido e vivido, e com isso, não desfazendo a sua devoção pelo cinema, Rithy Panh vai além do simples relato, vai atrás da imagem que possa fazer jus a tais palavras. Felizmente, visto que falamos de realizadores vinculados às suas causas e História, Panh não é um Wang Bing, evita a sua passividade nua e aufere dignidade ao seu ativismo.

“Tirei tantas imagens para me esquecer que estava morto”

"Sobre Tudo Sobre Nada": apoiando nos 8mm como ensaio memoralista

Hugo Gomes, 18.08.18

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Será que o cinema consegue ser autobiográfico? Uma pergunta desnecessária, visto que a resposta parece ter sido encontrada há muito tempo, e a juntar isso, a intimidade com que depositamos nas imagens e nos seus simbolismos.

Sobre Tudo Sobre Nada”, de Dídio Pestana, é um filme que nos presta a condição da autorrepresentação, não inserida no valor visual, mas na estrutura deambulante com que coloca a sua experiência de vivente. É um relato filmado a Super 8 (durante oito anos) que por sua vez depara-se com um autêntico molde temporal, as memórias que se depositam e que surgem após o crepúsculo, é o Cinema a servir não como base de uma arte universal, mas um exorcizar das reflexões interiores. Sim, é um cinema no “Eu”, referindo ao “Eu” e que convida os “Outros” a remexer nessas reminiscências e pensamentos, que uma vez libertados são de domínio público.

Sobre Tudo Sobre Nada” é, como o título indica, um rol de experiências como é o nada extraído destas. Ora é a família imortalizada nas memórias e nos leit motiv que servem como atalhos às mesmas, ora são as amizades que gradualmente se convertem em meras visitas, ora as conversas de tudo e de nada (mais uma vez referência), e, por fim, os amores, sejam eles cinematográficos, geográficos e obviamente amorosos. Dídio Pestana apenas expôs-se, e fá-lo de forma egocentrista, mas igualmente serena, humilde quanto às suas capacidades de narração, um contador de história que vai para além das palavras, recorrendo às imagens que valem sobretudo folhas de diários inteirinhos.

É um bonito ensaio, sem com isto declarar o adjetivo como primário e infantilizado. Quem dera que muito do nosso cinema umbiguista tivesse este terra-a-terra das suas intenções, ao invés de cair por campos sem pássaros, silenciosos e pedantes na sua caminhada. Este é simplesmente um filme sobre tudo … e sobre nada. 

O real como nova ficção

Hugo Gomes, 04.12.17

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O que é um género? E como se pode combater essa mesma catalogação que se confunde por entre campos identitários? Em Dragonfly Eyes identificamos o evidente, mas o mesmo é maleável, pronto para transformações, o de romper fronteiras do algoritmo binário do género. Tal como o protagonista, que responde às suas emoções com a transgressão do estereotipo social, Xu Bing opera como “muckraker” por entre imagens soltas, vinculadas a uma realidade óbvia para projetar-se numa insuflada ficção. Podemos criar novos géneros através dos velhos? Aqui se prova que sim.

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"Meteorlar": a existência humana reduzida a fenómeno cósmico

Hugo Gomes, 08.08.17

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Poderá um apelo silencioso ser ensurdecedor? Poderá a Arte levar-nos a esse SOS sem a evidência gritante de um assumido panfleto? E a experimentação, terá lugar como recorrente decifrador de tais mensagens? A começar, é bem verdade que existe um vínculo de ativismo nas imagens trabalhadas de Gürcan Keltek, que expressa poeticamente o conflito turco-curdo, genocídios silenciosos que meio mundo ousa em ofuscar e a limpeza étnica que urgentemente chama-nos às armas. Mas é nesse experimento, de conduzir algo concretamente violento e desumano, desde as imagens-arquivo até à frontalidade do seu tema, que encontramos a transformação de uma bela peça. Confusos? “Meteors” não ostenta um teor de histerismo, pronto a ser consumido pelas audiências conduzidas em julgamentos fáceis. Ao invés disso, é nesta “mercadoria” monocromática que encontramos um descodificar da raiz do “mal”, ou diríamos antes, da nossa natureza, violenta, negra e ao mesmo tempo bela e pacífica.

Existe uma questão sistemática aqui que facilmente condensa todo o comportamento humano, o ser social e ao mesmo tempo desassociado, o eterno sonhador do alcance divino, e provavelmente cósmico. Contudo, neste mesmo sistema, a integração encontra-se de costas voltadas com a desintegração, a luta enviesada na opressão e o agressor tão próximo da vitima, palavras-chave que desenham uma espécie de círculo invisível em constante turbilhão, a órbita que este documentário indicia em toda a sua narrativa, uma linha contínua simultaneamente desconectada em seis partes. A Morte está presente neste mesmo "círculo" montado, operando como um núcleo-vetor da circunferência impregnada em imagens de arquivo e da encenação ficcional induzida num tom fabulista.

A fábula parte dos caçadores de cabras-monteses do Monte Nemrut, orquestrando a luta desigual entre homem e bicho, o primeiro esperando e espreitando como fera indomável, onde a posse de pólvora o separa do reino animal. O cabrito indefeso sucumbe então face às balas “não se sabe donde”. Estes primeiros minutos transmitem por completo o nosso status, os nossos sonhos existencialistas de chegarmos aos “aposentos dos deuses”, obter a capacidade de decidir a morte e a vida num ápice. Nesse aspecto, só com a morte somos capazes de deter. Consequentemente, o espectador é levado a um bombardeio, mísseis de um inimigo “invisível” castigam severamente quem ousa estar no seu caminho. Há um paralelismo entre estas duas situações, o caçador que recusa o duelo “animalesco” com a sua presa, e a artilharia de longo-alcance que deseja desconhecer por completo as suas vítimas. Sim, queremos ser deuses à força, porém, só uma "dádiva" conhecemos. Estringindo as famosas palavras de J. Robert Oppenheimer:I am become Death, the destroyer of worlds.

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Todavia, os verdadeiros deuses observam-nos e pedem para parar, e esse sinal é nos introduzido sob a forma de uma chuva de meteoros, recebidos sob pânico pelos mortais, onde as luzes e o sonoro tanto se assemelham ao tal fogo inimigo. É nos ditos que o conflito pausou por momentos perante esses objetos cósmicos, belos encadeamentos que nos revelam simplesmente aquilo que ignoramos constantemente – somos pequenos – não na escala universal, mas mundial. O satírico poeta britânico Samuel Butler (1612 – 1680) previa esses alertas de outros mundos, a imponência que nos fragiliza, o nosso ego, principalmente, esse antropocentrismo prejudicável. Inserido no primeiro canto de Hudibras, escreveu o seguinte:

“This hairy meteor did denounce

The fall of sceptres and of crowns ;

With grisly type did represent ‘

Declining age of government,

And tell with hieroglyphic spade,

Its own grave and the state’s were made.”

 

É certo que tais visões soam longe do profético e aproximam-se da inutilidade que o rumo do conflito seguiu. Gürcan Keltek sabe perfeitamente desse ato que só enriquece esta sua visão montada.

Aliás por entre a recolha de imagens que nos exibem um povo “unido pelo barulho que faz”, que enumeram os seus contactos mortuários como prémios de uma vivência por um fio, existe uma tendência de encenar, colocar uma aproximação do espectador com o real, as memórias de um Ocidente desmoronado a assistir ao desmoronamento do Oriente. Assim, essa fenomenologia passa pelos olhos da atriz Ebru Ojen, que se insere nesta partitura da mesma forma que Emmanuelle Riva integrou o pesar de Hiroshima, no belo filme de Alain Resnais. Deste lado ouve-se: “tu nada viste sobre o Curdistão” de igual tom e sonoridade. E sim, nada vimos, nem antes, nem depois de “Meteors”. Todavia, foi nesta viagem que percebemos o quanto nada vimos sobre nós, a nossa real existência.

As Amazonas do Sul

Hugo Gomes, 30.05.17

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O que realmente falta a este novo cinema americano, é a sua destreza na provocação, é a escapatória dos moldes implantados pela indústria, mesmo que, no caso de Sofia Coppola, ela represente uma espécie de outsider do badalado cinema mercantil. “The Beguiled” é a quinta longa-metragem da filha do lendário realizador de “The Godfather” e “Apocalypse Now”, uma aventurosa que tem vindo a emancipar-se da sombra do seu pai e desta forma difundir a sua voz no legado cinematográfico de Hollywood.

A conquista desta feita é um filme de 1971 de Don Siegel, protagonizado por Clint Eastwood, decorrida numa América mergulhada na sua Guerra Civil, onde um soldado da união, ferido, é acolhido e tratado por uma jovem rapariga sulista numa escola feminina. A referida obra espelhava uma guerra que se travava a metros do cenário da ação, uma casa onde se debatia dois lados ideológicos, assim como dois géneros em plena dominância. Contudo, bem verdade, que a versão de 1971 adquiria um rígido tom masculino, um filme sobre uma violência invisível que nos levaria, a certo ponto, à demonização da própria mulher. É aí que Sofia Coppola tem as armas perfeitas para expor a sua visão enquanto mulher.

Notavelmente verificamos essa perspectiva por uma câmara focada nesta comunidade de “amazonas”, mulheres restringidas ao seu refúgio enquanto homens combatem as suas politicas. Averiguamos que o sexo masculino, por mais diferente seja a farda, continua, no seu fundo, como um ser de ambições dominantes, um verdadeiro elemento alfa em construção. Os dois filmes dialogam um com o outro nesse sentido. Porém, a versão de Coppola sai a perder num determinado ponto, é demasiado anorética.

Uma hora e meia é pura velocidade, o espectador nunca consegue ter a noção de espaço nem de tempo do filme, nunca chegamos a conhecer verdadeiramente estas personagens (e aqui não se trata de mistério, é mesmo falta de ligação) e nota-se, verdadeiramente, um senso cosido do politicamente correto. É um filme inofensivo que se quer fazer grande, mas que esquece do ainda mais óbvio, de emanar a sua própria ideologia, a capacidade de estabelecer um clima de conflito, quer interior, quer exterior. Sofia Coppola torna-se incapaz de tal coisa e o mesmo se aplica à sua relação com a violência. Os actos cometidos poderiam ter o mesmo conteúdo que uma banal conversa de café, não se vive, não se sente, não se respira, é pura automatização (ainda há quem acuse de Tarantino ter tornado tal num gesto confundível a quotidianos).

Contudo, Coppola significa estética, a fotografia trabalhada e agradavelmente primitiva, a luz das velas que aquecem a mais densa escuridão (“The Beguiled” encontra-se no mesmo território que um “Barry Lyndon”), os bosques que não são mais que fronteiras para uma Guerra a acontecer longe, os canhões ouvem-se constantemente. Nesse sentido, entramos noutro atributo de “The Beguiled”, o som. O eco que intrusa nos diálogos das personagens, assim como os passos ocasionais que nos atribuem um plano sugestivo de espaço sonoro (pena que ela não consolide isso com a narrativa).

The Beguiled" é isso mesmo, uma produção construída sob adereços, sob cores e ruídos, mas o vazio acaba por reinar nesta guerra entre sexos. É pena, porque o filme de ’71 precisava do seu sexo oposto, com igual capacidade para transgredir. Longe do memorável.