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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Giulia Louise Steigerwalt entre Moana, Cicciolina e a revolução que o desejo não salvou: “Esse é o meu cinema. É aí que está o meu olhar."

Hugo Gomes, 24.05.25

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A constelação de divas que uma visão proporcionou fez do entretenimento algo mais do que uma simples passagem ou um instantâneo escapismo. Digamos, é na fantasia — essa que se esconde para não ser rastreada pelos julgamentos da praça pública — que reside numa forma de liberdade, individual e, consequentemente, sexual

Riccardo Schicchi foi um desses impulsionadores. Fundador da Diva Futura, produtora de filmes pornográficos dos anos 80, estendeu uma passadeira vermelha de estrelas numa Itália ainda em conturbação com os seus desejos. Moana, Cicciolina, Eva Henger, entre outras, corpos entregues ao manifesto, preenchendo o libido dos espectadores, os sonhos mais íntimos e húmidos dos seus fãs. Porém, é nessa ligação com Schicchi que a maldição se desenrola. À imagem de todos os ciclos, existe um fim …  mas antes disso, uma decadência: começa pela moral, segue-se a estética e, rapidamente, proclama-se como a mais corrosiva das quedas.

Não se falou apenas de uma agência. Falou-se de um golpe num movimento livre, transgressor e antipuritano. Como lidar com o choque?

Diva Futura” assume-se parcialmente como uma biopic de Schicchi, concentrando-se na sua “pegada” (ou, diríamos melhor, no seu legado) e na órbita de beldades que ambicionavam sair das suas poses de simples pin-up. O filme, estreado no Festival de Veneza e com direito a encerrar a Festa do Cinema Italiano, chega agora às salas comerciais portuguesas com a promessa de libertar as mentes dos aprisionados, ou... conduzi-las a imagens desta envergadura.

O Cinematograficamente Falando … conversou com a realizadora Giulia Louise Steigerwalt sobre divas, pornografia, olhares, desejos e Schicchi como o herói traído pela perversão que acidentalmente criou.

Pergunta simples e, acredito, já bastante repetida: porquê este filme, e porquê Riccardo Schicchi?

Essa pergunta pode parecer repetitiva, mas para mim não é. Tudo começou quando li o romance da Deborah Attanasio [“Non dite alla mamma che faccio la segretaria”], e o que encontrei ali foi completamente diferente do que esperava daquele mundo. Depois tive a oportunidade de conhecer algumas das personagens reais e de aprofundar os acontecimentos, e devo dizer que continuei a ser surpreendida. Tudo foi muito inesperado!

Dentro daquele universo, descobri uma história profundamente comovente e, até certo ponto, romântica. Além disso, tratava-se de um recorte muito interessante dos costumes italianos, algo que ainda não tinha sido contado, mas com um lado muito encantatório. E mais: havia temas que continuam extremamente atuais. A narrativa cobre desde os anos 70 até os 90, estendendo-se até 2012, com a morte do próprio Schicchi, e mesmo assim, continua a dialogar com questões muito presentes nos dias de hoje: o que significa, afinal, ser uma família? Para além das definições rígidas, eles eram realmente uma grande família.

No plano pessoal, o Schicchi criou uma família muito bonita. Também havia a questão do amor: o que significa amar alguém e, ao mesmo tempo, deixá-lo ser livre? E qual a importância do consentimento quando falamos de sexualidade? Essa ideia estava na base da filosofia de Schicchi. Tudo isso me levou a querer contar esta história, que embora pertença ao passado, senti que ainda era incrivelmente viva e atual — sobretudo se contada do ponto de vista de uma mulher de hoje.

Sobre o elenco: como chegou a Pietro Castellitto para interpretar Riccardo Schicchi? E, sobretudo, como foi o processo de seleção das atrizes que interpretam as estrelas porno retratadas no filme? Refiro-me, claro, a figuras como Moana Pozzi e Cicciolina. Houve uma preocupação em reproduzir fielmente a sua imagética, os seus corpos?

Em relação ao Pietro Castellitto, ele foi o primeiro nome que me surgiu. Desde o início, queria muito trabalhar com ele. Tinha um grande apreço pelo seu trabalho e achava mesmo que era a pessoa mais adequada para dar vida ao Schicchi. É um ator extremamente talentoso e, embora já tivesse expectativas altas, ele conseguiu surpreender-me ainda mais. O Pietro tem aquela mistura que procurava: um olhar sonhador, uma certa ingenuidade, mas também uma faísca, uma energia quase mágica, algo quase de duende, diria [risos]. Fiquei muito feliz com o resultado, e trabalhar com ele foi verdadeiramente um prazer.

Quanto à escolha das atrizes para interpretar figuras tão icónicas como Moana Pozzi, Cicciolina ou Eva Henger, confesso que me preocupava bastante. São mulheres que fazem parte do imaginário coletivo italiano, ícones reais, e claro que havia a questão da semelhança física, da presença, dos corpos... mas, para mim, o mais importante era a capacidade interpretativa. Queria atrizes que conseguissem transmitir emoção, empatia, que fossem capazes de nos transportar verdadeiramente para dentro da história. Todas as que escolhemos são atrizes muito talentosas, muito preparadas, e sim, também são todas bonitas, mas o critério principal foi mesmo o talento.

No fim, aquilo que inicialmente me parecia um grande desafio — este processo de casting — acabou por se tornar algo mais simples, graças à qualidade das atrizes. O foco foi sempre na força emocional do filme, e creio que conseguimos manter isso como prioridade.

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Pietro Castellitto, Giulia Louise Steigerwalt e Barbara Ronchi no Festival de Veneza

O seu filme apresenta Riccardo Schicchi quase como uma figura beatificada, um visionário ingénuo e incompreendido. Não teme que esta abordagem, pouco crítica e algo adocicada, acabe por desresponsabilizá-lo das dinâmicas de poder e exploração que marcaram o universo pornográfico da época?

Compreendo essa leitura, mas para mim não se trata de uma abordagem acrítica. Antes de mais, é importante sublinhar que Schicchi não tinha qualquer atitude agressiva em relação às mulheres. Ele foi o primeiro a trazer a pornografia para Itália, e mais tarde arrependeu-se do que isso se tornou. Há uma clara distinção entre a visão inicial que ele tinha e o rumo que a indústria acabou por seguir.

Se olharmos para os filmes que ele realizava, conseguimos perceber um certo olhar artístico, há uma dimensão quase de conto de fadas, são trabalhos encantados, lúdicos, nunca agressivos. Há, aliás, uma intenção artística visível. Todas as pessoas que o conheceram, mesmo aquelas que hoje fazem parte de mundos completamente diferentes, dizem-me: “Finalmente alguém fez justiça à imagem dele.” Muitos deles viam-no como realizador e fotógrafo, mais do que como produtor, e não esperavam que a pessoa que trouxe a pornografia para Itália fosse tão... humana.

O que me interessou, precisamente, foi esse contraste: uma personagem quase infantil, ingénua, com uma visão muito própria sobre a sexualidade. Schicchi sempre se posicionou contra qualquer forma de encenação de violência nos filmes pornográficos. Ele não conseguia aceitar a associação entre sexualidade e violência: especialmente violência contra a mulher. Dizia: “Porque é que temos de ensinar às pessoas que podem excitar-se com a agressão a uma mulher?

Hoje, infelizmente, 95% da pornografia mainstream é violenta e isso exige que o espectador (muitas vezes muito jovem, estamos a falar de crianças de 12 anos a acederem a esse conteúdo) se identifique com essa violência. Há um momento catártico em qualquer narrativa, e a pornografia acaba por pedir ao espectador que se identifique com atos violentos. É assustador!

Neste contexto, a abordagem de Schicchi pareceu-me quase feminista. Mesmo sendo ele quem iniciou a exploração do corpo feminino na pornografia, havia nele um profundo respeito e uma consciência ética, e, mais tarde, um arrependimento verdadeiro. Ele percebeu que, uma vez aberta a “caixa de Pandora”, não se podia controlar o que os outros fariam com essa liberdade. Por isso, não encaro a minha abordagem como acrítica. Vejo-a como fiel ao que recolhi em tantos testemunhos. Esta figura contraditória — criador e crítico, idealista e arrependido — é precisamente o que me fascinou. É por isso que acredito que a sua história, e o debate em torno dela, continuam tão atuais.

Não achas que também contribuímos para isto tudo?”, pergunta Debora Attanasio (interpretada por Barbara Ronchi) num momento do filme que marca a transição para uma pornografia mais violenta e misógina — em contraste com a fantasia idealizada por Riccardo Schicchi. Como vê a evolução da pornografia até aos dias de hoje? O que mudou? E o trabalho de Schicchi tinha mesmo esse valor fantasioso, ou, no fundo, era apenas a mesma coisa, mas com outra estética?

Essa questão é muito importante. A verdade é que, a partir de certo momento, a pornografia começou a associar-se, de forma estrutural, à violência e isso tem consequências profundas, sobretudo hoje, com a disseminação massiva de conteúdo pela internet. O acesso é praticamente ilimitado, transversal, e começa muito cedo: as estatísticas indicam que muitos jovens têm o primeiro contacto com pornografia aos 12 anos.

O problema é que, em muitos casos, a pornografia tornou-se uma espécie de “educação sexual silenciosa”, feita fora de qualquer contexto crítico ou afetivo. Isso molda o imaginário das novas gerações de forma altamente manipuladora, e quando 95% dos conteúdos pornográficos são violentos — especialmente para com as mulheres — estamos perante um problema cultural gravíssimo.

No passado, muitas culturas representaram o erotismo ou o desejo, mas não necessariamente com essa carga de violência. Isso é algo específico da nossa época. No caso do Schicchi, o seu trabalho tinha, de facto, uma abordagem diferente. Encontrámos mais de 300 storyboards desenhados à mão por ele, alguns até foram usados no filme. Ele pensava visualmente, como um artista. Havia ali uma tentativa, talvez ingénua, de fazer algo com valor estético. Uma espécie de fantasia, sim … mas com respeito.

Desde muito jovem, ainda criança, Schicchi tinha uma enorme curiosidade pelo corpo feminino. Era algo quase sem pudor, mas não no sentido agressivo: ele olhava com fascínio, com uma curiosidade quase clássica, como a dos gregos antigos. Não havia violência no seu olhar, havia apenas desejo e admiração. No entanto, mesmo com essa abordagem, ele acabou por contribuir — involuntariamente — para a mercantilização do corpo da mulher. O que começou como um movimento de amor livre, herdeiro da contracultura dos anos 70, acabou por alimentar uma cultura de exploração que se tornou dominante.

Schicchi e Cicciolina foram, à sua maneira, revolucionários. Chegaram até ao Parlamento, quebraram tabus, enfrentaram o conservadorismo com provocações políticas e estéticas. Mas, ao mesmo tempo, abriram uma porta que não conseguiram fechar, e ele sabia disso. No final da sua vida, confessou a várias pessoas que se arrependia, não da pornografia em si, mas daquilo que, sem querer, acabou por desencadear.

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Há uma sequência do filme de que gosto particularmente — ao som de “Break My Body” de Hanne Hukkelberg — em que Eva Henger (interpretada por Tesa Litvan, com quem já trabalhou em “Settembre”) reentra na indústria pornográfica, num estúdio em Budapeste, e percebe a sua decadência. O filme sugere que essa decadência é resultado da sobreprodução pornográfica. Acha que essa "sobrepornografia", tão presente nos dias digitais de hoje, contribui não só para a banalização da pornografia, mas também para a vulgarização da fantasia?

Essa sequência foi realmente importante para mim. Mostra o momento em que Eva entra num circuito completamente diferente daquele que conhecia — um ambiente frio, impessoal, onde as mulheres são tratadas com enorme desrespeito. Ela percebe ali a brutalidade daquela nova realidade, marcada por um tipo de pornografia que já não tem qualquer preocupação estética ou emocional.

Concordo que há um fenómeno de sobreprodução, sim — uma quantidade absurda de conteúdos produzidos em série, sem cuidado, sem ética, quase sem humanidade. Mas, mais do que a quantidade, o que me preocupa é o tipo de abordagem que se tornou dominante: uma abordagem muitas vezes violenta, desrespeitosa e completamente alheia ao consentimento. As mulheres são frequentemente tratadas como objetos descartáveis. Muitas das atrizes com quem falámos durante a pesquisa relataram experiências profundamente traumáticas e é importante dizer: só porque uma mulher escolhe ser atriz pornográfica, isso não significa que o seu consentimento está garantido em todas as situações. Isso precisa de ser respeitado a cada momento, em cada cena.

E é aqui que, para mim, Riccardo Schicchi se destaca. Ele tinha uma sensibilidade diferente. Muitas vezes acolheu atrizes que vinham de experiências traumáticas noutros contextos e ofereceu-lhes alternativas: punha-as a trabalhar noutros setores, fora das filmagens, dava-lhes tempo, ou mesmo sugeria que parassem se percebia que estavam mal. Ele não compreendia como era possível filmar com alguém que estava em sofrimento. Para ele, isso era impensável.

Portanto, mais do que a quantidade de pornografia, o verdadeiro problema está na forma como se olha para a mulher, e como se trata a atriz que está ali, a desempenhar um papel. O respeito, o cuidado, o consentimento: são esses os pilares que se perderam ao longo do tempo. E é isso que a sequência em Budapeste tenta mostrar com tanta força.

Muito se discute hoje sobre o male gaze, o “olhar masculino”, e segundo muitos teóricos, aquilo que não faltava na indústria pornográfica dos anos 70 e 80 era precisamente essa glamourização do olhar masculino. Tenho curiosidade em saber: ao olhar para esse universo, sentiu a necessidade de mimetizar esse olhar ou tentou desconstruí-lo?

Foi uma questão que me coloquei desde o início. Contar uma história que nasce dentro da indústria pornográfica inevitavelmente obriga-nos a pensar sobre o olhar, e sobre como representar o corpo feminino. Sabia que teria de lidar com a nudez, com o erotismo, com a exposição do corpo. Mas como fazê-lo sem replicar o male gaze?

A resposta que encontrei foi seguir a emotividade das personagens. Não quis fazer disso um manifesto explícito nem uma desconstrução forçada. O que fiz foi colocar o meu próprio olhar: um olhar profundamente empático, natural, e, acima de tudo, feminino. Para as personagens retratadas, o corpo nu era algo natural, desprovido de escândalo. Quis respeitar isso.

Por isso, não me preocupei em mimetizar o olhar masculino, nem em desconstruí-lo sistematicamente. Simplesmente adotei o meu. Um olhar que procura estar com as personagens, sentir com elas. Por exemplo, naquela sequência da Eva Henger ao som de “Break My Body”, o meu instinto foi ficar com ela, com a sua dor, com a sua experiência naquele set pornográfico moderno, frio e desumanizado. Todo o resto (o cenário, os outros, a ação à volta) está desfocado, quase fora de campo. Porque o foco, para mim, era a sua vivência interior, a sua desilusão, a sua vulnerabilidade.

Esse é o meu cinema. É aí que está o meu olhar.

No final do filme, fica-se com a sensação de que a Itália vive um ambiente puritano-moralista, quase castrador das fantasias — tanto masculinas como femininas. No seu entender, Riccardo Schicchi pode ser visto como um visionário dessa transgressão, que talvez não tenha conseguido levar até ao fim? Ou será antes um cúmplice da própria ambiência moral e política que se vive hoje?

A Itália é um país cheio de contradições. O peso da Igreja é uma presença constante e isto não é uma crítica à Igreja, mas sim uma constatação de um facto cultural: há uma forma muito italiana de lidar com o que é considerado “pecado”. Ou seja, tudo o que permanece escondido, silencioso, quase subterrâneo, é tolerado. Mas quando alguém tenta trazer isso à luz do dia, torna-se alvo de julgamento e moralismo. Riccardo Schicchi foi, nesse sentido, um verdadeiro anticonformista. Ele quis fazer uma revolução de costumes e, de certa forma, conseguiu. Mas não conseguiu completá-la. O seu objetivo era tornar tudo isto mainstream, visível, legítimo aos olhos da sociedade. E foi precisamente por isso que foi silenciado.

Curiosamente, aqueles que continuaram a explorar a sexualidade nas sombras (em clubes noturnos, em contextos marginais) nunca foram tão atacados quanto ele. Com Schicchi houve uma espécie de “perseguição” porque ele queria essa revolução à luz do sol. Na cultura italiana, ainda hoje, isso é algo dificilmente aceite. Portanto, não o vejo como culpado. Vejo-o como alguém que tentou desafiar uma estrutura profundamente moralista, mas que acabou tragado pelas contradições do próprio país. No fundo, essa é também a contradição central da história italiana: a convivência entre um desejo de liberdade e uma estrutura cultural que permanentemente a limita.

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Hoje em dia, tanto Moana Pozzi como Cicciolina são vistas mais como figuras icónicas do que como atrizes pornográficas no sentido estrito. Em Portugal, por exemplo, praticamente toda a gente sabe quem é Cicciolina — mesmo que muitos nunca tenham visto um único filme protagonizado por ela. Podemos então considerar figuras como elas ao nível de uma popstar ou rockstar? Ou talvez algo mais?

Sem dúvida, Moana e Cicciolina foram verdadeiras divas do universo pornográfico, mas mais do que isso. Tornaram-se ícones culturais de uma época e é importante dizer que esse tipo de fenómeno, tal como aconteceu com elas, seria impossível de repetir hoje.

Naqueles anos, elas não eram apenas figuras do cinema adulto. Estavam em todo o lado. Participavam regularmente nos programas de televisão mais populares, integravam o imaginário coletivo. No filme, incluí até algumas dessas participações. Eva Henger, por exemplo, apresentou o “Paperissima”, um programa de grande audiência, e bateu recordes de telespectadores. Moana e Cicciolina chegaram até ao Parlamento italiano, eleitas. Isso hoje seria impensável. Elas simbolizavam uma verdadeira revolução dos costumes. Por isso, sim … eram como popstars. Tornaram-se parte integrante da cultura pop, do debate cultural e político do seu tempo. Cicciolina, por exemplo, é conhecida em todo o mundo não apenas pelos filmes, mas por ter casado com Jeff Koons e por ter sido parte da sua obra artística. Ela transcendeu completamente o rótulo de atriz porno.

Moana, por sua vez, tinha a ambição de se reinventar, de reformular a sua imagem. O filme fala disso. Queria explorar outros papéis, mas foi-lhe negado esse direito. A sociedade não permitiu. Em vida, foi constantemente reduzida à sua identidade pornográfica. Só depois da sua morte foi reconhecida como uma mulher elegante, inteligente e uma figura de culto.

O que aconteceu com elas foi um fenómeno muito particular. Foram desejadas e idolatradas... mas também condenadas. A sociedade queria-as, mas simultaneamente empurrava-as para a margem. E isso, mais uma vez, revela aquela velha contradição italiana de que falávamos antes: um país entre o desejo de liberdade e um moralismo persistente.

Uma das resistências mais marcantes de Moana — e isso está bem retratado em “Diva Futura” — é a sua vontade de se emancipar do universo que a consagrou. Mas, infelizmente, parece nunca ter conseguido vingar noutros espaços. Em várias entrevistas, que o filme reproduz, Moana afirma que ser atriz pornográfica é uma espécie de maldição — uma vez dentro, nunca se sai. Concorda com essa visão?

Sim, na verdade, essa pergunta liga-se diretamente à anterior. Moana — como muitas outras — escolheu entrar na pornografia porque, naquele momento, não sentia estar a fazer algo “errado”. Havia uma naturalidade na relação com o corpo, com o desejo. Mas também havia o sonho de usar aquele caminho como trampolim para algo maior, para o estrelato, para o cinema convencional. Ela queria, de facto, ser atriz. Fez testes, tentou entrar noutros circuitos. Mas, como ela própria dizia, uma vez atriz pornográfica, para sempre atriz pornográfica. É como uma marca que nunca desaparece. Uma espécie de letra escarlate que a sociedade impõe.

E o mais paradoxal nisto tudo é que essa mesma sociedade que a condena... é também a que mais a deseja. É essa duplicidade que o filme tenta expor: a hipocrisia em que se consome com entusiasmo, mas se rejeita com moralismo. Eva Henger diz isso muito bem numa entrevista: elas não tinham as ferramentas para compreender completamente o que estavam a fazer, especialmente se tinham sonhos além da pornografia. A ilusão era de que podiam sair quando quisessem. Mas não podiam.

E mais ainda: há um duplo padrão muito claro. Os homens raramente são julgados com a mesma severidade. As atrizes são mais estigmatizadas, mais silenciadas. Foi algo que quis iluminar: essa diferença de tratamento, essa injustiça profundamente enraizada.

Com "Diva Futura", teve alguma reação dos familiares de Schicchi — refiro-me aos filhos, a Eva Henger, ou até mesmo à Cicciolina?

Sim. Recebi algumas reações dos familiares de Schicchi, como os filhos, a própria Eva Henger, e o atual marido dela, Massimiliano, além da Débora, do marido de Moana, Antonio, e muitas outras pessoas que colaboraram na agência naquele tempo. Eles participaram bastante, contaram muitas histórias e ajudaram-me a construir o filme.

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Quanto à Cicciolina, infelizmente não conseguimos estabelecer contacto com ela, também pelo desenvolvimento do filme. A reação dos que participaram foi muito positiva. Por exemplo, todos eles estiveram na estreia do filme no Festival de Veneza, no ano passado, e ficaram muito felizes e emocionados.

A Eva disse que, em muitos momentos, voltou a sentir o Ricardo ali, e o Pietro Castellitto, fez um trabalho impressionante estudando os vídeos, a forma de falar e os gestos do Riccardo [Schicchi], para capturar também a parte emotiva da personagem. Os filhos, a Eva, o Massimiliano, demonstraram-se muito emocionados e satisfeitos com o resultado. A Débora contou que, ao rever o filme, sentiu que estava a reviver aqueles anos, que foram alguns dos mais divertidos das suas vidas.

A cena no mar, no final do filme, é uma memória real, e eles se reconheceram completamente naquele retrato. Para mim, isso foi o mais importante: que eles sentissem que a história escolhida respeitou e refletiu realmente quem eles são e o que viveram.

E para finalizar, quanto a novos projetos?

Em relação a novos projetos, estou a tentar perceber o que fazer. Não quero parecer misteriosa, mas ainda estou a explorar possibilidades, por isso, e por enquanto, não tenho nada de concreto para partilhar.

Vida selvagem italiana ...

Hugo Gomes, 03.03.22

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Nem tudo o que brilha é ouro, nem tudo o que é corrosivo e italiano é Sorrentino.I Predatori” segue a tendência de filmes-mosaicos que têm surgido perante a sociopolítica italiana contemporânea, tentando abraçar uma suposta linguagem irreverente e modernista (isto se o cinema não estivesse, praticamente, todo “inventado”).

Pietro Castellitto, filho do ator e realizador Sergio Castelitto (“Non ti muovere”), coloca em prática essa demanda de descortinamento de quotidianos suburbanos através de um enredo retalhado e esquartejado em sketches tragicómicos. Desta forma, deparamos com um veio condutor nos seus aparentes objetivos, ao encontro de uma moral epifânica que possa interligar aquelas histórias soltas, absurdistas e caricatamente cruéis, indivíduos terríveis e de má índole cuja empatia é por si só um desafio. Contudo, nessa procura de redenção ao execrável e à imoralidade, é possível entender um gesto coennesco de Castellitto na sua partitura, seja na procura de resoluções felizes aqueles descaracterizados humanos, seja pela oferenda empática num dos mais questionáveis personagens deste “punhado”.

Há quem chame filme de karma, há quem veja obscenidade na sua isenção de moralidades impositoras, e sobretudo há quem aponte provocação gratuita (anedoticamente representado naquele “jantar de família”, com rappers improvisados e privilegiados que somam palavras vazias e meras causas existencialistas). Ora bem, Castellitto se esforça em deixar uma marca sua (sendo uma primeira longa-metragem é impossível indicar com precisão) e ao mesmo tempo consoladora do cinema tendencial italiano, com apostas breves a uma estética abjeta (veja-se o tênis de mesa enfeitado com símbolos de identidade italiana) e de diálogos metralhados como posts de Tweet, e de igual efemeridade.

Quanto às comparações de Paolo Sorrentino, o estilismo e espiritualismo com que invade as suas obras é absolutamente nula aqui, porque nem sempre o que grasna é automaticamente pato. 

 

”Achas que foram os Lumières que inventaram o Cinema?” 

“Quem diabos são eles?”